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FILOSOFIA Gabriel Victor Rocha Pinezi O racionalismo cartesiano Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a filosofia racionalista de René Descartes. Distinguir as questões relativas à racionalidade. Explicar a reflexão filosófica sobre o conhecimento. Introdução Neste capítulo, você vai conhecer a obra do filósofo francês René Des- cartes e verificar a sua importância para a história da filosofia e da ciência ocidentais. Em um primeiro momento, você vai ver por que, segundo os historiadores, o pensamento de Descartes funda a chamada “filosofia moderna”. Com o livro Discurso do Método (1637), Descartes fornece uma expressão filosófica à Revolução Científica, que se anunciava no Ocidente desde o Renascimento, marcando o fim da escolástica. Além disso, você vai estudar o conceito de “razão” em Descartes, com base na distinção entre as filosofias empiristas e racionalistas. Você também vai conhecer o método de Descartes, isto é, o caminho que ele propõe para conduzir o raciocínio em direção à verdade. Por fim, você vai verificar como o pensamento cartesiano é indissociável de uma matematização da realidade, bem como da separação entre corpo e alma, ideias que Descartes desenvolveu a partir de sua máxima “Penso, logo existo”. René Descartes e o nascimento da filosofia moderna O racionalismo cartesiano foi responsável por uma profunda transformação no modo como se concebe a fi losofi a na tradição ocidental. Entre os dois milênios que separam as obras de Platão (428–347 a.C.) e de Aristóteles (384–322 a.C.), escritas no século IV a.C., da obra de René Descartes (1596–1650), datadas do século XVII, não havia surgido uma teoria do conhecimento tão radi- cal em sua originalidade. Os fi lósofos gregos foram audaciosos ao propor um novo estilo de pensar, colocando em dúvida as verdades que os poetas explicavam a partir dos mitos, e os sofi stas, a partir da retórica. Da mesma forma, o racionalismo de Descartes propôs uma forma de interpretar a realidade que acabou superando a fi losofi a da Idade Média, então dominada pelo pensamento escolástico. Por isso, Descartes é conhecido como um dos pais da fi losofi a moderna. Desde os gregos, portanto, nenhum pensador havia proposto uma mu- dança tão radical na epistemologia (teoria do conhecimento) ou na metafísica (especulação sobre o suprassensível) como aquela que se anuncia na obra de Descartes. Isso porque toda a filosofia medieval é marcada pela tentativa de reinterpretar a filosofia grega pagã à luz dos dogmas cristãos. Daí que se conte a piada de que, apesar da profunda influência de Santo Agostinho (354–430 d.C.) e de São Tomás de Aquino (1225–1247), os dois mais importantes filósofos da Idade Média foram, na verdade, Platão e Aristóteles. Todo o pensamento medieval é apenas uma releitura sistemática dos conceitos filosóficos gregos (AGAMBEN, 2012a). É nisto, justamente, que consiste a radicalidade do pensamento de Des- cartes: a sua filosofia não é simplesmente comentário ou releitura de outros filósofos, mas é uma tentativa de fundar um sistema de pensamento coerente e racional inteiramente novo. Para explicar a sua intenção, Descartes (1973a) compara a sua filosofia com o trabalho de um arquiteto que demole uma casa e constrói outra inteiramente nova a partir dos seus destroços: o que ele pretendia demolir era justamente tudo aquilo que os escolásticos — isto é, os doutores da Igreja de sua época — tomavam como verdade; e a casa nova seria o seu pensamento racionalista, científico e matemático. É claro que essa intenção de originalidade em relação aos professores da Igreja não surgiu do nada. É bem evidente que o próprio Descartes se valia de ideias da filosofia medieval para fundamentar os seus argumentos — espe- cialmente quando trata Deus como um ser perfeito, indivisível e imutável (DESCARTES, 1973a). A importância de Descartes não é necessariamente o simples resultado da publicação dos seus dois livros mais lidos, Discurso do Método (1637) e Meditações Metafísicas (1641). Descartes faz parte de um contexto mais amplo de crescente racionalização do mundo, que ficou conhecido como Revolução Científica. Esse movimento havia se iniciado no Renascimento, com cientistas e pensadores como Leonardo da Vinci (1452–1519), Nicolau Copérnico (1473–1543), Galileu Galilei (1564–1642) e Johannes Kepler O racionalismo cartesiano2 (1571–1630). Algumas das ideias desenvolvidas nesse período por esses cientistas já colocavam em questão crenças da Igreja Católica: da Vinci havia deslocado o eixo de interesse de Deus para a natureza a partir dos seus importantes estudos de anatomia, matemática e engenharia, influenciados pelo humanismo da Antiguidade Greco-Romana; Copérnico e Galileu haviam afirmado, contra a Igreja, que era o Sol, e não a Terra, que estava no centro do universo (isso inclusive colocou as suas vidas em risco, já que foram perseguidos pela Inquisição); e Kepler havia proposto uma in- terpretação racional do movimento dos astros, aproximando a astronomia da matemática. Não se pode, portanto, ignorar que tudo isso já anuncia historicamente o imenso sucesso que as ideias racionalistas de Descartes teriam na Europa dos séculos XVII e XVIII. Mas isso também não torna irrelevante o profundo corte que o pensamento cartesiano opera na história da metafísica e da teoria do conhecimento. Há um consenso quase geral entre os historiadores de que Descartes foi o primeiro filósofo eminentemente moderno, pela forma com que deslocou a metafísica de suas questões teológicas — isto é, questões relativas à existência e à vontade de Deus — para uma explicação mecânica e matemática da natureza. Veja o que Descartes (1973a, p. 53) afirmou em uma de suas cartas ao teólogo Mersenne: “[...] se lhe apraz considerar o que escrevi do solo, da neve, do arco-íris etc... saberá efetivamente que toda a minha Física não é mais do que Geometria”. No Medievo, a interpretação da natureza derivava da profunda fé e da intensa servidão que o homem medieval devotava a Deus. Assim, para os medievais, a pergunta “por que o Sol nasce?” acabava se transformando automaticamente na questão “por que Deus quer que o Sol nasça?”. Dessa forma, todas as respostas para essa pergunta acabavam pressupondo que, se Deus criou o Sol, foi porque ele quis, e se ele quis, os homens devem, como seus servos, se adequar à sua vontade: “Deus ajuda quem cedo madruga”. Assim, no pensamento medieval, há uma inevitável sobreposição entre uma vontade divina e a natureza: as leis da natureza são idênticas ao próprio desígnio do Senhor. Com a Revolução Científica, iniciada no Renascimento e levada a cabo por Descartes, a pergunta “por que o Sol nasce?” passou a ser respondida a partir das leis fundamentais da matemática e da física. Separaram-se, assim, a finalidade da natureza e o desígnio divino — algo que será ainda mais consolidado no século XIX, com o Positivismo. Nessa perspectiva, a resposta mais adequada para a questão “por que o Sol nasce?” depende unicamente de uma causa natural: como afirmou Galileu, o Sol nasce porque a Terra gira 3O racionalismo cartesiano em torno de si mesma e, assim, só se pode ver o Sol quando um de seus lados estiver na direção da luz solar. Essa é uma explicação que não pressupõe, necessariamente, um ensinamento de como se deve agir segundo a vontade de Deus. É por isso, justamente, que os pensadores da Revolução Científica incomodavam a Igreja Católica. Seguindo esse pensamento científico da época, Descartes havia sugerido que o conhecimento verdadeiro não depende exclusivamente de uma “graça” concedida por Deus ao homem, mas deve ser construído por um sujeito que, a partir de sua própria vontade individual, questiona e indaga a existência das coisas. Certamente, as conclusões de Descartes no Discurso mostram que, sem Deus, não é possível um conhecimento verdadeiro — pois, para ele, é Deusquem dá ao homem o acesso às ideias: “[...] dado que conhecia algumas perfeições que não possuía, eu [concluí que] não era o único ser que existia” (DESCARTES, 1973a, p. 56). Nesse sentido, dizer que Descartes é um filósofo moderno se justifica pela forma com que colocou a subjeti- vidade, e não a existência de Deus, como o problema mais fundamental da filosofia. Em termos mais precisos, como afirma Agamben (2012b), desde a Antiguidade, o problema central da teoria do conhecimento foi a relação entre o uno e o múltiplo, o humano e o divino; na época moderna, a partir de Descartes, passou a ser a relação entre um sujeito e um objeto, um eu e um não eu. Isso não quer dizer, necessariamente, que Descartes fosse um ateu ou que não acreditasse em Deus — embora tenha sido acusado de ateísmo em sua época pelo reitor da Universidade de Utrecht, que o comparou “[...] a Vanini, acusado de haver expressamente exibido provas