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ANA FLÁVIA VALENTE TEIXEIRA BUSCARIOLO ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 2021 Ana Flávia Valente Teixeira Buscariolo PRESIDENTE Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM DIRETOR GERAL Jorge Apóstolos Siarcos REITOR Frei Gilberto Gonçalves Garcia, OFM VICE-REITOR Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO Adriel de Moura Cabral PRÓ-REITOR DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO Dilnei Giseli Lorenzi COORDENADOR DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD Renato Adriano Pezenti GESTOR DO CENTRO DE SOLUÇÕES EDUCACIONAIS - CSE Fernando Rodrigo Andrian CURADORIA TÉCNICA Ermelinda Maria Barricelli DESIGNER INSTRUCIONAL Luiza Cunha Canto Correia de Morais REVISÃO ORTOGRÁFICA Ana Carolina Martins DIAGRAMADOR Daniel Landucci CAPA Daniel Landucci © 2021 Universidade São Francisco Avenida São Francisco de Assis, 218 CEP 12916-900 – Bragança Paulista/SP CASA NOSSA SENHORA DA PAZ – AÇÃO SOCIAL FRANCISCANA, PROVÍNCIA FRANCISCANA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DO BRASIL – ORDEM DOS FRADES MENORES ANA FLÁVIA VALENTE TEIXEIRA BUSCARIOLO Doutoranda em Educação na área de Ensino e Práticas Culturais, pelo grupo LOED, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Mestre em educação na área de Psicologia Educacional (2015) pela Unicamp. Especialista em Neu- ropsicologia aplicada à Neurologia Infantil (2009) pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Graduada em Pedagogia (2004) também pela Unicamp. Atualmente atua como professora-alfabetizadora na EMEF Edson Luis Lima Souto, da rede Municipal de Cam- pinas. Coordena o grupo de trabalho sobre Pedagogia Freinet nesta mesma escola. Atua como professora convidada nos cursos de Pós graduação em Educação na FACP (Fa- culdade de Paulínia). É membro da diretoria da REPEF - Rede de Educadores e Pesqui- sadores da Educação Freinet, filiada à FIMEM - Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna. É também integrante da ABALF - Associação Brasileira de Alfabeti- zação. Como pesquisadora, interessa-se pelos estudos que envolvem os processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem escrita, numa perspectiva histórico-cultural, pelo trabalho sobre formação de professores e por práticas pedagógicas pautadas no referencial freinetiano. O AUTOR SUMÁRIO UNIDADE 01: Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento ............................. ....6 1. História da Alfabetização: conceito e sua historicidade ......................................................6 2. O surgimento do conceito de letramento e as correntes teóricas que o orientam ... .... ..14 3. Alfabetização e Letramento - reconhecendo e diferenciando os conceitos .................. ..16 4. Freinet e a alfabetização .....................................................................................................20 5. Paulo Freire e a alfabetização ............................................................................................31 UNIDADE 02: As bases teóricas ...............................................................................................42 1. As contribuições da psicologia para o processo de alfabetização ................................. ..42 2. A psicogênese da língua escrita e o aporte teórico piagetiano ...................................... ..45 3. Alfabetização como processo discursivo, pautado nos fundamentos da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano .....................................................................52 4. As contribuições da linguística para o processo de alfabetização e letramento ........... ..62 UNIDADE 03: Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais .... ..72 1. Letramento e gêneros textuais – conceitos de gêneros textuais, o trabalho com gêneros no processo de alfabetização ..........................................................................72 2. As prescrições oficiais para a alfabetização: Revisão histórica de do conceito de alfabetização nas Leis e documentos oficiais: Constituição, LDB e PCNs, RCNEI e BNCC. .....................................................................................................................84 3. Alfabetização e a criança com deficiência .........................................................................89 UNIDADE 04: Teoria e prática .................................................................................................100 1. Letramento e Métodos de alfabetização: descrever os principais métodos de alfabetiza- ção a orientação teórica ........................................................................................................100 2. O ambiente material e social e o papel do professor na sala de aula: a importância do ambiente alfabetizador ..........................................................................................................107 3. A prática dos professores que atuam em classes de alfabetização .............................114 4. Atividades práticas: a organização da sala para o trabalho com alfabetização ............115 Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 6 1 UNIDADE 1 CONHECENDO OS CONCEITOS DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO INTRODUÇÃO Nesta unidade, visitaremos a história da alfabetização, para contextualizarmos histori- camente esse conceito. Também discorreremos sobre os temas letramento e alfabetização, buscando, para além de conceituá-los, encontrar os pontos de aproximações e de divergências entre esses termos tão em voga no campo educacional, trazendo ao diálogo importantes referências sobre esses assuntos – Magda Soares, Angela Kleiman e Maria do Rosário Mortatti são algumas delas. Abordaremos, ainda, o construto teórico de outros autores, como o francês Célestin Freinet e o brasileiro Paulo Freire, que, de lugares distintos, lançaram mão de estraté- gias de trabalho para a aquisição da linguagem escrita que contemplam a ideia de que alfabetizar é mais do que codificar e decodificar palavras. 1. HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO: CONCEITO E SUA HISTORICIDADE Compreendemos como alfabetização a capacidade de ler e escrever, codificar e deco- dificar os símbolos de nossa língua escrita. Etimologicamente, a palavra alfabetização significa “levar à aquisição do alfabeto”. Sabemos que na discussão sobre esse conceito encontramos divergências entre os defensores da alfabetização como um processo permanente – que se estende por toda a vida do ser humano – e aqueles que defendem a alfabetização como a capacidade de ler e escrever convencionalmente, dominar o código apenas. Antes de entrarmos nessa “arena de lutas” sobre alfabetização, vamos conversar sobre “a alfabetização e sua história”, e, para isso, retomar os primórdios da linguagem escrita. A escrita representa um marco para a história da humanidade, partindo da necessidade do homem de se comunicar, criar registros, marcas de sua história. Os mais antigos registros es- critos foram encontrados na Mesopotâmia e atribuídos aos sumérios, há mais de 5.500 anos. Essa primeira forma de escrita da humanidade foi a escrita cuneiforme, que tinha como função manter o controle sobre a vida contábil dos palácios reais, era gravada em grandes blocos de argila por intermédio de um instrumento pontiagudo chamado cunha. 7Alfabetização e Letramento 1Figura 01. Bloco de argila contendo registros mesopotâmicos feitos na escrita cuneiforme Fonte: 123RF. Existem também registros de escritas feitas pelos homens primitivos, muitos deles en- contrados por arqueólogos em cavernas. Essa escrita se apresenta na forma de picto- gramas, que se relacionam ao formato do objeto a ser representado, e ainda escritas em ideogramas, nas quais cada ideograma corresponde a uma palavra. Assim, para representar uma ideia, são usados vários ideogramas, o que torna a sentença escrita bastante extensa e complexa. Figura 02. Pintura rupestre, escrita pictográfica Fonte: 123RF. Conhecendo os conceitosde alfabetização e letramento 8 1 Com o passar do tempo, a escrita foi adquirindo valores fonéticos, ou seja, os símbolos passaram a representar fonemas, o que reduziu a quantidade de símbolos usados para comunicar uma ideia, simplificando a comunicação. Ainda hoje, algumas sociedades utilizam a escrita pictográfica e ideográfica, como é o caso dos chineses. Ao revisitarmos o desenvolvimento da linguagem escrita, é imperioso destacar que foi a necessidade do registro que motivou o ser humano a criar a escrita, aqui se destacando, o registro de sua memória. Em um longo processo de construção, a escrita, passou de um processo de relatos e memórias, para aos poucos adquirir também uma função social mais complexa. Dentre os povos na Antiguidade que podemos verificar essa transforma- ção, é importante citar o Egito Antigo e a presença dos escribas, ou já na Idade Média Ocidental, uma alfabetização restrita em grande parte ao Clero Católico e a Nobreza. Quando olhamos processo educacional no Brasil, a escrita ainda é visto como um privi- légio e um marco de divisão social, mesmo que hoje, a escrita seja premência e direito de todos, observamos que em nosso país os índices de analfabetismo são ainda alar- mantes em pleno século XX. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) 2019, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade foi estimada em 6,6% (11 milhões de analfabetos), como podemos ob- servar na imagem abaixo: Figura 03. Taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais de idade (2019) Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de Trabalho e Rendimento, pesquisa nacional por amostra de domicílio contínuo 2012-2019. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18317-educacao.html. Acesso em: 5 jan. 2021.Adaptado. Pensando no contexto brasileiro, vamos agora conhecer alguns estudos referentes à História da Alfabetização. A história da alfabetização no Brasil mostra que o interesse em estudá-la nasce da convicção de que esse processo de aprendizagem é um dos pilares da educação escolar, um tema extremamente pertinente quando pensamos no âmbito educacional. Não existe conhecimento que não passe pela leitura e pela es- 9Alfabetização e Letramento 1crita. Ao pensarmos na instituição escola, automaticamente nos remetemos à leitura e à escrita enquanto conhecimentos basilares para o desenvolvimento cognitivo dos educandos. Por isso, a história da alfabetização se entrelaça à história da educação. Ao analisarmos a história da educação brasileira, podemos notar que o acesso à educação era restrito a uma minoria até o final do século XIX. As práticas de escrita e de leitura não faziam parte do cotidiano da população. Aos poucos, com a universalização da escola, o acesso, gradativamente, foi ampliado. O ler e o es- crever passaram a ser organizados, estruturados, sistematizados e ensinados por professores nas respectivas instituições (MORTATTI, 2011, p. 72). Nesse mesmo século XIX, muitos entraves relacionados às questões materiais e também a divergências pedagógicas dificultaram a proposta de se implantar um sistema educacional no Brasil. Inúmeras foram as barreiras encontradas para implementar um sistema educa- cional no país. Questões referentes a investimentos materiais e também embates pedagógicos atrapalharam o processo durante o Segundo Império (1840- 1888). A média de recursos investidos por ano no campo educacional correspondia a 1,8% do orçamento do governo imperial, sendo que apenas 0,47% tinha como destino a educação primária e secundária. Para que tenhamos ideia da dimensão do déficit, em 1844, “a instrução primária” recebeu somente 0,11% de todo orçamento des- tinado à educação. Essa falta de investimento na educação se tornou histórica e perdura até os dias atuais. Com relação aos embates pedagógicos, podemos dizer que o ideário educacional carrega a noção de ser humano, a concepção de mundo e a compreensão do que é uma sociedade. Assim, as posições ocupadas socialmente e politicamente pelos sujeitos (sujeito-professor e sujeito-aluno) que pensam e propõem as concepções educativas vão sendo afetadas por eles e para eles. Especialmente nas últimas décadas do século XIX, a educação e, consequente- mente, a alfabetização passaram por importantes transformações. As mais signifi- cativas se referem às concepções educacionais e pedagógicas que balizam o fazer do professor em sala de aula, surgem então métodos para o ensino da leitura e da escrita. Com o nascimento da Psicologia, que ocorreu concomitantemente a essa emergência dos métodos de ensino da leitura e escrita, passou-se a considerar e a trazer para o debate o caráter psicológico dos processos de aquisição da linguagem escrita, como nos mostra Mortatti: “Empreendida por educadores, essa discussão prioriza as questões didáticas, ou seja, o como ensinar, com base na definição das habilidades visuais, auditivas e motoras do aprendiz” (MORTATTI, 2011, p. 44). No cenário educacional surge então um importante debate (para não dizer embate!), encontrando, de um lado, a defesa ferrenha aos métodos tradicionais, conhecidos como métodos sintéticos: métodos que se pautam no trabalho por meio do ensino letra por letra e sílaba por sílaba e palavra por palavra e, de outro lado, os métodos analíticos que partem do texto ou os métodos híbridos, como veremos a seguir. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 10 1 Com algumas divergências na busca por tentar formatar o trabalho de alfabetizar, par- tindo-se de métodos mais estruturados – como o sintético, que propõe que o trabalho com as letras seja da parte para o todo, da unidade menor (letra) para a maior (sílaba e, posteriormente palavra) – ou de métodos analíticos – cujo trabalho com a linguagem escrita parte do todo para as partes –, ou ainda da defesa de métodos híbridos, deu-se assim a largada para a concorrência dos métodos de alfabetização no cenário educa- cional. Competição essa que permanece na contemporaneidade. Frente a esse cenário, tomando como referencial teórico as pesquisas da professora Ma- ria do Rosário Mortatti (2006), podemos dizer que as concepções de alfabetização se dividem em quatro etapas – que cronologicamente se situam de 1876 até os dias atuais. A metodização do ensino da leitura, que compreende o período de 1876 a 1890, é definida pela autora como a primeira fase desse processo. De acordo com a autora: [...] para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de marcha sintética (da “parte” para o “todo”): da soletração (alfabético), partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes às letras); e da silabação (emissão de sons), partindo das sílabas. Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/ alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/ ou sons e/ou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à có- pia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras. (MORTATTI, 2006, p. 5) A fase posterior, segunda fase – que se iniciou com a organização republicana – foi marcada pela guerra dos métodos, uma forte disputa pelos métodos de leitura e es- crita no campo da alfabetização. As cartilhas ganharam os holofotes e se tornaram pro- tagonistas enquanto instrumentos pedagógicos usados para alfabetizar. Nessa mesma época, o acesso à escola, garantido pela proposta de universalização do ensino, empla- Fique por dentro Os métodos sintéticos podem ser divididos em três tipos: o alfabético, o fônico e o silábico.No alfabético, o estudante aprende inicialmente as letras, quando então passa a formar as sílabas – juntando as consoantes com as vogais –, para, em seguida, formar as palavras que constroem o texto. No fônico, ou fo- nético, parte-se do som das letras – o som da consoante com o som da vogal –, pronunciando a sílaba formada. O silábico é pautado no trabalho sistemático de silabação, que consiste em trabalhar as sílabas primeiramente, de forma isolada, para depois construir palavras. Do outro lado, havia os que apostavam na poten- cialidade do inédito e dito inovador método analítico para alfabetização, que será explanado no decorrer desta seção. 11Alfabetização e Letramento 1ca como a grande ação em busca do progresso e da modernização da nação. Tempo em que se institucionalizou o Método Analítico para alfabetizar. Novamente recorremos à Mortatti (2006, p. 8), que nos alerta para a questão de que “[...] ao longo desse mo- mento, já no final da década de 1910, o termo ‘alfabetização’ começa a ser utilizado para se referir ao ensino inicial da leitura e da escrita”. Revisitando dados históricos sobre o uso das cartilhas, descobrimos que os primeiros exemplares de cartilhas datam do século XIX – ano de 1834, para se ser mais exato. Apesar disso, a cartilha se tornou usual, passando a circular de maneira mais expres- siva no século seguinte, século XX, sendo definida como: “uma primeira experiência na área da alfabetização, o que permitiu que a sociedade atual experimentasse novos métodos” (FARIAS, 2008, p. 3.829). Figura 04. Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito e numeração, e do escrever Autores: António Feliciano de Castilho; Ilustração de Bordallo. (Obra tão própria para as escolas como para uso das famílias). António Feliciano de Castilho. 2.e. Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. [A 1ª edição é, provavelmente, de 1850. Em 1855, António de Castilho veio ao Brasil divulgar seu “Método” de alfabetização. Fonte: São Paulo ([s. d.], [n. p.]). Criada no século XIX e difundida no século seguinte, a fama pode ter demorado a chegar, mas quando se consolidou, a cartilha se popularizou, passou a ser muito divulgada e utili- zada por inúmeros professores como instrumento pedagógico para alfabetizar as crianças. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 12 1 Figura 05. Cartilha “Ensino-Rápido da Leitura” Cartilha “Ensino-Rápido da Leitura”; 196.e. São Paulo: Melhoramentos, 1955. [Publicada pela primeira vez em 1917, essa cartilha conheceu sucesso extra- ordinário, atingindo 2.230 edições em 1996 e mais de 6 milhões de exemplares vendidos. Conforme dados da editora Melhoramentos, até 1941 ela já havia vendido mais de 1 milhão de exemplares, mantendo a média de tiragem por ano acima dos 100.000 exemplares até 1969. A partir de 1970, a produção caiu drasticamente para 40.000 exemplares e chegou em 1996 com a tiragem de 1.000 exemplares]. Fonte: São Paulo ([s. d.], [n. p.]). Em meados de 1890, uma equipe de professores normalistas de São Paulo passou a compor o quadro de funções diretivas na instrução pública. Esse grupo via nas cartilhas um moderno recurso de trabalho, que tornava possível trazer às salas de aula a propos- ta de alfabetização pautada no método sintético. Assim, as cartilhas foram adotadas em todo o território nacional. A cartilha escolhida aqui no Brasil foi a “Cartilha da Infância”. Utilizada até a década de 1990, as cartilhas vigoraram por quase cem anos em terras brasileiras e até hoje, arriscamos dizer, são repaginadas e apresentam ares de moder- nidade, as cartilhas sobrevivem “maquiadas” em páginas de “modernos” livros didáticos em pleno século XXI. Porém, em tese, os contextos culturais, econômicos, políticos e sociais sofreram mudanças com o passar dos anos, o que acarretou a emergência de outras concepções de alfabetização, a fim de atender às necessidades de ensinar as crianças a ler e a escrever. 