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A Vida tem Sempre Razão - Silvio Abreu

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ESPAÇO 
Silvio Abreu* 
& CRÍTICA/urbanismo 
'Â vida tem sempre razão. 
O arquiteto, não" 
A comemoração do centenário de nas-
cimento de Le Corbusier, marcada entre 
nós por uma série de eventos, constitui 
ocasião ideal para uma reavaliação crítica 
de sua obra, de suas ideias e, conjunta-
mente, avaliar sua persistente influência 
sobre a Arquitetura e o Urbanismo brasi-
leiros. Trata-se, na realidade, de um indis-
pensável acerto de contas com aquele que 
foi, inegavelmente, o arquiteto do sécu-
lo, com profundas ligações com o Brasil e 
o desenvolvimento da arquitetura moder-
na brasileira, e cujo espectro rigoroso con-
tinua a assombrar os desvãos dos brises, 
os cantos sombreados de nossos pilotis e 
os jardins mais ou menos floridos de nos-
sas superquadras. 
O legado de Le Corbusier para a arqui-
tetura moderna brasileira é inconteste. 
Além de farta bibliografia pregressa, do-
cumentando prolongado intercurso, uma 
série de trabalhos recentes tem ilumina-
do, sob novo enfoque, suas relações com 
obras-chave da mesma, como o prédio do 
Ministério da Educação e Saúde e o pro-
jeto da Cidade Universitária do Rio de Ja-
neiro, e com o desenvolvimento tanto da 
1'escola carioca1', a partir do final da déca-
da de 30, quanto do chamado "brutalis-
mo paulista'1 a partir dos anos 50. Parece 
haver certo consenso quanto a isso. Entre-
tanto, com o urbanismo as coisas não ocor-
rem de forma tão tranquila e mais neces-
sário se torna o acerto de contas quando 
notamos o acúmulo de equívocos que tem 
permeado a avaliação de seu legado para 
o projeto e a construção da cidade brasi-
leira. 
A avaliação tem oscilado da exaltação 
total à contestação indignada da impor-
tância de sua contribuição, ambas posições 
acríticas, emocionais e, consequentemen-
te, de escassa utilidade para o debate ar-
quitetônico. A primeira posição conten-
ta-se com o panegírico, a elegia, e as lem-
branças pessoais do contato com o mestre 
ou com suas ideias são acalentadas ora com 
nostalgia, saudosas do que teriam sido os 
melhores anos de nossas vidas, ora com 
rancor dos que ousam enodoá-los. Poste-
riormente, o filho de pródigo passa a par-
ricida, e são atribuídas a Le Corbusier to-
das as maztlas recentes da arquitetura e 
da cidade brasileiras. Passam a ser debita-
das em sua conta exclusiva as deficiências 
dos grandes conjuntos habitacionais que 
infestaram a periferia da cidade brasileira 
nos últimos 25 anos, os centros cívicos va-
zios de civismo e de arquitetura, as bru-
tais intervenções viárias, a destruição ge-
neralizada do tecido urbano, os problemas 
de Brasília e, até, a notória má qualidade 
de vida em nossas cidades. Nesses casos, 
a reação vem com o desespero e a fúria da-
queles que, sentindo-se traídos, investem 
cegos contra o antigo objeto de seu desejo. 
Obscuro objeto. Na realidade, esta ir-
racionalidade parece alimentada por uma 
prolongada relação amor-ódio que turva 
a análise, azeda o debate e impede a emer-
gência de uma atitude mais objetiva frente 
a Le Corbusier, ao movimento moderno 
no Brasil e à própria Arquitetura. Como 
bem nota Comas, somos sentimentais. 0 
panegírico e a catarse se unem para trun-
car o conhecimento da realidade urbana 
brasileira, de seus processos de transforma-
ção, da influência inegável que sobre eles 
exerceu a ideologia do movimento moder-
no, e das possibilidades de utilização cria-
tiva desse legado para a construção de uma 
cidade melhor. 
A postura tranquila e lúcida de Lúcio 
Costa, ilustrada por numerosos depoimen-
tos sobre o processo que testemunhou e 
pessoalmente avalizou, aparece como uma 
exceção entre os arquitetos das primeiras 
gerações do movimento moderno brasilei-
ro. Entre as novas gerações, o fascínio se 
mescla à repulsa, alimentado por alguma 
desinformação, leituras equivocadas, per-
sistentes preconceitos ou meias-verdades. 
Estamos quase todos no mesmo barco e, 
quando mais avançamos, é na direção de 
um sentimento difuso e relativamente ge-
neralizado de que Le Corbusier, tendo si-
do o maior arquiteto do século, foi ao mes-
mo tempo seu pior urbanista. 
Vamos com calma. As coisas não são tão 
dicotômicas assim, mesmo numa persona-
lidade tão complexa, dividida e torturada 
como Le Corbusier, engenheiro da socie-
dade e artista, demiurgo e poeta, luz e 
sombra, razão e paixão tão bem ilustradas 
no seu desenho-chave de Apolo e Medu-
sa. E as coisas não podem ser assim justa-
mente em Le Corbusier, cuja obra segue 
uma trajetória onde arquitetura e urbanis-
mo, tipologia e morfologia urbana 
encontram-se tão indissoluvelmente liga-
das, da Casa Citrohan do primeiro pós-
guerra até as sucessivas "Unités" de Mar-
selha em diante. 
Em função disso, é conveniente pedir 
emprestado ao mestre um pouco de seu 
racionalismo, evitando cuidadosamente 
recaídas messiânicas, para ajudar a escla-
recer um pouco as coisas. Comecemos por 
descrever e analisar resumidamente sua ex-
tensa produção urbanística, em projetos, 
obras e escritos, discriminando as ideolo-
gias e os paradigmas de projeto que a sus-
tentaram, confrontando o discurso à prá-
tica e procurando, em meio ao formidá-
vel acervo legado pelo seu trabalho, des-
cobrir os laços explícitos e implícitos que 
o ligam ao urbanismo moderno brasileiro 
e suas iéias de cidade. > 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 59 
ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo 
ville contemporaine, 22, plano de área urbana 
casa Citrohan, 22 
50 anos em 5 
A teoria urbanística de Le Corbusier 
desenvolve-se basicamente em paralelo 
com suas explorações arquitetônicas. Po-
demos periodizá-la sumariamente, como 
Tim Benton, em quatro fases distintas, 
aceitando certas simplificações que as pe-
riodizações exigem. Até a 1 * Guerra, ob-
servamos um interesse pelo desenho urba-
no pitoresco, sob influência de Camilo Sit-
te e do movimento da Cidade Jardim de-
rivado de Howard, rapidamente assimila-
do em toda a Europa nas duas primeiras 
décadas do século. Para nosso objetivo, não 
demandam maior atenção. 
Nos anos 20, Le Corbusier desenvolve 
sua teoria cartesiana da "Ville Contempo-
raine" como solução diagramática para os 
problemas de trafego, moradia, lazer e tra-
balho da metrópole moderna, através da 
separação de funções geometricamente or-
ganizadas, abrigadas em protótipos arqui-
tetônicos definidos, num esforço de racio-
nalização, sistematização e ordenação ló-
gica da estrutura urbana. Ela se beneficia 
das explorações arquitetônicas do período 
(Sistema DOMINO e Casa Citrohan) e re-
torna dialeticamente a elas com os proje-
tos para Pessac, Liga das Nações e para a 
série de casas burguesas dos anos 20. Está 
esboçada arquitetonicamente em "Vers 
une Architecture" e claramente explicita-
da em "Urbanisme". 
