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Indústria da Loucura

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DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA À REFORMA PSIQUIÁTRICA: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no brasil
Eliane Maria Monteiro da Fonte
Introdução
A construção da loucura como doença mental e a propagação de instituições asilares especialmente destinadas aos alienados, assinalando “a formulação de políticas públicas de tratamento e/ou repressão dos doentes mentais, identificados com base nos limites cada vez mais abrangentes da anormalidade”, distingue-se como um processo desencadeado no Brasil entre os anos 1830 e os anos 1920, marcado por continuidades e descontinuidades (ENGEL, 2001, p. 330)
As políticas de saúde mental são aqui consideradas como um acordo político-jurídico que se estabelece numa determinada sociedade sobre a concepção e respostas aos problemas da loucura/doença mental. O foco da análise são as transformações da instituição psiquiátrica no Brasil, constituída historicamente em seu modelo asilar como o lugar de confinamento e tratamento especialmente destinado aos loucos.
O que se convencionou denominar como “reforma psiquiátrica”, que está em curso no país nos últimos 35 anos, poderia deixar transparecer a ideia de reformas que caracterizam os rearranjos institucionais sem transformá-los em sua essência. Entretanto, este é um processo multifacetado e muito mais complexo do que a mera reorganização dos serviços de assistência em saúde mental, extrapolando o campo da psiquiatria enquanto um saber-fazer especializado (AMARANTE, 1998b). 
Reforma Psiquiátrica - O caráter abrangente e radical que dá significado a essa expressão se deve aos desdobramentos que o processo de reforma psiquiátrica adquire, a partir de 1978, como um movimento social de base ao adotar o lema “Por uma sociedade sem manicômios”,
[...] que significou abraçar a bandeira da eliminação progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros tipos de equipamentos comunitários, territorialmente circunscritos e voltados para a inserção social dos usuários, como passam a ser chamados os “doentes mentais”, no contexto de recuperação de sua cidadania, identidade e condições de sujeitos (PASSOS, 2009a, p. 159).
Este exercício sobre a história da agenda pública no cuidado com a saúde mental nos permitiu identificar sete fases nessa trajetória, as quais são discutidas a seguir, por etapa desta evolução. Na seção final são apresentadas algumas das principais tendências nas políticas de saúde mental no Brasil na atualidade, apontando os progressos nos modelos de cuidados que estão sendo criados, mas também as dificuldades e obstáculos que ainda persistem.
1 - A institucionalização da loucura no Brasil
	
A loucura só vem a ser objeto de intervenção por parte do Estado no início do século XIX, com a chegada da Família Real ao Brasil, depois de ter sido socialmente ignorada por quase trezentos anos. Nesse período de modernização e consolidação da nação brasileira como um país independente, passa-se a ver os loucos como “resíduos da sociedade e uma ameaça à ordem pública”. Aos loucos que apresentassem “comportamento agressivo não mais se permitia continuar vagando nas ruas, principalmente quando sua situação socioeconômica era desfavorável, e “seu destino passou a ser os porões das Santas Casas de Misericórdia, onde permaneciam amarrados e vivendo sob péssimas condições de higiene e cuidado” (PASSOS, 2009a, p. 104).
	Em 1830, a recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia lança uma nova palavra de ordem: “aos loucos o hospício”. Para Machado (1978, p. 376), só é possível compreender o nascimento da psiquiatria brasileira a partir da medicina que incorpora a sociedade como novo objeto e se impõe como instância de controle social dos indivíduos e da população. O hospício, considerado na época o principal instrumento terapêutico da psiquiatria, aparece como exigência de uma critica higiênica e disciplinar às instituições de enclausuramento e ao perigo presente em uma população que começa a ser percebida como desviante, a partir de critérios que a própria medicina social estabelece.
1 Hospício brasileiro
Inaugurado em 1852 para abrigar os alienados da Corte e demais províncias do Império, o Hospício de Pedro II foi a primeira instituição dessa natureza a funcionar no Brasil. Seu nome homenageava o próprio imperador, responsável pelo decreto fundador do estabelecimento, que nascia vinculado à Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, principal destino de alienados até então.
Hospício de Pedro II 
Hospício de Pedro II, Praia Vermelha, Rio de Janeiro. BERTICHEM, Pieter Godfred. O Brasil pitoresco e monumental. Rio de Janeiro: Imperial de Rensburg, 1856.
	Desde o final da década de 1970, o primeiro hospício do Brasil tem merecido destaque em algumas abordagens sobre a história da psiquiatria, pois teria representado a concretização do projeto de uma elite médica que tinha como objetivo o controle social das cidades. Nessas análises, fortemente influenciadas pela obra de Michel Foucault, o hospício era visto primordialmente como local de exercício do poder médico, ainda que em disputa com outras formas de poder.
	O projeto de medicalização da loucura, esboçadas nos textos médicos deste período, que defendiam novos parâmetros para a loucura e a necessidade de reclusão dos loucos, começaria a ser concretizado a partir da criação dos primeiros hospícios nas décadas seguintes. Entretanto, as funções saneadoras dos primeiros hospitais psiquiátricos fornecem às origens da assistência psiquiátrica brasileira um caráter bastante peculiar, que é “o da precedência da criação de instituições destinadas especificamente para abrigar loucos sobre o nascimento da psiquiatria3, enquanto corpo de saber médico especializado” (RESENDE, 2007, p. 39).
	Pode-se situar o marco institucional da assistência psiquiátrica brasileira com a fundação do primeiro hospital psiquiátrico, o Hospício D. Pedro II, explicitamente inspirado no modelo asilar francês (elaborado por Pinel e Esquirol), que ocorreu em 1852, no Rio de Janeiro. De acordo com Machado (1978, p. 431), o isolamento foi uma “característica básica do regime médico e policial do Hospício Pedro II” e era o próprio hospício, concebido como o lugar do exercício da ação terapêutica, que deveria realizar a transformação do alienado. Nesse primeiro momento, o isolamento em relação à família é prioritário e indispensável apenas para um tipo especifico de louco: o caso do louco que vaga pela rua, pois a família pobre não tem possibilidade alguma de garantir a segurança e o tratamento. Para famílias ricas, que quisessem manter junto dela o alienado, o internamento não deveria ser imposto, pois, ainda que com limitações, acreditava-se que ela poderia reproduzir um hospício no interior de sua ampla residência.
