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A melancolia em Freud - de conceito-problema a chave de compreensão da obra freudiana

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http://www.uva.br/trivium/edicao2/pesquisa/2-a-melancolia-em-freud.pdf 
A melancolia em Freud: de conceito-problema 
a chave de compreensão da obra freudiana 
 
 
Felipe Castelo Branco 
Psicanalista. Filósofo (IFCS/UFRJ). Doutorando em Psicanálise pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicanálise da UERJ. Membro do Corpo Freudiano, seção Rio de Janeiro. 
 
Marco Antonio Coutinho Jorge 
Psiquiatra. Psicanalista. Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Doutor em 
Comunicação e Cultura pela UFRJ. Presidente do Corpo Freudiano, seção Rio de Janeiro. 
Coordenador do Curso de Especialização em Psicanálise e Saúde Mental. Vice-Coordenador do 
Curso de Mestrado e Doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise. 
 
Resumo 
Esse trabalho é fruto de uma pesquisa teórica em curso que tem como objetivo analisar que perfil 
conceitual Freud recebe da tradição filosófica e psiquiátrica sobre o conceito de melancolia. 
Dentro do campo da psicanálise, buscamos compreender o movimento do conceito de melancolia 
na obra de Freud como chave de compreensão para sua própria reflexão como um todo. 
 
Palavras-chave: Melancolia, Psicanálise/Freud, Psiquiatria, Aristóteles. 
 
Abstract 
This work is a relate of a theoretical research still in progress, and his aim is to analyze the 
conceptual profile of the melancholy concept that Freud received from philosophical and 
psychiatrical tradition. Inside the psychoanalysis camp, we tried to understand the movement of 
the melancholy concept in Freudian work, as a comprehension key to his thinking itself. 
 
Keywords: Melancholy, Psychoanalysis/Freud, Psychiatry, Aristotle. 
 
 
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 Que perfil conceitual Freud recebe dos outros campos de saber ao pensar a melancolia 
por meio da psicanálise? Com que saberes dialoga? Que lugar ocupa e que evolução obtém o 
conceito de melancolia na obra de Freud? 
Partindo dessas questões, iniciamos nossa pesquisa em duas vias: na primeira direção, 
buscamos acompanhar o percurso do conceito de melancolia na cultura ocidental, desde seu 
surgimento na Grécia até o advento da psiquiatria moderna. Para seguir as mutações que sofreu a 
ideia de melancolia na história cultural do ocidente, elegemos dois momentos fundamentais, que 
chamamos neste trabalho de dominantes na história da melancolia, momentos em que surgiram 
concepções originais e amplas da doença e que fizeram perdurar sua influência fora de seu 
contexto de origem. Tais momentos construíram concepções teóricas que influenciaram 
largamente o contexto de sua época e permaneceram influenciando épocas posteriores. 
Entretanto, examinamos apenas como o conceito de melancolia reflete tais momentos e, ainda, 
como, por meio desse conceito, campos como a filosofia, a literatura, a psiquiatria e a psicanálise 
se relacionaram com áreas diferentes do saber. 
 