Do final dos anos 20 até a 2 f Guerra, 
produz um conjunto de teorias, projetos 
e atitudes relacionadas à ideia da "Ville 
Radieuse" ("Ville Radieuse", planos para 
Buenos Aires, Montevideu, São Paulo e 
Rio de Janeiro, Plano Obus para Argel, Ci-
dade Linear Industrial, Nemours e os 
"Trois Établissements Humains"). Nesta 
fase, a preocupação transcende a cidade f i -
nita para abarcar o padrão de vida, traba-
lho, locomoção e lazer no território como 
um todo, através de modelos regionais, 
quase geográficos. O esquematismo geo-
métrico cede lugar a uma abordagem mais 
sistémica, "orgânica", voltada para mode-
los de crescimento ilimitado, apoiado pe-
lo aparelho ideológico fornecido pelos 
CIAM, empalmado por ele a partir do 4? 
Congresso. A fase "branca" do purismo 
dá lugar à exploração sistemática do "pan 
de verre" e à busca de tectonicidade. As 
teorias urbanísticas aparecem em "Préci-
sions...", são detalhadas em "La Ville Ra-
dieuse", "Sur les 4 Routes" e "Les Trois 
Établissements Humains", adquirindo es-
tatuto de corpo de doutrina na edição da 
Cartade Atenas. 
A fase após-2* Guerra é marcada, por 
60 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
silvio abreu 
um lado, pelo desenvolvimento e aplica-
ção dos princípios da "Ville Radieuse" em 
uma série de projetos e planos parciais ou 
totais, e, por outro lado, por sua prolon-
gada experiência em Chandigarh. Exceção 
feita ao trabalho para Chandigarh (mes-
mo assim muito concentrado no Capitó-
lio), assistimos a uma concentração pro-
gressiva na "Unité" como unidade habi-
tacional de escala ampliada, prototípica do 
novo modelo urbano, em situações de re-
novação e expansão do tecido, e na cria-
ção de novas cidades (planos para Marse-
lha, Saint-Dié, La Rochelle-Pallice, Stras-
burgo, Bogotá, Firminy, Meaux, Berlim...). 
Em arquitetura, desenvolve os estudos do 
Modulor como sistema de proporções uni-
versal, das sucessivas "Unités" e das obras 
maduras da fase brutalista, deixando aber-
ta uma série de caminhos com os projetos 
inacabados da década de 60. Suas ideias 
urbanísticas se encontram condensadas em 
um quase-testamento, "Maniete de Pen-
ser 1'Urbanisme". 
Vale a pena descrever em maior deta-
lhe alguns desses projetos, exemplares en-
quanto modelos de suas ideias urbanísti-
cas. 
Uma cidade feita para o su-
cesso 
O primeiro dos grandes projetos urba-
nos é a "Ville Contemporaine", apresen-
tada na seção de Arte Urbana do Salão de 
Outono de 22, em Paris. Ignorando olim-
picamente as diretrizes do programa, vol-
tado basicamente para o mobiliário urba-
no — luminárias, fontes, bancos, quios-
ques —, Le Corbusier propõe o desenho 
de uma fonte, mas dispondo, ao seu re-
dor, um esquema urbano completo para 
uma cidade contemporânea de três mi-
lhões de habitantes. 
O plano é impressionante, megaloma-
níaco mesmo, ocupando uma área cerca de 
quatro vezes maior que Manhattan. O ma-
pa fundo-figura apresenta uma composi-
ção que pode ser lida como uma tapeça-
ria persa. O traçado é simétrico e forte-
mente centralizado, a partir de uma ma-
lha básica de 400/400 m dividida por dois 
eixos monumentais, norte/sul e leste/oes-
te, ocupados por superautopistas. No cen-
tro estão 24 arranha-céus cruciformes de 
60 pisos, dedicados aos negócios e à ad-
ministração da cidade. Quatro dessas tor-
res enquadram um grande centro de in-
terconexão de transportes, em vários níveis, 
no cruzamento dos eixos, separando ver-
ticalmente o nó de circulações, com um 
inacreditável aeroporto-suicida no último 
nível. 
Ao redor do coração administrativo, de 
negócios e de comunicações, são localiza-
das habitações para os cidadãos de elite, 
que Le Corbusier identificava como os ca-
pitães de indústria, cientistas, intelectuais, 
artistas e, obviamente, arquitetos. As ha-
bitações são de dois tipos. Dispostas sime-
tricamente a partir do centro, estão barras 
denteadas de 12 pisos (os "rédents"). Mais 
além, estão blocos perimetrais de mesma 
altura (os "Immeubles-Villa"), formando 
um tecido regular de ruas e quadras com 
grandes pátios centrais coletivos. Os dois 
tipos consistem em apartamentos duplex 
superpostos, baseados nos princípios da 
Casa Citrohan, e fartamente detalhados 
nos "Immeubles-Villa", com sua sala de 
duplo pé-direito e organização em "L" ao 
redor de um grande terraço ajardinado, co-
mo autênticas Villas reunidas em um edi-
fício coletivo. 
A área mais densa do plano é cercada 
por um extenso e relativamente indiferen-
ciado cinturão verde, incorporado à cida-
de do lado oeste como parque urbano. A 
leste, está a zona industrial, segregada da 
cidade e tangenciada pela via férrea. A sul 
e sudoeste, na periferia do plano, lotea-
mentos tipo cidade-jardim destinados à 
classe operária são sumariamente apresen-
tados. 
O esquema é claramente centralizado 
e hierarquizado. "Ordenar é classificar", 
pontificava axiomaticamente Le Corbusier. 
A recíproca é verdadeira: as diversas fun-
ções da cidade administrativa e comercial, 
residencial, industrial, circulação e lazer, 
são metodicamente classificadas e rigoro-
samente segregadas. A forma da cidade re-
flete um modelo social igualmente cen-
tralizado e hierárquico. Os arranha-céus de 
escritórios que a dominam constituem 
centros seculares de poder, símbolos de au-
toridade moral, coincidente, no caso, com 
o poder económico e a burocracia. O sim-
bolismo é evidente no desenho do plano, 
onde ocupam a seção áurea dentro do du-
plo quadrado do conjunto da cidade e em 
sua volumetria, onde as torres de cristal, 
descritas liricamente por Le Corbusier, 
aparecem como equivalentes modernos 
das catedrais ou uma versão altamente ra-
cionalizada das ideias de "Stadtkrone", de 
Bruno Taut. 
Das imagens da cidade, fartamente ilus-
tradas através de perspectivas, se despren-
de uma forte exaltação da modernidade, 
representada por seus símbolos mais po-
derosos à época (aviões, automóveis, 
arranha-céus), aliada ao poder da razão co-
mo elemento ordenador do mundo, atra-
vés da geometria. Dessa forma, a "Ville 
Contemporaine" deve ser interpretada co-
mo um discurso ideológico sobre a cida-
de e um pronunciamento de vanguarda 
tanto quanto um projeto urbanístico con-
creto. A crítica, consequentemente, deve 
estender-se aos três aspectos. 
