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COMUNICAÇÕES DE PESQUISA 346 http://www.uva.br/trivium/edicao2/pesquisa/2-a-melancolia-em-freud.pdf A melancolia em Freud: de conceito-problema a chave de compreensão da obra freudiana Felipe Castelo Branco Psicanalista. Filósofo (IFCS/UFRJ). Doutorando em Psicanálise pelo Programa de Pós- Graduação em Psicanálise da UERJ. Membro do Corpo Freudiano, seção Rio de Janeiro. Marco Antonio Coutinho Jorge Psiquiatra. Psicanalista. Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Presidente do Corpo Freudiano, seção Rio de Janeiro. Coordenador do Curso de Especialização em Psicanálise e Saúde Mental. Vice-Coordenador do Curso de Mestrado e Doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise. Resumo Esse trabalho é fruto de uma pesquisa teórica em curso que tem como objetivo analisar que perfil conceitual Freud recebe da tradição filosófica e psiquiátrica sobre o conceito de melancolia. Dentro do campo da psicanálise, buscamos compreender o movimento do conceito de melancolia na obra de Freud como chave de compreensão para sua própria reflexão como um todo. Palavras-chave: Melancolia, Psicanálise/Freud, Psiquiatria, Aristóteles. Abstract This work is a relate of a theoretical research still in progress, and his aim is to analyze the conceptual profile of the melancholy concept that Freud received from philosophical and psychiatrical tradition. Inside the psychoanalysis camp, we tried to understand the movement of the melancholy concept in Freudian work, as a comprehension key to his thinking itself. Keywords: Melancholy, Psychoanalysis/Freud, Psychiatry, Aristotle. COMUNICAÇÕES DE PESQUISA 347 http://www.uva.br/trivium/edicao2/pesquisa/2-a-melancolia-em-freud.pdf Que perfil conceitual Freud recebe dos outros campos de saber ao pensar a melancolia por meio da psicanálise? Com que saberes dialoga? Que lugar ocupa e que evolução obtém o conceito de melancolia na obra de Freud? Partindo dessas questões, iniciamos nossa pesquisa em duas vias: na primeira direção, buscamos acompanhar o percurso do conceito de melancolia na cultura ocidental, desde seu surgimento na Grécia até o advento da psiquiatria moderna. Para seguir as mutações que sofreu a ideia de melancolia na história cultural do ocidente, elegemos dois momentos fundamentais, que chamamos neste trabalho de dominantes na história da melancolia, momentos em que surgiram concepções originais e amplas da doença e que fizeram perdurar sua influência fora de seu contexto de origem. Tais momentos construíram concepções teóricas que influenciaram largamente o contexto de sua época e permaneceram influenciando épocas posteriores. Entretanto, examinamos apenas como o conceito de melancolia reflete tais momentos e, ainda, como, por meio desse conceito, campos como a filosofia, a literatura, a psiquiatria e a psicanálise se relacionaram com áreas diferentes do saber. Aristóteles O primeiro desses momentos dominantes do conceito de melancolia é marcado pelo “Problema XXX”, de Aristóteles, – que tem como subtítulo “O homem de gênio e a melancolia” – e pela concepção da melancolia como efeito da bílis negra, este humor do corpo que, quando frio, é responsável por uma melancolia com tristeza e apatia, mas, quando esquentado, produz mania e exaltação sexual. Esse trabalho se tornará um dos principais formadores do conceito de melancolia no ocidente (junto com o 23º dos “Aforismos de Hipócrates”, e ainda com as “Cartas sobre Demócrito” de Pseudo-Hipócrates) (Cf. PIGEAUD, 1988). Apesar de ser um profundo conhecedor da medicina de seu tempo, para Aristóteles (ou pseudo-Aristóteles), seu problema maior e seu interesse na melancolia é filosófico, e sua questão pode ser sintetizada da seguinte forma: como o excesso de bile negra torna os homens tão inconstantes e, ao mesmo tempo, os converte em criadores tão geniais? Um dos motivos pelo qual Jackie Pigeaud adota a tradução ”homem de exceção” no lugar do termo “homem de gênio” para o subtítulo do texto aristotélico está na perda que a segunda opção acarreta em relação a esta questão do excesso. O melancólico é alguém que carrega em si um excesso de bílis negra. Ela própria, a bílis, já é um excesso (perissoma), um resíduo daquele humor que não foi cozido pela digestão (cf. Problema I). Entretanto, este excesso (perissoma) de bílis negra no corpo gera no homem um comportamento de exceção (perittoi) que tanto é estranho quanto é excepcional (perittos), no sentido de gênio. Isso quer dizer que o melancólico é um homem de exceção tanto no sentido de possuir um excesso (perissoma) de bílis negra no corpo quanto no sentido de ter um comportamento excessivo (perittoi), e, ainda, o de ser uma exceção (perittos) na área em que se propõe a atuar. O texto, portanto, vai pôr como problema a ligação entre esse humor que é resíduo da digestão de alimentos e a criatividade de gênio. A bile negra é um humor de natureza fria e seca, produzido pelo baço, e que, ao se encaminhar para o cérebro, resulta na melancolia. Entretanto, quando a mesma bílis negra é esquentada no interior do corpo, ela leva os homens a se tornarem furiosos (manikói), eróticos, sensíveis às emoções e desejos, e mais tagarelas, para usar os termos do próprio texto. Num momento em que a bílis está excessivamente quente, ela busca sair pela superfície da pele, causando úlceras. Este é o momento em que o melancólico está “fora de si mesmo”, ou ekstasis, em grego, palavra que os gregos usavam também para nomear a loucura. A teoria da melancolia criada por Aristóteles (sob forte influência dos escritos dos discípulos de Hipócrates) vai manter pulsante sua importante e poderosa contribuição, ainda que sob efeito de pequenas adaptações de cada época e cada campo de saber, até às portas do nascimento do saber psiquiátrico. Como nos lembra Walter Benjamin, em sua estrutura essencial, o “império” da doutrina aristotélica sobre a melancolia permanece largamente aceito COMUNICAÇÕES DE PESQUISA 348 http://www.uva.br/trivium/edicao2/pesquisa/2-a-melancolia-em-freud.pdf até os princípios do século XIX, ou, em suas palavras: “a doutrina da sintomatologia melancólica, exposta no capítulo XXX de Problemata, conservou sua influência durante mais de dois mil anos” (BENJAMIN, 1963). Pinel e Kraepelin É precisamente a partir da doutrina médica de Pinel que vemos surgir o segundo momento, que chamamos em nossa pesquisa de dominante, sobre o conceito de melancolia. Tentando dar conta de todas as afecções do comportamento observáveis, ele vai considerar aquilo que posteriormente será chamado de “doenças mentais” do mesmo modo como os outros campos da medicina consideravam suas doenças, ou seja: como uma causa orgânica, ou melhor, como um distúrbio das funções superiores do sistema nervoso. O cérebro não é mais o ponto para onde se encaminha o humor que causa a melancolia, mas é a própria causa em si da doença. Ao contrário de Sydenham, que marcou o século XVIII com um certo retorno às teorias humorais de Hipócrates, Pinel buscava um modo de observação mais direto e científico para sua nosografia. No caminho inverso ao de recorrer aos humores da medicina grega, tão obscuros e invisíveis, a anatomia cerebral oferecia ao médico a visibilidade que a investigação empírica requeria, e a possível materialização e positivação da causalidade orgânica para as doenças mentais. A melancolia, nessa classificação, era considerada como uma afecção que mantinha intactas as faculdades mentais, mas que produzia um delírio em torno de um único objeto (ou de uma série única de objetos), que poderia ser de natureza triste ou alegre. Contudo, no interior do campo psiquiátrico, o trabalho de Kraepelin é, certamente, o mais influente e o mais importantetrabalho em relação à melancolia. Kraepelin divide todas as anomalias mentais em dois grandes grupos: as desordens afetivas (na qual está incluída a melancolia), grupo em que as faculdades intelectuais