Aristóteles 
O primeiro desses momentos dominantes do conceito de melancolia é marcado pelo 
“Problema XXX”, de Aristóteles, – que tem como subtítulo “O homem de gênio e a melancolia” 
– e pela concepção da melancolia como efeito da bílis negra, este humor do corpo que, quando 
frio, é responsável por uma melancolia com tristeza e apatia, mas, quando esquentado, produz 
mania e exaltação sexual. Esse trabalho se tornará um dos principais formadores do conceito de 
melancolia no ocidente (junto com o 23º dos “Aforismos de Hipócrates”, e ainda com as “Cartas 
sobre Demócrito” de Pseudo-Hipócrates) (Cf. PIGEAUD, 1988). 
Apesar de ser um profundo conhecedor da medicina de seu tempo, para Aristóteles (ou 
pseudo-Aristóteles), seu problema maior e seu interesse na melancolia é filosófico, e sua questão 
pode ser sintetizada da seguinte forma: como o excesso de bile negra torna os homens tão 
inconstantes e, ao mesmo tempo, os converte em criadores tão geniais? 
Um dos motivos pelo qual Jackie Pigeaud adota a tradução ”homem de exceção” no lugar do 
termo “homem de gênio” para o subtítulo do texto aristotélico está na perda que a segunda opção 
acarreta em relação a esta questão do excesso. O melancólico é alguém que carrega em si um 
excesso de bílis negra. Ela própria, a bílis, já é um excesso (perissoma), um resíduo daquele 
humor que não foi cozido pela digestão (cf. Problema I). Entretanto, este excesso (perissoma) de 
bílis negra no corpo gera no homem um comportamento de exceção (perittoi) que tanto é 
estranho quanto é excepcional (perittos), no sentido de gênio. Isso quer dizer que o melancólico 
é um homem de exceção tanto no sentido de possuir um excesso (perissoma) de bílis negra no 
corpo quanto no sentido de ter um comportamento excessivo (perittoi), e, ainda, o de ser uma 
exceção (perittos) na área em que se propõe a atuar. O texto, portanto, vai pôr como problema a 
ligação entre esse humor que é resíduo da digestão de alimentos e a criatividade de gênio. 
A bile negra é um humor de natureza fria e seca, produzido pelo baço, e que, ao se 
encaminhar para o cérebro, resulta na melancolia. Entretanto, quando a mesma bílis negra é 
esquentada no interior do corpo, ela leva os homens a se tornarem furiosos (manikói), eróticos, 
sensíveis às emoções e desejos, e mais tagarelas, para usar os termos do próprio texto. Num 
momento em que a bílis está excessivamente quente, ela busca sair pela superfície da pele, 
causando úlceras. Este é o momento em que o melancólico está “fora de si mesmo”, ou ekstasis, 
em grego, palavra que os gregos usavam também para nomear a loucura. 
 A teoria da melancolia criada por Aristóteles (sob forte influência dos escritos dos 
discípulos de Hipócrates) vai manter pulsante sua importante e poderosa contribuição, ainda que 
sob efeito de pequenas adaptações de cada época e cada campo de saber, até às portas do 
nascimento do saber psiquiátrico. Como nos lembra Walter Benjamin, em sua estrutura 
essencial, o “império” da doutrina aristotélica sobre a melancolia permanece largamente aceito 
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até os princípios do século XIX, ou, em suas palavras: “a doutrina da sintomatologia 
melancólica, exposta no capítulo XXX de Problemata, conservou sua influência durante mais de 
dois mil anos” (BENJAMIN, 1963). 
 
Pinel e Kraepelin 
 É precisamente a partir da doutrina médica de Pinel que vemos surgir o segundo 
momento, que chamamos em nossa pesquisa de dominante, sobre o conceito de melancolia. 
Tentando dar conta de todas as afecções do comportamento observáveis, ele vai considerar 
aquilo que posteriormente será chamado de “doenças mentais” do mesmo modo como os outros 
campos da medicina consideravam suas doenças, ou seja: como uma causa orgânica, ou melhor, 
como um distúrbio das funções superiores do sistema nervoso. O cérebro não é mais o ponto 
para onde se encaminha o humor que causa a melancolia, mas é a própria causa em si da doença. 
Ao contrário de Sydenham, que marcou o século XVIII com um certo retorno às teorias 
humorais de Hipócrates, Pinel buscava um modo de observação mais direto e científico para sua 
nosografia. No caminho inverso ao de recorrer aos humores da medicina grega, tão obscuros e 
invisíveis, a anatomia cerebral oferecia ao médico a visibilidade que a investigação empírica 
requeria, e a possível materialização e positivação da causalidade orgânica para as doenças 
mentais. A melancolia, nessa classificação, era considerada como uma afecção que mantinha 
intactas as faculdades mentais, mas que produzia um delírio em torno de um único objeto (ou de 
uma série única de objetos), que poderia ser de natureza triste ou alegre. 
Contudo, no interior do campo psiquiátrico, o trabalho de Kraepelin é, certamente, o mais 
influente e o mais importantetrabalho em relação à melancolia. Kraepelin divide todas as 
anomalias mentais em dois grandes grupos: as desordens afetivas (na qual está incluída a 
melancolia), grupo em que as faculdades intelectuais permanecem intactas, mas as disposições 
de humor são profundamente abaladas; e as desordens cognitivas (em que está incluída a 
dementia praecox), em que as capacidades intelectuais são diretamente abaladas. Na sexta edição 
do tratado de Kraepelin, no ano de 1899, surge finalmente a classe da loucura maníaco-
depressiva, incluindo sob seu nome todos os episódios melancólicos, com exceção da melancolia 
senil. Kraepelin acreditava que, por meio de um exame detalhado do processo patológico na vida 
de cada paciente, seria possível notar que surgiam fases depressivas e fases expansivas ao longo 
de sua história. Essa observação o fez negar a existência da mania e da melancolia simples como 
entidades independentes. A frequência tão comum de episódios maníacos que se seguiam a 
episódios depressivos justificava, a seus olhos, a inclusão das duas afecções sob o signo de uma 
loucura maníaco-depressiva. A grande inovação de Kraepelin é a de construir um tratado em que 
foram criadas classes constituídas por grupos de sintomas que tomam por critério o fator 
evolutivo e o comportamento longitudinal das doenças. Ao unir as formas unipolares aos estados 
mistos, Kraepelin deu o passo inicial ao que hoje é chamado pela psiquiatria, a partir de 
Leonhard, de transtorno bipolar. 
 
