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1 ESTUDOS DE LINGUAGEM NO TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO Organizadoras Ana Carina Tamanaha Camila da Costa Ribeiro Cintia Salgado Azoni Juliana Onofre Lira Departamento de Linguagem Gestão 2000-2022 Título: Estudos de Linguagem no Transtorno do Espectro do Autismo Organizadoras: Ana Carina Tamanaha, Camila C Ribeiro, Cintia S Azoni, Juliana O Lira Revisão por Pares: Clara Regina Brandão de Ávila, Desiree De Vit Begrow, Marcela Lima Silagi Siqueira, Maria Cecília de Moura, Selma Mie Isotani Ilustração de capa: Rodrigo Prieto Revisão de Texto: Adriana Barros Coordenação Editorial: ABarros Editora Catalogação na publicação Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166 E82 Estudos de linguagem no transtorno do espectro do autismo / Ana Carina Tamanaha (Organizadora), Camila da Costa Ribeiro (Organizadora), Cintia Salgado Azoni (Organizadora), et al. – São Paulo: ABarros, 2022. Outra organizadora Juliana Onofre Lira Livro em PDF 180 p., il. ISBN 978-65-997481-1-0 1. Fonoaudiologia. 2. Linguagem. 3. Autismo. 4. Transtornos do espectro autista. I. Tamanaha, Ana Carina (Organizadora). II. Ribeiro, Camila da Costa (Organizadora). III. Azoni, Cintia Salgado (Organizadora). IV. Título. CDD 616.855 Índice para catálogo sistemático I. Fonoaudiologia Apresentação Aos estudantes e fonoaudiólogos, Esta obra representa uma síntese de estudos delineados em busca da compreensão do Transtorno do Espectro do Autismo. Nossa expectativa é que ela contribua para o entendimento desta condição e que possa colaborar na formação de estudantes e fonoaudiólogos. Reunimos um grupo de pesquisadores com expertise na área para compor um panorama sobre as pesquisas desenvolvidas pelo país, dedicadas ao desenvolvimento de práticas baseadas em evidências científicas em Linguagem dentro do universo do TEA. Este e-book é parte integrante das ações desenvolvidas pelo Departamento de Linguagem da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia - SBFa em busca de promoção da ciência e da visibilidade das pessoas com TEA. Agradecemos imensamente a colaboração de todos os autores e de todas as pessoas envolvidas na elaboração desta obra. Por fim, dedicamos esse e-book a todas as crianças e adolescentes com TEA e suas respectivas famílias, por nos inspirarem e nos ensinarem a cada dia, a sermos melhores fonoaudiólogos. As organizadoras Prefácio Ao longo dos seus mais de 30 anos de existência, a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa) tem cumprido um papel muito claro: estabelecer pontes entre o melhor conhecimento científico disponível e as boas práticas relacionadas ao fazer fonoaudiológico. Além disso, a SBFa sempre está atenta às demandas contemporâneas, aos novos desafios impostos aos fonoaudiólogos e às necessidades dos usuários que se beneficiam da atuação fonoaudiológica. Nesse sentido, o Departamento de Linguagem da SBFa, especificamente, o Comitê de Linguagem Oral e Escrita da Infância e Adolescência corresponde às demandas contemporâneas e nos presenteia com o E-book “Estudos de Linguagem no Transtorno do Espectro do Autismo”. Segundo os dados do Centro de Controle de Doenças (CDC), há uma estimativa de que 1 entre cada 44 crianças nos Estados Unidos receba o diagnóstico de TEA. Reconhecidamente, tal condição ocasiona prejuízos na interação e comunicação, o que nos coloca em uma posição diferenciada no processo de avaliação, diagnóstico e reabilitação da pessoa com TEA. Por outro lado, vivenciamos o desafio de acompanhar a evolução da ciência para transferir o melhor conhecimento produzido para as nossas práticas profissionais. Certamente, a presente obra situa-se nesse contexto e constitui-se em uma potente ferramenta para disseminar o melhor conhecimento científico e as melhores práticas relacionados ao TEA. As queridas colegas Dra. Ana Carina Tamanaha, Dra. Camila da Costa Ribeiro, Dra. Cíntia Salgado Azoni e Dra. Juliana Onofre Lira reuniram um exímio grupo de colegas, clínicas e pesquisadoras, que construíram um painel acerca de questões essenciais relacionadas à avaliação, ao diagnóstico e ao processo terapêutico fonoaudiológico de pessoas com TEA. Mais que uma atuação clínica e educacional, o papel do fonoaudiólogo também envolve o “advocacy” – a luta pela defesa dos direitos, pela visibilidade e pelo acesso pleno à participação da pessoa com TEA na sociedade, em diferentes espaços. Faz parte do nosso escopo de atuação compreender os pontos fortes e os desafios da comunicação de cada pessoa com TEA e ser um agente facilitador na transformação de espaços, derrubando barreiras sociais e ambientais que podem ampliar as limitações de comunicação desses indivíduos. Na atualidade, nos deparamos com crianças, jovens e adultos com TEA que apresentam diferentes níveis de limitação funcional na sua comunicação, e que necessitam de diferentes estratégias de suporte para que possam se desenvolver plenamente. Recentemente, a ASHA (American Speech-Language and Hearing Association) tem reforçado o papel do fonoaudiólogo na compreensão e promoção da “self-advocacy” de pessoas (adultos) com TEA. A noção do espectro e, portanto, da variabilidade, traz em si o reconhecimento de que as pessoas têm habilidades e estilos de comunicação diferentes e o nosso papel, enquanto fonoaudiólogos, é atuar não somente em nível individual, mas apoiar a pessoa com TEA e disseminar informações que modifiquem a mentalidade e as práticas nos diferentes cenários da sociedade civil. A SBFa está empenhada com essa causa, com um envolvimento muito especial do Departamento de Linguagem. Certamente, esta obra reflete o nosso mais sincero desejo de que todas as pessoas com TEA sejam capazes de comunicar suas necessidades e desejos e tomar decisões sobre as estratégias necessárias para atingir as suas próprias metas ao longo da vida. Em tempo, manifesto as congratulações às organizadoras e aos autores, reiterando a importância e a abrangência do impacto dessa obra não somente para fonoaudiólogos e acadêmicos de Fonoaudiologia, mas para as pessoas com TEA. Dr. Leonardo Lopes Presidente da SBFa (2020-2022) Sumário Conhecimentos gerais 1. Definição e percurso histórico do TEA 2. Diagnóstico diferencial no TEA Risco e Detecção Precoce 3. Sinais de sofrimento psíquico em bebês e o risco de evolução para o TEA 4. Acolhimento a mães de crianças com TEA 5. A detecção e intervenção precoce do TEA Processo de avaliação fonoaudiológica 6. Aspectos pragmáticos no TEA 7. Aspectos semânticos – morfossintáticos no TEA 8. Aspectos fluência e prosódia no TEA 9. Aspectos da linguagem escrita no TEA Processo terapêutico fonoaudiológico 10. Intervenção terapêutica em comunicação e linguagem na infância no TEA 11. Intervenção terapêutica na adolescência e rumo à vida adulta no TEA 12. Na ausência de fala funcional: sistemas de comunicação alternativa no TEA 8 1. Definição e percurso histórico do TEA Ana Carina Tamanaha Introdução O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é definido como uma condição neurobiológica caracterizada pela presença de prejuízos severos e invasivos nas áreas da interação e comunicação social e por um repertório restrito de interesses e atividades (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2022). É consenso que um dos primeiros sinais de risco para TEA é a ausência ou o declínio do contato visual ao longo dos dois primeiros anos de vida (VOLKMAR, WIESNER, 2009; JONES, KLIN, 2013; AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014; KLIN, JONES, 2018; TAMANAHA, PERISSINOTO, 2019). Outros déficits nos comportamentos que regulam e sustentam a comunicação social e a interação vão se somando: na atenção em compartilhar eventos e objetos; no uso de gestos com função comunicativa e das expressões faciais e corporais; na responsividade aos estímulos ambientais e sociais. Observa-se também, inabilidades de reciprocidade socioemocional que variam em intensidade e acometem o engajamento social e o compartilhamento de interesses, emoções e afetos. A criança não demonstra interesse por seus pares, nem por brinquedos ou brincadeiras apropriadas a sua faixa etária, especialmente as que envolvem jogo simbólico, criatividade e imaginação. A brincadeira por vezes mostra regras muito fixas (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014; KLIN, JONES, 2018; TAMANAHA, PERISSINOTO, 2019). O atraso no desenvolvimento de linguagem acompanhado por ausência de interesse social são aspectos nucleares do diagnóstico. Pode haver relato de perda de habilidades sociais e de fala, de forma gradual ou relativamente rápida, em geral entre 12 e 24 meses. Os prejuízos verbais e não verbais têm manifestações clínicas variadas, dependendo da idade, do nível intelectual e da própria capacidade linguística do indivíduo, bem como de outros fatores como o histórico de tratamento e apoio atual, daí a adoção do termo espectro. Conforme vão se desenvolvendo, e dependendo do grau de comprometimento intelectual e de linguagem, adolescentes e adultos com TEA podem relutar em compreender pistas sociais e terem dificuldade para agir de acordo com o contexto, ou de adequarem seu discurso à ocasião e ao interlocutor. Há ainda, um padrão restrito e repetitivo de comportamentos, interesses e atividades. Observa-se a presença de movimentos motores (estereotipias manuais) ou de fala (ecolalia, frases idiossincráticas), estereotipados e repetitivos; adesão à rotina ou aos padrões ritualizados de comportamentos não verbais e/ou verbais; preocupação anormal 9 em intensidade e foco em objetos incomuns e ainda hipo ou hiper responsividade aos estímulos sensoriais (reação