Durante o Segundo Reinado (1840-1889), foram criadas outras instituições, que se denominavam “exclusivas para alienados” em São Paulo (1852), Pernambuco (1864), Pará (1873), Bahia (1874), Rio Grande do Sul (1884) e Ceará (1886)
...as primeiras instituições psiquiátricas surgiram em meio a um contexto de ameaça à ordem e à paz social, em resposta aos reclamos gerais contra o livre trânsito de doidos pelas ruas das cidades; acrescentem-se os apelos de caráter humanitário, as denúncias contra os maus tratos que sofriam os insanos. A recém-criada Sociedade de Medicina engrossa os protestos, enfatizando a necessidade dar-lhes tratamento adequado, segundo as teorias e técnicas já em prática na Europa (RESENDE, 2007, p. 38).
Entretanto, a ênfase no caráter religioso e caritativo das instituições criadas durante este período acabaria por restringir o caráter medicalizado destes hospícios, onde, até o fim do Império, não havia presença significativa de médicos. Não só a nosologia psiquiátrica estava ausente das instituições, como também eram leigos os critérios de seleção dos pacientes, a juízo da autoridade pública em geral. Os poucos médicos existentes nas instituições tinham pouca influência nas questões administrativas e, somenteno início do século XX, os médicos conseguiram desmontar as poderosas administrações leigas das Santas Casas, bem como as ordens religiosas que prestavam serviços nestes locais, instalando-se na direção dessas instituições (ENGEL, 2001; ODA e DALGARRONDA, 2005).
[...] por mais parciais e ambíguas que tenham sido as primeiras conquistas dos alienistas brasileiros, elas estiveram pautadas, desde o início, na ampliação do significado da moléstia mental que, ultrapassando em muito os limites da loucura associada ao delírio, procurava legitimar a reclusão de indivíduos que manifestassem os mais diversos comportamentos considerados moral e/ou socialmente perigosos, ao mesmo tempo em que viabilizava as perspectivas de ampliação de poder do alienista (ENGEL, 2001, p. 331).
Nas análises dos relatórios dos presidentes das províncias estudadas, Oda e Dalgarronda (2005, p. 1005) identificam “uma clara contradição entre o discurso que enunciava um projeto de assistência oficial e moderno aos loucos e uma prática realmente efetivada”. De fato tratava-se de pessoas pobres submetidas a uma reclusão forçada e a péssimas condições de vida. Nos documentos analisados por estes autores há claras indicações da existência de pressão para internação dos portadores de transtorno mental, de sua retirada das ruas, ação operacionalizada através das autoridades policiais. Para eles, o processo de institucionalização dos alienados no Brasil foi marcado pela construção de uma opinião pública consensual quanto à necessidade e legitimidade de sua reclusão em hospícios próprios.
2 - A medicalização da loucura
Com o advento da República, em 1889, tem início um período que se caracteriza pelo “redimensionamento das políticas de controle social, cuja rigidez e abrangência eram produzidas pelo reconhecimento e pela legitimidade dos novos parâmetros definidores da ordem, do progresso, da modernidade e da civilização” (ENGEL, 2001, p. 331).
Asilo de alienados, quartel de polícia, hospital psiquiátrico, hospício, asilo de mendicidade e casa de correção tinham como função principal realizar a exclusão social do louco, garantindo que ele não ficasse perambulando pela rua, à vista dos passantes, o que era incompatível como nosso pretenso grau de civilidade. Entretanto, se os arranjos realizados nas distintas unidades da Federação foram diferenciados, uma tendência geral serviu de pano de fundo para todas as respostas distintas e práticas diferenciadas no tratamento da loucura pelo poder público: a exclusão em instituições asilares de milhares de ‘homens livres’, “onde só aguardavam o dia de sua morte, encarcerados nesses imensos cemitérios dos vivos” (JABERT, 2005, p. 714).
Em 1890, o Hospício Pedro II é desvinculado da Santa Casa, ficando subordinado à administração pública, passando a denominar-se Hospício Nacional de Alienados, primeira instituição pública de saúde estabelecida pela República.
Pode-se estabelecer grosseiramente o período imediatamente posterior à proclamação da república como o marco divisório entre a psiquiatria empírica do vice-reinado e a psiquiátrica científica, a laicização do asilo, a ascensão dos representantes da classe médica ao controle das instituições e ao papel de porta-vozes legítimos do Estado, que avocara a si as atribuições da assistência ao doente mental, em questões de saúde e doença mental tal como a gravidade da situação exigia (RESENDE, 2007, p. 43).
Nesse período, a loucura é gradativamente medicalizada e o tratamento psiquiátrico continua a ter como principal fundamento o isolamento do louco da vida social. “Os hospícios e as colônias agrícolas, destinadas aos loucos curáveis, para tratamento através da práxis ou da ergoterapia, foram surgindo e se multiplicando pelos principais centros urbanos do país como ícones de sua modernização” (PASSOS, 2009a, p. 107). Para Amarante (1998a, p. 76), “este conjunto de medidas caracterizam a primeira reforma psiquiátrica no Brasil, que tem como escopo a implantação do modelo de colônias de assistência aos doentes mentais”
Nesta época, a maioria dos Estados brasileiros incorpora colônias agrícolas à sua rede de oferta de serviços, seja como complemento aos hospitais psiquiátricos tradicionais, seja como opção única ou predominante. De acordo com Resende (2007, p. 47), o entusiasmo na adesão “à política de construção de colônias agrícolas não se deu apenas por exclusão de outras estratégias terapêuticas, de eficiência duvidosa, mas por ter encontrado um ambiente político e ideológico propícia ao seu florescimento”.
Como a prática psiquiátrica não existe num vazio social, era de se esperar que ela assimilasse aos seus critérios de diferenciação do normal e do patológico os mesmos valores da sociedade onde se inseria, e se empenhasse em devolver à comunidade indivíduos tratados e curados, aptos para o trabalho. O trabalho passou a ser ao mesmo tempo meio e fim do tratamento (RESENDE, 2007, p. 47).