Apesar de sua imagem visionária, a 
"Ville Contemporaine" não era para ser 
entendida como projeto utópico para um 
futuro iluminado e distante, mas como 
um verdadeiro modelo para a transforma-
ção da cidade contemporânea, válido uni-
versalmente. Trata-se de uma cidade ca-
pitalista de elite, com os princípios fun-
cionalistas e mecanicistas que regiam a 
produção incorporados à organização do 
espaço e, consequentemente, à esfera do 
consumo. As influências presentes em seu 
projeto são inúmeras, algumas comuns às 
outras fontes do movimento moderno, ou-
tras peculiares à formação corbusiana. 
E evidente a influência direta da "Ci-
dade Industrial" de Tony Garnier no ri-
goroso zoneamento de funções e no insis-
tente apelo às imagens da modernidade 
expressa pelas formas da Revolução Indus-
trial. O plano reflete a admiração pelos 
trabalhos de "regularização" de Paris le-
vados a cabo pelo prefeito Haussmann ao 
tempo de Napoleão I I I , clarificando sua 
estrutura urbana através da abertura de 
avenidas e fazendo a cidade respirar atra-
vés de um complexo sistema de parques 
e jardins. A referência aos "Boulevards à 
rédents" de Eugene Hénard é explícita no 
desenho dos setores residenciais, e a reifi-
cação dos valores naturais do verde, do sol 
e do espaço livre como "alegrias essenciais" 
acompanha as ideias higienistas e natura-
listas do século XIX, e relaciona a "Ville 
Contemporaine" ao movimento da Cida-
de Jardim. 
Segundo Le Corbusier, existem momen-
tos onde os ditames da "razão pura" são 
requeridos para resolver e clarificar confli-
tos intoleráveis. O caso da cidade contem-
porânea, premida pela industrialização, 
motorização e crescimento populacional, 
seria um desses. Sua salvação só poderia 
se dar com os instrumentos fornecidos pelo 
"Novo Espírito", baseado na razão, na geo-
metria e na industrialização, a revolução 
do urbanismo substituindo a revolução so-
cial inevitável. Essa revolução seria condu-
zida por uma elite esclarecida, no topo do 
qual estaria o arquiteto-urbanista, demiúr-
gico, engenheiro da sociedade, ditando e 
conduzindo sua transformação através da 
arquitetura. 
A fé na razão como elemento de clari-
ficação e ordenação do mundo nos reme-
te à tradição humanista ocidental, passan- > 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 61 
ESPAÇO & CRITICA/urbanismo 
m 
plano voisin para paris, 25, maquete plano voisin, diagrama 
plano urbanístico para o rio, 29 
plano urbanístico para são paulo, 29 
62 
do pelo positivismo, o Iluminismo e pela 
tradição clássica francesa. A razão envolve 
geometria, uma geometria rigorosa("A 
cultura é um estado de espírito ortogo-
nal"), feita de linhas retas, que constituem 
o caminho do homem, pois este tem um 
objetivo e sabe onde quer chegar, ao con-
trário do asno, dado a sinuosidades. O 
apego a esta geometria feita de grandes ei-
xos, simetrias e malhas reguladoras orto-
gonais vincula-o à tradição "Beaus-Arts". 
O plano da "Ville Contemporaine" cons-
titui um ensaio de desenho total e a cul-
minância de uma tradição compositiva co-
dificada pela "Ecole" ao longo do século 
XIX. 
Essa tradição se conjuga com a tradição 
do novo. Os eixos monumentais e a "clas-
sificação" racional do espaço urbano t i -
nham função de facilitar a locomoção. A 
"Ville Contemporaine" é feita para o su-
cesso, pois a cidade para a velocidade é 
uma cidade feita para o sucesso. Isto faz 
parte de uma retórica maior, baseada na 
suposição paradoxal de que os automóveis, 
apesar de terem contribuído para a des-
truição e inviabilidade da cidade europeia, 
poderiam ser explorados como instrumen-
tos de sua salvação, dentro de um sonho 
"fordiano" de mobilidade individual 
total. 
A tradição do novo passa igualmente 
pela utilização de uma estética "purista", 
feita de formas puras, pela aceitação e exal-
tação da dimensão metropolitana, e pela 
proposição original de uma Cidade Jardim 
vertical. Ao contrário dos seguidores do 
movimento, que previam a descongestão 
da metrópole com a criação de cidades-sa-
télites de baixa densidade, Le Corbusier 
defendia a concentração e o aumento de 
densidade através de edifícios em altura, 
perseguindo objetivos aparentemente ex-
cludentes: incrementar a densidade do te-
cido urbano, reafirmar a primazia de seu 
centro, evitar a dispersão suburbana e, ao 
mesmo tempo, trazer a natureza para den-
tro da cidade. 
Não parece coincidência que o projeto 
fosse pensado para uma cidade com apro-
ximadamente a mesma população de Pa-
ris nos anos 20. No horizonte do projeto, 
estava claramente delineado o perfil da ca-
pital francesa e do sonho corbusiano de 
dotá-la de um centro de negócios à escala 
mundial, renovando conjuntamente boa 
parte de seu tecido. 
Três anos depois, Le Corbusier tornaria 
explícita essa associação, com a exibição si-
multânea de gigantescos dioramas da 
"Ville Contemporaine" e de seu "Plan 
Voisin" para Paris, num anexo do Pavilhão 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
M 
Silvio abreu 
"Esprit Nouveau" (ele próprio um protó-
t ipo da unidade habitacional do 
"Immeuble-Villa" de 22) construído pa-
ra a Exposição de Art Déco de Paris, em 
1925. Os mesmos princípios tipo morfo-
lógicos e ideológicos eram aplicados a um 
ambicioso projeto de reestruturação do 
centro de Paris, envolvendo a demolição 
de quase todo o tecido entre o Sena e 
Montmartre, com a preservação de monu-
mentos de interesse museológico, e a cons-
trução de uma cidade de negócios como 
coração do capitalismo francês, entre lar-
gas avenidas e extensas áreas verdes. 
O plano, que leva o nome de seu pa-
trocinador, não por acaso o cartel fabrican-
te de aviões e automóveis Voisin, propõe -
se como solução radical para todos os pro-
blemas funcionais, tecnológicos e ambien-
tais de Paris, ilustrando na capital euro-
peia por excelência a aplicabilidade de seu 
modelo para a metrópole moderna. São 
utilizados o mesmo arranha-céu crucifor-
me, os blocos denteados, o padrão viário 
ampliado e as áreas verdes contínuas da 
"Ville Contemporaine". 
O caráter panfletário e polémico, de 
projeto manifesto, especialmente agudiza-
do quando de sua aplicação sobre Paris, 
a cidade-luz, não deve esconder a nature-
za operativa das propostas. Através da 
"Ville Contemporaine" e do "Plan Voi-
sin", e da sistematização apresentada na 
publicação de "Urbanisme" em 25, Le 
Corbusier adquire não apenas notorieda-
de pública e publicidade sobre seu traba-
lho e ideias, colocando-se na vanguarda do 
movimento moderno europeu, como des-
cobre, a partir das investigações desenvol-
vidas, muitas das certezas, regras e para-
digmas de projeto que fundamentarão sua 
obra futura, em arquitetura e urbanismo. 
O subdesenvolvimento é 
curvo? 
A passagem da hierárquica "Ville Con-
temporaine" de 22 à evolutiva "Ville Ra-
dieuse" do início da década de 30 reflete 
mudanças significativas na maneira como 
Le Corbusier concebe a cidade moderna. 
Essas mudanças estão relacionadas às suas 
experiências com as megaestruturas linea-
res propostas em 29, em sua viagem à 
América do Sul, e com o conhecimento 
das experiências de cidade linear dos ur-
banistas soviéticos nos anos 20. A viagem 
à América do Sul parece constituir um 
marco. 
