Prévia do material em texto
O perfil do profissional na aviação Historicamente, o piloto é descrito como um trabalhador que exibe uma interação especial e diferenciada com o seu instrumento de trabalho (o avião) e com a função que exerce, dando um sentido diferenciado ao contexto existencial da sua atividade. No exercício de sua profissão, o piloto é capaz de experimentar intensa sensação de bem-estar no simples fato de voar, de ver o mundo de uma posição privilegiada. “Eles descrevem as sensações e imagens que tem no espaço, as noites estreladas, luzes, o sol, os oceanos, as nuvens, com poesia e até com intimidade” (FERREIRA et al., 1998, p. 18). A DIMENSÃO HUMANA DO PROFISSIONAL NA AVIAÇÃO Apesar de todos os riscos envolvidos na atividade aérea, este não parece ser um fator desmotivador para que pilotos deixem de se encantar e se excitar com a possibilidade de voar. Conforme analisa Maria da Conceição Pereira, em seu trabalho de Mestrado em 2006, há nessa atividade um sentido de busca pelo prazer e, em última análise, pelo poder, já que voar é uma façanha que nem todos conseguem alcançar. Assim, a noção de piloto se construiu ao longo da história e da sua própria cultura profissional muito mais do que como uma profissão, mas também como um estilo de vida, um estilo de ser e de existir no mundo. Assim como os aviões são projetados para funcionarem como máquinas perfeitas, desafiando de forma eficaz as leis da gravidade, os pilotos se veem e tendem a ser vistos como homens e mulheres impossibilitados de errar, com uma busca contínua pela perfeição, segurança e prudência em tudo que fazem. Suas decisões e ações em cabine têm repercussões diretas sobre a segurança da operação e sobre a manutenção da vida de todos que levam a bordo. De um lado, o prazer por voar e pelo poder de domínio de uma máquina complexa; de outro lado, a responsabilidade por tantas vidas e pela segurança de toda uma operação. Sem dúvida, esta é uma atividade de trabalho marcada pela ambiguidade, mas que, por isso mesmo, por toda complexidade envolvida, enfatiza-se ainda o desafio, o prazer e o poder envolto nessa relação de trabalho e, por que não dizer, nessa maneira do piloto ser e existir. Sobre isso, há muito Galle-Tessonneau (1975) chamava a atenção sobre o perigo relacionado aos reflexos dessa atividade tão ambígua e tão desafiadora: a percepção de invulnerabilidade que o piloto acaba construindo de si mesmo. Para esse autor, à medida que o piloto tende a enxergar o avião como uma extensão de si mesmo, naturalmente ele também tende a se apossar da perfeita performance dessa máquina. Por consequência, ele passa a se perceber e a desenvolver comportamentos avessos a qualquer tipo de fragilidade ou vulnerabilidade. O perigo disso está na repercussão que isso pode gerar à saúde física e emocional dele, pois ao se ver como alguém inatingível, alguém com decisões e ações absolutamente assertivas, sua capacidade de autopercepção diminui, favorecendo a omissão, ou mesmo a negação de suas experiências de mal-estar físico e mental, inabilitando esse piloto a emitir qualquer pedido de ajuda. CURIOSIDADE Patt (1987) refletiu sobre este efeito, dando-lhe o nome de “Síndrome Hiperdefensiva”. O autor assevera sobre a existência de personalidades que, embora sejam orientadas à execução pura de tarefas, elas tendem a desenvolver, como forma de responder às necessidades dessas tarefas, um sistema de defesa rígido na manifestação psíquica de afetos. Consequentemente, ao fechar as vias emocionais de manifestação da angústia, abrem-se as vias de manifestação no corpo, o que caracteriza o desenvolvimento das doenças psicossomáticas. A experiência de Patt na Psiquiatria Aeronáutica demonstrou que os pilotos tendiam a buscar ajuda somente quando já se viam desesperados por não encontrar soluções no meio extra aeronáutico ou quando não se sentiam mais motivados no trabalho. A DIMENSÃO TÉCNICA DO PROFISSIONAL NA AVIAÇÃO O trabalho dos pilotos é um trabalho prescritivo, ou seja, não oferta chances de se fazer muito diferente daquilo que é dito em seus manuais de operação. Por essa natureza, ele requer uma capacitação continuada, atualmente oferecida e enfatizada pelas próprias empresas aéreas. Anualmente, pilotos passam por treinamentos técnicos em simulador de voo para manutenção de sua proficiência em habilidades técnicas, relacionadas às suas capacidades cognitivas e psicomotoras, associadas ao controle e gerenciamento de sistemas na cabine de voo; e em habilidades não-técnicas, relacionadas às suas capacidades interpessoais e sociais, às habilidades mentais e de gestão de pessoas. O desenvolvimento contínuo de novas tecnologias de voo, com padrões de automação cada vez mais avançados, também exigem dos pilotos a proficiência nessas capacidades e, por isso, a participação em treinamentos é tão importante. Em um manual da Autoridade Civil de Aviação Australiana, de 2011, as habilidades técnicas são chamadas technical skills e as não-técnicas de non- technical skills. Todas elas contribuem para o desenvolvimento de uma aviação segura e operacional, uma vez que essa aviação representa um sistema sociotécnico complexo. Entre asnon-technical skills, são também trabalhadas competências como: tomada de decisão, comunicação, trabalho em equipe, consciência situacional, além do gerenciamento de estresse e da carga de trabalho. As novas tecnologias de voo, marcadas