Entretanto, apesar das intenções de recuperação dos doentes mentais, nas propostas de seus criadores, as colônias continuaram a manter na prática a mesma função que caracterizava a assistência ao alienado no Brasil desde a sua criação: a de excluir o louco de seu convívio social e de escondê-lo dos olhos da sociedade. Este período, que se encerra em 1920, mantém “inalterada a destinação social do hospital psiquiátrico a despeito da substituição da psiquiatria empírica pela cientifica” (RESENDE, 2007, p. 52) e se destaca pela ampliação do espaço asilar.
3 - Da higiene mental à psiquiatria comunitária
	A década de 1920 é marcada pela “ampliação e o aprofundamento da influência dos princípios eugênicos no âmbito da psiquiatria brasileira, que sem romper com os referenciais organicistas, passaria a caracterizar-se, cada vez mais, pela presença de perspectivas preventistas” (ENGEL, 2001, p. 175). Em 1923, com a fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), se cristaliza o movimento de higiene mental, como um programa de intervenção no espaço social com características marcadamente eugenistas, xenofóbicas, antiliberais e racistas. A psiquiatria passa também a pretender a recuperação das raças e a constituição de coletividades sadias, colocando-se definitivamente em defesa do Estado, levando-o a uma ação rigorosa de controle social e reivindicando um maior poder de intervenção (AMARANTE, 1998a, p. 78).
Controlar, tratar e cura
	As palavras de ordem da Liga eram “controlar, tratar e curar” e os fenômenos psíquicos eram vistos como produtos da raça ou do meio, decorrentes de obscuros fatores biológicos ou orgânicos. A visão da vertente mais radical da Liga, liderada por Gustavo Riedel, seu fundador, guiava-se por um princípio moralizador e saneador dos comportamentos, pregando a pureza da raça ainda que fosse à custa da esterilização dos “tarados e degenerados”. A vertente higienista propunha melhorias sanitárias e modificação dos costumes e dos modos de vida da população como forma de prevenir as doenças mentais, pois embora tivessem origem em fatores individuais, as condições sanitárias, tais como “o aumento do alcoolismo e da sífilis”, eram consideradas como “fatores desencadeantes” (COSTA, 1989 apud PASSOS, 2009a, p. 108).
Doenças Mentais (SNDM), vinculado ao Ministério da Educação e Saúde6. Neste período predominavam os hospitais públicos responsáveis por 80,7% dos hospitais psiquiátricos no Brasil. Os famosos asilos, como o Juqueri (em São Paulo), o Hospital de Alienados (no Rio de Janeiro) e o São Pedro (em Porto Alegre), exerciam um papel orientador da assistência psiquiátrica, consolidando a política macro-hospitalar pública como o principal instrumento de intervenção sobre a doença mental. Embora existissem alguns hospitais privados e ambulatórios, estes eram bastante incipientes diante do vigor dos hospitais públicos (PAULIN e TURATO, 2004).
As décadas de 1940 e 1950 se caracterizam pela expansão de hospitais públicos em vários estados brasileiros, cujo crescimento foi propiciado pela aprovação do decreto-lei 8.555, de 3 dejaneiro de 1946, que autorizava o SNDM a realizar convênios com os governos estaduais para a construção de hospitais psiquiátricos.7 O Código Brasileiro de Saúde, publicado em 1945, condenava as denominações ‘asilo’, ‘retiro’ ou ‘recolhimento’, reconhecendo a categoria ‘hospital’, se afirmando o espaço de atuação do hospital psiquiátrico. Naquela época a psiquiatria buscava se estabelecer como especialidade médica e os instrumentos mais avançados da psiquiatria biológica foram introduzidos no país, como o choque cardiazólico, a psicocirurgia, a insulinoterapia e a eletroconvulsoterapia (SAMPAIO, 1988; AMARANTE, 1998a).
	A criação de novos hospitais não amenizou a situação caótica dos hospitais públicos que, na década de 1950, viviam em total abandono e apresentando excesso de pacientes internados, continuando os hospitais psiquiátricos a terem basicamente a função social de exclusão. A assistência psiquiátrica pública apresentava enorme lentidão em tomar conhecimento das importantes transformações que ocorriam na prática psiquiátrica na Europa e Estados Unidos no período pós-segunda guerra e as drogas psicóticas, parcialmente responsáveis por grandes transformações nas práticas terapêuticas dos asilos, só fariam sua aparição no mercado em 1955. Segundo Resende (2007, p. 56), o descrédito que os hospitais públicos atingiram junto à população, “expressada em marchinhas de carnaval, anedotas e rótulos pejorativos atribuídos a determinados hospitais”, seria utilizado posteriormente como “evidência incontestável de sua incompetência e um forte argumento em favor da excelência da iniciativa privada”.
	O tratamento asilar foi sendo modificado, questionado e mesmo substituído desde o pós-guerra em vários países. Neste período vários movimentos de contestação ao saber e prática psiquiátrica instituída se fizeram notar no cenário mundial, dos quais se destacam os movimentos denominados Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra; e a Psiquiatria Preventiva, nos EUA8. Esses movimentos se caracterizaram por visar uma reforma do modelo de atenção psiquiátrica, propondo rearranjos técnico-científicos e administrativos da psiquiatria. Apesar disso, observa-se uma grande expansão da rede de hospitais psiquiátricos no Brasil a partir da década de 1960.
O MANICÔMIO
Os movimentos reformistas
A ineficiência do modelo de assistência psiquiátrica que existia até a Segunda Guerra Mundial, prioritariamente hospitalocêntrico (hospital psiquiátrico), exigia uma transformação na psiquiatria.
O movimento da Reforma Psiquiátrica surgiu depois da Segunda Guerra, inicialmente na Europa, na intenção de transformar ou até mesmo extinguir os hospícios, manicômios e hospitais psiquiátricos existentes.
Outro ponto a considerar é que o período de guerra adoeceu muitos soldados, afetando também sua saúde mental. Isto contribuiu para que, no pós-guerra, se pensasse uma nova maneira de tratamento na área da saúde psiquiátrica que não demorasse tanto tempo quanto uma internação psiquiátrica e que fosse menos deteriorante do que esta.
Juntamente com o desejo coletivo de construir uma sociedade mais livre e igualitária, a descoberta dos medicamentos psicotrópicos, a utilização da psicanálise e da saúde pública serviu como propulsores dos diferentes movimentos reformistas da psiquiatria.