No verão europeu de 29, Le Corbusier 
visita a Argentina, Uruguai e Brasil, so-
brevoando parte do território, proferindo 
palestras e estabelecendo contatos em Bue-
nos Aires, Montevideu, São Paulo e Rio 
de Janeiro. Na volta à Europa, organiza 
um sumário das palestras e de algumas 
propostas urbanas, editadas no livro "Pré-
cision sur un état présent de 1'Architectu-
re et de 1'Urbanisme". Ao contrário dos l i -
vros anteriores, não é didático nem enfá-
tico, aparecendo como uma espécie de tri-
buto ao Novo Mundo, inspirado pela es-
cala e esplendor da paisagem. Os proje-
tos apresentados são caudatários desse sen-
timento, mostrando um urbanismo épico, 
em resposta aos desafios da natureza. 
Os esquemas anteriores parecem-lhe de-
masiado rígidos, sem a vitalidade e a flexi-
bilidade necessárias para responder a con-
dições naturais, culturais e sócio-econômi-
cas tão distintas. As novas respostas consis-
tem em partidos urbanísticos diagramáti-
cos e sintéticos, de grande força, clareza e 
simplicidade conceituai, quase gestos épi-
cos sobre a paisagem. 
Em Buenos Aieres, aproveitando as ave-
nidas e diagonais convergindo para o por-
to, propõe a utilização da margem do rio 
como centro cultural, administrativo e co-
mercial, redesenha o porto e faz a proje-
ção monumental de cinco torres gémeas 
sobre o Rio da Prata, numa antevisão poé-
tica e majestosa do "waterfront" urbano 
de uma metrópole-porto. Em Montevideu, 
propõe uma superestrutura linear sobre o 
divisor de águas da península, cruzando-
se ortogonalmente em outra versão do pro-
jeto, culminando com um gigantesco 
edifício-pier projetado sobre o porto. Pa-
ra São Paulo, sugere o cruzamento de dois 
eixos monumentais, organizando através 
de megaestruturas lineares ortogonais o 
crescimento da cidade radioconcêntrica, 
como um gigantesco "cardo-decumano" 
edificado. 
Para o Rio de Janeiro, parece reservar o 
plano mais ambicioso e de maior impac-
to da série. Na chegada, esmagado pela 
beleza, imposição e força da paisagem, du-
vida da possibilidade de solução urbanís-
tica nessa escala. Do ar, a bordo de um 
avião, a vista panorâmica influencia a cla-
reza do plano. O Rio de Janeiro é visto co-
mo uma cidade linear natural, prensada 
entre o mar e as montanhas. O partido re-
sulta no traçado de uma megaestrutura l i -
near sinuosa, com a cornija alinhada pela 
cota 100, com cerca de 6 km de extensão, 
serpenteando pelos vales, enseadas e mor-
ros, unificando soluções de tráfego, resi-
dência e infra-estrutura num sítio dificí-
limo, e liberando a cidade existente e a 
paisagem. 
A megaestrutura abriga 15 pisos — ou 
"solos artificiais" — para uso residencial 
sob a autopista e sobre pilotis contínuos, 
favorecendo a adaptação às contingências 
topográficas. Um tramo desvia-se em pon-
te na direção de Niterói, prenunciando a 
futura ligação. São previstos um aeropor-
to internacional, uma cidade universitá-
ria e um centro de negócios junto à cida-
de antiga e ao porto, e uma série de 
arranha-céus "cartesianos" em forma de 
pé de galinha espalhados pelos interstícios. 
Esta proposta conduziu diretamente aos 
projetos para Argel, desenvolvidos entre 
30 e 42. O primeirodeles previa igual-
mente uma megaestrutura linear abrigan-
do residências e autopista, em toda a ex-
tensão da "comiche" de Argel, e levou o 
nome de "Plan Obus", em função, ao que 
parece, de seu traçado côncavo ao redor da 
enseada assemelhar-se à trajetória de um 
projétil. A autopista não estava no topo, 
como no plano para o Rio, e sim no meio, 
com seis pisos abaixo e 12 acima. Cada pi-
so possuía 5 metros de altura, permitindo 
ao usuário a edificação de unidades de dois 
pisos como julgasse mais apropriado. Um 
desenho famoso ilustra essa possibilidade, 
indicando um cardápio bastante aberto de 
estilos que variavam do "árabe" ao "mo-
derno". De forma surpreendente para o ca-
ráter dogmático do arquiteto, ele prenun-
cia as propostas das décadas de 60 e 70, 
de participação e apropriação individual 
do usuário sobre uma estrutura flexível de 
suporte. Seu preenchimento deveria ser 
progressivo, abrigando até 180 mil habi-
tantes quando completamente ocupada. 
Nas colinas de Fort 1'Empereur, um se-
tor residencial com uma série de elegan-
tes edifícios curvos abrigava a elite colo-
nial e administrativa, ligada ao novo cen-
tro de negócios do Quartier de la Marine 
por um viaduto. A pitoresca Casbah de 
Argel era integralmente preservada. A es-
se plano, seguem-se cinco outros (Planos 
Obus, B, C, D, E e "Plan Directeur" de 
42), introduzindo ligeiras modificações nas 
diretrizes originais. O mais conhecido é o 
"Plan Obus D", de 38, com o projeto do 
magnífico "Arranha-céu" de Argel no 
Quartier de la Marine. 
As configurações "eróticas" dos planos 
para o Rio e Argel, conforme nota K. 
Frampton, estão diretamente ligadas às 
transformações na pintura de Le Corbu-
sier. A partir de 26, observa-se um aban-
dono progressivo da abstração purista em 
favor de composições sensorialmente figu-
rativas, representando seus "objets à réac-
tion poétique" e formas femininas arre-
dondadas, quase neolíticas. A utilização 
da curva, já presente nas casas dos anos 20, > 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 63 
ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo 
obus, arranha-céu, argel 
plano obus D, argel, 38 
se faz mais intensa e dominante, e adqui-
re uma sensualidade "orgânica" distante 
dos arcos de circunferência anteriores. O 
contato com o trópico humaniza e descon-
trai o mestre, depois desse encontro, co-
mo diz Fernando Perez Oyarzun, nenhum 
dos dois voltará a ser o mesmo. 
A busca dos modelos de 
crescimento ilimitado 
A partir do início da década de 30, pa-
ralelamente aos planos para Argel, Le Cor-
busier dedica-se ao desenvolvimento de 
um novo modelo urbano completo, a "Vi l -
le Radieuse", que teria desdobramentos na 
produção teórica e nos projetos arquite-
tônicos e urbanísticos corbusianos até a dé-
cada de 50. Os primeiros estudos da "Ville 
Radieuse" são de 30, como resposta a uma 
consulta de planejadores soviéticos para a 
reconstrução de Moscou. No mesmo ano, 
17 painéis do projeto são apresentados ao 
3? CIAM, em Bruxelas, dentro do tema 
"O Bairro Racional", e posteriormente de-
senvolvidos até a publicação em livro, com 
extenso texto explicativo, em 35. 
As discussões do 4? CIAM sobre a ci-
dade racional foram bastante influencia-
das pelo modelo, e a redação da Carta de 
Atenas com as conclusões e recomendações 
do Congresso, por Le Corbusier, acabou 
por conferir-lhe o estatuto de corpo de 
doutrina do urbanismo moderno. 