13Alfabetização e Letramento 1Pensando ainda acerca da história da educação brasileira e dialogando com Mortatti, que se tornou uma grande referência no campo da alfabetização, adentraremos a ter- ceira fase de alfabetização, situada historicamente entre 1920 e 1970. Esse período, que durou aproximadamente cinco décadas, foi marcado por métodos mistos – o que hoje chamamos de híbridos. Os estudos de Lourenço Filho, importante educador brasileiro do século XX, consolidaram-se e trouxeram conhecimentos sobre a ciência psicológica no contexto da educação, além de estudos sobre o funcionamento da Escola Nova europeia. Ele lançou ainda estudos ancorados em três importantes áreas: biologia, psicologia e sociologia. O educador Lourenço Filho, a partir de seus estudos que relacionavam a Psicologia com a educação escolar, também desenvolveu “os testes ABC”: utilizados, principal- mente, para “[...] medir a maturidade da criança para a alfabetização”, visando “[...] diminuir os altos índices de repetência das crianças nos primeiros anos de escolari- zação”, servindo, assim, para organizar as classes a partir de critérios (SGANDERLA; CARVALHO, 2010, p. 2). Frente a esses novos estudos, a alfabetização em nosso país passou a ser balizada pelo nível de maturidade alcançado pelas crianças. O nível de maturidade possibilitava a classificação das crianças e a organização em agrupamento de classes homogêneas para a alfabetização. Dessa forma, as crianças eram agrupadas de acordo com suas habilidades ou falta de habilidades. Surgiam as “classes dos fortes”, dos “médios” e dos “fracos’’. Esse tipo de organização, que colocava a criança em exposição e, muitas vezes, em situações vexatórias, causava um sério problema de evasão escolar: obser- va-se que, na época, de cada mil crianças que ingressavam na 1.ª série, “[...] apenas 449 chegavam à 2.ª série, em 1964; em 1974 – portanto, dez anos depois – de cada mil crianças que ingressavam na 1.ª série, apenas 438 chegavam à 2.ª série”. Desse modo, nos anos 1980, a partir dos altos índices de crianças que desistiram da escola, iniciou-se no Brasil a organização por ciclos, segundo os quais “[...] a 1.ª série correspondia à série de alfabetização – só o aluno considerado ‘alfabetizado’ era pro- movido à 2.ª série” (SOARES, 2012, p. 14). O tema “fracasso escolar” ganhou visibilidade nos anos de 1980, passando a ocupar um lugar de destaque nas discussões acadêmicas acerca da escolarização. Os ques- tionamentos sobre os métodos e a forma de se alfabetizar ganharam força, o que abriu caminho para o que se denomina o quarto momento da alfabetização: a desmetodiza- ção do ensino. Foi nessa época que o ideário construtivista para a alfabetização ganhou força no Bra- sil. Muitos educadores passaram a usar como base do trabalho com alfabetização as pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvidas por Emília Ferreiro, discípula de Jean Piaget e de seus colaboradores. Cabe a importante ressalva de que o construtivismo não é um método de ensino, mas sim uma nova forma de entender a relação que a criança estabelece com seu pro- cesso de aquisição da linguagem escrita. A leitura equivocada do construto teórico de Ferreiro fez com que houvesse o processo de desmetodização da alfabetização e o Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 14 1 abandono das cartilhas. A década de 1980 se torna a fase da “alfabetização: constru- tivismo e desmetodização”. O construtivismo foi incorporado como “método” em grande parte do território nacional, inclusive foi citado e referenciado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que datam de 1996. Foi também nos anos 90 que o conceito de letramento passou a ocupar lugar nas discussões acadêmicas sobre o ensino da leitura e da escrita. Alfabetização e letramento são conceitos distintos no processo de ensino e aprendizagem, mas estão dialogicamente ligados, especialmente ao pensarmos nos modos de ensinar a lingua- gem escrita. 2. O SURGIMENTO DO CONCEITO DE LETRAMENTO E ASCORRENTES TEÓRICAS QUE O ORIENTAM O conceito letramento nasce para referir-se à escrita em funcionamento, em movimen- to, portanto, não restringe a essa escrita o caráter meramente escolar. Kleiman afirma que: “letramento foi criado para referir-se aos usos da língua escrita não somente na escola mas em todo o lugar” (KLEIMAN, 2005, p. 5). As críticas referentes aos métodos de alfabetização calcados em práticas de trabalho com a linguagem escrita totalmente desvinculadas do uso dessa escrita e de sua função social fazem com que uma outra forma de pensar o ensino da escrita seja considerada, assim surge a ideia de letramento. Numa sociedade em que a escrita ocupa um lugar de destaque, não basta apenas saber ler e escrever para inserir-se em um mundo letrado. Letramento vem do termo literacy, que se origina da língua inglesa e pode ser traduzido como a condição de ser um sujeito letrado – considerado como letrado aquele que, para além de saber ler e escrever, responde adequadamente às demandas sociais da leitura e da escrita. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já constasse do dicionário desde o final do século XIX, foi apenas na década de 1980 que passou a reverberar nos estudos das áreas da educação e da linguagem. Foi ainda nos anos 80 que os estudos no campo da Psicologia e da Linguística passa- ram a afetar os estudos sobre alfabetização no Brasil. A influência da argentina Emília Ferreiro sobre os processos de elaboração das crianças na aquisição da escrita, os altos índices de analfabetismo e também a ideia de que a escrita tem a função de co- municar, para além de mera codificação do alfabeto, fizeram com que as práticas de alfabetização fossem questionadas. Nessa mesma época, buscando atender à falta de um conceito que se referisse aos aspectos sócio-históricos da escrita, surge no Brasil as discussões sobre letramento, SAIBA MAIS Métodos de alfabetização e Projetos para nação (Live no canal de Bárbara Cortella com a professora Maria do Rosário Mortatti) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BmaXgERAr7k. Acesso em: 11 nov. 2020. 15Alfabetização e Letramento 1definido como: “um conjunto de práticas de uso da escrita que vinham modificando profundamente a sociedade, mais amplo que as práticas escolares de uso da escrita, incluindo-as, porém” (KLEIMAN, 2005, p. 21). A obra de Mary Kato (1986), intitulada No mundo da escrita: uma perspectiva psicolin- guística, é apontada como a primeira obra a versar sobre o tema em território nacional. A autora defende que a função primordial da escola é introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a uma cidadã funcionalmente letrada, ou seja, capaz de usar a lingua- gem em contextos sociais, garantindo a comunicação. Cabe ressaltar que, nesse livro, Kato (1986, p. 140) define o letramento como “processo ou efeito da aprendizagem da leitura e da escritura” e alfabetização como “iniciação no uso do sistema ortográfico”. Outras autoras, como Angela Kleiman e Leda V. Tfouni, também trazem o termo letra- mento nos livros: Os significados do letramento, organizado por Kleiman, e Alfabetiza- ção e letramento, de Tfouni – ambos publicados em 1995. Como pioneira na propagação do conceito de letramento, Kato (1986) nos provoca a olhar para o que aparece como primeira definição conceitual do termo. É importante destacar que o conceito de letramento só foi dicionarizado em 2001 e, no decorrer dos anos, redimensionado. O termo letramento é definido, no Glossário Ceale1, como: palavra que corresponde a diferentes conceitos, dependendo da perspectiva que se adote: antropológica, linguística, psicológica, pedagógica. É sob esta última perspectiva que a palavra e o conceito são aqui considerados, pois foi no campo do ensino inicial da língua escrita que letramento – a palavra e o conceito – foi introduzido no Brasil. Posteriormente, o conceito de letramento se estendeu para todo o campo do ensino da língua e da literatura, e mesmo de outras áreas do conhecimento, mas, neste verbete, letramento é considerado apenas em sua relação com alfabetização. (SOARES, [s. d.], [n. p.]) Faz-se necessário destacar que, no dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), por exemplo, a palavra letramento aparece como sendo “o mesmo que” alfabetização e sua definição consta embutida dentro da própria definição de alfabetização. Esse movimen- to de conceber alfabetização e letramento como sinônimos só aparece com a dicionari- zação do conceito de letramento. Essa dicionarização nos dá indícios do impacto desse termo, letramento, nos construtos teóricos sobre alfabetização. Soares (2003, p. 18) afirma de forma enfática que: letramento não é ‘alfabetização’, esta costuma ser um processo de treino para que se estabeleça relações entre grafema e fonema. Trazer alfabetização e letramento como tendo o mesmo sentido sem problematizar o significado de cada palavra nos coloca na discussão sobre o que é alfabetização? O que é letramento? Alfabetizar é letrar? 1 http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/ Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 16 1 3. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO - RECONHECENDO E DIFERENCIANDO OS CONCEITOS A multiplicidade de conceitos de alfabetização e letramento – que muitas vezes ocupam um lugar de disputa teórica – nos impulsiona na busca de um refinamento conceitual, considerando-se algumas abordagens teóricas que, de lugares distintos – Educação e Estudos da Linguagem – marcam posição em relação aos referidos conceitos. Magda Soares (2001), grande referência no âmbito educacional, alerta-nos sobre a diferenciação entre os conceitos de alfabetização e letramento, definindo letramento como “[...] resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais da leitura e da escrita (...) o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais [...]” (SOARES, 2001, p. 39). Para a autora, a alfabetização não representa uma habilidade e sim um conjunto de habilidades, complexas e multifacetadas. O ato de alfabetizar é definido por ela como: ensinar a ler e escrever, compreender códigos e símbolos. Destacando ainda que: “[...] ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: aprender a ler e a escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua escrita e de decodificar a língua escrita [...], ou seja, é assumi-la como sua ‘propriedade’” (SOARES, 2001, p. 39). Figura 06. Situação de letramento, a escrita em uso na sala de aula (a) Fonte: 123RF. 17Alfabetização e Letramento 1Figura 07. Situação de letramento, a escrita em uso na sala de aula (b) Fonte: 123RF. Podemos dizer que Soares reconhece duas dimensões do letramento: a dimensão in- dividual e a dimensão social – dimensões essas que balizam os estudos sobre o tema. Enquanto alguns estudiosos priorizam a dimensão individual, na qual o letramento é encarado como um atributo pessoal e reconhecido como tecnologia que engloba um conjunto específico de habilidades linguísticas, tanto na escrita quanto na leitura, outros teóricos destacam a dimensão social e argumentam na defesa do letramento como prática social. Seria “[...] o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais [...]” (SOARES, 2001, p. 72). Afirmando ainda que “[...] letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita, em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social” (SOARES, 2001, p. 72). Do lugar dos Estudos da Linguagem, Angela Kleiman afirma que: “Letramento não é alfabetização, mas a inclui!” (KLEIMAN, 2005, p. 11), explicitando que letramento e alfa- betização não são sinônimos, mas estão intimamente relacionadas. A autora aponta os estudos doletramento como possibilidades de atribuir à prática da escrita um lócus de poder, que possibilita ao educando acesso a outros mundos, “[...] públicos e institucionais, como o da mídia, da burocracia, da tecnologia e, através deles, a possibilidade de acesso ao poder [...]” (KLEIMAN, 1995, p. 8). A concepção de letramento, defendida por Kleiman, está relacionada ao uso da escrita, à sua função social “[...] não se limita aos eventos e práticas comunicativas mediadas pelo texto escrito, isto é, às práticas que envolvem de fato ler e escrever. O letramento está também presente na oralidade, uma vez que, em sociedades tecnológicas como a nossa, o impacto da escrita é de largo alcance [...]” (KLEIMAN, 1998, p. 181). Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 18 1 A oralidade também ganha relevância para Kleiman (1995). Ela destaca o fato de al- gumas crianças estarem expostas a “eventos de letramento” antes mesmo de ingres- sarem na escola, apropriando-se e fazendo o uso de estratégias orais de letramento em seu cotidiano, podendo, assim, ser consideradas letradas, antes de ler e escrever (KLEIMAN, 1995). Por exemplo, um garoto que ainda não iniciou o processo de alfabe- tização, mas que a família busca estimular à leitura ao ler histórias e apresentar algu- mas letras que formam as palavras. É possível dizer que este é o início do letramento, já que os pais estão estimulando a criança para que ela vá além da alfabetização básica, melhorando sua compreensão de mundo e apreço pela leitura no dia a dia. Frente a esse cenário, podemos dizer que a família letrada se torna uma eficiente agência de letramento, em que as práticas e usos da escrita são fatos corriqueiros e permitem que, antes de conhecer a escrita convencional, a criança passa a conhecer o seu sentido e a sua função. Figura 08. Cenas de leitura em família, o que nos remete à uma situação de letramento Fonte: 123RF. No que se refere à alfabetização, a autora a concebe como uma prática de letramento, como “processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola” (KLEIMAN, 1995, p. 20). De acordo com Kleiman, podemos dizer que a alfabetização é uma das práticas de letramento que compõe um conjunto de práticas sociais do uso da linguagem escrita na escola. Outras práticas de letramento são: escrever um diário, ler uma receita, enviar um cartão, ler a bula de um medicamento, enfim, situações nas quais usamos a língua escrita dentro ou fora do espaço escolar. Kleiman ainda se refere ao fato de que o meio acadêmico se apropriou do conceito le- tramento “[...] numa tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’ 19Alfabetização e Letramento 1dos estudos sobre alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competên- cias individuais no uso e na prática da escrita [...]” (KLEIMAN, 1995, p. 15). A autora afirma que as práticas específicas de alfabetização passam a ser apenas um tipo de letramento, que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros. A escola, sendo uma importante agência de letramento, preocupa-se, não com o letramento, práti- ca social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em ter- mos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua, assim como o lugar de trabalho, mostra orientações de letramento muito diferentes (KLEIMAN, 1995, p. 20). Kleiman (1995) ainda critica a postura de alguns pesquisadores que se mostram contrários ao uso do termo letramento, afirmando que os conceitos por ele designados estão implícitos no termo alfabetização, que essa seria uma leitura rasa acerca do conceito de letramento. A alfabetização é defendida como uma prática que se consolida em eventos que se cir- cunscrevem no espaço e tempo da sala de aula, coordenada pelo professor, que ocupa o lugar de quem ensina, sistematiza e instrumentaliza os alunos sobre o uso do sistema alfabético da escrita. “O conceito de alfabetização refere-se também ao processo de aquisição das primeiras letras e, como tal, envolve sequências de operações cognitivas, estratégias, modos de fazer” (KLEIMAN, 2005, p. 13). Nessa perspectiva, podemos dizer que a alfabetização é indissociável do letramento. A al- fabetização é necessária para que o sujeito seja considerado letrado, mas não é suficiente. Tabela 01. Síntese dos conceitos Fonte: elaborado pela autora. ALFABETIZAÇÃO LETRAMENTO • Ensinar a escrever e ler • Prática social da leitura e escrita • Processo de decodificação de signos • Conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes materiais escritos • É um processo que está dentro da prática de letra- mento, de acordo com Magda Soares • Fenômeno cultural, relativo às atividades que en- volvem a linguagem escrita • Se ocupa da aquisição da escrita pelos sujeitos • Compreensão do uso da escrita em diferentes prá-ticas sociais por meio de gêneros textuais • Diz respeito à compreensão e ao domínio do cha- mado código escrito • Desenvolvimento de comportamentos e habilida- des de uso competente da leitura e escrita SAIBA MAIS Uma pessoa não alfabetizada, mas que conhece a função de uma carta, de um rótulo, de um bilhete ou de uma placa, participa das práticas letradas de sua sociedade, mesmo que de forma limitada, à mar- gem… Essa pessoa é considerada um sujeito letrado. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 20 1 4. FREINET E A ALFABETIZAÇÃO Se não encontrarmos respostas adequadas a todas as questões sobre educação, continuaremos a forjar almas de escravos em nossos filhos. Célestin Freinet (Para uma escola do povo, 1978) Em 15 de outubro de 1896, na cidade de Gars, sul da França, nascia Célestin Baptistin Freinet. De raízes rurais, era filho de camponeses e vivia numa região considerada “atrasada” culturalmente quando comparada a outras cidades francesas. Ainda na in- fância, Freinet se ocupava com o trabalho na lavoura, pastoreando as cabras, ofício comumente atribuído a crianças naquela época. Sua condição de vida, de certa forma, vai se reverberar em sua concepção sobre a infância, sobre o trabalho e sobre o desenvolvimento infantil, e, mais tarde, refletir-se-á em sua prática pedagógica. Figura 09. Freinet em Vence Fonte: Institut Coopératif de l’Ecole Moderne (ICEM). Disponível em: https://www.fimem-freinet.org/pt-pt/node/3561. Acesso em: 5 jan. 2021. A luta do educador Freinet sempre foi em prol da construção de uma escola do/para o povo e ele sabia que, para se implementar de fato essa escola popular, era preciso muito mais do que teorias, era preciso trabalho! Muito além de educador, Freinet exerceu papel militante na busca por uma escola realmente “Para o povo”, tendo consciência do papel de reprodução social que a escola 21Alfabetização e Letramento 1representa. Em sua proposta pedagógica, Freinet elaborou instrumentos de trabalho e propôs técnicas que explicitassem o papel libertário da educação Influenciado por Karl Marx, sua proposta pauta-se na noção de trabalho como produção humana, que traz ao sujeito realização por sua produção e não alienação. Foi fortemen- te influenciado pelo pensamento dialético que conheceu no partido comunista francês, do qual era membro atuante. Sua primeira formação foi na escola primária; aos 15 anos de idade, ingressou na Es- cola Normal Masculina de Nice/ França, porém, não chegou a concluir seus estudos, pois foi recrutado para na Primeira Guerra Mundial. A vivência de guerra o afetou pro- fundamente. Ferido nas trincheiras de batalha, teve seus pulmões comprometidos, o que lhe deixou por um longo período em estado de convalescença. As feridas de guerra também, posteriormente, irão impactar em seu fazer docente. Touché. Memóriasde um ferido de guerra foi um