O motivo
	Após a 2 Guerra, a sociedade dirigiu seus olhares para os hospicios e descobriu que as condições de vida oferecidas aos pacientes ali internados em nada se diferenciavam daquelas dos Campos de concentração. 
	O que se podia constatar era a absoluta ausencia de dignidade humana! Assim, nasceram as 1 experiencias de reformas paiquiátricas. 
 
Comunidade Terapêutica
Em 1946, Main batiza como Comunidade Terapêutica (CT) o trabalho que vinha realizando em companhia de Bion e Reichman, no Monthfield Hospital, em Birmingham, na Inglaterra. A experiência fica ainda mais conhecida quando, em 1959, Maxwell Jones consagra o termo, tomando a CT com o objetivo de transformar o hospital em uma instituição psiquiátrica terapêutica. 
Com isso, o termo comunidade terapêutica passa a caracterizar um processo de reformas institucionais, predominantemente restritas ao hospital psiquiátrico, e marcadas pela adoção de medidas administrativas, democráticas, participativas e coletivas, objetivando uma transformação da dinâmica institucional asilar (AMARANTE, 1995, p. 28). 
Jones entendia que a função terapêutica deveria ser feita por todos - pelos técnicos, familiares e pacientes. Para isso, com a finalidade de debater todos os aspectos relacionados à instituição, eram realizadas reuniões e assembleias diárias. Tudo que dizia respeito ao trabalho dentro da comunidade era analisado. Com ênfase para a atuação da equipe, tinha a finalidade de evitar situações de abandono, de descuido e, principalmente, de violência. 
Ao organizar os “grupos de discussão” e “grupos operativos”, Jones pretendia envolver, cada vez mais, os internos em seus tratamentos, convocando-os a participar ativamente de todas as atividades disponíveis. 
Por comunidade Terapêutica passou-se a entender um processo de reformas institucionais que continham em si mesmas uma luta contra a hierarquização ou verticalidade dos papeis sociais, ou, enfim, um processo de horizontalidade e “democratização” das relações, nas palavras do próprio Maxwell Jones, que imprimia em todos os atores sociais uma verve terapêutica (AMARANTE, 2007, p. 43). 
Antipsiquiatria
	A antipsiquiatria, por sua vez, teve inicio na Inglaterra no final dos anos 50. Alguns psiquiatras como Ronald Laing e David Cooper propuseram uma refinada discussão sobre as relações viventes entre psiquiatria e violência. 
Ao colocar, portanto, a violência no âmago de sua argumentação, Cooper acreditava que as relações entre os profissionais de uma instituição psiquiátrica asilar e os pacientes eram caracterizados por atos de extrema frieza e através de métodos invasivos como o coma insulínico, a eletro-convulso-terapia (ECT) e mesmo destrutivos como lobotomia, uma intervenção cirúrgica no cérebro que acarretava muitas sequelas e deteriorização (Silveira, 1981). Além das relações de poder hierárquicas, medicalocêntricas, cujo principal objetivo era a manutenção de uma ordem institucional típica das instituições totais. 
(...) Se, se quer falar de violência em psiquiatria, a violência que se brada que se proclama em tão alta voz que raramente é ouvida, é a sutil, tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos “sadios”, contra os rotulados de loucos. Na medida em que a psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos sadios, podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria (COOPER, 1967, p. 31).
	
	Cooper, atravessado por toda essa conjuntura que, para ele, estava sendo apresentada, percebeu que as falas dos pacientes denunciavam, igualmente, os conflitos existentes também no meio familiar. Assim, toda sua argumentação volta-se para uma questão peculiar de grande importância: a discussão entre Sanidade Mental e Loucura. 
	Ele buscava, portanto, assinalar uma oposição à presunção psiquiátrica, entendendo que a experiência entendida como patológica não seria produto de uma mente doente ou lesada, mas sim nascida nas relações constituídas entre ele e a sociedade e, principalmente, as estabelecidas nos contextos familiares. Cooper sustentava a ideia de que a família, ao rejeitar as diferentes posições subjetivas, ostentava o lugar de restrição da liberdade, por creditar às tentativas de autonomia do sujeito, o ensejo da desestruturação do ambiente familiar. 
	Sua tese consistia em afirmar que as relações sociais, fossem elas dentro da instituição manicomial, na família ou na própria sociedade, fundamentavam-se pela ameaça eminente da desintegração. O desvio ou manifestações da loucura seriam considerados alarmes do considerado oferecer riscos à ordem social, fosse o medo de desestruturar a completudedo grupo familiar, e até mesmo o receio dos profissionais em permitir algo que pudesse desordenar a organização sistemática da instituição psiquiátrica. 
(...) os atos e a experiência de determinada pessoa são invadidos por outras, em virtude de certas razões inteligíveis, culturais e microculturais (geralmente familiais), a tal ponto que essa pessoa é eleita e identificada como sendo “mentalmente doente” de certa maneira e, a seguir, é confirmada (por processos específicos, mas altamente arbitrários de rotulação) (...) (COOPER, 1967, p. 17).
	Na verdade, para Cooper, a instituição psiquiátrica radicalizava os mesmos problemas patológicos e opressores da organização social, fortemente presentes e manifestos na família e na sociedade. Deste modo as relações de poder que eram impostas, tanto pela sociedade como pela estrutura familiar, colocavam-se também na montagem institucional psiquiátrica tradicional. 
	Para Cooper, a psiquiatria tradicional estava muito preocupada com a classificação das doenças e pouco com aqueles que, de fato, estavam em intenso sofrimento psíquico. Fato que, para ele, apresentava-se de forma bastante nociva. A questão não teria que estar em torno da chamada doença mental e sim no que realmente deveria importar: o sofrimento a que o paciente era submetido pelas enlouquecedoras relações sociais e familiares. 
No âmbito da Antipsiquiatria não existiria, enfim, a doença mental enquanto objeto natural como considera a psiquiatria, e sim uma determinada experiência do sujeito em sua relação com o ambiente social. Na medida em que o conceito de doença mental era então rejeitado, não existiria exatamente uma proposta de tratamento da “doença mental”, no sentido clássico que damos à idéia de terapêutica. O principio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiência: esta seria, por si só, terapêutica, na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de reorganização interior (AMARANTE, 2007p. 53-54).