O projeto recicla alguns elementos-
chave da "Ville Contemporaine", como o 
uso de torres cruciformes de escritórios, 
áreas residenciais com blocos denteados 
contínuos sobre pilotis, o uso de uma gre-
lha modular, e a ideia de espaço urbano 
"classificado". O conceito geral, entretan-
to, é completamente diferente. 
Enquanto a "Ville Contemporaine", 
com seu plano centralizado, era concebi-
da para uma cidade de tamanho limita-
do, a "Ville Radieuse", mesmo axialmen-
te organizada, adotava um plano linear, 
com as diversas funções colocadas em ban-
das paralelas capazes, teoricamente, de ex-
pansão ilimitada. O plano parece menos 
hierarquizado que o do modelo anterior, 
e não são previstas distinções de classe en-
tre os cidadãos. Entretanto, nota-se uma 
hierarquia de funções, expressa espacial-
mente, e organizada a partir de uma ana-
logia biológica: a ordem geométrica esta-
belecida pela malha modular do plano é 
contrabalançada por uma ordem "natu-
ral", expressa na planta claramente antro-
pomórfica. Ela mostra uma "cabeça" iso-
lada, ocupada pelos arranha-céus de escri-
tórios, sobre um "tronco" retangular com-
64 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
si lvio abreu 
posto pela "espinha" do centro cultural 
entre os dois "pulmões" das zonas resi-
denciais, apoiadas por sua vez sobre a "ba-
cia" e as "pernas" das zonas industriais. 
A "Ville Radieuse" levou o conceito de 
"cidade aberta" da "Ville Contemporai-
ne" à sua conclusão lógica e radical. Uma 
seção mostra os blocos denteados clara-
mente elevados do solo através dos pilo-
tis. O solo, totalmente liberado, estava 
convertido em um parque contínuo à dis-
posição dos pedestres que, aparentemen-
te, disporiam de tempo praticamente i l i -
mitado para gozá-lo. A utilização da 
parede-cortina (o "pan de verre"), a estru-
tura independente, a planta livre e um ter-
raço jardim contínuo acentuavam a busca 
das "qualidades essenciais" do sol, espa-
ço e verde, em elaboração desde a Casa Ci-
trohan e enunciados sistematicamente nos 
cinco pontos da Nova Arquitetura pouco 
antes. 
A redução tipo-morfológica é sensível. 
A presença de dois protótipos habitacio-
nais na "Ville Contemporaine" (blocos 
periféricos e barras denteadas) ilustra a 
convivência de duas ideias distintas de ci-
dade: a primeira ainda vinculada a uma 
ideia de cidade contínua formada por um 
tecido de ruas e quadras alinhadas, e a se-
gunda pressupondo uma ideia de "cida-
de aberta" sem ruas-corredores, finalmen-
te hegemónica e exclusiva na "Ville 
Radieuse". 
Da mesma forma, o arranha-céu cruci-
forme foi abandonado em favor da torre 
em forma de pé de galinha ou " Y " (o 
arranha-céu "cartesiano"), a unidade du-
plex do "Immeuble-Villa" transforma-se 
nos apartamentos flexíveis em um piso do 
bloco denteado VR, e posteriormente nos 
apartamentos longitudinais duplex encai-
xáveis ao redor da "rua interior" da "Unité 
d'Habitation", desenvolvidos a partir de 
meados da década de 30 sob influência das 
experiências anteriores do grupo constru-
tivista de Ginzburg na URSS (célula ha-
bitacional "Stroikom", das Casas-Comu-
na). 
Finalmente, os próprios blocos dentea-
dos contínuos da VR fracionam-se em bar-
ras individuais, as "Unités", já nos planos 
para Nemours, na Africa do Norte, e pa-
ra a cidade linear de Zlin, na Tchecoslová-
quia, em 34 e 35, como culminância ló-
gica do longo processo de decomposição 
e "abertura" do tecido. O plano para Ne-
mours mostra o abandono da retícula geo-
métrica como base para o traçado urbano, 
com a localização de 18 "Unités" isoladas 
na mesma orientação, em meio a um sis-
tema viário e pedestre informal e curvilí-
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
nemours, projeto nemours, africa do norte, 33, maquete 
> 
65 
ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo 
"unité" cie marselha, 47/52 
neo, enfatizando a independência absolu-
ta das circulações com respeito às edifica-
ções. O plano de Zlin, feito para o fabri-
cante de calçados Bata, mostra as "Uni-
tés" dispostas em seis "clusters" ao longo 
de um eixo de circulação, com a indústria 
de outro lado, ligando a antiga cidade ao 
novo aeroporto, numa concretização algo 
ingénua do conceito de cidade linear pro-
posto inicialmente por Soria y Mata e de-
senvolvido principalmente por Milyutin, 
na URSS. 
Esta solução seria posteriormente uti l i -
zada como um dos tipos de unidades pro-
dutivasde assentamento em seu modelo 
regional, definido em "Les Trois Établis-
sements Humains" de 44. Os outros dois 
seriam a cidade tradicional de crescimen-
to radioconcêntrico, mantida como centro 
institucional e de trocas, e a "cooperativa 
agrícola". O modelo, influenciado pelas 
ideias sindicalistas, mescla os estudos re-
gionais de Walter Christaller com as ideias 
da cidade linear e da "Ville Radieuse", 
propondo a ligação entre as cidades exis-
tentes através de assentamentos industriais 
lineares cujas áreas residenciais seriam 
compostas de "Unités", com os interstícios 
rurais preenchidos por cooperativas agrí-
colas segundo um padrão hexagonal de 
distribuição. 
Trata-se da organização de todo o terri-
tório através de um modelo regional com-
pleto, prevendo a superação dos conflitos 
entre a cidade e o campo que atormenta-
ram os marxistas do século XIX em dian-
te e dividiram os planejadores e urbanis-
tas soviéticos nos anos 20. 
A "Unité" como protótipo 
habitacional do novo 
modelo urbano 
A reconstrução da França após a 2? 
Guerra lhe parecia a ocasião ideal para a 
aplicação, em larga escala, de seu mode-
lo, substituindo o tecido destruído por 
uma nova cidade, radiosa, composta de 
Unidades de Vizinhança verticais auto-
suficientes em abastecimento e serviços lo-
cais, em meio a extensas áreas verdes, l i -
gadas por um sistema viário eficiente e in-
dependente das edificações aos centros 
cívico-institucionais e comerciais, e aos lo-
cais de trabalho e lazer. 
As primeiras encomendas levaram aos 
planos para Marselha, Saint-Dié, La 
Rochelle-Pallice e Antony que, logo obs-
truídos pela administração, decretam a in-
viabilidade de sua utilização como modelo 
institucional para o processo de reconstru-
ção. A "Ville Radieuse" acaba reduzida à 
66 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
construção de alguns protótipos, "Unités" 
isoladas que subsistem enquanto situações 
excepcionais, habitação coletiva elevada à 
condição de monumento, como restos dra-
máticos de uma cidade que não chegou 
a se completar e, ainda assim, marcos in-
contestáveis da arquitetura moderna. Cu-
riosamente, sua força reside, ao contrário 
do que Le Corbusier previa, justamente 
em sua condição de prédios excepcionais 
dentro de um tecido comum, o que seria 
perdido se estivessem submersos em um 
tecido feito apenas de "Unités". 