frágeis e ineficazes da existência de Deus” (STRATHERN, 1997, p. 48). Tanto no Discurso do Método como nas Meditações Metafísicas, Descartes (1973a) afirma que a segunda coisa mais certa e mais racional, para ele, é que Deus existe — precedida apenas da evi- dência de sua própria existência enquanto ser pensante. Mas é justamente por dizer que Deus é a segunda, e não a primeira coisa mais evidente e verdadeira, que Descartes desloca a questão fundamental da epistemologia da existência de Deus para a da existência do próprio sujeito. Para Descartes, antes de se ter conhecimento da existência de Deus, é preciso que uma vontade humana se coloque a pensar: primeiro, a evidência do pensamento; depois, a evidência do divino. Como bem disseram os jesuítas que rivalizavam com Descartes, o famoso lema cartesiano “Penso, logo existo” anunciava o fim da escolástica medieval (STRATEHERN, 1997). O racionalismo cartesiano4 A seguir, veja algumas definições importantes. Monoteísmo: é a crença de que existe apenas um deus, e não vários. Nas religiões pagãs, como a da Grécia Antiga, existia uma divindade para cada fenômeno da natureza. Por exemplo: Poseidon é o deus dos mares, Eros é o deus do amor, Zeus é o deus do trovão. Já nas três grandes religiões do Ocidente — judaísmo, cristia- nismo e islamismo —, os fiéis acreditam que há apenas um único deus e que ele é a origem e o fundamento de todas as coisas. Teologia: é nome que se dá ao conjunto de estudos sobre Deus e as divindades. O termo deriva do grego théos, que significa “deus”. Durante o Medievo, todo o saber sobre a verdade e a natureza não podia destoar daquilo que os teólogos da Igreja diziam sobre Deus. Assim, ciência e teologia não eram separadas na Era Medieval como serão a partir da Era Moderna. Metafísica: é o pensamento que trata de tudo aquilo que está além da apreensão do mundo pelos sentidos — a “ideia” em Platão, a “substância” ou a “essência” em Aristóteles e todo o pensamento sobre Deus na Idade Média. Epistemologia: também conhecida como “teoria do conhecimento”, é o campo da filosofia que estuda como o conhecimento da realidade é possível. A palavra “epistemologia” vem do grego epistéme, que significa literalmente “saber”. A partir da Modernidade, com a crescente valorização da ciência, a epistemologia torna-se muito mais importante do que a teologia. Escolástica: tradição filosófica que se inicia no Ocidente após a retomada da obra de Aristóteles no século IX pelos padres da Igreja Católica. Foi a primeira escola de pensamento que tentou conciliar a razão com a fé. Teve como expoente São Tomás de Aquino e foi o pensamento dominante até a época de Descartes. O que é a razão em Descartes? Desde Immanuel Kant (1724–1804), os historiadores dividem a fi losofi a mo- derna em duas grandes linhas: a fi losofi a racionalista e a fi losofi a empirista. Não resta dúvidas de que ambas as correntes valorizaram muito mais a ciência metódica e racional do que a fé para explicar de que modo o homem pode ter acesso à verdade — e é isso o que as torna modernas. Mas as duas grandes linhas da fi losofi a moderna não estão de acordo quanto à forma como os homens distinguem o verdadeiro do falso a partir da razão. Para os fi lósofos empiristas — como Francis Bacon (1561–1626), Thomas Hobbes (1588–1679), John Locke (1632–1704) e David Hume (1711–1776) —, o homem só pode conhecer a realidade a partir de seus sentidos e de suas experiências, com 5O racionalismo cartesiano base no método indutivo. Daí o nome dessa corrente ser “empirismo”: em grego, a palavra émpeiria signifi ca simplesmente “experiência”, a mesma que qualquer sujeito adquire a partir da prática ou da apreensão atenta dos fatos pelos sentidos. Os empiristas acreditavam que todo o conhecimento era construído a partir de induções, isto é, raciocínios sobre a natureza que se baseiam na regularidade dos fatos. Considere ainda o exemplo do Sol: para um empirista, é possível enunciar a lei geral “o Sol nasce todo dia” apenas porque, regularmente, é possível vê-lo surgir no horizonte todos os dias de manhã. Adquire-se esse conhecimento a partir da experiência, e não porque se nasce sabendo. Nada garante que a proposição “o Sol nasce todos os dias” seja verdadeira, a não ser o fato de que as pessoas estão acostumadas a vê-lo nascer todos os dias. O raciocínio indutivo para se chegar a essa conclusão seria: o Sol nasceu hoje, o Sol nasceu