	
A partir destas pontuações, supomos ser possível apreender as importantes contribuições dos movimentos reformistas ingleses à Reforma Psiquiátrica Brasileira. Se a Comunidade Terapêutica sugeriu um modelo institucional capaz de remodelar práticas manicomiais totalmente invasivas, a antipsiquiatria, por sua vez, ao tentar propor a não-dominação do outro, colocou em xeque um saber médico psiquiátrico totalizante amparado não só pelo sistema preponderante de classificação das doenças, como também pelo principio da hierarquia, possibilitando, de certa forma, outra leitura sobre os possíveis meios de lidar com a loucura e de acompanhar as experiências psicóticas.
A Psiquiatria de Setor 
A Psiquiatria de Setor está situada historicamente na França no período pós-guerra e tinha como direção de trabalho fora da instituição psiquiátrica, foi incorporada, a partir dos anos sessenta, como política oficial, que sustenta a necessidade da continuidade terapêutica após alta hospitalar, de forma que deveria ser evitada a reinternação ou mesmo a internação de novas pessoas, Centros de Saúde Mental (CSM) passaram a ser criados e organizados nos diferentes “setores” administrativos das regiões francesas. Visando à distribuição populacional das regiões, os CSM tinham como principal objetivo uma assistência psiquiátrica regionalizada. 
A ideia de Lucien Bonnafé, principal personagem do setor, foi a de subdividir o espaço interno do hospital destinando para cada setor uma enfermaria correspondente. Desta feita, todos os pacientes provenientes de uma determinada região, isto é, de um determinado setor, seriam internados em uma mesma enfermaria no hospital. 
Quando recebessem alta médica seriam encaminhados para o CSM existente no mesmo setor. 
O acompanhamento dos pacientes poderia ser realizado pela mesma equipe multiprofissional, tanto no interior do hospital quanto no local de residência. 
Em primeiro lugar, deve-se destacar a ideia de trabalho em equipe, que apresentou um marco de avanço até os dias atuais. O tratamento passava a ser considerado não mais exclusivo do médico psiquiatra , mas de uma equipe com vários profissionais. 
A equipe que acompanhava o paciente internado passaria a acompanha-lo quando o mesmo recebesse alta, dando continuidade ao tratamento e explorando o fator positivo do vinculo já estabelecido no espaço hospitalar. Isto era particularmente importante quando o caminho era o inverso, isto é, quando o paciente, que estava em tratamento no CSM, precisasse ser internado. 
Psicoterapia Institucional
O movimento da Psicoterapia Institucional, considerado uma das mais conhecidas e bem sucedidas experiências de reforma psiquiátrica, teve seu início no final dos anos trinta com o trabalho de François Tosquelles, psiquiatra que fora responsável pela direção do Hospital Saint Alban. Jean Oury, que estagiou com Tosquelles em Saint Alban e se tornou psiquiatra, psicanalista e membro da Escola de Lacan, deu continuidade a esta experiênicia na clínica Saummery e depois na La Borde até à sua morte.
Tosquelles, que veio fugido da Espanha em 1939, com a assumpção fascista no fim da terrível guerra civil, encontrou os hospícios decadentes e abandonados com a guerra e a ocupação nazista da França, onde 40000 mil pacientes morreram de fome (veja Conde,1998, que apresenta excelente análise desta corrente institucional e do trabalho de Tosquelles). Portanto, foi nestes espaços de abandono que ele com outros colegas com influencias do marxismo, da psicanálise e das ideias libertárias começaram a desenvolver a sua experiência de reforma através do estabelecimento de novos princípios éticos e técnicos para transformar a instituição e criar condições terapêuticas, surgindo aí o que foi entendido como psicoterapia institucional.
Como afirmam Verztman, Cavalcante e Serpa Jr. (Apud. Conde,1998:151), se referindo à psicoterapia institucional, “(...) uma instituição psiquiátrica, desde que adquira uma disposição capaz de acolher e escutar esse indivíduo com uma disposição psíquica particular [o psicótico], pode ser um legítimo lugar de tratamento e tecido de vida para determinados sujeitos”.
Na psicoterapia institucional francesa, podemos identificar aí este esforço para resgatar a função terapêutica do hospital psiquiátrico, onde predominou a função social de segregação. Estas instituições deveriam oferecer aos doentes mentais o diagnóstico e terapêutica adequada para cada caso
Como na experiência de guerra na Inglaterra com Bion e outros (Lacan, 1948), onde os sujeitos eram convocados a se encarregarem de seus tratamento, um compromisso subjetivo, também na psicoterapia institucional, os sujeitos ou internos eram convocados a participar de toda a organização de trabalho autônomo, gerida por pacientes em companhia dos técnicos. Promovia-se encontros, cursos, festas, passeios, feiras de produtos confeccionados pelos internos eram promovidos. Havia também oficinas terapêuticas fundamentadas pela leitura psicanalítica, muito expressiva naquele período, que tinham como objetivo a reorganização psíquica do sujeito. 
Da mesma forma que, na Comunidade Terapêutica, esta experiência de coletivo terapêutico tinha como principio a premissa de que no hospital todos teriam uma função terapêutica e deveriam fazer parte de uma mesma comunidade e, enfim, deveriam questionar e lutar contra a violência institucional e a verticalidade nas relações intra-institucionais (AMARANTE, 2007:45). 
Na concepção da psicoterapia Institucional, as estratégias de intervenção clínica baseavam-se na “ideia de que a instituição deve ser um ponto de ancoragem para a deriva psicótica”(TENÓRIO, 2000:133). Assim, a preocupação clínica com o caso a caso torna-se central. Tendo em vista a condição da psicose, sua fragmentação e suas invasões, teria que caber à instituição uma organização de ordem multiprofissional, em que o trabalho em equipe, ou seja, psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente social, enfermeiro, dentre outros, estivessem direcionados paro omesmo fim: oferecer um acolhimento do singular ao sujeito psicótico, entendendo que a institucional deveria ter a função de apaziguamento para o sujeito, onde este pudesse fazer vínculos e não ficar entregue ao avassalamento da psicose e o vazio do abandono. 