Freud 
Na segunda via de trabalho, reservada à obra de Freud, em função da notável indistinção 
conceitual que permanecia no período inicial de sua obra – prenhe de termos imprecisos, tais 
como depressão branda, estado depressivo, humor tipicamente melancólico etc. –, analisamos as 
aparições do termo melancolia e de outros termos que podem ser relacionados a ela desde as 
cartas a Wilhelm Fliess (em 1889). A partir daí, foi desenvolvido um estudo dos conceitos que 
pode ter preparado o “solo teórico” para o surgimento de “Luto e melancolia” (1917) na obra 
freudiana, com ênfase especial nos textos “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) e “As 
pulsões e suas vicissitudes” (1915). Estudamos, ainda, as visões psiquiátricas e as provocações, 
repulsas e influências teóricas sobre Freud e os pós-freudianos do texto de Karl Abraham sobre a 
psicose maníaco-depressiva – esse texto de 1911 foi um dos primeiros surgidos sobre o tema na 
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psicanálise. Pesquisamos, ainda, a forte influência da pesquisa de Victor Tausk em torno do 
tema, exibida nas reuniões do grupo de Viena (Sociedade das Quartas-Feiras), sobre as hipóteses 
freudianas de 1917. Este último ponto de pesquisa pareceu-nos conter aspectos particularmente 
originais e pouco investigados até hoje. 
Ao estudar “Luto e melancolia”, destacamos o diálogo de Freud com o campo da 
psiquiatria (especialmente e mais diretamente com Kraepelin) e como as hipóteses ali 
defendidas, agora munidas do trabalho sobre o narcisismo e sobre as direções da pulsão, 
possibilitaram a Freud pensar temas ali nascentes como a identificação, o supereu e o objeto 
como perdido. Analisamos, ainda, a convocação da melancolia como um modelo estratégico de 
funcionamento da relação eu/supereu em “O ego e o id”, modelo que destaca a ação destrutiva da 
pulsão de morte, tão silenciosa em outros quadros clínicos, de maneira poderosamente ruidosa na 
melancolia, a ponto de levar Freud a afirmar seu caráter de “cultura pura da pulsão de morte”. 
Seguindo as comparações entre luto e melancolia (que destacam as semelhanças, mas 
talvez, de maneira mais fundamental, as nuances de dessemelhança entre ambos), refletimos 
sobre a dialética da culpa e da angústia tanto no luto quanto na melancolia. Partimos da ideia 
lacaniana (também encontrada em Freud), já trabalhada por Marco Antonio Coutinho Jorge 
(JORGE, 2001), de que a culpa é uma “proteção” contra a angústia e que é sempre “preferida” 
pelo sujeito à angústia. Sendo pré-ferida, a culpa oferece ao sujeito, no luto, um mínimo de 
simbolização (ainda que ao preço de torturar o eu com humilhações e punições radicais), que 
possibilita que ele escape de um deslizamento direto e sem freios para a ferida aberta (a invasão 
do imaginário pelo real) que representa a angústia. Do mesmo modo, na melancolia, a culpa 
também evita a angústia, mas nesse caso, a angústia é justamente aquilo que poderia movimentar 
o melancólico de sua apatia. Mergulhado na falta da falta, a angústia poderia significar um 
“esboço” de objeto que faz a função de destacamento dessa morosidade e apatia em que o 
melancólico se encontra. 
Finalmente, nos dedicamos a verificar o lugar especial das neuroses narcísicas no texto 