livro que ele escreveu e publicou logo no pós-guerra – época também em que Freinet escreveu seus primeiros artigos sobre educação. No ano de 1920, na pequena Le Bar-sur-Loup, na França, o jovem educador se torna professor, assumindo sua primeira turma de alunos – o cargo por ele ocupado era de professor-adjunto. Apesar das sequelas do período de guerra, como a voz debilitada, ele inicia a sua carreira de professor primário, na ocasião, poderia ter se aposentado, seguindo os conselhos de seus próprios companheiros, contudo, escolheu seguir com a carreira docente. Foi em uma classe multisseriada, com 35 alunos, que Freinet se fez professor. A maior parte de seu alunado era formada de filhos de camponeses, o que trazia uma identificação profunda entre professor e alunos. Apesar de não possuir experiências docentes anteriores, sua prática era impregnada de um profundo compromisso com a educação de seus pupilos. Ele registrava, diariamente, as observações que fazia sobre seus aprendizes, narrando os diferentes tipos de comportamentos e vivências que observava em suas crianças, assim como suas conquistas e suas dificuldades. O que explicita um profundo respeito pelo de- senvolvimento de todos e de cada um (BUSCARIOLO, 2015, p. 51). Em 1925, Freinet conhece Elise, professora de artes, que, com seu olhar aguçado e sen- sível, por meio da arte, ajuda-o a aprimorar suas técnicas. Casam-se em 1926. Elise foi uma grande parceira e esteve presente em sua vida afetiva e acadêmica, escrevendo livros importantes sobre a proposta de Freinet, como O itinerário de Célestin Freinet: a livre ex- pressão na pedagogia Freinet (1977) e O nascimento de uma pedagogia popular (1969). Animado com suas descobertas, enquanto educador, passou a se corresponder com professor Daniel, que compactuava com seus princípios pedagógicos, tendo assim um interlocutor real para o seu fazer docente. O trabalho com a correspondência para ou- tros educadores tinha como objetivo partilhar suas ideias e trocar experiências do chão da escola com preceptores que compartilhavam de seus princípios. Partindo dessa tro- ca, Freinet começa a publicar suas experiências em revistas e jornais de educação, com a finalidade de estender a rede de educadores que estava se formando, ele acre- ditava na força do coletivo de trabalho como modo de resistência e de possibilidade de mudança (BUSCARIOLO, 2015, p. 52). Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 22 1 Logo sua experiência correu pelo continente e ele conseguiu atingir professores primá- rios de outros países: Bélgica, Espanha, Portugal. Foi então que, em 1957, inaugurou a Federação Internacional da Escola Moderna (FIMEM), que existe até hoje e conta com a participação de professores de mais de 30 países de todo o globo – Europa, África, Ásia e América Latina e Franco-Canadense. Para Freinet, o ensino nunca foi um sacerdócio e sim uma militância, um en- gajamento voluntário. [...] Militou para, na medida dos limites que lhe eram impostos, transformá-la, encarando essa militância como parte de outra maior, que visava a transformação das próprias estruturas da sociedade. (OLIVEIRA, 1995, p. 98) A Cooperativa do Ensino Laico (CEL) – primeira cooperativa organizada para viabilizar as publicações – nasceu em 1928. Sua divulgação se deu por intermédio de boletins e circulares, publicações e artigos acerca de seus novos instrumentos pedagógicos. Foi nesse ano ainda que Freinet, Elise e Madeleine (sua esposa e filha) partiram de mudan- ça para Saint Paul de Vence, cidade próxima a Le Bar-Sur-Loup, solo onde a sede da CEL se estabeleceu. Outra frente que Freinet e seus parceiros do movimento abraçaram foi a campanha “abaixo aos manuais”, que lutava contra os materiais didáticos veiculados na época. Tais materiais eram considerados artificiais para as crianças. Freinet, então, em parce- ria com os demais professores do movimento, passou a produzir os fichários escolares, um material que se tornou referência pedagógica para o movimento da Escola Moderna. Nos primórdios, o movimento era conhecido como: “L’imprimerie à l’école” (A imprensa na escola), nome que traduz a importância que era atribuída à tipografia, evidenciando o estatuto dado à palavra – em especial à palavra impressa, dado que a imprensa, que tinha o tipógrafo como recurso material, era o maior meio de comunicação e dissemi- nação de conhecimentos na época (BUSCARIOLO, 2015, p. 53). O apreço e valorização da palavra, do registro escrito, e a necessidade de se comunicar por meio de jornais e revistas, Freinet ganhou ao fazer parte do Partido Comunista, do sindicato dos docentes, enfim, do lugar político, de luta e de militância (MUNHOZ, 2010 apud BUSCARIOLO, 2015, p. 53) A escrita incessantemente teve uma grande relevância na vida de Freinet, que escrevia com frequência para os jornais e as revistas de esquerda da época, mesmo antes de se tornar educador. A materialização dos seus ideais marxistas, anarquistas e republi- canos se dava pelo impresso, pela palavra, pela possibilidade de circulação da palavra (MUNHOZ, 2010 apud BUSCARIOLO, 2015, p. 53). O estatuto da escrita, especialmente da escrita em movimento, circulando, ocupou lugar de relevância na obra do educador francês, pois ele tinha conhecimento de que, mais do que dominar o código escrito, o sujeito se tornava capaz de entender o pano de fun- do que sustenta a sociedade e assim questioná-la. Para ensinar a ler e escrever, Freinet defende o método natural da escrita, legitimando a alfabetização como prática social, dinâmica e discursiva, ou seja, vista como algo que pressupõe o outro, interlocutores. 23Alfabetização e Letramento 1Existe entre os Métodos tradicionais e os nossos Métodos naturais uma dife-rença fundamental de princípio, sem a compreensão da qual todas as apre- ciações serão sempre injustas e errôneas: os métodos tradicionais são espe- cificamente escolares, criados, experimentados e mais ou menos realizados por meio escolar, que tem as suas finalidades, os seus modos de vida e de trabalho, a sua moral e as suas leis, diferentes das finalidades, dos modos de vida e de trabalho do meio não escolar e a que chamaremos meio vivo. (FREINET, 1977, p. 39) O Método Natural se tornou uma metodologia universal, de acordo com o ideário frei- netiano, por isso, pode se estender para outras aprendizagens: matemática, ciências, história, enfim, para todos os campos de conhecimento. Com relação à aprendizagem, é particularmente interessante tentar analisar as relações que Freinet estabelece entre ela e a natureza. Partindo da observação e da maneira como, segundo ele, a natureza procede suas transformações (por ensaio e erro, num imenso e constante “tatear”) e preconiza um ensino baseado na pesquisa. É o que ele chama de “método natural”. A antinomia aparente desses dois termos esconde toda uma concepção de aprendizagem: para ele, por exemplo, a criança aprende “naturalmente” a falar (como que movida por uma lei da natureza), sem aprender de cor regras prévias, sem mé- todos preestabelecidos, autocorrigindo-se, a partir da observação dos modelos que estão a sua volta e das intervenções de sua mãe. Esta não se preocupa em estabelecer uma gradação na aprendizagem, deixa-a fluir “naturalmente”, a partir das necessidades do quotidiano. (OLIVEIRA, 1995, p. 96) Essa metodologia pautada no ensaio experimental, na relação da criança com a natu- reza, com o objeto de conhecimento, proporciona aos alunos uma participação ativa e consciente de seu processo escolar, contrariamente à escolástica, que pressupõe alunos passivos e resilientes. Apesar de parecer antagônico ao binômio “método natural”, acreditamos que Freinet tenha escolhido as palavras para marcar uma posição contra a escolástica e reafirmar que, em sua escola, os alunos seriam ensinados naturalmente, de acordo com as ne- cessidades de vida. Cabe aqui o destaque de que essa proposta de Freinet não seconfigura em espontaneísmo, já que, para se trabalhar sob essa pers- pectiva, faz-se necessário que o ambiente escolar seja bastante ativo, e que a ação educativa seja intencional, planejada e responsável, tanto por parte dos alunos como por parte do professor (BUSCARIOLO, 2015, p. 67). Em defesa do método natural, ele afirma: “[...] foi com esta convicção e certeza que realizamos os nossos métodos naturais, cujo valor os cientistas tentam contestar. To- dos os progressos se fazem por este processo universal da tentativa experimental [...]” (FREINET, 1977, p. 14-15). Sobre o trabalho de alfabetizar, especialmente no processo de aquisição da linguagem escrita, a defesa de Feinet é a de que toda produção escrita proposta aos alunos seja permeada de significado e possa circular e ser lida por outros. A necessidade de se co- municar – seja pela fala, pelo desenho, pela escrita – é inerente ao ser humano. É uma necessidade natural, no sentido de fazer parte da natureza do sujeito. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 24 1 Nessa perspectiva, o papel do professor é o de mediador, aquele que vai ajudar a criança a aprimorar a técnica, ajustar a mecânica, mas sem interferir no que a criança tem a dizer. A proposta de Freinet vai de encontro aos métodos tradicionais que criam linguagens extremamente escolásticas, pautadas no discurso livresco, pensadas a partir da lógica dos adultos, sem considerar o lugar de fala da criança. Defendendo que “a escrita só tem sentido se somos obrigados a recorrer a ela para comunicar nosso pensamento além do alcance da nossa voz, além das barreiras de nossa escola” (FREINET, 1978, p. 38 - 40). Método Natural da escrita, em especial, tem como intuito a não-separação entre meca- nismo, compreensão e sentido. Para Freinet, “ler é trabalhar com textos na perspectiva da comunicação, da expressão, das práticas reais de vida que envolvem a escrita” (BUSCARIOLO, 2015, p. 68). Figura 10. Alunos de Freinet usando o prelo na década de 1920 Fonte: Institut Coopératif de l’Ecole Moderne (ICEM). Disponível em: https://www.fimem-freinet.org/pt-pt/node/3561. Acesso em: 5 jan. 2021. Ele defende que a leitura acontece pelo contexto, de forma global, pela tentativa expe- rimental e não por silabação ou palavras soltas. Sobre esse processo, escreveu que as crianças, na fase inicial da alfabetização: [...] tentam ler globalmente alguns textos dos seus correspondentes. Distin- guem algumas palavras, nem sempre de uma forma perfeita. Mas elas têm em si, intimamente ligada, toda a sua vida psíquica e social, e a imagem de uma multidão de palavras que, bruscamente, surgirão no seu sentido verdadeiro e total. Nessa altura, a nossa criança saberá ler para sempre, porque essa aprendizagem natural ligar-se-á fortemente à própria vida e ao processo de evolução do indivíduo (FREINET, 1977, p. 52-53). A fim de que a escrita seja realmente relevante para a criança, Freinet propõe alguns instrumentos que estimulam o trabalho em sala de aula, como: livro da vida, jornal de 25Alfabetização e Letramento 1parede, ateliês de trabalho, plano de trabalho, roda de conversa (que dá lugar à lingua- gem oral, que também faz diferença no processo de alfabetização), texto livre, como podemos observar no quadro abaixo, que traz a função de cada um dos instrumentos mencionados (BUSCARIOLO, 2015, p. 69). Tabela 02. Síntese dos Instrumentos elaborados por Freinet INSTRUMENTOS IDEALIZADOS POR FREINET O QUÊ COMO PORQUÊ JORNAL DE PAREDE Expõe-se na sala um mural com 5 espaços (geralmente envelopes), para que os alunos depositem bilhetes para pos- terior discussão, devidamente assinados e datados. Em quatro deles, encontram-se os dizeres “eu proponho”, “eu quero saber”, “eu critico” e “eu felicito”, e em um dos espaços ficam os papeizinhos em branco para serem utilizados. Esse mural fica exposto na sala de aula para ser utilizado pelos alunos quando quiserem. O desenrolar das discussões se dá em uma reu- nião, em formato de assembleia, quando os bilhetes do mural são lidos e discutidos coletivamente. Entendemos que essa prática favorece o diálogo e a resolução de conflitos por meio da expo- sição dos fatos, argumentos e opiniões. Também oferece a pos- sibilidade de a criança expressar seus sentimentos, emoções, dúvidas etc. TEXTO LIVRE Caderno que fica em posse da criança, para que ela escreva tex- tos livremente. Não existe qualquer direcionamento para as escritas, apenas a regra de que nele não poderão copiar textos. Muitos criam histórias, músicas, poemas ou relatam algo por eles vivido. Além da rica possibilidade de expressão, registro do vivido e valorização da escrita, o caderno é utilizado com objetivos peda- gógicos formais, como o trabalho com estruturação textual, para- grafação, coesão e coerência, entre outros conteúdos do campo da alfabetização/letramento. RODA DE TEXTO LIVRE Roda de leitura, na qual são apresentados e discutidos os textos escritos no caderno de texto livre. Após a leitura, os alunos podem fazer comentários e sugestões sobre o texto lido. A roda pode acontecer com alunos de uma ou mais turmas juntas. Os alunos são convidados a ler suas produções, que são ouvidas e apreciadas por seus pares. Mais uma vez, a possibilidade de expressão é vivenciada. A discus- são sobre os textos favorece a análise e a criticidade dos alunos em relação às produções (deles mesmos e as dos colegas). Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 26 1 Fonte: adaptado de Fecchi (2020, no prelo, p. 178). INSTRUMENTOS IDEALIZADOS POR FREINET O QUÊ COMO PORQUÊ ATELIÊS Grupos de trabalho divididos pelo interesse em determinada ativida- de. Em um momento específico da aula, que dura cerca de uma hora, os grupos realizam ativi- dades diferenciadas, planejadas a partir das metas elaboradas pelos próprios alunos no plano de trabalho ou pelas necessidades de aprendizagem. Quem escolhe o ateliê que participará é o próprio aluno, a partir da reflexão sobre o que ele mais está precisando naquele momento. A profes- sora pode passar por todos os grupos ou escolher um grupo que perceba ter maior necessidade de atenção, enquanto os outros trabalham autonomamente. Nos momentos de trabalho com ateliês, os alunos exercitam a escolha e a reflexão sobre seu próprio saber/fazer. Nessas ocasiões, conseguimos também, nos pequenos grupos, olhar para as necessidades específicas de cada aluno com mais proximida- de. O fato de os alunos escolhe- rem o trabalho a ser realizado também os estimula a concluírem aquilo que se dispuseram a fazer. PLANO DE TRABALHO Em uma folha própria impressa, os alunos registram a meta que gostariam de atingir naquela semana, o que os direcionará para os ateliês que correspondam a tais atividades. Nessa folha, também registram os ateliês combinados para a semana e vão marcando, dia a dia, de quais par- ticiparam. Um espaço dessa folha é reservado à autoavaliação, à avaliação da família e à avaliação da professora sobre o desenvolvi- mento daquela semana. Atividade que permite ao aluno refletir sobre seu desenvolvimen- to escolar semanalmente. Após pensarem em seus objetivos, compartilham com a turma, me- diante conversa que os ajuda a reelaborar o planejamento. O fato de registrarem o ateliê que parti- ciparam diariamente, exercita a autonomia e o próprio replaneja- mento. O momento da autoavalia- ção, da avaliação da professora e da família também colabora para a reflexão do próprio saber. LIVRO DA VIDA Diário de bordo da turma. Um livro ou caderno onde alunos e pro- fessora registram as atividades e fatos importantes que acontecem na turma durante o ano. Existem várias maneiras diferentes desse registro acontecer. Esse instrumento colabora com a construção da identidade da turma e a valorização do registro. É importante salientar que as descrições sobre os instrumentos apresentadosnessa tabela apresentam a forma de trabalho assumida em nossa prática pedagógica, podendo haver variações. 27Alfabetização e Letramento 1Abordaremos agora, com maior ênfase, os instrumentos que estão diretamente ligados à aquisição da linguagem escrita pela criança. Figura 11. Situações de escrita significativa: elaboração de texto livre Fonte: 123RF. O Texto Livre é definido como um texto que a criança pode escrever de forma livre. É a ferramenta que conduz o trabalho com a linguagem escrita. É um texto sem um tema pré-determinado, que dá espaço para que o imaginário produza. Assim, tateando, colocando no papel as letras que julgam adequadas, testando hipóteses, as crianças passam a escrever sem pressão, sem medo e com autonomia. O texto livre é a materialização da livre expressão – tão defendida por Freinet. Esses textos dão voz ao pensamento da criança, pois são escritos sobre o assunto que ela elegeu como importante, no espaço escolhido por ela, inicial- mente, sem preocupações com a estética e a estrutura do texto. (BUSCARIO- LO, 2015, p. 69) Nessa proposta de elaboração da escrita, observamos que a criança escreve com pra- zer. Nas salas de aula freinetianas, a escrita dos textos livres não tem hora determinada e podem acontecer nos momentos de ateliês de trabalho ou em casa, de acordo com a necessidade da criança. É livre também essa forma de solicitação – não há obrigatorie- dade, há o convite… É aconselhável que cada criança tenha o seu caderninho de texto livre, que deve ficar em sua bolsa, para que, quando sinta vontade de escrever, tenha o suporte sempre em mãos. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 28 1 Figura 12. Exemplo de um texto livre de um aluno de 1º ano do Ensino Fundamental Fonte: acervo da autora. Como podemos observar na imagem acima, a criança coloca sua hipótese de escrita no papel, sem ainda ter muita relação entre grafema e fonema, sem estar convencional- mente de posse do código escrito, porém, já possui importantes conhecimentos sobre a escrita: que usamos letras, que um texto em nossa cultura deve ser escrito sobre a pauta do papel, da esquerda para a direita, enfim, se mostra imersa numa cultura letra- da, mesmo não estando plenamente alfabetizada. Depois de escreverem seus textos, no seu tempo, dentro do gênero que escolheram, as crianças são convidadas a fazer a leitura em voz alta desses textos nas chamadas “rodas de leitura”, para que os colegas conheçam suas produções. Dessa forma, a pro- dução da criança ganha visibilidade, é vista pelo outro, torna-se comunicável. Por trazerem a necessidade real de comunicação, esses textos produzidos pelas crianças são muito ricos em informações, detalhes e vocabulário. São cuidadosamente elaborados pelas crianças, pois elas se apropriam do texto e sabem que ele será lido por muitos leitores em roda ou mesmo impresso. (BUSCARIOLO, 2015, p. 69) A criança se torna autora. Nas rodas, os textos lidos recebem sugestões e comentários dos colegas e também são eleitos pela turma, por votação, aqueles que serão digitados e depois impressos. Depois, passamos para a correção coletiva desse texto, pois, ini- cialmente, a escrita segue o curso natural das hipóteses das crianças, mas como serão publicados, o aprimoramento e a lapidação dessa escrita devem ser realizados. Normalmente, os textos escolhidos em votação são transcritos na lousa, exatamente da forma como a criança escreveu em seu caderno, então as outras, juntamente com o auxílio da professora, começam a interferir na correção do texto, sugerem alterações, verificam a ortografia, pontuação, coesão e coerência do texto, a partir da autorização 