Portanto, os movimentos reformistas franceses estavam totalmente investidos da proposta de um espaço institucional que fosse capaz de se organizar em torno das questões exigidas pela loucura. Se a Psiquiatria de Setor tinha a preocupação tanto com a questão do território do sujeito, como com o vínculo transferencial entre paciente e técnico, a Psicoterapia Institucional, ao estabelecer a necessidade de oferecer um acolhimento clínico à psicose, procurou a substituição do manicômio através do resgate do hospital psiquiátrico. 
A Psiquiatria Preventiva ou Saúde Mental Comunitária
 Desenvolvida nos EUA, teve como Gerald Caplan como fundador e principal autor desta corrente. 
Marco importante – Censo realizado em 1955 que pesquisou as condições de assistência nos hospitais psiquiátricos de todo o país, cujos resultados foram desprezíveis, dando visibilidade às precárias condições de assistência , à violência e aos maus tratos a que eram submetidos os pacientes internados em todo país. 
Caplan “História natural das doenças” – teoria etiológica. Todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente. Na medida em que as doenças mentais eram entendidas como sinônimo de desordens, julgava-se poder prevenir e erradicar os males da sociedade. 
A busca de suspeitos, expressão utilizada pelo próprio Caplan, foi uma estratégia importante no sentido de detectar pessoas que poderiam desenvolver uma patologia mental para trata-las precocemente. 
Caplan entendia que uma pessoa suspeita de ter um distúrbio mental deveria ser encaminhada a um psiquiatra para investigação diagnóstica, seja por iniciativa da própria pessoa, de sua família e amigos, de um profissional de assistência comunitária, de um juiz ou de um superior administrativo no trabalho. Criou-se uma verdadeira caça a todo tipo de suspeitos de desordens mentais. 
Para intervenção preventiva, um conceito passou a ser estratégico: Conceito de Crise, construído a partir das noções de adaptação e desadaptação social, oriundos da sociologia, e que permitiam a ampliação da ação da psiquiatria para além da noção mais restrita da doença mental. 
Conceitos importantes:
Crises:
1 – Evolutivas – na hipótese de os conflitos gerados não serem bem absorvidos, poderiam levar à desaptação que, não sendo elaborados pela pessoa, poderiam conduzir à doença mental. 
2 – Acidentais – quando precipatads por alguma perda ou risco (desemprego, separação conjugal, falecimento de uma pessoa querida, etc...)
Desvio
Outro conceito migrado também das ciências sociais, e que se refere a um comportamento desadaptado à norma socialmente estabelecida, o que, no entendimento da psiquiatria preventiva, significava dizer que seria anormal ou pré-patológico. 
Desinstitucionalização 
Tornou-se um conjunto de medidas de desospitalização, isto é, de redução do ingresso de pacientes em hospitais psiquiátricos, ou de redução do tempo médio de permanência hospitalar, ou ainda de promoção de altas hospitalares. 
O objetivo era tornar o hospital um recurso obsoleto, que fosse caindo em desuso na medida em que a incidência das doenças metais fosse diminuindo em decorrência das ações preventivas, e que os serviços comunitários de saúde mental fossem adquirindo maior competência e efetividade em tratar as doenças em regime extra-hospitalar. 
Porém, em que pese o fato de terem sido instalados tantos serviços e estratégias desospitalizante, ocorreu um aumento importante da demanda psiquiátrica nos EUA , não apenas para os novos serviços extra-hospitalares, mas também para os hospitais psiquiátricos: Os próprios serviços comunitários se transformaram em grande captadores e encaminhadores de nova clientelas para os hospitais psiquiátricos. 
Psiquiatria Democrática
Tendo como Franco Basaglia seu principal protagonista, a Psiquiatria Democrática foi uma experiência que começou no início dos anos 60, na Itália. 
Na medida em que o louco era considerado, tanto pela lei como pela sociedade, alguém perigoso, inábil e improdutivo, havia um atrelamento entre a psiquiatria, a justiça e a conservação da ordem pública. 
Para Basaglia, se o hospital psiquiátrico estava inteiramente inserido nesse contexto, era totalmente plausível vê-lo como uma das instituições responsáveis pela organização da ordem social, pois, se a instituição psiquiátrica fundamentada era pela ideia de periculosidade da loucura, sua função resumia-se em custodiar o louco de forma que o mantivesse fora da sociedade, colocando-o como incapaz de exercer seus direitos como cidadão. 
Uma vez constatada por Basaglia o poder da exclusão dos antigos manicômios, a superação do hospital psiquiátrico passa a ser vista como algo essencial pelo paradigma italiano, pois esta instituição era por ele considerada um “lugar de isolamento, segregação e de patologização da experiência humana”. “(...) no manicômio o doente não encontra outra coisa senão o espaço onde se verá definitivamente perdido, transformado em objeto pela doença e pelo ritmo do internamento” (BASAGLIA, 1965, p. 24).
A primeira intervenção realizada por Franco Basaglia ocorreu na cidade de Gorizia, ainda nos anos 60. Fora criada uma instituição aberta, cuja função era de consentir não só a livre circulação das pessoas, mas também de permitir-lhes exercer seus direitos como cidadãos. 
O primeiro passo foi o de repensar as relações institucionais estabelecidas até então entre os técnicos e pacientes. O modelo das assembleias em que não só os médicos e enfermeiros, mas também familiares e principalmente pacientes tivessem um espaço para debaterem e defenderem suas ideias, fora imediatamente, adotado. 
	Esta intervenção bem sucedida em Gorizia serviu como base de desconstrução do manicômio. O que, mais tarde, pôde propiciar, no início dos anos 70, a experiência italiana mais marcante: a intervenção basagliana no hospital psiquiátrico de Trieste. Lugar que teve uma transformação radical da psiquiatria, que inspirou e ainda inspira experiências por todo o mundo, principalmente no Brasil. 
Para a psiquiatria democrática “(...) O manicômio é o “lugar-zero” das trocas sociais, cuja finalidade é destruir qualquer forma de produtividade social (...)” (ROTELLI, 1992, p. 304). 	A proposta de abrir as portas para a cidade era de promulgar a total substituição dos hospícios com objetivo maior de inserir o louco no meio social, resgatando, desta forma, sua cidadania perdida pelo modelo manicomial. 