permanecem intactas, mas as disposições de humor são profundamente abaladas; e as desordens cognitivas (em que está incluída a dementia praecox), em que as capacidades intelectuais são diretamente abaladas. Na sexta edição do tratado de Kraepelin, no ano de 1899, surge finalmente a classe da loucura maníaco- depressiva, incluindo sob seu nome todos os episódios melancólicos, com exceção da melancolia senil. Kraepelin acreditava que, por meio de um exame detalhado do processo patológico na vida de cada paciente, seria possível notar que surgiam fases depressivas e fases expansivas ao longo de sua história. Essa observação o fez negar a existência da mania e da melancolia simples como entidades independentes. A frequência tão comum de episódios maníacos que se seguiam a episódios depressivos justificava, a seus olhos, a inclusão das duas afecções sob o signo de uma loucura maníaco-depressiva. A grande inovação de Kraepelin é a de construir um tratado em que foram criadas classes constituídas por grupos de sintomas que tomam por critério o fator evolutivo e o comportamento longitudinal das doenças. Ao unir as formas unipolares aos estados mistos, Kraepelin deu o passo inicial ao que hoje é chamado pela psiquiatria, a partir de Leonhard, de transtorno bipolar. Freud Na segunda via de trabalho, reservada à obra de Freud, em função da notável indistinção conceitual que permanecia no período inicial de sua obra – prenhe de termos imprecisos, tais como depressão branda, estado depressivo, humor tipicamente melancólico etc. –, analisamos as aparições do termo melancolia e de outros termos que podem ser relacionados a ela desde as cartas a Wilhelm Fliess (em 1889). A partir daí, foi desenvolvido um estudo dos conceitos que pode ter preparado o “solo teórico” para o surgimento de “Luto e melancolia” (1917) na obra freudiana, com ênfase especial nos textos “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) e “As pulsões e suas vicissitudes” (1915). Estudamos, ainda, as visões psiquiátricas e as provocações, repulsas e influências teóricas sobre Freud e os pós-freudianos do texto de Karl Abraham sobre a psicose maníaco-depressiva – esse texto de 1911 foi um dos primeiros surgidos sobre o tema na COMUNICAÇÕES DE PESQUISA 349 http://www.uva.br/trivium/edicao2/pesquisa/2-a-melancolia-em-freud.pdf psicanálise. Pesquisamos, ainda, a forte influência da pesquisa de Victor Tausk em torno do tema, exibida nas reuniões do grupo de Viena (Sociedade das Quartas-Feiras), sobre as hipóteses freudianas de 1917. Este último ponto de pesquisa pareceu-nos conter aspectos particularmente originais e pouco investigados até hoje. Ao estudar “Luto e melancolia”, destacamos o diálogo de Freud com o campo da psiquiatria (especialmente e mais diretamente com Kraepelin) e como as hipóteses ali defendidas, agora munidas do trabalho sobre o narcisismo e sobre as direções da pulsão, possibilitaram a Freud pensar temas ali nascentes como a identificação, o supereu e o objeto como perdido. Analisamos, ainda, a convocação da melancolia como um modelo estratégico de funcionamento da relação eu/supereu em “O ego e o id”, modelo que destaca a ação destrutiva da pulsão de morte, tão silenciosa em outros quadros clínicos, de maneira poderosamente ruidosa na melancolia, a ponto de levar Freud a afirmar seu caráter de “cultura pura da pulsão de morte”. Seguindo as comparações entre luto e melancolia (que destacam as semelhanças, mas talvez, de maneira mais fundamental, as nuances de dessemelhança entre ambos), refletimos sobre a dialética da culpa e da angústia tanto no luto quanto na melancolia. Partimos da ideia lacaniana (também encontrada em Freud), já trabalhada por Marco Antonio Coutinho Jorge (JORGE, 2001), de que a culpa é uma “proteção” contra a angústia e que é sempre “preferida” pelo sujeito à angústia. Sendo pré-ferida, a culpa oferece ao sujeito, no luto, um mínimo de simbolização (ainda que ao preço de torturar o eu com humilhações