aos sons, texturas, indiferença à dor, à temperatura). Esses sintomas devem estar presentes no desenvolvimento precocemente, no entanto, podem não se manifestar com nitidez até que as demandas sociais aumentem e excedam as capacidades limitadas ou podem estar mascaradas por estratégias aprendidas ao longo da vida. Segundo a American Psychiatric Association (2014) os melhores fatores prognósticos estabelecidos são a presença ou ausência de deficiência intelectual e o grau de comprometimento da linguagem. Em relação às questões relativas ao gênero, o TEA é diagnosticado quatro vezes mais frequentemente no gênero masculino. Pessoas do gênero feminino parecem ter mais propensão a apresentar deficiência intelectual concomitante ou atrasos de linguagem podem não ter o transtorno identificado, talvez devido à manifestação mais sutil das dificuldades sociais e de comunicação (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Um conjunto de fatores de risco inespecíficos pode contribuir para o risco de TEA, como a idade parental avançada, baixo peso ao nascer e exposição fetal a ácido valproico. Estimativas de herdabilidade variam entre 37 e 90% com base em taxas de concordância entre gêmeos (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). No entanto não há consenso ainda sobre a sua etiologia. A estimativa de prevalência relatada pela American Pychiatric Association (2014) é de 1% na população. No entanto, estudo mais recente conduzido pelo Centro de Controle de Doenças (CDC) entre crianças norte-americanas com 8 anos de idade publicado em 2021, com dados de 2018, estimou 1 criança com TEA para cada 44 nos Estados Unidos (MAENNER et al, 2021). O TEA atinge todas as etnias, culturas e níveis socioeconômicos. No entanto, é sabido que pessoas em situação de vulnerabilidade econômica ou social podem ter o diagnóstico postergado pela falta de acesso adequado aos serviços de saúde. 10 Percurso histórico A descrição inicial do TEA nos remete a 1943, quando o psiquiatra, Leo Kanner, publicou seu artigo científico intitulado “Distúrbio Autístico do Contato Afetivo” para descrever casos clínicos com características comportamentais bastante peculiares: perturbação das relações afetivas com o meio, solidão autística extrema, inabilidades para o uso da linguagem para a comunicação, comportamentos ritualísticos, presença de bom potencial cognitivo, aspecto físico aparentemente normal, início precoce e incidência predominante no gênero masculino. Kanner referiu na ocasião, a existência de uma distorção do modelo familiar que ocasionaria alterações no desenvolvimento psicoafetivo da criança, decorrente do caráter altamente intelectual dos pais para explicar uma possível etiologia. No entanto, também assinalou que algum fator biológico poderia estar envolvido uma vez que as manifestações comportamentais eram descritas pelas famílias muito precocemente (TAMANAHA, CHIARI, PERISSINOTO, 2008). Após duas décadas nas quais a ênfase no tratamento foi de base psicodinâmica, ao final dos anos sessenta, estudos experimentais passam a ser conduzidos e as falhas em diversas áreas do desenvolvimento como a percepção, linguagem, cognição começam a identificar e documentar as bases neurobiológicas do TEA (RIMLAND, 1964; HERMELIN, O´CONNOR, 1967; RUTTER, 1968, ORNITZ, RITVO, 1976; RUTTER, 1978; RUTTER, SCHOPLER, 1987). Somente em 1980 houve o reconhecimento de sua especificidade diagnóstica, com a inserção do termo Distúrbio Global do Desenvolvimento pela American Psychiatric Association em sua terceira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM III; e mantida na versão revisada - DSM III-R (1987), para categorizar o Autismo e outras condições correlatas, diferenciando este grupo de patologias do quadro de Psicose Infantil. Nas versões seguintes do DSM IV (1995) e DSM IV-R (2002) adotou-se a classificação tanto do Transtorno Autista quanto do Transtorno de Asperger como subcategorias dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. A distinção entre as duas condições centralizava-se nos prejuízos de comunicação. A partir de 2014, com a publicação da quinta versão do DSM 5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014) o termo Transtorno do Espectro do Autismo passa a ser adotado, valorizando-se assim, o caráter dimensional dos quadros clínicos e a perspectiva de se avaliar a funcionalidade e o grau de suporte necessário para a assistência (KLIN, JONES, 2018; TAMANAHA, PERISSINOTO, 2019). 11 Considerações Finais Como vimos o TEA é uma condição que afeta o neurodesenvolvimento e cujas manifestações clínicas são severas, invasivas e persistentes e atingem as pessoas independente da raça, etnia ou nível sociocultural. 12 Referências American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM III. 3 ed. São Paulo: Manole, 1980. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM III-R. São Paulo: Manole, 1989. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM IV. 4 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM IV R. 4 ed revisada. Porto Alegre: Artmed, 2002. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM 5. 5 ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. Hermelin B, O´Connor N. Remembering of words by psychotic and subnormal children. British Journal of Psychology. 1967, 58:213-8. Kanner L. Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child. 1943, 2:217-50. Jones W, Klin A. Attention to eyes is present but in decline in 2-6 months old infants later diagnosed with Autism. Nature. 2013, 504: 427-31. Klin A, Jones W. An agenda for 21st century neurodevelopmental medicine: lessons from Autism. Rev Neurol. 2018, 1, 66: S3-S15 Maenner MJ, Shaw KA, Bakian AV, et al. Prevalence and Characteristics of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years – Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United Santes, 2018. MMWR Surveill Summ 2021, 70 (No. SS-11):1-16. Organização Mundial de Saúde. Classificação Internacional de Doenças – CID 11. 2022. https://icd.who.int/en. Ornitz EM, Ritvo ER. The syndrome of autism: a critical review. Am J Psychiatry. 1976, 133 (6):609-21 Rimland B. Infantile Autism. New York: Appleton-Century-Crofts, 1964. Rutter M. Concepts of autism: a review of research. J Child Psych Psychiatry, 1968. 9 (1): 1-25 Rutter M. Diagnosis and definition of childhood autism. J Child Schizophr. 1978, 8 (2): 139-61 Rutter M, Schopler E. Autism and pervasive developmental disorders: concepts and diagnostic issues. J Aut Dev Disord. 1987, 17 (2): 159-86. Tamanaha AC, Chiari BM, Perissinoto J. Uma breve revisão histórica sobre a construção dos conceitos de Autismo Infantil e Síndrome de Asperger. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2008, 13,3:1-7. Tamanaha AC, Perissinoto J. Definição dos Transtornos do Espectro do Autismo In Tamanaha AC, Perissinoto J (Org). Transtorno do Espectro do Autismo: implementando estratégias para comunicação. BookToy. Ribeirão Preto, 2019: 21-22 Volkmar FR, Wiesner LA. A practical guide to Autism. John Wiley & Sons Inc. New Jersey, 2009. https://icd.who.int/en 13 2. Diagnóstico Diferencial no TEA Dionísia AC Lamônica, Michele DH Haduo, Camila da Costa Ribeiro Introdução Para se falar em diagnóstico diferencial de uma entidade clínica é de relevância o conhecimento de critérios classificatórios que formalizam um conjunto de manifestações envolvendo fatores etiológicos, expressão clínica, tratamentos, bem como evolução ao longo do tempo. Segundo o DSM-5, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) trata-se de transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades de interação social, comunicação, comportamentos repetitivos e restritos (APA, 2013). Com início na primeira infância, há uma variabilidade substancial nas trajetórias iniciais do desenvolvimento. Muitas famílias reportam que perceberam sinais de TEA desde os primórdios da vida dos filhos e outras apontaram para um período de desenvolvimento aparentemente normativo, passando por regressões do neurodesenvolvimento (MCPARTLAND, VOLKMAR, 2012; KLIN et al., 2015; KLIN et al., 2020; HUS, SEGAL, 2021). Regressão na linguagem e interesse social são relatados em aproximadamente um quarto dos casos diagnosticados com TEA (HYMAN et al., 2020). O início da observação dos sinais é variável, mas definitivamente antes dos três anos. Um estudo apresentou que 30% dos pais de crianças com TEA suspeitaram antes dos doze meses, 50% em média aos dezoito e 80% por volta dos dois anos, com as manifestações comportamentais ficando mais evidentes a partir do aumento da idade da criança (KLIN et al., 2015). Assim, TEA refere-se a uma condição heterogênea do neurodesenvolvimento em sua apresentação clínica e etiopatogenia. Embora seja amplamente reconhecido que os fatores genéticos e ambientais e suas interações contribuam para os fenótipos do autismo, seus mecanismos causais precisos permanecem pouco compreendidos (ROBERT et al., 2017; BÖLTE et al., 2019; HAVDAHL et al., 2021). Estudos epidemiológicos revelaram que cerca de 90% dos casos foram classificados como idiopáticos, enquanto de 10 a 20% por etiologia genética conhecida; e que o TEA é geneticamente determinado, com índices de herdabilidade estimados entre 85 a 92%, podendo ser desencadeado por fatores de risco ambientais, especialmente aqueles que influenciam no desenvolvimento fetal precoce (SHUID et al., 2020 BOUGEARD et al., 2021). As estimativas de risco de recorrência entre irmãos de crianças autistas variam de 3 a 18% (LYALL et al., 2017). Ressalta-se que mesmo que os mecanismos biológicos (genes ou vias afetadas, em dosagem ou tempo) e ambientais (fatores pré-natais, perinatais e/ou