Unité de Marselha 
A "Unité" de Marselha dá forma e vi-
da à ideia da "Unité d'Habitation de 
Grandeur Conforme", e marca de manei-
ra grandiosa a guinada brutalista da fase 
madura. Trata-se de uma barra de 18 pi-
sos, com 137 m de comprimento, 24,5 m 
de largura e 53 m de altura, totalmente 
regulada pelo Modulor, contendo 337 
apartamentos duplex em 25 tipos. Os 
apartamentos, orientados leste/oeste (com 
apartamentos especiais sobre a empena 
sul) articulam-se dois a dois ao redor de 
um corredor interno de circulação a cada 
três níveis, e dispõem de balcões ligados 
a uma peça de pé-direito duplo. O pré-
dio eleva-se do solo sobre uma dupla f i -
leira de pilotis gigantescos, possui uma rua 
interna de comércio local, manifesta em 
meio à fachada, servida por escada exter-
na sobre a empena norte, cega, e equipa-
mentos sociais coletivos no terraço jardim, 
povoado por objetos arquitetônicos com 
formas livres em contraponto à rigorosa or-
denação da fachada, totalmente executa-
da em concreto bruto. 
Projetada a partir de 45, inaugurada em 
52, a "Unité" de Marselha, com sua mas-
sa, proporções e dramático jogo de luz e 
sombra sobre o concreto bruto, é um dos 
prédios mais emblemáticos do século XX, 
e seu impacto é enorme. Mesmo que a rua 
comercial interior nunca tenha funciona-
do a contento, ou que a lógica do "jogo 
de montar" com os dois apartamentos ao 
redor do corredor torne um deles dificil-
mente habitável dentro de qualquer pa-
drão familiar usual, a "Unité" constitui 
a culminância da busca em resolver a eter-
na equação entre indivíduo e coletivida-
de, problema central da habitação urba-
na e preocupação contínua de Le Corbu-
sier desde sua visita à Cartuxa de Ema, no 
início do século. 
A ela, seguem-se as "Unités" construí-
das em Nantes-Rezé, Berlim, Briey-en-
Forêt e Firminy-Vert, e os projetos para 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
Strasburgo, Bogotá e Meaux, já com o pro-
tótipo passando a tipo, e mostrando uma 
simplificação conceituai e a perda, pela re-
petição e certa degradação do tratamen-
to, da força inicial. 
Mesmo que a "Ville Radieuse" não te-
nha sido realizada, sua influência como 
modelo evolutivo no desenvolvimento ur-
bano do pós-guerra é considerável, e a in-
fluência das "Unités' construídas para a 
linguagem arquitetônica é dificilmente 
avaliável em toda sua extensão. Além de 
incontáveis conjuntos habitacionais e pro-
gramas de renovação e expansão urbana, 
a organização de novas cidades presta nor-
malmente tributo às ideias corbusianas. 
Esta trajetória é auxiliada pela fetichi-
zação de um texto. A Carta de Atenas, re-
digida por Le Corbusier com as conclusões 
e recomendações do 4? Congresso dos 
CIAM e publicada apenas na década de 
40, consagra o modelo inicial da "Ville Ra-
dieuse", pregando uma cidade feita de tor-
res e barras bastante afastadas entre si, so-
bre espaço verde contínuo, com classifica-
ção e segregação espacial de funções ur-
banas (definidas como sendo Habitação, 
Trabalho, Circulação e Lazer), e rígida hie-
rarquização da circulação. Mesmo consis-
tindo num texto bastante esquemático, 
datado, e perigosamente superficial em 
muitos pontos, a autoria de Le Corbusier 
e a chancela e prestígio do aparelho dos 
CIAM conferem-lhe um estatuto desme-
surado, de texto normativo do urbanismo 
moderno. Usado como manual de plane-
jamento e desenho urbano, em mãos mui-
to menos dotadas que as de seus idealiza-
dores, e institucionalizado de forma equi-
vocada em muitas legislações urbanas, o 
resultado já é história, e fica para depois. 
Chandigarh 
Já Chandigarh aparece como um caso 
específico no desenvolvimento do urbanis-
mo corbusiano. Trata-se da aplicação de al-
guns princípios da "Ville Radieuse" a uma 
cidade concreta, com demandas de natu-
reza simbólica e institucional muito espe-
cíficas, em contexto e organização social 
peculiaríssimos. Le Corbusier parte do es-
quema de cidade-jardim traçado inicial-
mente pelo americano Albert Mayer, 
transformando-o completamente. O tra-
çado é retificado e normalizado, e intro-
duzido um eixo monumental com referên-
cias ao trabalho de Lutyens em Nova De-
lhi, organizando duas áreas residenciais di-
vididas em setores retangulares, penetra-
dos em cruz por um sistema linear de áreas 
verdes. 
si lvio abreu 
plano de urbanização, saint-dié, 45 
ftrminy, 60/65 
> 
67 
ESPAÇO & CRÍTICA/urbanisrao 
chandigarh, índia, 52/65, planta 
Na "cabeça" da cidade, ligada a ela pela 
"espinha" do eixo (ojan Marg), está o Ca-
pitólio, com os edifícios institucionais re-
presentativos em meio a uma praça seca, 
tudo regulado ao centímetro pelo Modu-
lor. O esquema lembra a "Ville Radieu-
se", mas sua organização abandona a ideia 
de simetria em favor de um sistema mo-
dular de proporções. Delegando boa par-
te do trabalho nos setores residenciais aos 
membros da equipe, Jane Drew e Maxwell 
Fry, Le Corbusier concentrou-se nos pro-
jetos para o Capitólio, produzindo alguns 
dos edifícios mais memoráveis de sua obra 
brutalista. Gigantescas estruturas em con-
creto bruto erguem-se do enorme "pla-
teau" da praça como monstros pré-histó-
ricos desafiando a paisagem, com dramá-
ticos jogos de sombra, volumes brutais, de 
uma empatia, proporção e escala quase in-
descritíveis, chegando afinal à materiali-
zação de seu "espace inéfable". 
Daí para a frente, conforme Frampton, 
como os grandes mestres do renascimen-to, Le Corbusier dá a impressão de procu-
rar compensar um todo jamais realizável 
através do projeto e concretização de ele-
mentos representativos de escala monu-
mental, âncoras arquitetônicas de um mo-
delo urbano que não se completará. 
Duas ou três coisas que 
ficaram dele 
O projeto e a construção da cidade bra-
sileira, sem dúvida, têm se efetuado se-
gundo determinados modelos espaciais, 
fundamentados em ideologias que se f i -
liam diretamente ao movimento moder-
no. E forçoso reconhecer a hegemonia glo-
bal de um conjunto de paradigmas de pro-
jeto, que se manifestam tanto nos proces-
sos de renovação e extensão urbana, e na 
criação de cidades novas ou partes delas, 
quanto na institucionalização normativa 
do urbanismo e do planejamento urbano. 
A influência de Le Corbusier sobre eles é 
inegável, não só porque sua contribuição 
para o corpo de doutrina do movimento 
moderno é capital, como porque a arqui-
tetura moderna brasileira se filia especifi-
camente ao movimento moderno em sua 
vertente corbusiana. 
O entendimento um tanto apressado 
dessa constatação óbvia, entretanto, pro-
cura atribuir à sua exclusiva competência 
o conjunto de consequências — muitas 
francamente desastrosas — da aplicação 
dos modelos e dos paradigmas de projeto 
entre nós nos últimos 40 anos, e mais ex-
tensivamente nos últimos 25 anos. Assim 
fazendo, comete uma injustiça básica. 