e punições radicais), que possibilita que ele escape de um deslizamento direto e sem freios para a ferida aberta (a invasão do imaginário pelo real) que representa a angústia. Do mesmo modo, na melancolia, a culpa também evita a angústia, mas nesse caso, a angústia é justamente aquilo que poderia movimentar o melancólico de sua apatia. Mergulhado na falta da falta, a angústia poderia significar um “esboço” de objeto que faz a função de destacamento dessa morosidade e apatia em que o melancólico se encontra. Finalmente, nos dedicamos a verificar o lugar especial das neuroses narcísicas no texto “Neurose e psicose” (1924). O caráter provisório da melancolia, separada tanto do campo da neurose quanto do campo da psicose (divisão jamais retomada ou revista por Freud), parece ser resultado da necessidade que Freud encontrou de diferenciar o efeito do supereu na melancolia dos seus outros modos de operar (tanto nas neuroses quanto nas psicoses), conforme ele já havia destacado (ao chamar a melancolia de “cultura pura da pulsão de morte”, por exemplo). Nas neuroses narcísicas de 1924, não se trata da “aliança” entre eu e supereu contra os impulsos do isso (como é o caso da neurose), mas da separação radical e do agravamento profundo do conflito entre o eu e o supereu. A melancolia nos serve, portanto, tanto como objeto de estudo propriamente dito de nossa pesquisa quanto como instrumento estratégico que nos permite acompanhar – por meio dos efeitos que sofreu, estando presente em todos os momentos fundamentais de grandes viradas da obra freudiana – o movimento da reflexão teórica freudiana. Talvez a principal contribuição de tal pesquisa seja a de nos permitir notar o valor heurístico da melancolia para a compreensão dos encaminhamentos da obra de Freud, sendo suas principais descobertas refletidas muito imediatamente na concepção psicanalítica deste conceito. Assim como Ana Maria Rudge, acreditamos que, quando se deseja compreender Freud, “é justamente nas viradas e reformulações de suas posições e topografias que se pode melhor apreender sua obra” (RUDGE, 2006), e a melancolia parece ter sido o melhor instrumento para cumprir este caminho. Ela torna- se um bom instrumento, porque, diferente de um conceito como o de inconsciente, a melancolia está presente desde o ano de 1892 sob a pena freudiana, e, mais do que isso, ela sofre constantes mutações e acréscimos até os últimos dos seus escritos. É justamente nessas mudanças e acréscimos que encontramos refletidos nesse termo as mudanças da própria obra de Freud. A melancolia sempre foi, até as últimas reflexões freudianas, um conceito problemático, uma clínica carregada de dificuldades, um problema que se colocava diante do criador da psicanálise COMUNICAÇÕES DE PESQUISA 350 http://www.uva.br/trivium/edicao2/pesquisa/2-a-melancolia-em-freud.pdf como um desafio. Além disso, o termo ”melancolia” já vinha de uma longa tradição que havia atravessado a filosofia, a literatura e a psiquiatria muitos séculos antes do surgimento da psicanálise. Para se utilizar dessa palavra, a psicanálise precisou “tirar o pó” de uma noção atravessada por uma longa tradição e, mais do que isso, precisou renovar, sob profundos questionamentos motivados pela própria clínica psicanalítica, a densidade, o caráter problemático para a teoria e a riqueza do quadro clínico da melancolia. REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1963. JORGE, M. A. C. “Luto e Culpa na Análise e na Vida Cotidiana (Sobre as Resistências do Analista ou 'Vamos Falar da Morte?')”. In: PERES, Urânia Tourinho (org). Culpa.São Paulo: Escuta, 2001. PIGEAUD, J. “Apresentação”. In: Aristóteles. O homem de gênio e a melancolia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. RUDGE, A. M. Pulsão de Morte como Efeito de Supereu. In: Agora. v. IX. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006; p.79-89. Recebido em: 2 de maio de 2010.
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