pós-natais) precoces variem, tais rupturas contribuirão para desvios dos processos normativos, alterando em níveis de gravidade e contribuindo para a diversidade fenotípica do TEA (YOUNG et al., 2020). A heterogeneidade clínica do autismo é espelhada por uma arquitetura genética complexa, envolvendo diversos tipos de variantes comuns e raras, variando de mutações pontuais a variantes de grande número de cópias, herdadas ou espontâneas (de novo). Centenas de genes de risco para TEA foram implicados em doenças raras, muitas vezes “de novo” (BÖLTE et al., 2019; MESLEH et al., 2021; HAVDAHL et al., 2021), e 14 diferentes genes de risco convergem para os mesmos mecanismos, como regulação gênica e conectividade sináptica, que podem sofrer influências de fatores ambientais (MAHAJAN, MOSTOFSKY 2015; BÖLTE et al., 2019; HAVDAHL et al., 2021). Esses mecanismos também estão implicados por genes que são desregulados epigeneticamente e transcricionalmente (MESLEH et al., 2021). Os principais desafios para a compreensão dos mecanismos biológicos incluem a heterogeneidade fenotípica substancial, a grande heterogeneidade de loci, a penetrância e a pleiotropia generalizada (FERNANDEZ, SCHERER, 2017; ROBERT et al., 2017; NISAR et al., 2019). A identificação de endofenótipos pode ajudar na compreensão da etiologia e patogênese de um transtorno tão complexo e geneticamente enraizado como o TEA (MAHAJAN, MOSTOFSKY 2015; NISAR et al., 2019; MESLEH et al., 2021). Estudos futuros devem integrar pesquisas de variantes comuns e raras, dados multiômicos, incluindo genômica, epigenômica e transcriptômica (HAVDAHL et al., 2021). Diante o exposto, serão apresentados diagnósticos diferenciais e comorbidades relacionados ao TEA, com base no conhecimento etiológico atual. O desenvolvimento de novas tecnologias na genética epidemiológica, molecular e clínica tem melhorado o conhecimento das síndromes genéticas associadas ao TEA (ROBERT et al., 2017). Variantes genéticas raras conferem risco significativo na complexa etiologia do autismo (HAVDAHL et al., 2021). Eles são tipicamente não mendelianos, com tamanhos de efeito substanciais e baixo risco atribuível à população. Conforme apontado anteriormente, há uma diversidade de distúrbios genéticos associados ao TEA. O conceito de "autismo sindrômico" qualifica indivíduos com características dismórficas/malformações e deficiência intelectual (DI), que se opõe ao conceito de "autismo não sindrômico” com indivíduos sem/com DI, e sem outros sinais ou sintomas associados (ROBERT et al., 2017). Mottron et al. (2020) apresentaram reflexões interessantes quanto à distinção sindrômica/não-sindrômica no TEA, questionando se as apresentações não-sindrômicas atuais serão as “sindrômicas” de amanhã, após novas descobertas. Organizar e sistematizar manifestações fenotípicas podem gerar conhecimentos relevantes e favorecer a elucidação dos processos subjacentes ao desenvolvimento, por meio do monitoramento de fenótipos e comorbidades associadas, com provável interferência no manejo dos processos de reabilitação. A associação de todo o genoma e a análise microscópica identificaram muitos loci e genes diferentes que estão associados à etiologia do TEA e, embora muitos fatores de risco genéticos e epigenéticos tenham sido sugeridos, não há marcadores diagnósticos específicos (YOON et al., 2020: MESLEH et al., 2021). Para a compreensão da base molecular do TEA é relevante saber sobre a epidemiologia genética e epigenética, juntamente com os fatores de risco ambientais subjacentes à etiologia do TEA, que afetam a sinalização celular e os processos metabólicos e imunológicos (YOON et al., 2020). O conhecimento dos fenótipos e características principais das síndromes genéticas que cursam com TEA favorece a compreensão e melhor manejo terapêutico, o que implica na redução dos efeitos deletérios destes quadros clínicos e contribui para a qualidade de vida destes indivíduos e suas famílias. Entre as causas genéticas, várias 15 mutações cromossômicas, incluindo duplicações ou deleções, podem ser possíveis fatores causadores de TEA. Um estudo apontou algumas regiões relacionadas ao TEA em seis cromossomos diferentes (4, 7, 10, 16, 19 e 22) (YOON et al., 2020), embora outros cromossomos também tenham sido implicados na presença de comportamentos autísticos. Além disso, a base bioquímica sugere que vários neurotransmissores cerebrais, por exemplo, dopamina, serotonina, ácido gama-aminobutírico, acetilcolina, glutamato e histamina participam no aparecimento e progressão do TEA (EISSA et al., 2018). Inúmeras são as síndromes genéticas associadas ao TEA. O Quadro 1 apresenta algumas das síndromes que podem cursar com TEA quanto ao fenótipo, gene, loci e percentual de ocorrência de sinais autísticos. Quadro 1: Algumas Síndromes Genéticas que apresentam comportamentos do Transtorno do Espectro Autista (autismo sindrômico) Síndrome do X-Frágil Anomalia genética ligada ao cromossomo X com anormalidade do gene FRM1 (expansão de trinucleotídeos, com repetições CGG), lócus Xq22-23. As características dismórficas vão se tornando mais visíveis com o passar do tempo e envolvem: flacidez muscular, perímetro cefálico aumentado; frontal protuberante, face longa e estreita; mandíbula proeminente; orelhas grandes, de abano e de implantação baixa; nariz longo; lábio superior fino; palato arqueado; alterações de oclusão; ptose palpebral; alterações oculares (estrabismo e/ou miopia), testículos aumentados. Indivíduos do sexo masculino são mais afetados. Meninos: DI moderado a grave; ADNPM; Comprometimento em todos os níveis da linguagem; Dificuldades de articulação e fluência. Ecolalia. Comportamentos autolesivos (morder as mãos) e agressivos, tendência a colocar tudo na boca; flapping/balanço dos braços. Também são comuns: Falta de atenção, hiperatividade, ansiedade e timidez. Prejuízos nas atividades de vida diária (AVD). Dificuldade em socialização – Embora 45% apresentem comportamentos do espectro autístico, a maioria não preenche todos os critérios para o diagnóstico de TEA. Meninas: tendem a alterações emocionais (60%), como timidez, ansiedade e/ou depressão, dificuldades em matemática e pragmática. 30% com DI leve. Síndrome de Rett (SR) Ocorre por mutação de gene do cromossomo X, conhecido como MECP2, lócus Xq28. É uma encefalopatia neurodegenerativa, considerada uma das principais causas de DI em meninas, com manifestações de sinais de autismo nos estágios iniciais. É raríssima em meninos. Para o diagnóstico clínico é necessário: período pré e perinatais aparentemente normais; perímetro cefálico normativo ao nascimento; DNPM normal nos primeiros 6 meses. Critérios de suporte: hiperventilação, apneia; crises epilépticas; espasticidade, distonias; escoliose; retardo do crescimento; atrofias de extremidades; distúrbios vasomotores. A evolução clínica ocorre por estágios e o tempo de duração em cada estágio não têm um padrão regular. Estágio I (Estagnação Precoce): Primeiros sinais, caracteriza-se por atraso ou não aquisição de novas etapas do NDPM, diminuição ou perda do interesse por brincadeiras, interação social pobre, mudança da personalidade e desaceleração do crescimento craniano. 16 Estágio II (Período rapidamente destrutivo): Perda das aquisições previamente adquiridas, comportamentos autistas, demência severa, perda da linguagem, respiração irregular e períodos de hiperpnéia (hiperventilação e apneias), estereotipias manuais (movimentos de lavar as mãos ou de mantê-las unidas na linha média, e estereotipias bucomanuais (tendência a manter as mãos à boca). As estereotipias manuais precedem a perda da capacidade de usar as mãos (apraxia manual). Estágio III (Pseudo-estacionário); Progressão lenta dos sinais/sintomas, discreta melhora da interação (voltam a manter contato visual com olhar expressivo e sorrisos) e da expressão dos aspectos emocionais. Epilepsia, DI severa, disfunção motora (espasticidade e hiperreflexia), hiperventilação, ataxia/apraxia da marcha mais proeminente, perda de peso e bruxismo. Estágio IV (Deterioração motora tardia): Inicia após perda da marcha; paraparesia/quadriparesia. Deformidades posturais (pés equinos, cifose e escoliose), distúrbios tróficos e vasomotores. Epilepsias ocorrem em 50 a 80% dos casos. Cabe ressaltar parece existir um espectro clínico da síndrome, denominado “Complexo Rett” que varia de casos severos, com apresentação clássica, a formas variantes leves. Mais de 20 tipos de mutações no gene MECP2 foram descritas, relacionando-se a variabilidade do quadro clínico. Síndrome de Angelman (AS) Diferentes mecanismos genéticos associam-se a expressão anormal da cópia materna do gene UBE3A e deleção da região 15q11.2-q13 (60-75%), dissomia uniparental paterna (2- 5%), defeito de imprinting (2-5%) e mutação no próprio gene (10%). Caracteriza-se por DI severa, ausência de fala e crises epilépticas refratárias (85%). O fenótipo inclui: traços faciais característicos (face triangular, macrostomia, prognatia, testa estreita, bochechas acentuadas, dentes espaçados, lábio superior fino, olhos fundos, protrusão da língua e hipopigmentação). Estrabismo. Cabelos finos. Aparentemente normais ao nascer, os primeiros sinais envolvem dificuldades de alimentação, ADNPM e tremores. Somente a partir do 2º/3º ano de vida é que as características dismórficas típicas, assim como o perfil comportamental peculiar, tornam- se evidentes. Atraso do crescimento cefálico pós-natal ocorre em 80% provocando microcefalia, bem visível aos 2 anos. Uma combinação de risos e sorrisos, com “aparência feliz” são frequentes, entretanto refere-se a expressão motora e não intenção social. Quanto à área motora: marcha atáxica (ocorre entre o 3º e 4º ano e cerca de 10% não desenvolverão marcha), movimentos mioclônicos e dificuldades de coordenação motora grossa e fina. Distúrbios do sono, desatenção, hiperatividade, hipersensibilidade ao calor, movimentos atípicos com as mãos (semelhantes aos movimentos de marionetes), gritos de excitação. Movimentos de mastigação frequentes e sialorréia. Após os quatro anos tendem a puxar o cabelo (tricotilomania) e morder os outros. Poucos desenvolvem alguma AVD. Gostam de manusear plásticos, andar segurando objeto, escutar música e brincar com água. A comunicação é muito prejudicada – Tendem à compreensão de poucas palavras e geralmente falam de três a cinco sílabas e não mais que dez palavras. Síndrome de Prader-Willi (SPW) Diferentes mecanismos genéticos associam-se a expressão anormal da cópia paterna do gene UBE3A e deleção da região 15q11.2-q13 (65–75%), dissomia uniparental materna 15 (20–30% dos casos) e defeito de imprinting (1–3%). As características pré-natais incluem: Atividade fetal reduzida (88%), letargia, apresentação pélvica, circunferência cefálica/abdominal de razão aumentada (43%); pequeno para a idade gestacional (65%), 17 polidrâmnio (34%). Ao nascimento: Apgar baixo, hipotonia, dificuldades de sucção e deglutição; hipopigmentação, hipogonadismo e hipogenitalismo, instabilidade de temperatura corporal. Déficit nos hormônios do crescimento, resultando em baixa estatura com mãos e pés pequenos. DNPM lento. Início de ganho de peso entre 2 a 5 anos. A hiperfagia inicia por volta dos 7/8 anos. Características fenotípicas: dolicocefalia, diâmetro frontal mínimo estreito, estrabismo, olhos amendoados, nariz curto e arrebitado, lábio superior fino e cantos da boca virados para baixo, bordas retas do lado ulnar das mãos, hipoplasia do esmalte dentário, saliva espessa, baixa autoconsciência, redução da sensibilidade à dor. Obesidade. A velocidade de crescimento é diminuída. São previstos ADNPM, DI geralmente leve (QI entre 65 a 70). Distúrbios de sono, escoliose, constipação intestinal, alterações de coagulação e hipotireoidismo (25%). São previstos também comportamentos obsessivos, repetitivos e ritualísticos, compulsivos e disruptivos, acessos de raiva, transtorno de escoriação (autoflagelação: cutucar, arranhar, furar ou coçar a pele), comportamento opositor e agressividade. Preferência por rotinas. Apresentam muitos comportamentos que são previstos no TEA. Síndrome Smith-Magenis (SSM) Afecção genética caracterizada por múltiplas anomalias congênitas e alterações comportamentais, associadas à deleção da região cromossômica 17p11.2 ou mutações do ponto gene RAI1. Os sinais fenotípicos incluem: braquicefalia, fronte alargada, hipoplasia da linha média da face, lábio superior proeminente com aspecto de arco, fenda palpebral desviada para cima, hipotelorismo, face quadrada, prognatismo, sobrancelhas espessas e sinofris. Estes começam a ser visíveis com o aumento da idade. Nascem hipotônicos e apresentarão ADNPM. DI moderada (QI entre 40-55). Problemas de sono. Poderão apresentar anomalias cardíacas, esqueléticas e renais. Alterações visuais, perda da audição também são comuns. As manifestações comportamentais incluem: hiperatividade, impulsividade, dificuldades em comportamentos adaptativos, déficit de atenção, autoestimulação, autoagressão, com acessos de raiva, mau humor, dificuldade com asseio corporal, comportamentos de "auto abraço" e lamber as mãos. Apresentam interesses restritos, tendência a isolamento social, dificuldades quanto a mudanças de rotina, poliembolocoilamania e onicotilomania. Os problemas de comportamento se acentuam na idade escolar. Comportamentos autísticos ocorrem em 50%. Síndrome de Charge (SC) É uma síndrome muito complexa com um fenótipo amplo que pode envolver quase todos os órgãos e sistemas sensoriais. A maioria dos indivíduos (80%) com SC tem mutações na proteína 7 de ligação de cromodomínio-helicase-DNA (gene CHD7). Associa-se a múltiplas comorbidades e é extremamente variável quanto à gravidade. O acrônimo Charge foi utilizado para mostrar as afecções, mas não é utilizado na construção do diagnóstico: C: coloboma; H: defeitos cardíacos (heart defects); A: atresia de coanas nasais; R: retardo de crescimento/desenvolvimento; G: anormalidades genitais e/ou urinárias (genital and/or urinary abnormalities; E: anormalidades das orelhas e surdez (Ear abnormalities and deafness). Outras possíveis malformações e déficits adicionados posteriormente incluem arinencefalia resultando em hiposmia, anomalias dos canais semicirculares produzindo disfunção vestibular e disfunção de nervos cranianos e tronco encefálico, que levam a dificuldades alimentares e respiratórias durante os primeiros anos. Apresentam prejuízos na percepção sensorial cross-modal (visão prejudicada associada à audição reduzida). O fenótipo 18 inclui malformações craniofaciais (atresia de coanas, fissuras labiopalatinas, assimetria facial, malformação de orelhas, dentre outros). Malformações cerebrais e microcefalia também são relatadas. DI de leve a severa. Podem apresentar ansiedade, transtornos obsessivo- compulsivos, comportamentos desafiadores e autolesivos, raiva, inquietação hiperatividade. A frequência de comportamentos autísticos varia de 9 a 68%. Síndrome Phelan-McDermid (SPM) É uma condição genética causada por deleção ou alteração estrutural da extremidade terminal do cromossomo 22 na região 22q13, variante patogênica do gene SHANK3. Caracterizada por hipotonia neonatal, ADNPM, crescimento normal a acelerado, ausência ou grave atraso na aquisição da fala e características dismórficas, com ampla gama de alterações intelectuais e comportamentais. Nascem hipotônicos, com dificuldades de sucção/deglutição e choro fraco. Além da previsão de atraso do desenvolvimento, alguns apresentarão regressão de habilidades. DI (moderada a grave), fala ausente ou severamente atrasada e cerca de 75% mostram comportamentos do espectro autista. Apresentam ansiedade em situações sociais, contato visual reduzido, autoestimulação, diminuição da percepção da dor e redução da transpiração. Exibem mastigação obsessiva de itens não alimentares. Distúrbios do sono, epilepsias (17% a 70%), problemas gastrointestinais, renais, déficit de atenção, hiperatividade. Fenótipo inclui: Cabeça longa (dolicocefalia), face média plana, sobrancelha cheia, cílios longos, ptose palpebral, orelhas grandes/proeminentes, olhos profundos bochechas cheias, nariz bulboso e queixo pontudo, unhas dos pés displásicas durante a primeira infância e mãos relativamente grandes e carnudas. Sem o conhecimento fenotípico, muitos são diagnosticados com TEA. O diagnóstico correto é relevante, pois podem desenvolver doença neuropsiquiátrica grave na adolescência ou início da idade adulta. Síndrome Cornélia de Lange (SCL) Distúrbio multissistêmico com características físicas, cognitivas e comportamentais. O fenótipo clássico é facilmente reconhecido, entretanto a apresentação da síndrome pode variar amplamente, com diferentes graus de envolvimento. Foram identificadas mutações causais em vários genes. O gene NIPBL está mutado em 50% e é o gene mais importante envolvido na síndrome. Outras mutações associadas a síndrome foram recentemente identificadas: SMC1A; Xp11.22-p11.21, associado com uma forma ligada ao X, SMC3(10q25) RAD21, HDAC8. A trissomia do 3q2 é um diagnóstico diferencial, pois as características são frequentemente muito semelhantes a ACL. Características fenotípicas da SCL: braquicefalia, hipertelorismo, Sinofris, fissuras palpebrais e pregas epicantais, narinas antevertidas, nariz pequeno, lábio superior fino, cantos da boca virados para baixo, microrretrognatia, microcefalia (pré-natal e/ou pós-natal), mãos e/ou pés pequenos, oligodactilia e/ou adactiia e hirsutismo. Hérnia diafragmática congênita, malformações palatinas, cardíacas e geniturinárias são achados frequentes. São esperados retardo de crescimento pré e pós-natal. ADNPM e DI (de leve a profunda). Apresentam também: alterações do sono, ansiedade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. São relatados comportamentos do espectro autistas em 50-70% dos casos. São frequentes: comportamentos repetitivos, autolesivos, recusa alimentar, dificuldades com trocas de rotinas e dificuldades no processamento sensorial. 