ontem, o Sol nasceu anteontem; logo, o Sol nasce todos os dias. Por isso, o método indutivo se baseia na recorrência de casos particulares. Ao contrário dos empiristas, os racionalistas — como Baruch Spinoza (1632–1677) e Gottfried Leibniz (1646–1716) — acreditavam que a razão era muito mais importante do que a experiência para a construção do saber verdadeiro. Para os racionalistas, os sentidos podem levar ao erro, pois podem iludir. De novo, considere o Sol: se você o vê nascer ao longe, seus sentidos lhe dizem que ele é algo muito pequeno, algo que pode caber em suas mãos. Mas isso, na verdade, é uma ilusão causada pela perspectiva. Se você empregar técnicas científicas com base na matemática e na física, vai acabar descobrindo que o Sol é, na verdade, 332.900 vezes maior do que a Terra. Assim, é apenas a partir de um raciocínio dedutivo, que parte do mais simples em direção ao mais complexo, e não a partir da experiência e dos sentidos, que você pode descobrir qual é o verdadeiro tamanho do Sol. É esse pensamento lógico e matemático, baseado em etapas e cálculos, que Descartes chama de razão. O método cartesiano Descartes foi o precursor do racionalismo moderno, justamente por desconfi ar de todas as verdades que seus contemporâneos afi rmavam a partir de suas experiências. No Discurso do Método, seu livro mais importante, ele conta como estava descontente tanto com a fi losofi a que aprendeu nas universida- des quanto com o saber dos outros povos que conheceu ao viajar para terras distantes (apesar de ter nascido na França, Descartes adorava viajar; foi na Holanda que ele desenvolveu o seu método). O racionalismo cartesiano6 Em seu desejo de distinguir o verdadeiro do falso, Descartes passou a duvidar radicalmente das opiniões dos outros — o que, em sua época, a filosofia chamava de “senso comum” e que Platão havia definido muito antes como “dóxa”. Surge daí o procedimento cartesiano da dúvida metódica. Tal procedimento consiste em colocar em suspenso todas as verdades que o sujeito adquiriu a partir de suas experiências de vida. A palavra “método” nada mais significa do que um “caminho” que o raciocínio deve percorrer em sua busca pela verdade. O método indica como o sujeito deve pensar se quiser distinguir a ilusão sensível da verdade inteli- gível. O método cartesiano é o do esquecimento das verdades adquiridas pela experiência em favor do uso ativo e pleno da razão. Descartes dizia que, para buscar a verdade, as pessoas devem, antes de tudo, abandonar as opiniões que receberam por meio de professores, livros, poesias, literaturaou senso comum. Ou seja: para descobrir a verdade, você não pode se basear no que já sabe a partir de sua memória ou de sua formação cultural, mas apenas em sua relação individual com o mundo (DESCARTES, 1973a). Por isso, no Discurso do Método, ao contar como criou o seu método, Descartes (1973a) fala da importância da solidão para a sua formação como cientista. Esse procedimento de isolar um sujeito do conhecimento puro, sem in- fluências de outros sujeitos, é chamado pela história da filosofia de époche. O significado literal desse termo é “colocar em suspenso”. É importante lembrar que “suspender” uma verdade não quer dizer simplesmente achar que o que os outros contam é falso, ou que tudo o que os sentidos indicam é mera ilusão — isso seria o absoluto ceticismo, o que não corresponde à filosofia de Descartes, para quem é possível ter certeza sobre a existência da realidade. Suspender não é simplesmente negar que os outros possam dizer a verdade, mas tomar o cuidado de não acreditar em nada antes de averiguar, por meio da sua própria razão, a verdade de uma afirmação que vem do outro. E por que desconfiar tanto assim dos outros? Segundo Descartes, o problema em basear-se simplesmente no hábito é que, dessa forma, não se chega nunca a uma verdade universal, igual para todos. Em suas viagens e em suas leituras, Descartes percebeu que diferentes pessoas afirmavam diferentes opiniões sobre um mesmo fato. Havia tantas e variadas versões para se explicar por que o Sol nasce — porque Deus quis, porque precisamos de calor para viver, porque o Sol é um ser mitológico, etc. —, que algumas chegavam a contradizer as outras. Se é assim, em qual se deve acreditar? Como, a partir dessa dúvida radical, encontrar a verdade? 