Tomados por uma responsabilidade para com aquele que muito foi privado do contexto social, enfermeiros começaram um trabalho de saídas “extra-muro” com os pacientes. Todo aquele controle e a vigilância que havia dentro das instituições fechadas passavam a ser substituídas pela ideia de oferecer a liberdade e a circulação dos pacientes fora dos espaços institucionais.
Além disso, os esforços também se concentraram na aposta do estreitamento entre o hospital e a cidade. Culminaram, desta forma, na criação de serviços então denominados como substitutivos ao modelo asilar, “... no sentido de caracterizar o conjunto de estratégias que vislumbrassem, efetivamente, tomar o lugar das instituições psiquiátricas clássicas, e não serem apenas paralelos, simultâneos ou alternativos” (AMARANTE, 2007, p. 56-57). 
Os primeiros serviços substitutivos foram os Centros de Saúde Mental (CSM), todos regionalizados, ou seja, distribuídos pelas várias regiões da cidade de Trieste. Baseados pelo conceito de “tomada de responsabilidade”, os CSM passavam a assumir de forma integral todas as questões relativas ao campo da Saúde Mental de cada território. Portanto, mais do que centros regionalizados, os CSM configuravam-se como centros de base territorial, uma vez que a preocupação estava toda direcionada para umaatuação no território que pudesse restabelecer um lugar social da loucura e assim reconstruir uma forma de inclusão das pessoas com sofrimento psíquico dentro da sociedade. 
4 - O surgimento da “indústria da loucura”
O período que se seguiu ao golpe militar de 1964 foi o marco divisório entre uma assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e uma nova fase, a partir da qual se estendeu a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes. Foram os governos militares que consolidaram a articulação entre internação asilar e privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos nas clínicas e hospitais psiquiátricos conveniados, que floresceram rapidamente para atender a demanda. As internações passaram a ser feitas não apenas em hospitais públicos (que, dadas as suas precárias condições, permaneceram reservados aos indivíduos sem vínculos com a previdência social), mas em instituições privadas, que eram remuneradas pelo setor público para isso.10 Na maioria das vezes, as clínicas contratadas funcionavam totalmente as expensas do Sistema Único de Saúde (SUS) – antes via INPS (Instituto Nacional de Previdência Social). Sua única fonte de receita era a internação psiquiátrica, remunerada na forma de diária paga para cada dia de internação de cada paciente.
Como na psiquiatria, ao contrário de outras especialidades da medicina, a indicação de internação nem sempre é clara ou indiscutível, a decisão, com grande margem de escolha, fica a critério do médico ou da família do paciente. Como o pressuposto disseminado no meio especializado e na sociedade era de que lugar de louco é no hospício, e diante da inexistência de dispositivos de assistência intensiva alternativos ao modelo asilar, o sistema impulsionava a internação, mesmo onde havia boa fé (TENÓRIO, 2002: 34). O sistema e a mentalidade vigentes estavam organizados em torno da internação (e da internação prolongada), as empresas hospitalares auferiam benefícios significativos com as internações (sua única fonte de lucro), com total falta de controle pelo estado, observando-se um verdadeiro empuxo a internação, razão pela qual este sistema veio a ser chamado de “indústria da loucura”.
A discussão acerca da necessidade de humanização do tratamento do doente mental teve início na década de 1970, momento em que diversos setores da sociedade brasileira se mobilizaram em torno da redemocratização do país. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em ações políticas para defender médicos que haviam sido presos e torturados, revitalizou, no cotidiano profissional, discussões éticas acerca dos direitos humanos e da necessidade de ampliação dos direitos individuais no país. Apelos para que "ninguém fosse submetido à tortura, a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante" e nem "arbitrariamente preso, detido ou exilado" foram estendidos para a condição de opressão do doente mental nos manicômios e sua humilhação moral na sociedade em geral (FIRMINO, 1982, p. 35). 
Os hospitais psiquiátricos, centralizando a assistência e sendo praticamente únicos na oferta de serviços psiquiátricos no contexto nacional, tiveram as condições internas de maus-tratos aos internados, desnudadas e denunciadas no processo social brasileiro de "abertura democrática". A discussão acerca da violência, dos maus tratos e da tortura praticada nos asilos brasileiros produziu, em grande parte, a insatisfação que alimentou o Movimento Antimanicomial. Entretanto, ainda não estava muito claro qual deveria ser o modelo de cuidado e nem havia uma proposta estruturada da intervenção clínica.
5 -A deflagração da reforma psiquiátrica
A derrocada da denominada “indústria da loucura”, capitaneada pelo Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), dá início a fase, que se inicia em 1978, identificada por Amarante e Torre (2010: 119), como “fase de crítica institucional”, que deflagra a reforma psiquiátrica. Segundo os autores mencionados, foi neste ano que culminaram as denúncias e a mobilização de atores sociais decisivos para a transformação do sistema psiquiátrico vigente. Para eles, o acontecimento decisivo foi a “crise da DINSAM”, órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das políticas de saúde do subsetor saúde mental. Vários fatores, tais como, a precarização das condições de trabalho, e as frequentes denúncias de agressão, estupro, trabalho escravo e mortes não esclarecidas, nas grandes instituições psiquiátricas brasileiras, provocaram a união dos trabalhadores da saúde mental para a luta pelas as mudanças necessárias no sistema. A partir daí começam a ocorrer, em diversos estados brasileiros, congressos e encontros decisivos na militância do MTSM, dando origem à trajetória da Reforma Psiquiátrica Brasileira (AMARANTE e TORRE, 2010: 117-118).
A influência dos movimentos de crítica à psiquiatria começou a se fazer sentir no contexto social brasileiro, principalmente a partir da década de 1980, no ocaso da ditadura militar e aguda crise econômica que caracterizaram o período (OLIVEIRA e ALESSI, 2005). A sociedade reencontrava as vias democráticas de expressão e reivindicação e, neste contexto, as ideias de Foucault (2005), Goffman (1996), Szasz (1961), Laing (1969, 1982), Scheff (1966), Basaglia (1985) e outros tiveram uma forte influência. A situação crítica em que se encontrava a assistência psiquiátrica brasileira era favorável à crítica proposta por esses pensadores e por esses movimentos sociais.