19 Complexo de Esclerose Tuberosa (CET) Doença genética autossômica dominante caracterizada por envolvimento neurocutâneo multissistêmico caracterizado por hiperplasia celular, displasia tecidual e hamartomas em múltiplos órgãos. As manifestações físicas mais comuns incluem tumores benignos no SNC, pele, rins, coração e pulmões e altas taxas de epilepsia (90%), causada por uma variante patogênica em um dos dois genes, TSC1 ou TSC2. Sua fisiopatologia caracteriza-se por proliferação e diferenciação celular anormal e clinicamente pela tríade epilepsia, DI e adenomas sebáceos. Os sinais e sintomas estão na dependência dos locais de crescimentos tumorais. Além das manifestações físicas o complexo também está associado a uma ampla gama de dificuldades comportamentais, psiquiátricas, intelectuais, acadêmicas, neuropsicológicas e psicossociais. São descritos comportamentos de irritabilidade, baixa estima, automutilação, agressividade, depressão, ansiedade, humor deprimido, déficit de atenção, hiperatividade, impulsividade e problemas de sono. Capacidade intelectual é variável. Comportamentos autistas são previstos (25 a 60% dos casos), como por exemplo, redução do contato visual, comportamentos repetitivos e ritualísticos, dificuldade de interação social. Síndrome de Cohen Anomalia genética caracterizada por microcefalia, fenótipo facial típico, hipotonia, DI, miopia e distrofia da retina, neutropenia e obesidade truncal. É causada por mutação autossômica recessiva do gene COH1 (VPS13B), no cromossomo 8q222. ADNPM, microcefalia e deformidades musculoesqueléticas são presentes. Características: fissuras palpebrais em forma de onda, inclinada para baixo, hipertelorismo, sobrancelhas grossas, cabelo espesso, cílios longos e grossos, filtro muito curto, incisivos centrais superiores proeminentes, aparência de boca aberta devido a um lábio superior curto, hipoplasia maxilar, micrognatia, palato alto e estreito, raiz do nariz proeminente, ponta nasal bulbosa e lóbulos das orelhas grossos ou pequenos ou ausentes. Há deterioração progressiva da visão ao longo da vida, com início precoce (miopia progressiva). A leucopenia, especialmente a neutropenia, é comum. Deformidades musculoesqueléticas (cúbito valgo, geno valgo, cifose, escoliose, frouxidão ligamentar e hipermobilidade articular). Podem ter pregas palmares transversais únicas, sindactilia e lordose lombar. Comportamentos autistas estão previstos em cerca de 50% dos casos. Síndrome de Potocki-Lupski (SPL) Atraso do desenvolvimento da fala e linguagem, DI e distúrbios comportamentais são as principais manifestações clínicas da SPL. Ocorre por duplicação de 17p11.2 (vários genes podem estar envolvidos: RAI1, SREBF1, DRG2, LLGL1, SHMT1 ou ZFP179). Está associada a uma ampla gama de anomalias congênitas, oftálmicas, cardiovasculares, ortopédicas, orofaríngeas e renais, microcefalia e características faciais distintas, dolicocefalia, rosto triangular, testa larga, micrognatia, hipertelorismo, fendas palpebrais oblíquas e orelhas de implantação baixa. Além disso, uma característica interessante compartilhada pela maioria dos pacientes é um sorriso assimétrico. Outras alterações frequentes incluem ADNPM, disfagia orofaríngea, apneia central do sono, anomalias estruturais cardiovasculares e hipermetropia. O funcionamento intelectual varia de limítrofe a DI grave. A gama de comportamentos é ampla, com retraimento social, comportamentos repetitivos, obsessivo- compulsivos, hiperatividade e agressão, diminuição do contato visual, hipersensibilidade 20 sensorial, maneirismos, TDAH e incoordenação motora. Comportamentos autísticos ocorrem em 50% e 36% atingem critérios para diagnóstico de TEA. Diante o exposto, verifica-se a diversidade etiológica envolvida para risco do TEA. Conforme já apresentado, há centenas de genes mencionados como envolvidos, principalmente FOXP2, SPCH1, AUTS1, IMMP2L e RELN, utilizados neste capítulo como exemplos. O FOXP2, relacionado ao desenvolvimento da linguagem, é responsável pela codificação de uma proteína que ativa e desativa outros genes que desempenham papéis relevantes no desenvolvimento cerebral, incluindo o crescimento de células nervosas, a transmissão de sinais entre elas e a capacidade de conexões entre os neurônios (GRAHAM, FISCHER, 2015). Estudos de associação de todo o genoma encontraram outros genes envolvidos no desenvolvimento da linguagem e loci de suscetibilidade ao TEA como SPCH1 e AUTS1 (YOON et al., 2002). O IMMP2L foi identificado como o gene mais frequentemente associado ao TEA relacionado ao cromossomo 7 (MAESTRINI et al., 2010). O RELN é um gene com 65 exons localizado no 7q22, e está envolvido na migração de neurônios e conexões neurais (YOON et al., 2020). Ressalta- se que não apenas regiões codificantes, mas também regiões não codificantes de genes de risco foram relacionadas à etiologia do TEA. Shuid et al. (2020) apresentaram que há muitas publicações que implicaram a associação do TEA com inflamações, desregulação imunológica, disfunção de neurotransmissão, comprometimento mitocondrial, desregulação da sinalização celular, bem como alterações estruturais neuroanatômicas. Em estudo de revisão estes autores destacaram evidências da fisiopatologia do TEA, incluindo anormalidades na estrutura e função cerebral, ativação e neuroinflamação neuroglial, neurotransmissão glutamatérgica, disfunção mitocondrial e desregulação da via de sinalização da rapamicina, relatando que estes fatores moleculares e celulares contribuem para a patogênese do TEA, uma vez que podem afetar o desenvolvimento e a função do sistema nervoso central (SNC). Estudos têm demonstrado que durante períodos críticos do desenvolvimento do SNC, a exposição precoce a uma variedade de fatores ambientais (condições sociais, infecções, medicamentos, produtos químicos e agentes físicos) pode afetar o desenvolvimento neurobiológico, e se relacionar com TEA (MCPARTLAND, VOLKMAR, 2012; KNUESE et al., 2014; MASI et al., 2017; ROSE et al., 2018; BÖLTE et al., 2019; GIALLORETI et al., 2019; KLIN et al., 2020; HUS, SEGAL, 2021; MESLEH et al., 2021). Gialloreti et al. (2019) relataram que os fenótipos clínicos e biológicos heterogêneos observados no TEA sugerem fortemente que, em indivíduos geneticamente suscetíveis, os fatores de risco ambientais também se combinam ou sinergizam para gerar um “ponto limite” que pode determinar uma disfunção. A literatura tem apresentado como fator ambiental de risco para TEA: idade avançada dos pais, exposição a poluentes químicos, obesidade ou desnutrição materna, uso de suplementos alimentares de ácidos graxos sintéticos; redução de ácido fólico e 21 ferro, exposição pré-natal de inibidores seletivos de serotonina, medicamentos antidepressivos, drogas antiepilépticas, antibióticos, exposição a drogas ilícitas, infecções e ativação imunológica materna na fase pré-natal (TORDJMAN et al., 2014; LYALL et al., 2017; MASI et al., 2017; YOON et al., 2020; SHUID et al., 2020). Os dados sugerem que, pelo menos para um subconjunto de mulheres, a exposição a infecções durante a gravidez pode aumentar o risco de TEA e/ou outros distúrbios do SNC, dependendo do tempo de exposição gestacional, do tipo de agente infeccioso e da intensidade da resposta imune materna; especificamente, as infecções virais (LYALL et al., 2017). Um conceito predominante é que a ativação imunológica materna pode alterar a expressão de moléculas inflamatórias no feto em desenvolvimento e a desregulação imunológica materno-fetal pode interromper o desenvolvimento cerebral e a conectividade neural, trazendo efeitos de longo prazo sobre o desenvolvimento infantil (KNUESE et al., 2014). No período perinatal e pós-natal precoces são citados como fatores ambientais para TEA os eventos obstétricos negativos como: apresentação pélvica, pré-eclâmpsia, sofrimento fetal, prematuridade, corioamnionite, hemorragia intraparto aguda, dentre outros (MCPARTLAND, VOLKMAR, 2012; TORDJMAN et al., 2014). Outra questão digna de nota, refere-se à disfunção mitocondrial. Muitas anormalidades genéticas do TEA têm sido associadas à disfunção mitocondrial, incluindo anormalidades cromossômicas, mutação do DNA mitocondrial, deleções em grande escala e mutações em genes nucleares mitocondriais e não mitocondriais (ROSE et al., 2018). Os distúrbios mitocondriais podem resultar em disfunção do SNC que leva à regressão do desenvolvimento, dificuldade de aprendizagem, distúrbios comportamentais, sintomas gastrointestinais, convulsões, atrasos motores, fadiga e letargia (PALMIERI, PERSICO, 2010; MASI et al., 2017; SHUID et al., 2020). Segundo Masi et al. (2017) marcadores de disfunção mitocondrial estão significativamente correlacionados com a gravidade do TEA. O comprometimento do metabolismo energético mitocondrial tem sido proposto para desempenhar um papel na patogênese do TEA e influenciar os déficits sociais, comportamentais e cognitivos. Evidências de anormalidades metabólicas que indicam disfunção das mitocôndrias foram descritas, incluindo elevação do nível de lactato, piruvato ou alanina no sangue, líquido cefalorraquidiano ou cérebro, redução do nível de carnitina no plasma, nível anormal de ácidos orgânicos na urina e comprometimento da função mitocondrial β-oxidação de ácidos graxos. Anormalidades da relação lactato para piruvato creatina quinase, bem como alterações nos níveis de aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase, arginina e ubiquinona cisteína, tirosina, serina, carnosina e β-alanina também foram implicadas (SHUID et al., 2020; MESLEH et a., 2021). Caracterizar a heterogeneidade do TEA é ainda mais complicado pela ocorrência de comorbidades. Elucidar se a coocorrência de alterações ou traços clinicamente diagnosticáveis no TEA é uma comorbidade heterotípica verdadeira ou se estes são endofenótipos distintos é talvez uma das áreas mais urgentes de investigação (MAHAJAN, MOSTOFSKY, 2015 DE-LA-IGLESIA, OLIVAR, 2015). Um diagnóstico de TEA geralmente ocorre concomitantemente com outras condições que incluem a deficiência intelectual (50-70%), o TDAH (22-83%), as epilepsias (11-35%), a ansiedade (11-84%), a depressão, os distúrbios do sono (40-86%), as anormalidades do sistema motor e sensorial (70-90%) e da linguagem (FERNANADEZ SCHERER, 2017; LYALL et al., 22 2017; MASI et al., 2017; EISSA et al., 2018; HAVDAHL et al., 2021; LAMÔNICA et al., 2021; MESLEH et al., 2021; MINGINS et al., 2021). Cabe ressaltar que os percentuais de coocorrência variam em função das variáveis dos estudos, como por exemplo, faixa etária, sexo, condições sociais, tamanho de amostras, critérios de inclusão, dentre outros. Os transtornos de linguagem são frequentemente coocorrentes e até foram incluídos nos critérios do DSM-5 (RYLAARSDAM et al., 2019). Assim, a heterogeneidade clínica do TEA inclui não apenas a gravidade das principais características autistas, mas também a presença ou ausência de comorbidades neurocomportamentais. Mahajan e Mostofsky (2015) informaram que falta elucidar se algumas