68 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
si lvio abreu 
É verdade que o urbanismo brasileiro 
utilizou, com maior ou frequentemente 
menor acerto, os modelos desenvolvidos 
por Le Corbusier, e certas sementes dos er-
ros cometidos em seu nome já estavam 
presentes na própria estrutura teórico-
ideológica dos mesmos. Entretanto, todos 
eles pressupunham, para sua viabilidade, 
determinadas pré-condições básicas que 
nunca foram consideradas na sua aplica-
ção indiscriminada, comprometendo par-
cial ou totalmente os sonhos originais. E 
preciso diferenciar as propostas originais 
da infinidade de propostas que, mesmo 
derivadas ou inspiradas nelas, levaram a 
seu abastardamento, distorção ou banali-
zação. As propostas originais já foram des-
critas. E preciso avaliar sua real influência 
nas derivações. 
Vamos por partes. Critica-se Le Corbu-
sier pela miséria de nossos conjuntos ha-
bitacionais, responsáveis pela extensa e 
pouco densa periferia de muitas cidades, 
formada pela simples justaposição de con-
juntos isolados, desprovidos de articulação 
interna, entre si e com o conjunto do es-
paço urbano, gerando um tecido descon-
tínuo e fragmentado. A ideia do conjun-
to habitacional vincula-se diretamente aos 
conceitos de zoniflcação/segregação espa-
cial de funções em zonas exclusivas, defen-
didos pelo urbanismo moderno e clara-
mente explicitados pelo próprio Le Cor-
busier em seus projetos e escritos, a come-
çar pela Carta de Atenas. Entretanto, se 
o conceito é relativamente ingénuo e me-
canicista, vendo a cidade como uma mera 
soma de partes, ele não sugeria exatamen-
te a forma como tem sido implantado, 
nem sua repetitividade, banalidade e 
alienação. 
Os conjuntos habitacionais tipo "BNH" 
pautam-se por duas fórmulas de projeto 
distintas. Por um lado, o loteamento de 
casas unifamiliares mínimas, seguidamen-
te isoladas em lotes privados, miniaturi-
zando o loteamento operário do século 
XIX. Por outro lado, o conjunto de blo-
cos de apartamentos sobre terreno condo-
minial, seguindo padrões de distribuição 
em barras paralelas de média altura na 
mesma orientação, ou em blocos isolados 
de configuração variada passíveis de arti-
culação formando "clusters". Ambas 
caracterizam-se pelo grande porte, caráter 
unitário de projeto, construção e gestão, 
localização periférica e repetitividade tipo-
lógica, e nestes sentidos prestam tributo 
às soluções centralizadas defendidas pelo 
movimento moderno e, especificamente, 
por Le Corbusier. Mas paramos por aí. 
A primeira fórmula reproduz exatamen-
te uma das soluções mais criticadas por Le 
Corbusier, o loteamento convencional, 
que era apontado como perdulário, anti-
econômico e anacrónico com as demandas 
da cidade moderna, conduzindo à disper-
são suburbana em baixa densidade, que 
destruiria tanto a cidade quanto o cam-
po. Contra ela bateu-se toda sua trajetó-
ria, e debitar seus notórios prejuízos e de-
seconomias ambientais, culturais e socio-
económicas à sua conta parece no míni-
mo descabido. 
A segunda fórmula pode apresentar 
ecos de modelos corbusianos, especial-
mente da "Ville Radieuse", cidade de bar-
ras sobre o parque. São, entretanto, ecos 
distantes, que nos chegam quase irreco-
nhecíveis. No caso das barras paralelas de 
média altura, sua filiação remonta muito 
mais à cidade funcional dos urbanistas ale-
mães, através de uma versão algo degra-
dada do princípio "Zeilenbau" da déca-
da de 20. Qualquer semelhança com o 
projeto do "siedlung" Goldstein de Ernst 
May em Frankfurt não é mera coincidên-
cia. As ideias de Ludwig Hilberseimer e 
as imagens racionais de sua "Cidade Mo-
derna" estão igualmente presentes. Não 
é necessário estender-se sobre o fato de 
que Le Corbusier se bateu ao interior dos 
CIAM contra o modelo, contrapondo-o à 
sua "Ville Radieuse" em altura como so-
luções opostas para a moradia na cidade 
moderna. Este foi, justamente, um dos 
grandes debates internos dos primeiros 
congressos, e finalizou com a hegemonia 
ideológica do modelo corbusiano, afastan-
do os alemães, a partir do 4? Congresso, 
ratificada com a publicação posterior da 
Carta de Atenas. 
Quanto aos blocos de formas proliferan-
tes, em suástica, H, T, Y, I ou configura-
ções compósitas, que infestam os conjun-
tos mais recentes em busca de suposta "va-
riedade" (formando uma virtual cidade 
"alfabética" quando vistas do alto), resul-
tam do abastardamento de ideias estrutu-
ralistas e brutalistas das décadas de 50 e 
60. Comparar sua estrutura compositiva 
arbitrária, e a arquitetura anódina e ba-
nal das vigas de concreto e painéis de fa-
chada recuados (num "decorativismo" 
brutalista degenerado), com o vigor Ç S L 
dramaticidade da fase brutalista de Le Cor-
busier não merece comentários. E apenas 
lamentável. 
Brasília 
Brasília é normalmente descrita e acei-
ta como a cidade da Carta de Atenas. A 
afirmação é verdadeira, já que Brasília sur-
ge como o maior exemplo concreto de ci-
dade construída de acordo com as teorias 
urbanísticas do movimento moderno, tal 
como sumariadas em seu principal corpo 
de doutrina. O projeto de Lúcio Costa, 
inegavelmente a melhor submissão ao con-
curso (entre os que se conhece, ao menos), 
consagra o zoneamento funcional, o tra-
çado urbano ampliado e independente das 
edificações, a hierarquização do sistema 
viário e a racionalização da estrutura ur-
bana. Em suas superquadras residenciais, 
barras sobre pilotis em meio a jardins co-
letivos ilustram a cidade das torres e bar-
ras no parque. A partir dela podemos ava-
liar as potencialidades e limitações do mo-
delo, aplicado com rigor, fartos recursos e 
determinação política. 
Entretanto, Brasília é, também, uma ci-
dade única. Assim como a arquitetura mo-
derna brasileira a partir dos anos 30 não 
é cópia ou aplicação direta do movimen-
to moderno em sua versão corbusiana, e 
sim síntese, na qual elementos são rein-
terpretados e transformados à luz de uma 
tradição e um contexto próprios, o proje-
to da nova capital não escapa a esta con-
dição. Brasília é uma cidade administra-
tiva e institucional, e não industrial, co-
mo a "Ville Radieuse" pressupunha. Des-
sa forma, atende a demandas de escala re-
presentativa e simbólica decisivas, e é co-
mo cidade-monumento de um novo Bra-
sil que podemos entender toda a lógica de 
seu desenho. O monumento não é proto-
típico, é necessariamente único. 
Assim, o paralelo de Brasílianão seria 
a "Ville Radieuse" enquanto modelo ge-
nérico, e sim Chandigarh, igualmente ci-
dade-monumento da nova índia. 
Brasília representa o encontro de duas 
tradições, a tradição do movimento mo-
derno — já história à época de seu proje-
to e construção — e a tradição do huma-
nismo ocidental transferida à herança ar-
quitetônica e urbanística brasileira. Deve 
muito de sua simplicidade e clareza con-
ceituai, certamente, à formação e sensibi-
lidade clássica de Lúcio Costa. 