7O racionalismo cartesiano Descartes acreditava que só poderia haver uma resposta verdadeira para cada problema e que a única ciência universalmente válida era a matemática — especialmente a geometria. Tanto um matemático da Grécia Antiga quanto um matemático francês deveriam chegar à mesma solução para um mesmo problema geométrico. Disso, Descartes deduziu que para qualquer questão em que pairasse uma dúvida seria possível encontrar uma certeza ao aplicar os procedimentos da geometria. Esse é o método da dedução racional da verdade. Para Descartes (1973a), são quatro as etapas que devem ser seguidas depois de se colocar a opinião dos outros em suspenso. Veja a seguir. 1. Verificar: em vez de acreditar na opinião dos outros, só se deve acreditar em algo que seja claro e distinto, aquilo que a geometria chama de “evidência”. 2. Analisar: implica dividir as observações nas partes mais simples pos- síveis — isto é, reduzi-las matematicamente a unidades, números. 3. Sintetizar: consiste em reunir essas unidades em agrupamentos coeren- tes, partindo do mais simples em direção ao mais complexo. 4. Enumerar: é a revisão da construção completa da ordem do pensamento para ter certeza de que nenhum raciocínio errado foi tomado como certo. Os escolásticos da Idade Média acreditavam que a alma humana era dividida em três partes: razão, imaginação e memória. Por isso, para eles, todo o conhecimento humano dependia em alguma medida da memória — isto é, das coisas aprendidas ao longo da vida com os outros ou com os livros do passado. Quando Descartes propõe a sua dúvida metódica, afirma que o sujeito do conhecimento não precisa da memória para buscar a verdade. O melhor cientista, para Descartes, é aquele que pensa sozinho, sem a ajuda dos outros. Por isso, a memória e as tradições culturais, segundo o racionalismo de Descartes, mais atrapalham do que ajudam na busca da verdade. No ensaio “Experiência e Pobreza”, o filósofo Walter Benjamin (1892–1940) problematizou os efeitos dessa crise da relação entre memória e verdade nos tempos modernos. Para Benjamin (1994), o gesto de Descartes de “demolir” o conhecimento do passado em favor de algo inteiramente novo mudou a forma de os homens lidarem com eles mesmos. Ao valorizarem uma verdade do presente que renega o passado, as pessoas acabam se esquecendo de suas próprias origens — e saber de onde se vem é importantíssimo para saber quem se é e como se vê o mundo. Daí que, no século XX, além de Benjamin, muitos outros filósofos — como Martin Heidegger (1889–1976), Michel Foucault (1926–1984) e Giorgio Agamben (1942) — interpretam de forma bastante crítica a influência do racionalismo de Descartes sobre os tempos atuais, tentando revalorizar as relações entre memória e verdade. O racionalismo cartesiano8 “Penso, logo existo”: a matematização do mundo em Descartes No Discurso do Método, Descartes (1973a) conta como aplicou o seu método para colocar à prova as várias suposições da tradição fi losófi ca ocidental. Ao colocar em suspenso todas as suas crenças e opiniões, ele buscava encontrar o elemento mínimo e dedutível capaz de sustentar todo o edifício do saber científi co — isto é, o seu fundamento, a verdade primeira. Mesmo a sua própria existência deveria ser colocada em questão, pois como ele poderia saber que não estava simplesmente sonhando? Desse procedimento de colocar a existência de tudo o que ele sentia em dúvida, o que sobrou, então? Apenas Descartes, frente ao próprio pensar, num quarto solitário; apenas o “eu” do filósofo diante do absoluto nada. É aí que Descartes chega a uma das máximas mais famosas da história da filosofia: se esse “eu” que duvida continua existindo enquanto duvida, então a coisa mais clara e mais distinta que se pode reconhecer é a existência do próprio pensamento: “[...] notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava” (DESCARTES, 1973a, p. 54). A partir da definição do “eu” pensante como a coisa mais clara e mais dis- tinta, o princípio sobre o qual se pode edificar um novo pensamento, Descartes se pergunta qual seria a segunda coisa mais evidente. Seria a existência do seu próprio corpo? Não exatamente. Para Descartes, embora a razão pudesse extrair de si mesma a evidência de sua existência, nada ainda comprovava que esse “eu” pensante fosse idêntico ao corpo que ele podia sentir. Pois o corpo, para Descartes, é a origem das sensações, da experiência, da empiria; todos os sentidos poderiam estar, naquele momento mesmo, lhe enganando. A partir disso, Descartes