dessas condições concomitantes conferem sua própria responsabilidade genética ao TEA ou se a coocorrência comum de comorbidades significa fenótipos independentes, ou mesmo se esses são realmente comórbidos no contexto do TEA. Deficiência Intelectual (DI) A DI pode ocorrer como um fenômeno isolado ou associada a outros quadros clínicos. Muitas crianças com diagnóstico de TEA também apresentam DI como comorbidade e esta condição pode variar de 50 a 70% (HUS, SEGAL, 2021). Mingins et al. (2021) apresentaram que o funcionamento intelectual varia significativamente no TEA, com cerca de metade das crianças com quocientes de inteligência (QI) abaixo de 70, caracterizando a presença de DI. Há também evidências de variantes genéticas da etiologia do TEA, que incluem genes envolvidos em DI e esses, por sua vez, estão envolvidos em algumas síndromes genéticas estabelecidas (MASI et al., 2017; TYE et al., 2019). O quadro 1 exemplifica essa circunstância. Por exemplo, em uma síndrome determinada é possível verificar DI e comportamentos do espectro autista. Assim, sem o conhecimento de diferentes fenótipos sindrômicos, há a possibilidade do diagnóstico se concentrar somente no TEA, ou seja, muitas crianças, antes do diagnóstico de determinada síndrome ou DI, que tenham comportamentos do espectro acabam recebendo somente o diagnóstico de TEA. Hus e Segal (2021) ressaltaram que na última década houve uma tendência de redução do diagnóstico de DI e um aumento do diagnóstico de TEA e que este fenômeno pode explicar, entre outros fatores, o grande aumento recente de prevalência do diagnóstico do TEA. Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) O TDAH é definido como síndrome neurocomportamental que se caracteriza pela presença persistente de desatenção, hiperatividade e impulsividade, de etiologia multifatorial envolvendo fatores genéticos e ambientais (APA, 2013). É importante lembrar que há sobreposições genéticas substanciais entre essas condições (KLIN et al., 2020). Ambos os transtornos apresentam problemas de atenção, dificuldade de comunicação, impulsividade e graus variados de hiperatividade, que causam importantes problemas comportamentais, acadêmicos, emocionais e adaptativos (MASI et al., 2017; YOUNG et al., 2020; HAVDAHL et al., 2021; BOUGEARD et al., 2021). Tanto as crianças com TEA quanto aquelas com TDAH podem apresentar contato visual atípico, número reduzido das mudanças de olhar do parceiro de conversação para objetos/ações (vice-versa) e redução de intenções de comunicação. Essas situações aumentam o risco 23 de um viés diagnóstico para TEA sobre TDAH, especialmente quando atrasos motores e de linguagem adicionais estão presentes (KLIN et al., 2020). A coocorrência de sinais torna o diagnóstico diferencial precoce entre TEA combinado com TDAH e TDAH em si um processo não trivial (HUS e SEGAL 2021). Embora a Academia Americana de Pediatria estabeleça diretrizes para o diagnóstico de TDAH em crianças de 4 anos, é extremamente difícil obter um diagnóstico preciso em crianças menores de 7 anos (HYMAN et al., 2020). Mais estudos com foco no diagnóstico diferencial entre TEA e TDAH na primeira infância são claramente necessários (KLIN et al., 2020; YOUNG et al., 2020; HYMAN et al., 2020; HAVDAHL et al., 2021 BOUGEARD et al., 2021). Epilepsias TEA e as Epilepsias têm etiologias multifatoriais, incluindo fatores genéticos e ambientais, com forte evidência de anormalidades neurológicas subjacentes e compartilhadas (BESAG, 2017). A coocorrência de epilepsia e TEA decorre da ruptura de vias compartilhadas de desenvolvimento neurológico implicadas pelo número relativamente alto de genes associados a estas condições clínicas (PENG et al., 2021). Certas vias biológicas estão envolvidas em ambos, como regulação da transcrição, crescimento celular e regulação sináptica. No entanto, os mecanismos exatos envolvidos nesses dois quadros ainda precisam ser melhor elucidados (BESAG, 2017; MASI et al., 2017; LIBERALESSO, 2018; VELÍŠKOVÁ et al., 2018; TYE et al., 2019; HYMAN, et al., 2020). Algumas evidências sugerem que existem dois picos de início da epilepsia no TEA, na infância e adolescência e, a taxa de comportamentos autísticos na epilepsia é muito maior em indivíduos com DI (BESAG, 2017; TYE et al., 2019). Condições como TDAH, ansiedade e distúrbios do sono são comuns tanto nas epilepsias quanto no TEA (BESAG, 2017). Há também associação entre comportamentos autísticos e epilepsia nas síndromes genéticas, apoiando a ideia de etiologias compartilhadas (TYE et al., 2019). Várias síndromes podem apresentar comportamentos autísticos e epilepsia, por exemplo, Angelman, Esclerose Tuberosa, Rett, Smith-Magenis, dentre outras (Vide Quadro 1). As encefalopatias epilépticas infantis (EEI) referem-se a um grupo devastador de epilepsias graves da infância, clínica e etiologicamente heterogêneas, que se caracterizam por crises refratárias, bem como atividade epileptiforme ictal ou interictal, com frequente comprometimento do neurodesenvolvimento e mau prognóstico (BESAG, 2017; SRIVASTAVA, SAHIN, 2017; TYE et al., 2018; MARTINS et al., 2020; HERNANDEZ et al., 2021; TURNER et al., 2021). Há um impacto da própria EEI no desempenho das crianças, quanto a aprendizagem, interação, autonomia e independência, que pode concorrer com comportamentos autísticos e DI. A ocorrência de atividade epiléptica durante o período crítico de maturação cerebral interfere com o neurodesenvolvimento, resultando no atraso ou regressão, expectável para a patologia subjacente ou anomalia genética. Nessas, o pleiotropismo genético é significativo, não sendo possível estabelecer correlação direta entre genótipo e fenótipo. A mesma anomalia genética pode associar-se a fenótipos distintos e determinado fenótipo pode ser produzido por diferentes genes, conforme apresentado por Martins et al. (2020). O estudo de Srivastava e Sahin (2017) apresenta a compilação de um banco de dados de genes associados às EEI e ao TEA. As síndromes epilépticas genéticas podem ser agrupadas em EEI clássicas, síndromes genéticas específicas e cromossomopatias (MARTINS et al., 2020). Cabe ressaltar que a 24 precisão diagnóstica, nestes casos, é fundamental para o tratamento mais adequado, evitando ou reduzindo os efeitos deletérios para o futuro da criança. O Quadro 2 apresenta como ilustração, algumas das EEI quanto a definição e sinais clínicos. Quadro 2: Breve descrição de algumas das EEIs Síndrome de Dravet (Epilepsia mioclônica grave) EEI progressiva associada a convulsões de difícil controle. As manifestações iniciam no primeiro ano de vida, podendo ocorrer múltiplas convulsões durante o estado de vigília ou sono. Envolve DI, hiperatividade, impulsividade comportamentos autísticos, transtorno de linguagem, distúrbios do sono, perturbações na integração sensorial, e é acompanhada por estagnação e/ou regressão do desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM). Podem apresentar também falta de autonomia; problemas nas funções corporais automáticas (regulação da temperatura, diminuição da sudação, função intestinal lenta e frequência cardíaca rápida); infeções respiratórias recorrentes e otites; condições ortopédicas (deformidades dos pés e escoliose), observadas ao longo do tempo. Envolve genes que medeiam a transmissão sináptica como SCN1A (75%) e PCDH19. As crises são incialmente classificadas como clônicas, comprometendo metade do corpo, evoluindo para global, com ou sem febre. Posteriormente, associam-se crises mioclônicas generalizadas e a febre pode ser o gatilho. O EEG demonstra o clássico padrão interictal de hipsarritmia, caracterizado por atividade de base lenta e desorganizada, com descargas polimórficas de onda aguda, espícula, poliespícula, espícula-onda e poliespícula-onda mescladas por ondas lentas de elevada amplitude, sendo marcante a ausência de concordância de fase nos surtos de descargas e a ativação durante as fases iniciais do sono REM. Síndrome de West (SW) É a EEI ocorre entre o 3º-7º mês de vida. Caracteriza-se pela tríade: crises epilépticas de espasmos; atraso do DNPM e padrão de hipsarritmia. A etiologia é variada envolvendo malformações estruturais e causas genéticas. Destacando-se lesões cerebrais decorrentes de asfixia perinatal, malformações cerebrais, alterações do desenvolvimento cortical, AVC neonatal, infecções, encefalopatia hipóxico- isquêmica. Mutações em diferentes genes foram descritos. Há uma associação entre espasmos infantis e erros do metabolismo, e entre diversos outros genótipos bem caracterizados, como microcefalia grave autossômica recessiva com heterotopia perinodular e encefalomiopatia mitocondrial com ácido metilmalônico elevado. A regressão do desenvolvimento psicomotor acompanha 70-95% dos casos. Há previsão de DI em 90% e comportamentos autísticos entre 15-33%. O prognóstico é reservado, com elevada morbidade neurológica e mortalidade estimada em torno de 5% nos primeiros dois anos de vida. Crianças com diagnóstico e tratamento precoces têm melhor evolução. 