Alguns grupos de técnicos de saúde, acadêmicos, militantes sociais, organizações comunitárias e afins, influenciados pela Psiquiatria Democrática Italiana – especialmente o pensamento de Franco Basaglia - começam a criar uma sistematização de pensamento contra hegemônico na assistência em Saúde Mental. No final da década de 1980, surgem os primeiros Centros de Atenção Psicossocial – CAPS e fecham-se alguns manicômios e se inicia um embate epistemológico, político e técnico em prol de “uma sociedade sem manicômios”. Em 1987 foi realizada, no Rio de Janeiro, a I Conferência Nacional de Saúde Mental e, em 1989, foi dada a entrada no Congresso Nacional do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no Brasil, marcando “o início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo” (DELGADO et al, 2007, p. 41).
Entre os protagonistas desse movimento contra-hegemônico surge o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial como um movimento social deveras heterogêneo, mas com um importante consenso entre seus integrantes: não é mais aceitável que o infortúnio do acometimento de um transtorno mental leve qualquer indivíduo ao encarceramento num manicômio por décadas de sua vida, muitas vezes sem cuidados integrais a sua saúde e com desrespeito a seus direitos Humanos e civis.
6 - A “institucionalização” da reforma psiquiátrica
No contexto da reforma psiquiátrica, duas leis solidificaram a direção da política de saúde mental no Brasil, no sentido da desospitalização da assistência psiquiátrica, atendimento na comunidade e respeito aos direitos humanos do paciente: a Lei Federal nº. 10.216, de abril de 2001, com base na famosa "Lei Paulo Delgado", sobre a extinção dos manicômios, criação de serviços substitutivos na comunidade e regulação da internação psiquiátrica compulsória (aprovada no Congresso após 12 anos de tramitação); e a Lei Federal nº. 10.708, de julho de 2003, instituindo o Programa De Volta para Casa (conhecida como "Bolsa-Auxílio"), que assegura recursos financeiros que incentivam a saída de pacientes com longo tempo de internação dos hospícios para a família ou comunidade12. Outras Portarias importantes foram também a nº 106, de 2000, que dispõe sobre as residências terapêuticas e a Portaria de nº 336, de 2002, que regulamenta os novos serviços e o modelo assistencial, introduzindo as modalidades CAPS I, II e III, CAPSi e CAPSad. 
7 - A consolidação da reforma psiquiátricaA substituição do modelo hospitalocêntrico tem se dado através da criação e fortalecimento de uma rede de serviços substitutivos, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)14, Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Hospitais-Dia, Centros de Convivência, Serviço de Urgência e Emergência Psiquiátrica em Pronto-Socorro Geral, etc. Compete aos CAPS o acolhimento e a atenção às pessoas transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais em seu território. São serviços de saúde municipais abertos, comunitários, que oferecem atendimento diário, que buscam realizar “o acompanhamento clínico e reinserção social” de seus usuários “por meio de acesso ao trabalho, ao lazer, exercício de dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários” (DELGADO et al, 2007: 59)
Tendências atuais das políticas de saúde mental no Brasil: começo de uma nova história?
Pode ser temerário afirmar que a era asilar tenha sido suplantada no Brasil, considerando que, em muitos casos, o internamento psiquiátrico como ato de exclusão e isolamento ainda persiste em muitas localidades. O que se pode afirmar é que a assistência à saúde mental no Brasil apresenta uma clara tendência para a perda de hegemonia institucional do hospital psiquiátrico e aponta para uma nova convergência no modelo assistencial. Mas, o fato de um serviço ser externo não garante sua natureza não-manicomial e sua qualidade. Uma das críticas mais contundentes da Reforma Psiquiátrica diz respeito à identificação de certo processo de “reinstitucionalização” nas políticas de saúde mental, que é demonstrado pela configuração de uma “CAPScização” do modelo assistencial, na forma como os CAPS são colocados como “centro do sistema” (AMARANTE e TORRE, 2010, p. 130).
Atualmente no Brasil, assim como em muitos outros países, os serviços psiquiátricos e de atenção psicossocial são utilizados voluntariamente pelos pacientes, identificados como “usuários”, no papel de doentes, ou seja, “num papel reconhecido e sancionado socialmente, como qualquer outro serviço de saúde pública ou privada”, contribuindo para minimizar o estigma da intervenção psiquiátrica. Como resultado conjunto da reforma institucional (hospitalização do asilo + instituições extra-hospitalares), o portador do sofrimento psíquico pôde deixar de ocupar uma linha biográfica, a carreira moral de paciente psiquiátrico, cujo resultado era a cronicidade do paciente, se transformando em usuário.
“Assim, os estados psicóticos cronificados estão deixando de povoar os hospitais psiquiátricos e um bom número de pacientes reencontrou o meio social, embora muitos sejam dependentes de uma assistência extra-hospitalar e sofram de uma socialização precária. Talvez, a dependência dos serviços extra-hospitalares e da ajuda social seja a grande contrapartida da reforma psiquiátrica” (PERRUSI, 2010, p. 103).
Atualmente, a visão do louco e da loucura como algo a ser excluído do convívio social tem sido amplamente questionado na medida em que a proposta de desinstitucionalização vem sendo incorporada na agenda pública. Mas, interessa saber também qual é a visão dos profissionais de saúde, da população em geral e dos familiares dos portadores de sofrimento psíquico e como estes atuam neste processo.
Perrusi (2010, p. 103) salienta que o portador de transtorno mental, mesmo deixando de ser um recluso no asilo, pode perseverar num estado de invalidez permanente ou sucumbir a uma exclusão social “aberta” ou outras formas de exclusão, e até sofrer um processo de mendigação. Um dos maiores desafios da reforma psiquiátrica parecer ser ainda a superação do estigma do “louco” como pessoa perigosa ou incapaz no imaginário social. A permanência do estigma em relação ao portador de sofrimento psíquico pode colaborar na perpetuação da exclusão social, na dificuldade de inserção no mercado de trabalho e na comunidade, na construção de relações afetivas e no isolamento, muitas vezes levado a efeito pela própria família, na intenção de proteger seus membros do risco da chacota e do escárnio social.

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