define que os seres humanos possuem uma alma que é absolutamente separada do corpo, e que se o corpo morre, a alma permanece viva. Assim, por meio de um raciocínio matemático, Descartes tentava provar a seu modo a tese da imortalidade da alma, que já se encontrava em Platão e em todo o pensamento cristão medieval (DESCARTES, 1973b). Essa separação radical entre o corpo e a alma é um dos traços mais carac- terísticos da filosofia racionalista. Para prová-la, Descartes define a diferença entre as qualidades primárias e as qualidades secundárias de quaisquer objetos. As qualidades primárias são aquelas passíveis de serem conhecidas pela razão — isto é, aquelas que expressam a harmonia matemática por trás de cada objeto, sendo sempre idênticas a si mesmas. As qualidades secundárias 9O racionalismo cartesiano são aquelas que podem ser apreendidas pelos sentidos e que são mutáveis e superficiais. O exemplo de Descartes (1973b) é o de um bloco de cera que, quando colocado perto do fogo, muda completamente no que diz respeito a como afeta os sentidos: modificam-se o tamanho, o cheiro, a forma, a cor, etc. No entanto, ao esfriar, o bloco de cera volta à sua forma original. O que permanece idêntico nesse bloco, o que faz ele “ser”, não é a sua extensão, nem o modo como afeta os sentidos, mas as suas propriedades inteligíveis, que somente a razão pode captar. Na Figura 1, a seguir, você pode ver um exemplo da distinção cartesiana entre qualidades primárias e qualidadessecundárias. Não importa se são usados corações ou números desenhados com símbolos diferentes: todas as equações são matematicamente verdadeiras e expressam a mesma verdade. Essa ordem ou harmonia matemática é o que constitui a qualidade primária, o inteligível, o universalmente válido. O que muda é apenas a qualidade secundária: o sensível, isto é, como essas imagens afetam a visão. Figura 1. Distinção cartesiana entre qualidades primárias e qualidades secundárias. Agora, considere novamente o Sol. O calor que você sente quando um raio de Sol bate em seu corpo é uma qualidade secundária, pois você só pode senti-lo por meio do seu corpo; já se você medir com um termômetro quanto a temperatura do seu corpo aumentou ao ser atingido pela luz, entra em cena uma qualidade primária do raio de Sol, medida em uma unidade matemática chamada grau Celsius. Assim, tudo o que existe no mundo pode ser, para Descartes, matematizado; apenas quando alguém matematiza algo é que pode ter certeza de que os sentidos não o estão enganando. O racionalismo cartesiano10 Assim, também o homem não pode ser definido pelo seu corpo, que muda na medida em que envelhece ou adoece, mas apenas pela sua alma, pelas propriedades eternas e imutáveis de seu intelecto: Ora, se a noção ou conhecimento da cera parece ser mais nítido e mais distinto após ter sido descoberto não somente pela visão ou pelo tato, mas ainda por muitas outras causas, com quão maior evidência, distinção e nitidez não deverei eu conhecer-me posto que todas as razões que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, provam muito mais fácil e evidentemente a natureza de meu espírito? (DESCARTES, 1973b, p. 106) Daí que a separação entre corpo e alma — ou entre res extensa (coisa extensa) e res cogitans (coisa pensante) — seja indissociável dessa tenta- tiva cartesiana de matematizar o mundo. A separação entre corpo e alma, embora não questione a existência de Deus, coloca em crise o pensamento teológico que se baseia principalmente na relação entre o homem e o divino, o múltiplo e o uno. O que é moderno em Descartes é, justamente, essa distinção radical entre um sujeito puramente racional e o mundo que o circunda, cuja distância só pode ser ultrapassada a partir de um pensamento metódico e racional. AGAMBEN, G. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2012a. AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2012b. BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. STRATHERN, P. Descartes em 90 minutos. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. DESCARTES, R. Discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar a ver- dade nas ciências. In: DESCARTES, R. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973a. v. 15. DESCARTES, R. Meditações. In: DESCARTES, R. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. v. 15. 11O racionalismo cartesiano
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