25 Síndrome de Ohtahara Caracteriza-se por crises iniciadas nos primeiros meses de vida, destacando-se crises tônicas focais, posturais ou generalizadas, podendo se associar a crises clônicas focais, parciais simples e espasmos epilépticos. A etiologia é variada, e está relacionada com alterações estruturais do SNC, erros hereditários do metabolismo e anomalias genéticas. Vários genes foram relacionados (STXBP1, ARX, SLC24A22 e KCNQ2). O exame neurológico é alterado e há severo comprometimento do DNPM. A morbidade neurológica é elevada e a mortalidade pode atingir 50% ao final do primeiro ano de vida. Aproximadamente, metade evoluirá com síndrome de West e, uma parcela menor, com síndrome de Lennox-Gastaut. O EEG apresenta desorganização da atividade de base e padrão de surto-supressão, com frequente evolução para descargas polimórficas multifocais, hipsarritmia e ritmo recrutante epiléptico. Síndrome de Lennox-Gastaut Definida pela tríade: crises atônicas, tônicas e ausência atípica. Caracteriza-se por: epilepsia com vários tipos de crises (tónicas, atônicas, tônico-clônicas, mioclônicas e ausências atípicas), DI progressiva e complexos ponta-onda lentos no EEG. Corresponde a 5% das epilepsias infantis, com início entre o 1º e 8º anos de idade. A etiologia é estrutural (hipóxia perinatal, malformações cerebrais, displasias e distúrbios de migração neuronal) ou metabólica, embora sejam relatados casos criptogênicos, de menor morbidade neurológica. Alterações no funcionamento de genes (SCN2A, CDKL5, STXBP1) e variações do número de cópias (microduplicação 15q11–q13) têm sido descritas. Os sintomas envolvem convulsões diárias, perda de consciência por curto período, salivação e lacrimejamento excessivos. Inicialmente com desenvolvimento normativo, há a regressão das habilidades, em maior ou menor velocidade, em conjunto com o início das crises, que quase sempre aparecem sem febre e ficam descontroladas, a despeito do tratamento com anticonvulsivantes. Comprometimento severo do DNPM e DI é regra, além da associação com alterações da atenção, hiperatividade, agitação psicomotora, impulsividade e comportamentos autísticos. O diagnóstico diferencial deve ser estabelecido com as síndromes de West, Dravet, Doose e epilepsia parcial benigna atípica. Encefalopatia mioclônica precoce ou neonatal Também denominada Síndrome de Aicardi (AS). Refere-se a presença de crises epilépticas de início precoce (primeiras horas ou dias de vida), semiologicamente classificadas como mioclônicas focais ou maciças, envolvendo membros e eixo axial. São descritas, também, crises clônicas focais, parciais simples, tônicas, espasmos epilépticos e crises com fenômenos autonômicos. A SA é uma condição com uma tríade de características: agenesia do corpo caloso, anormalidades oculares e espasmos em flexão. A etiologia é variada, geneticamente heterogênea e não restrita ao cromossomo X, ocorrendo sempre na presença de lesões cerebrais graves, com possibilidade de se associar à hiperglicinemia 26 não cetótica ou outros erros inatos do metabolismo. O prognóstico é desfavorável, há elevada morbidade neurológica e a mortalidade é estimada em 50% ao final do primeiro ano de vida Síndrome de Doose Reconhecida também como epilepsia com crises mioclônica-atônicas ou mioclônica-astática. Classifica-se entre as síndromes epilépticas generalizadas criptogênicas ou sintomáticas, sendo frequente o polimorfismo de crises. Geralmente apresentam crises mioclônicas, mioclônicas-atônicas e tônico-clônicas generalizadas, bem como crises tônicas com início generalizado, ausências atípicas e estado de mal epiléptico não convulsivo. Ressalta-se a forte predisposição genética, com pelo menos 11 genes identificados. Tem início aproximadamente aos 7 meses com picos entre 2 a 5 anos. As crianças apresentam DNPM inicialmente normal antes do início das crises. O prognóstico é muito variável, havendo desde casos com remissão completa dos sintomas e controle das crises, até evoluções com crises refratárias e severo comprometimento do DNPM, hiperatividade e alterações de comunicação e cognitivas relevantes. Pior prognóstico relaciona-se ao início antes do 1 ano de vida. Epilepsia com crises focais migratórias da infância A encefalopatia maligna com crises focais migratórias da infância apresenta uma evolução catastrófica. Ocorre geralmente nos primeiros seis meses de vida. Evolui com crises refratárias, atraso global do DNPM, microcefalia e DI. Tem início nos primeiros 6 meses de vida. O EEG interictal é multifocal e mostra crises com início em várias regiões cerebrais. Vários genes são implicados. Esta encefalopatia epiléptica de início precoce grave é farmacorresistente. Síndrome de Landau-Kleffner (SLK) A SLK é também denominada afasia epileptiforme adquirida. Caracteriza-se por afasia e crises ativadas pelo sono, com ação nas regiões temporal ou parieto- occipital. Os critérios diagnósticos são clínico-eletrográficos. As manifestações clínicas podem variar desde uma afasia adquirida relativa até deterioração mais profunda da capacidade de comunicação. Um dos primeiros sinais é a agnosia auditiva e perda das habilidades expressivas. Pode se instalar de maneira abrupta ou de forma mais progressiva, no transcorrer de dias ou semanas. As habilidades de comunicação não-verbais, habitualmente, se encontram preservadas. Há, nesta síndrome, alterações de comportamento que podem mimetizar o quadro autístico, em especial nos pacientes que apresentam regressão visto que, em ambas há comprometimentos relevantes da linguagem e do comportamento. Os sintomas secundários incluem distúrbios psicomotores, déficits de atenção, hiperatividade, alterações do sono e agressividade. Essa síndrome regressiva afeta crianças após atingirem marcos de desenvolvimento precoces. A deterioração da linguagem e comprometimento das interações sociais podem levar a criança a uma regressão de suas capacidades e um estado de extrema apatia que, frequentemente, se alternam com períodos de comportamentos hiperativos. https://www.fcm.unicamp.br/fcm/neuropediatria-conteudo-didatico/epilepsia/encefalopatias-epilepticas#migrat%C3%B3rias https://www.fcm.unicamp.br/fcm/neuropediatria-conteudo-didatico/epilepsia/encefalopatias-epilepticas#Landau 27 Alterações funcionais decorrentes da presença de descargas epileptogênicas nas redes neuronais responsáveis pela linguagem falada são identificadas como causa direta das alterações do comportamento verbal. A atividade epiléptica intensa no lobo temporal esquerdo parece contribuir para o estabelecimento de uma encefalopatia hipometabólica, que se manifestaria por alterações no comportamento verbal e social. A afasia receptiva é seguida, após um pequeno intervalo de tempo, por afasia de expressão e mutismo. A regressão da linguagem ocorre em torno dos três aos cinco anos. Ansiedade As trajetórias do transtorno de ansiedade em crianças autistas são semelhantes às das crianças com transtornos de ansiedade isolados, muitas vezes apresentando-se como comportamentos externalizantes em crianças mais novas, que mudam para retraimento e evitação na adolescência (APA,2013). Young et al. (2020) apresentaram que cerca de 70% das crianças com TEA terão pelo menos uma condição psiquiátrica concomitante e 41% terão duas ou mais, sendo as mais comuns a ansiedade social, o TDAH, a depressão e o transtorno desafiador de oposição. Os padrões de comorbidade são semelhantes ao longo do ciclo de vida, no entanto, com indivíduos apresentando uma série de transtornos de ansiedade e humor, incluindo ataques de pânico, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos unipolar e/ou bipolar. Compreender a ansiedade em crianças autistas é essencial, pois ter um transtorno de ansiedade e ser autista está associado ao aumento de comportamentos autolesivos, bem como depressão e estresse dos pais em comparação com TEA isolado (MCPARTLAND, VOLKMAR, 2012; MINGIN et al., 2021). A ansiedade no TEA tem sido repetidamente associada às alterações da sensibilidade sensorial (MURIS, OLLENDICK, 2021; BOUGEARD et al., 2021). Há a hipótese de que indivíduos com TEA e QI mais alto têm probabilidade de níveis mais altos de ansiedade, pois o QI mais alto permite pensamentos abstratos e planejamentos, o que pode levar a maiores preocupações e ansiedade associada. Além disso, são mais capazes de realizar funções de ordem superior, o que promove preocupações com o passado, o futuro ou a autoeficácia (MINGIN et al., 2021). Bougeard et al. (2021) relataram que o déficit na comunicação/interação no TEA pode ser interpretado como um transtorno de ansiedade, enquanto, inversamente, pode impedir o relato de sintomas potencialmente atribuíveis a esta comorbidade. De fato, há evidências mostrando que a ansiedade e a ansiedade social em particular estão relacionadas ao Mutismo Seletivo (MS) (MURIS, OLLENDICK, 2021). O MS é um transtorno de ansiedade infantil complexo que se caracteriza pela dificuldade do indivíduo se comunicar verbalmente em determinadas situações sociais (APA, 2013). É uma condição psiquiátrica rara (entre 0,03 e 1,89%), tornando-se um foco de atenção clínica quando as crianças ingressam na escola. Oitenta por cento das crianças com MS também preenchem critérios diagnósticos para transtorno de ansiedade social, a comorbidade mais frequentemente estabelecida. MURIS, OLLENDICK (2021) apresentaram que desde que o MS foi incluído nos sistemas de classificação psiquiátricas, pesquisadores e clínicos têm lutado com o critério de exclusão relacionado ao TEA. 28 Depressão Vários estudos apresentaram que quadros depressivos podem advir coocorrentes ao TEA (FERNANADEZ SCHERER, 2017; LYALL et al., 2017; MASI et al., 2017; EISSA et al., 2018; HAVDAHL et al., 2021 MINGINS et al. (2021), mas os fatores que os levam a ter maior risco de coexistência ainda não são completamente compreendidos (DE-LA IGLESIA, OLIVAN, 2015; VAN HEIJST et al., 2020), pois são multifatoriais. Os fatores de risco propostos para transtornos depressivos concomitantes no TEA incluem fatores biológicos, ambientais, psicológicos e sociais, como histórico familiar, sexo, idade, nível de inteligência, habilidades verbais, relacionamentos sociais e vivências (DE-LA IGLESIA, OLIVAN, 2015; GOTHAM et al., 2015; DAY et al., 2020). Outro fator de risco proposto é a consciência