pelo alto nível de automação em cabine, diminuíram consideravelmente as exigências físicas da tarefa, em termos de dispêndio biomecânico, em razão da substituição daquela atuação mais “pé e mão” do piloto por sistemas elétricos, hidráulicos e pneumáticos da própria aeronave. No entanto, em que pese a diminuição dessa carga física de trabalho, viu-se um aumento das exigências cognitivas, demandadas pelas necessárias configurações de softwares e pelo aumento no volume de informações a serem processadas, disponíveis em instrumentos no painel do avião. A própria solicitação de autorizações de tráfego aéreo requer a transferência de informações para o sistema automático de voo, no qual são acionados switches e demais dispositivos, os quais requerem uma atuação cognitiva mais sensível do piloto. Segundo o National Transportation Safety Board, de 2010, as novas tecnologias de voo, denominadas tecnologias glasscockpit, modificaram toda uma formalística de planejamento e monitoramento de voo, visando o aprimoramento da segurança operacional e, logicamente, a redução de custos financeiros. É preciso olhar criticamente para esse aumento das exigências cognitivas em voo, tendo em vista que, em uma situação que exija análise, decisões e ações rápidas, a quantidade de informações a serem processadas em curto intervalo de tempo pode levar o piloto a uma sobrecarga de trabalho que mais o atrapalhe do que o ajude na resolução de problemas. Isso faz da automação um elemento a mais de complexidade e risco na atividade aérea, risco esse que necessita ser mitigado por meio da vivência exaustiva de treinamentos que confiram padronização e massificação de procedimentos pelos pilotos. Esses são recursos importantes no processo de aprendizagem do profissional de aviação, que visa a otimização de tempo numa necessidade de rápida tomada de decisão, por exemplo. Outro ponto a ser abordado como decorrência da introdução das tecnologias mais avançadas de voo é a nova interface homem-máquina que se instaurou. Desde a década de 1960, por exemplo, a cabine de comando sofreu alterações na sua composição de pessoal. De dois pilotos, um mecânico de voo, um telegrafista e um radionavegador, passou-se a apenas dois pilotos e, a depender do estilo de aeronave, aceita-se até mesmo um único piloto. O que está em questão aqui não é somente a performance de uma máquina, mas também uma nova lógica no desempenhar de uma função a bordo e nas novas circunstâncias a serem consideradas à luz da segurança de voo. Dentroda filosofia glasscockpit, voar passou a ser também, além de um processo de destreza “pé e mão”, mais um processo de gerenciamento de sistemas e dados, de sua interpretação e de sua monitoração. Cabe aqui enfatizar que, apesar de tanta tecnologia suportando as análises, decisões e ações do piloto em voo, ainda assim é o piloto quem detém conhecimentos, habilidades e atitudes treinadas para controlar essa tecnologia. Por isso, ele continua representando a inteligência capaz de adaptar e responder eficazmente a soluções de problemas, gerenciando de forma flexível as condições adversas. Segundo Abreu Junior, em seu artigo Automação no cockpit das aeronaves: um precioso auxílio à operação aérea ou um fator de aumento da complexidade no ambiente profissional dos pilotos?, de 2008, a introdução das tecnologias de automação não destituiu o piloto do poder de autoridade sobre os sistemas da aeronave, e ainda é ele quem garante a qualidade da operação e da segurança de voo, mantendo funcional e em perfeito equilíbrio a nobre equação homem-meio-máquina. Agora é a hora de sintetizar tudo o que aprendemos nessa unidade. Vamos lá?! SINTETIZANDO Nessa unidade, iniciamos nosso trajeto introdutório à dimensão humana na atividade aérea falando sobre personalidade e sua influência sobre a performance humana. Abordamos o modelo dos Cinco Grandes Fatores, muito utilizado no âmbito da avaliação psicológica entre pilotos, e o desempenho humano na aviação à luz da personalidade, atitudes e comportamentos. Prosseguimos falando sobre motivação e algumas principais teorias da motivação humana. No tema, também abordamos o voo como fator motivacional entre pilotos, haja vista ser esta uma atividade promotora de prazer e bem-estar para essa categoria profissional. Em seguida, discutimos sobre comportamento nas empresas e conversamos sobre a importância do suporte organizacional para o comportamento saudável e produtivo entre indivíduos e equipes de trabalho, bem como ações organizacionais que promovam reconhecimento e crescimento profissional, e relações socioprofissionais saudáveis. Tão importante quanto o comportamento nas empresas foi falar sobre a importância de as empresas aéreas terem uma performance eficiente e eficaz na aviação, a fim de manterem suas relações custo-benefício de forma equilibrada com a saúde e a qualidade de vida de seus profissionais, mantendo sempre um balanço, também equilibrado, entre produção e proteção (segurança de voo). Por fim, discutimos sobre o perfil do profissional na aviação nas suas dimensões humana e técnica, concluindo que na atividade aérea, prazer, bem- estar, técnica, padrão e exigência são facetas de uma mesma moeda e que devem ser cuidadosamente trabalhadas para manutenção não só da segurança de voo e da operacionalidade da atividade, mas também do bem-estar completo desse profissional que faz a aviação acontecer.