29Alfabetização e Letramento 1do autor e com o objetivo de garantir uma comunicação mais eficiente entre este e o interlocutor (BUSCARIOLO, 2015, p. 70). A correção coletiva é um trabalho que atinge todos os alunos, até mesmo os que ainda não estão alfabetizados, pois as crianças, no momento de correção coletiva, vendo o texto transcrito na lousa, observando a sua reelaboração, vão compreendendo as nu- ances da escrita para as quais antes não se atentavam. É comum que, após as correções, o texto circule em álbuns ou jornais da turma. Por isso, a correção coletiva dá também ao texto livre um lugar de destaque. […] É preciso fazer do texto livre escolhido uma bela página, sem lhe fazer perder nada da sua frescura e subtil expressão. […] Não nos contentamos, pois, em corrigir os erros de ortografia. Vivemos o texto em conjunto. Aperfeiçoamos a construção da língua, e isto não por causa de uma regra escolástica que a criança nem sempre compreenderia, mas por uma motivação naturalmente humana de que se compreenderá todo o valor. (FREINET, 1976, p.50 -51) Freinet inovou ao levar a imprensa à sala de aula. Ele levou uma impressora de tipos móveis para os seus alunos. Naquela época, a impressora era uma ferramenta de tra- balho dos adultos, não deveria ser utilizada pelas crianças. O tipógrafo utilizado por Freinet era totalmente manual, requerendo muita disciplina e atenção das crianças, para que seus trabalhos alcançassem um produto final. Ele não foi o primeiro a usar esse recurso tecnológico para fins educativos, mas foi pioneiro a imprimir textos escritos pelas crianças (BUSCARIOLO, 2015, p. 70). [...] Os alunos apaixonaram-se pela composição e pela impressão, coisas que não eram, todavia, simples com o material ainda rudimentar de que dispúnha- mos. Eles deixaram-se prender pelas novas tarefas, não porque a ordenação dos caracteres nos componedores pudesse ser atraente, mas, sobretudo, por- que tínhamos descoberto um processo normal e natural da cultura; a obser- vação, o pensamento, a expressão natural tornavam-se texto perfeito. Esse texto tinha sido vazado no metal, depois impresso. E todos os espectadores, o autor em primeiro lugar, sentiam, realizado o trabalho, uma profunda emoção perante o espetáculo do texto enaltecido, que se revestia agora do valor de um testemunho (FREINET, 1975, p. 25). A fim de valorizar a escrita e com o intuito de fazer com que as produções das crianças circulassem, Freinet utilizou um tipógrafo que conseguiu na velha oficina de um colega. Para trazer a prática para a contemporaneidade, usamos em nossas salas tablets, com- putadores e impressoras, como se pode ver, o suporte de trabalho muda, mas continua com a função de comunicar, de fazer com que as produções das crianças - especialmente o texto livre - sejam lidas e, efetivamente, ganhem a materialidade do impresso, palpável. O texto livre só tem valor quando se constitui em um documento autêntico, uma vez que é socializado, que serve de pretexto e de argumento para um en- riquecimento na direção da cultura e do conhecimento. (FREINET, 1975, p. 68) Com a imprensa na sala de aula, Freinet trouxe a este local o trabalho como expressão máxima da realização humana, trabalho que satisfaz e não aliena. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 30 1 Assim, a imprensa escolar mostra aos alunos que eles também podem dominar esse importante meio de comunicação, que, muitas vezes, é um instrumento de dominação. A imprensa na sala de aula carrega uma posição política quando fornece às crianças o acesso aos “bastidores” da produção de textos que circulam pela sociedade, quando mostra as formas de se fazer de um jornal, por exemplo. Com isso, evidencia-se para os estudantes que as palavras que circulam são produções humanas e, por isso, pas- síveis a erros, equívocos e distorções. Freinet deseja mostrar aos alunos que matéria impressa tem suas fragilidades e que também pode ser lugar de poder e doutrinação (BUSCARIOLO, 2015, p. 72). Nos relatos de Freinet e seus colaboradores, fica clara a empolgação das crianças com a possibilidade de lerem seus textos impressos. Elas cuidavam das ferramentas da tipografia e mostravam muito apreço pelo trabalho, fazendo o melhor que podiam, aprendendo a manipular os tipos móveis, o prelo, e issonão era um trabalho fácil, pois era preciso aprender a organizar a escrita “de trás pra frente”, para que as frases fos- sem impressas corretamente. Mas como o objetivo era o de ver seus textos nas mãos de outrem, o desafio valia a pena. O texto livre conquista mais espaço dentre os instrumentos propostos por Freinet e não deve ser considerado como um suplemento de nosso trabalho escolar, mas sim como um elemento significativo que faz parte de um conjunto de práticas que amparam o conceito de livre expressão, de forma a garantir que se ouça as vozes das crianças (BUSCARIOLO, 2015, p. 74). A produção imaginária é solidificada na/pela palavra, materializando-se nas tentativas de combinar as letras, de organizar as ideias por meio das palavras, no confronto entre elas, na articulação e produção de sentidos. A alfabetização pelo método natural, para além de ensinar que B+A forma “BA”, tem como objetivo dar a palavra à criança, para que ela entenda seu uso, questione as palavras que circulam na sociedade, para que se torne autora e cidadã! Freinet não conheceu o termo letramento, mas podemos seguramente afirmar que sua proposta de alfabetização contemplava a ideia de letramento que hoje conhecemos. SAIBA MAIS Diálogos sobre Alfabetização: Perspectivas discursivas para Alfabetização - LIVE #9 (Live no canal de Bárbara Cortella com as professoras alfabetizadoras pelo Método Natural da Escrita) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rtg3VFai0lU. Acesso em: 12 nov. 2020. 31Alfabetização e Letramento 15. PAULO FREIRE E A ALFABETIZAÇÃO Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adap- tar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes. Paulo Freire (Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos, 2000, p. 33) O pernambucano Paulo Freire, ao defender sua proposta de alfabetização, destacou o ensino da linguagem escrita e da leitura a partir das condições concretas de vida nas quais o educando está inserido. O termo letramento surgiu tempos depois do trabalho de Freire com alfabetização se consolidar. Porém, podemos afirmar que seu referencial teórico deu subsídios para que os educadores repensassem os modos de ensinar con- siderando a escrita em funcionamento. Figura 13. Paulo Freire Fonte: Instituto Paulo Freire. Disponível em: https://www.paulofreire.org/paulo-freire-patrono-da-educacao-brasileira. Acesso em: 5 jan. 2021. Paulo Regus Neves Freire foi o mais célebre educador brasileiro, com atuação e re- conhecimento internacional. Nascido no Recife, em 19 de setembro de 1921, “leão do norte”, de Casa Amarela, bairro tradicional da cidade, caçula de quatro irmãos, filho de Edeltrudes Neves Freire, bordadeira, dona de casa e pernambucana, e de Joaquim Temístocles Freire, sargento do exército e nascido no Rio Grande do Norte. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 32 1 Filho de militar, teve uma educação rigorosa, mas não autoritária. Foram seus pais que o apresentaram ao mundo da leitura e da escrita. Foi alfabetizado a partir de suas próprias palavras, das palavras de sua infância, de seu quintal. E essa vivência, anos depois, o influenciou enquanto educador. Ainda menino, foi para escola, uma escola de educação infantil na rede privada em Recife. Lá encontrou uma professora que traba- lhava de forma muito respeitosa em relação aos saberes das crianças. A infância deu lugar a uma adolescência difícil: aos 10 anos, sua família precisou mu- dar-se para Jaboatão, fugindo da crise de 1929 e buscando melhores condições de vida. Aos 13 anos perdeu seu pai e acabou por adiar os estudos primários, ficando atrasado na escola. Católico, foi um jovem ligado ao movimento de Ação Católica. Tornou-se estudante de direito com mais de 20 anos de idade. Nessa época, conheceu a professora primária Elza, que se tornou sua esposa em 1944. Educadora, ela influenciou não só os estudos de Paulo e, assim como Freinet, Freire também encontrou em sua companheira uma aliada ao trabalho pedagógico, que revelou ser uma grande parceira e militante pela alfabetização dos adultos de forma emancipatória. O estudo da linguagem popular serviu de ancoragem para a elaboração pedagógica de Paulo Freire. Ele foi um dos fundadores do Serviço de Extensão Cultural da Universida- de do Recife e lá também se tornou diretor. Com a emergência do regime ditatorial no Brasil, os trabalhos de Freire foram interrom- pidos, já que o golpe militar reprimiu toda e qualquer mobilização popular. Acusado de comunista, Paulo Freire foi preso. Precisou se exilar. Foram 16 anos fora do país, foi exílio longo e difícil, mas foi nesse período que ele produziu grande parte de seus trabalhos. Esteve por cinco anos no Chile, como consultor da Unesco, no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária. Em 1970 foi para Genebra, na Suíça, para traba- lhar como consultor do Conselho Mundial de Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, além de ajudar em campanhas no Peru e na Nicarágua. Em 1980, voltou ao Brasil, onde permaneceu e se tornou professor da PUC-SP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma das experiências mais relevantes de Paulo Freire foi sua atuação como secretário da Educação da Prefeitura de São Paulo, entre 1989 e 1991, na gestão Luiza Erundina (PT). É autor de diversos livros, como: Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação e mudan- ça. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, 33Alfabetização e Letramento 1Paz e Terra, 1992; Política e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora sim, Tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D’Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho D’Água, 1995; Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996; Pedagogia da indig- nação. São Paulo, Editora da Unesp, 2000. Em 2 de maio de 1997, aos 76 anos de idade, em plena atividade de educador e de pensador, Freire faleceu, deixando um legado imensurável. Sobre o ato de ensinar, Freire nos deixa a lição de que esse ato exige um profundo conhecimento de mundo, para além dos conhecimentos acadêmicos. [...] ensinar já não pode ser este esforço de transmissão do chamado saber acumulado, que faz uma geração à outra, e aprender não é a pura recepção do objeto ou do conteúdo transferido. Pelo contrário, girando em torno da compre- ensão do mundo, dos objetos, da criação, da boniteza, da exatidão científica, do senso comum, ensinar e aprender giram também em torno da produção daquela compreensão, tão social quanto a produção da linguagem, que é tam- bém conhecimento. (FREIRE, 1997, p. 5) Defende que o ensino se dá num movimento dialético, poético de ir e vir: “[...] envol- vendo o ensinar do ensinante, envolve também de um lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a aprendizagem do aprendiz que se prepara para ensinar amanhã [...]” (Freire, 1993), afirmando que “não existe ensinar sem aprender”. Faz-se necessário falar da vida de Freire antes de adentrarmos em sua proposta de alfabetização, pois sua condição de vida, seu lugar de aluno, suas dificuldades, tão semelhante às dificuldades de muitos meninos nordestinos, sua posição política, sua militânciae o tempo de exílio afetaram profundamente o seu fazer enquanto professor. Muitos estudiosos da obra de Freire refutam a ideia de que ele criou um método de alfa- betização ao considerarem o discurso pedagógico de que método se refere à um “como fazer”, como aponta Soares (2012, p. 118): fala-se em alfabetização, pensa-se logo no método para alfabetizar, no cami- nho pelo qual se levará a criança ou o adulto a aprender a ler e escrever: em um passado já distante a soletração; depois (e até hoje!) a silabação, ou a palavração, o método global. Analfabetismo: Definido pelo Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010, [on-line]) como: “estado ou condição de analfabeto”; analfabeto: aquele que não sabe ler e escrever. Se um método, especialmente de alfabetização, é encarado como esse modo restrito e prescritivo, é muito reducionista mesmo dizer que Paulo Freire é autor de um método de alfabetizar. O que ele criou foi uma concepção de alfabetização, dentro de uma concep- ção de educação libertária, como lugar de tomada de consciência, de resistência e de luta! Para falarmos sobre o trabalho de Paulo Freire com a alfabetização, é fundamental trazer o contexto em que o autor forjou sua proposta: Nordeste, Brasil, início dos anos Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 34 1 1960, quando grande parte da população era analfabeta. O acesso à escrita era muito mais do que ensinar as letras, era a possibilidade de ampliar os horizontes, superação da condição precária de vida de um povo marcado pela submissão. Métodos de alfabetização têm um material pronto: cartazes, cartilhas, cadernos de exercícios. Quanto mais o alfabetizador acredita que aprender é enfiar o saber-de-quem-sabe no suposto vazio-de-quem-não-sabe, tanto mais tudo é feito de longe e chega pronto, previsto. Paulo Freire pensou que um método de educação construído em cima da ideia de um diálogo entre educador e educando, onde há sempre partes de cada um no outro, não poderia começar com o educador trazendo pronto, do seu mundo, do seu saber, o seu método e o material da fala dele (BRANDÃO, 1981, p. 9). O que chamamos de “Método Paulo Freire” nasceu em meados dos anos 60, com o trabalho realizado por Freire em parceria com o Movimento Cultura Popular do Recife (MCP), na região periférica da cidade, nos chamados centros de cultura. A experi- ência inicial deu-se com um trabalho que atendia cinco educandos – no decorrer do percurso dois desistiram e três permaneceram –, porém, o grande destaque veio com a experiência realizada em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde, em 45 dias, trezentos alunos foram alfabetizados (GADOTTI, 1996, p. 72). O sucesso de Angicos correu o país, tanto pela grandeza de alfabetizar trezentos alu- nos, que eram trabalhadores rurais, quanto por Angicos ser a terra natal do então presi- dente da República, João Goulart. O processo de alfabetização partia das expressões e vocabulário da comunidade, dos dizeres dos trabalhadores e trabalhadoras. Utilizava- -se do repertório conhecido pelos educandos, e, assim, ampliava a leitura de mundo, os horizontes e as possibilidades daquele povo. Considerar o repertório do educando e dar a ele vez e voz, enfatizando o quanto ele já sabe para aprofundar conhecimento mais técnico da língua escrita é o que tornou a pro- posta de Freire tão revolucionária, pois, para além de ensinar a codificar e decodificar as letras, ele buscava empoderar seu povo. Em 1963, o presidente João Goulart e seu ministro da Educação, Paulo de Tarso Santos fo- ram convidados a representar nacionalmente a alfabetização de adultos. No ano seguinte, se não fosse o Golpe de 64, teria sido realizada a instalação de 20 mil círculos de cultura, com a perspectiva de atender dois milhões de analfabetos (GADOTTI, 1996, p. 72). No ano de 1967, Freire apresentou sua proposta de alfabetização de forma minuciosa em sua obra intitulada Educação como prática da liberdade. Essa obra versava sobre a experiência de mais de uma década com o trabalho de alfabetização de adultos priori- tariamente da área rural, e sobre algumas experiências em espaços urbanos também. SAIBA MAIS Para saber mais, assista: Vídeo-documentário aqui que retrata a Revolução de Angicos – parte 1 e parte 2. https://www.youtube.com/watch?v=ENks3CJeJ5E. Acesso em: 6 jan. 2021. 35Alfabetização e Letramento 1O autor se coloca terminantemente contrário ao que ele denominou como “educação bancária”, que é a educação que pressupõe que o aluno é uma tábula rasa e que cabe à escola depositar os conhecimentos socialmente construídos na mente dos discentes, a fim de instruí-los. Nesse modelo, o professor ocupa o lugar de douto, detentor de todo o saber a ser ensinado, enquanto o aluno, que, nessa concepção, não possui conheci- mento algum, deve apenas receber, sem questionar o saber catedrático do professor. A defesa de Freire é por uma educação libertadora, o oposto da educação bancária, pois, como o próprio nome indica, ele identifica a educação como arma para a liberda- de, para transformação da realidade. Sobre seu método de alfabetização, como já anunciado neste texto, sua abordagem teórica está muito mais para uma teoria do conhecimento, – abarcando um caráter fi- losófico, social e político da educação – do que para um método de ensino, que acaba por enquadrar o conhecimento em pacotes aplicáveis. Contudo, contrariando o próprio autor, correu a fama de um “Método Freire de alfabetizar”. Muito mais do que o trabalho com alfabetização, o método proposto por Paulo Freire tem como objetivo conscientizar, ampliar a visão de mundo, de modo a formar cidadãos críticos, conhecedores de suas realidades, instrumentalizando-os para superá-las! O ideário freiriano busca mobilizar a transformação social. Freire (2002, p. 45) define que: “aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se, é, antes de tudo, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e a realidade”. Como já mencionado, o método de alfabetização concebido por Freire surgiu nos círcu- los de cultura, no Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP), que, de acordo com o próprio autor: “não tinham uma programação feita a priori” (GADOTTI, 1996, p. 82). O trabalho partia de uma escuta do grupo, que elencava os temas a serem debatidos de acordo com as necessidades dos envolvidos. Nesse cenário, o papel dos educadores era abordar a temática e orientar a discussão. O educador também podia propor algum tema que julgasse pertinente, nunca se so- brepondo ao saber popular – que nasce das e nas práticas sociais, do cotidiano –, mas auxiliando na explicitação e compreensão de temas mais complexos. As discussões e aprofundamento dos temas abordados no âmbito dos círculos de cul- tura se mostraram tão fecundas que Freire acabou partindo desse mesmo princípio, o da escuta, para propor um trabalho mais sistematizado com a alfabetização, trazendo os educandos, os alunos das camadas populares, os trabalhadores, para dentro do processo, tornando a escrita uma arma de luta e de desmistificação do mundo e não de subordinação ao mundo letrado. Esse trabalho de aproximar o aluno, o sujeito da aprendizagem, do processo de ela- boração e aquisição do conhecimento tornou o processo muito mais democrático e efi- ciente, visto que toda a aprendizagem passou a ter sentido real e a estabelecer relação com a vida dos educandos, que se constituíam não apenas como leitores, mas como sujeitos de direitos. Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento 36 1 Contrariando a lógica dos métodos tradicionais escolares, Freire mostrou que professor e aluno aprendem juntos na escola, em comunhão. O trabalho de campo era o primeiro passo do educador, que se inspirava no método freiriano de alfabetização, munido de um caderno de registro e com o coração aberto ao que ia encontrar. O professor alfabetizador se lançava a campo, lado
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