do indivíduo com TEA sobre suas deficiências ou dificuldades (DE-LA IGLESIA, OLIVAN, 2015; DAY et al., 2020). As características previstas no TEA podem complicar a observação e o eventual diagnóstico com base nos sintomas depressivos (DAY et al., 2020; VAN HEIJST et al., 2020). GOTHAM et al. (2015) apresentaram que os sintomas comuns de depressão, como problemas de sono, dificuldade de concentração e comunicação podem ser facilmente mascarados por sintomas pré-existentes do TEA. Relataram que vários sintomas depressivos comuns na população geral tendem a ser observados em indivíduos com TEA comórbido, incluindo tristeza, choro, apatia, perda de interesse pelas atividades e diminuição do autocuidado, e que o aumento da automutilação e regressão das habilidades adaptativas podem ser sintomas particularmente significativos de depressão em indivíduos com TEA, com menor capacidade cognitiva. Outros possíveis sintomas depressivos mais específicos ou comuns no TEA podem incluir irritabilidade e agitação, aumento do isolamento social, além de mudança no caráter das obsessões (com as fixações assumindo um tom mais mórbido) e um aumento no comportamento compulsivo (DAY et al., 2020). Distúrbios do sono O sono é crítico para o desenvolvimento sináptico típico e maturação cerebral e suas disfunções estão correlacionadas com distúrbios metabólicos, imunológicos e comportamentais e a quadros clínicos diversos, como TDAH, ansiedade, depressão, impulsividade, epilepsias e TEA (FADINI et al., 2015; BESAG, 2017; TYE et al., 2018; LAMÔNICA et al., 2021). Uma série de distúrbios do sono pode estar presente em crianças com TEA, incluindo insônia (dificuldades no início, duração, consolidação ou qualidade do sono, resistência à hora de dormir, despertares noturnos ou incapacidade de dormir de forma independente), distúrbios da transição sono-vigília, distúrbios respiratórios do sono, parassonias (incluindo pesadelos, gritos ao acordar, movimentos complexos e sonhos) e distúrbios do movimento relacionados ao sono (movimentos rítmicos e síndrome das pernas inquietas) (SOUDERS et al., 2017; TYE et al., 2018). Os distúrbios do sono, sejam eles transitórios ou permanentes, têm efeitos prejudiciais na cognição, nos domínios da atenção e da memória, na regulação do humor e no comportamento, com repercussões negativas nas atividades funcionais do dia a dia (FADINI et al., 2015; SOUDERS et al., 2017; BOUGEARD et al., 2021; LAMÔNICA et al., 2021). Além disso, há uma relação direta entre a redução das horas de sono noturno 29 e a gravidade dos estereótipos comportamentais, dificuldades nas interações sociais e estresse familiar (TYE et al., 2018). Anormalidades do sistema motor e sensorial Quanto ao desempenho motor, atrasos e transtornos em diferentes domínios (motor grosso e fino, coordenação, controle postural e equilíbrio estático e dinâmico) têm sido amplamente observados em crianças com TEA (TYE et al., 2019; FULCERI et al., 2019; OHARA et al., 2019; KLIN et al., 2020). Ohara et al. (2019) relataram vários estudos demonstrando que uma disfunção motora precoce pode contribuir para déficits sociais e de comunicação posteriores em uma possível conexão causal entre esses dois conjuntos de habilidades. Macneil e Mostofsky (2021) reportaram deficiências motoras em alguns indivíduos com TEA que foram consistentes com dispraxia. A dispraxia do desenvolvimento pode ser vista em indivíduos com Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) e são quadros distintos. O TDC é considerado um transtorno discreto do neurodesenvolvimento que afeta equilíbrio, a coordenação motora grossa e fina. É caracterizado por dificuldade significativa em realizar habilidades motoras grossas e finas precisas e rápidas, incluindo problemas de coordenação, praxia, controle postural e equilíbrio em um nível apropriado para a idade, e sem lesão neurológica evidente (APA, 2013). Sinais precoces dessas dificuldades podem ser observados nos primeiros anos de vida, quando essas crianças apresentam atrasos na aquisição de marcos motores. Hus e Segal (2020) relataram que embora os critérios do DSM-5 permitam que as crianças tenham um diagnóstico duplo de TEA e TDC, ainda há falta de consenso se TDC e TEA são transtornos distintos com algumas características motoras compartilhadas, ou se alguns indivíduos com TEA têm TDC enquanto outros não. Verifica-se que a semiologia dos distúrbios neuromotores requer esclarecimento, e as trajetórias do neurodesenvolvimento das funções neuropsicomotoras não estão bem mapeadas no TEA, provavelmente porque há heterogeneidade dos quadros clínicos e, melhores especificações de deficiências motoras poderão identificar endofenótipos clinicamente relevantes (TYE et al., 2019; MACNEIL, MOSTOFSKY, 2021). Desta forma, cabe parcimônia ao associar as alterações motoras encontradas em alguns indivíduos com TEA como sendo apraxias ou dispraxias. Uma questão digna de nota refere-se ao diagnóstico de apraxia de fala na infância (AFI) e TEA. Conti et al. (2020) apresentaram que ambos são transtornos com critérios diagnósticos distintos e epidemiologias diferentes, no entanto, podem apresentar algum fundo genético comum, bem como características clínicas sobrepostas. Vale ressaltar que nem todo indivíduo diagnosticado com TEA e que não é verbal tem AFI. Há necessidade de avaliação de outros quesitos, principalmente o funcionamento intelectual. As “sensibilidades sensoriais” ganharam maior destaque com sua inclusão nos critérios diagnósticos revisados no DSM-5, embora variem entre os indivíduos com TEA (TAVASSOLI et al., 2018; TAYLOR et al., 2020; HERNANDEZ et al., 2021; SCHEERER et al., 2021). Hornix et al. (2019) apresentaram que compreender os mecanismos neurobiológicos subjacentes aos déficits de processamento sensorial é fundamental para identificar alvos para novas estratégias de intervenção direcionadas aos déficits do circuito neural, envolvendo o desenvolvimento do córtex sensorial, integração multissensorial e responsividade comportamental. Relataram que a trajetória do neurodesenvolvimento dos circuitos sensoriais está relacionada às mutações genéticas de 30 risco, em particular moléculas de adesão celular, diretamente correlacionadas com plasticidade sináptica. O comprometimento do processamento sensorial é uma disfunção neurológica que afeta recepção, modulação, integração, discriminação, organização de estímulos e respostas comportamentais aos estímulos sensoriais (FERNÁNDEZ- ANDRÉS et al., 2015; HORNIX et al., 2019; ROMERO-AYUSO et al., 2020), em diferentes modalidades, visão, audição, toque, olfato, gustação e integração multissensorial (TYE et al., 2018). Os problemas de modulação sensorial, conferem diferentes respostas, que são agrupadas em três padrões: hiporresponsividade sensorial (reações baixas ou ausentes aos estímulos); hiperreatividade sensorial (alta sensibilidade ou reações aversivas aos estímulos) e interesses sensoriais restritos (fascinação intensa por estímulos específicos, desejo por estímulos repetitivos ou ações sensoriais baseadas em partes e não no todo, rotações entre outros (ROMERO-AYUSO et al., 2020). Tye et al. (2018) relataram que cerca de 95% dos pais de crianças com TEA identificam comportamentos de sensibilidade sensorial atípicos em seus filhos e, muitas vezes, precocemente (TYE et al., 2018). Para Tavassoli et al. (2018) alterações da reatividade sensorial ocorrem em mais de 65% das crianças com TEA e em cerca de 5% da população infantil. Ressalta-se que a reatividade às sensações pode ser altamente dependente do contexto, com indivíduos parecendo hiperreativos em um cenário, mas hiporreativos em outro. Hernandez et al. (2021) verificaram que sensibilidades sensoriais também variam consideravelmente entre e dentro de indivíduos no espectro. Morris e Ollendick (2021) reportaram que as anormalidades do processamento sensorial podem ser uma classe especial dos padrões de comportamentos e interesses restritos e repetitivos (CIRR). Foi sugerido que os comportamentos repetitivos prototípicos e a resistência à mudança de crianças com TEA são frequentemente moderados por experiências sensoriais incomuns. O impacto do déficit na integração multissensorial reside em seus efeitos em cascata sobre a capacidade de detectar e focalizar informações importantes ao longo do desenvolvimento, com efeitos em todas as esferas do comportamento humano (TYE, et al., 2018). Os CIRR representam um dos domínios de diagnósticos para TEA, referindo- se a uma ampla gama de padrões comportamentais que incluem estereotipias, comportamentos autolesivos, manipulação repetitiva de objetos, insistência em rotinas e rituais (FULCERI et al., 2019; OHARA et al., 2019; KLIN et al., 2020). O Quadro 3 apresenta comportamentos atípicos em cada modalidade sensorial que exemplifica condutas, reações e ações de indivíduos com TEA. https://www.sciencedirect.com/topics/neuroscience/synaptic-plasticity https://www.sciencedirect.com/topics/neuroscience/synaptic-plasticity 31 Quadro 3: Comportamentos atípicos em cada modalidade sensorial Visual: Atipias no rastreamento visual. Contato visual restrito e/ou evitativo. Alteração no uso do campo visual (olhar periférico, inspeção de partes e não do todo). Redução do engajamento visual social. Hiperreatividade/hiporreatividade visual. Dificuldade na sensibilidade ao contraste. Déficits no processamento de forma e percepção de movimento. Deficiências de atenção espacial. Função oculomotora alterada; Incapacidade para desvincular visualmente de um estímulo para outro. Dificuldades no processamento de informações visuais. Auditiva: Atipias
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