“Neurose e psicose” (1924). O caráter provisório da melancolia, separada tanto do campo da 
neurose quanto do campo da psicose (divisão jamais retomada ou revista por Freud), parece ser 
resultado da necessidade que Freud encontrou de diferenciar o efeito do supereu na melancolia 
dos seus outros modos de operar (tanto nas neuroses quanto nas psicoses), conforme ele já havia 
destacado (ao chamar a melancolia de “cultura pura da pulsão de morte”, por exemplo). Nas 
neuroses narcísicas de 1924, não se trata da “aliança” entre eu e supereu contra os impulsos do 
isso (como é o caso da neurose), mas da separação radical e do agravamento profundo do 
conflito entre o eu e o supereu. 
A melancolia nos serve, portanto, tanto como objeto de estudo propriamente dito de nossa 
pesquisa quanto como instrumento estratégico que nos permite acompanhar – por meio dos 
efeitos que sofreu, estando presente em todos os momentos fundamentais de grandes viradas da 
obra freudiana – o movimento da reflexão teórica freudiana. Talvez a principal contribuição de 
tal pesquisa seja a de nos permitir notar o valor heurístico da melancolia para a compreensão dos 
encaminhamentos da obra de Freud, sendo suas principais descobertas refletidas muito 
imediatamente na concepção psicanalítica deste conceito. Assim como Ana Maria Rudge, 
acreditamos que, quando se deseja compreender Freud, “é justamente nas viradas e 
reformulações de suas posições e topografias que se pode melhor apreender sua obra” (RUDGE, 
2006), e a melancolia parece ter sido o melhor instrumento para cumprir este caminho. Ela torna-
se um bom instrumento, porque, diferente de um conceito como o de inconsciente, a melancolia 
está presente desde o ano de 1892 sob a pena freudiana, e, mais do que isso, ela sofre constantes 
mutações e acréscimos até os últimos dos seus escritos. É justamente nessas mudanças e 
acréscimos que encontramos refletidos nesse termo as mudanças da própria obra de Freud. A 
melancolia sempre foi, até as últimas reflexões freudianas, um conceito problemático, uma 
clínica carregada de dificuldades, um problema que se colocava diante do criador da psicanálise 
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como um desafio. Além disso, o termo ”melancolia” já vinha de uma longa tradição que havia 
atravessado a filosofia, a literatura e a psiquiatria muitos séculos antes do surgimento da 
psicanálise. Para se utilizar dessa palavra, a psicanálise precisou “tirar o pó” de uma noção 
atravessada por uma longa tradição e, mais do que isso, precisou renovar, sob profundos 
questionamentos motivados pela própria clínica psicanalítica, a densidade, o caráter 
problemático para a teoria e a riqueza do quadro clínico da melancolia. 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1963. 
 
JORGE, M. A. C. “Luto e Culpa na Análise e na Vida Cotidiana (Sobre as Resistências do 
Analista ou 'Vamos Falar da Morte?')”. In: PERES, Urânia Tourinho (org). Culpa.São Paulo: 
Escuta, 2001. 
 
PIGEAUD, J. “Apresentação”. In: Aristóteles. O homem de gênio e a melancolia. Rio de 
Janeiro: Lacerda Editores, 1998. 
 
RUDGE, A. M. Pulsão de Morte como Efeito de Supereu. In: Agora. v. IX. Rio de Janeiro: 
Contra Capa, 2006; p.79-89. 
 
Recebido em: 2 de maio de 2010.

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