Já se falou muito do cruzamento de ei-
xos como gesto épico e simbólico sobre o 
território (e nisso lembra a clareza de al-
guns partidos corbusianos). Entretanto, o 
cruzamento de eixos alude igualmente ao 
encontro das duas tradições, uma repre-
sentada pelas asas da cidade residencial l i -
near, outra pelo eixo monumental, admi-
nistrativo e institucional, de clara extração 
barroca. 
Brasília guarda certa semelhança com o 
conceito da "Ville Radieuse" de Chandi-
garh na localização de uma "cabeça" ins- > 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 69 
ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo 
Ferroviária 
Plano-Piloto ) ! 
escala 1/100.000 < 
brasília, plano-piloto 
'porte mo/itor". paris, 33 
créditos das fotos, Le Corbusier, W. Boesiger/H. Girsberger, Verlag fúr Architektur (Ártemis) Zúrich, 67 
titucional e monumental separada do cor-
po da cidade. Entretanto, em Brasília a 
"cabeça" constitui culminância de com-
posição clássica, axial, enquadrada pelo ei-
xo dos Ministérios, com acentos das "pla-
ces" barrocas francesas (Lúcio Costa refere -
se explicitamente à Place de la Concorde), 
enquanto em Chandigarh a composição 
do Capitólio é assimétrica, baseada numa 
grelha modular ideal (o Modulor), e as re-
lações entre os prédios se dão por locali-
zação na grelha, escala e motivos formais 
similares, e por sua contraposição dramá-
tica e singular com a escala desmesurada 
da paisagem. Nesse sentido podemos di-
zer que o Capitólio de Chandigarh se pau-
ta por modelos compositivos que se reme-
tem à Acrópole grega, ao contrário de Bra-
sília, que se filia aos grandes eixos proces-
sionais, e daí ao espaço urbano barroco, 
inclusive com foco ao final, constituído pe-
la alça de mira do Congresso. 
A estrutura urbana das duas cidades é 
distinta. Enquanto Brasília enfatiza o cru-
zamento de dois eixos distintos em fun-
ção, escala, configuração e representativi-
dade, Chandigarh possui apenas um eixo, 
relativamente pouco formalizado para sua 
escala monumental, espinha de dois gran-
des setores residenciais que leva até o Ca-
pitólio (à grande praça seca, e não a al-
gum edifício), mas na realidade remete, 
diretamente, à paisagem colossal do 
fundo. 
Os dois eixos de Brasília se cruzam no 
grande nó de circulação e comércio da ci-
dade, e neste sentido podemos pensar na 
"Ville Contemporaine". Entretanto, a ên-
fase aí não é dada a arranha-céus de escri-
tórios, que poderiam competir com o fo-
co principal, institucional, e sim à própria 
plataforma, de onde se descortina a estru-
tura monumental da cidade, à torre de co-
municações mais além e, em menor me-
dida, aos setores hoteleiro, bancário e co-
mercial que a cercam por dois lados. 
As duas casas residenciais configuram-
se como autêntica cidade linear, dividida 
por um eixo viário, com superquadras re-
gulares ocupadas por barras dispostas se-
gundo composições geométricas ortogo-
nais, seja periféricas descontínuas, seja com 
subdivisão de espaços abertos, quase pá-
tios, num padrão relativamente regular de 
repetição de soluções-tipo. Curiosamente, 
lembram "rédents" fracionados, e não o 
tecido composto de "Unités" isoladas dis-
postas na mesma orientação sobre um par-
que contínuo e ilimitado das propostas 
corbusianas após Nemours. Nesse sentido, 
estão formalmente mais próximas das ima-
gens da Cidade Moderna de Hilberseimer 
que da "Ville Radieuse" original. 
70 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 
si lvio abreu 
Ao mesmo tempo, sua organização ló-
gica constitui o desenvolvimento natural 
do conjunto de teorias sobre a "Unidade 
de Vizinhança", de matriz anglo-saxônica, 
utilizada por Le Corbusier (na unidade de 
vizinhança vertical da "Unité"), mas não 
exclusividade sua. Enfim, Brasília consti-
tui síntese construída de boa parte das 
ideias urbanísticas do movimento moder-
no, e não apenas de Le Corbusier, media-
da por contexto, tradição e caráter especí-
ficos. Dificilmente pode ser reproduzida 
como modelo, pois suas condições de ges-
tação são muito excepcionais e não se re-
petirão. Parte dela, como as superquadras 
residenciais, persiste como ilustração do 
sonho de um novo modo de vida urbano, 
para o qual a contribuição corbusiana é 
fundamental. Em função disso a conta, no 
caso, deve com ele ser compartilhada. 
Atribui-se a Le Corbusier responsabili-
dade pelos processos recentes de renova-
ção urbana. Os paradigmas de projeto do 
movimento moderno, quando aplicados à 
renovação do tecido, têm contribuído pa-
ra a desfiguração da cidade e de seus bair-
ros, reproduzindo à escala do lote a lógi-
ca de dissociação e fragmentação da "ci-
dade aberta", e substituindo o tecido ur-
bano tradicional por uma coleção desco-
nexa de objetos isolados. Le Corbusier, não 
hesitando em arrasar um trecho de Paris 
para a implantação de seu "Plan Voisin", 
constitui alvo fácil. A ideia de modelo re-
produtível em qualquer situação implica 
relativa desconsideração ao contexto. E ver-
dade que esta postura corresponde à fase 
dos anos 20. sendo parcialmente revisada 
na obra futura, e não constitui postura ex-
clusivamente sua. Pelo contrário e, bem ou 
mal, compartilhada pelo movimento mo-
derno como um todo. 
Uma parte do problema consiste na 
transição acrítica e indiscriminada dos pa-
radigmas de projeto do movimento mo-
derno, concebidos em e para determina-
das condições, para a normativa urbana. 
Institucionalizados, incidem sobre uma ci-
dade feita de lotes privados de dimensões 
modestas, regras e exigências elaboradas 
para uma cidade de solo contínuo, públi-
co, dividida através de um traçado amplia-
do em superquadras. Os resultados são, 
naturalmente, desastrosos. 
Nesse sentido, é preciso observar um 
pouco o mestre, quando trabalhava ao in-
terior do tecido tradicional, em lotes ur-
banos convencionais. Submetido, como to-
do o mundo, à disciplina do gabarito e do 
alinhamento, reinterpretava magistral-
mente os "constrangimentos" em proje-
tos como o edifício da Porte Molitor e a 
"Armée du Salut", em Paris, ou o "Im-
meuble Clarté", em Genebra. Algumas 
das melhores obras da arquitetura moder-
na brasileira devem sua forma e impacto 
justamente a esse jogo dialético entre in-
venção e convenção, inserindo-se como ob-
jetos especiais em meio a um tecido tra-
dicional, beneficiando-se do contraste em-
prestado por esta condição. Transferir li-
teralmente os preceitos da "Ville Radieu-
se" de solo coletivo para um tecido de lo-
tes não parece nada corbusiano. Parece, 
antes de mais nada, burro. 
A outra parte do problema consiste' 
num legado de atitude, persistente e in-
sidioso, entre nós. Alguns de seus proje-
tos urbanos, abstraído seu inegável apelo 
simbólico como exaltação de modernida-
de, constituem atos quase intoleráveis de 
vaidade humana, auto-suficiência e forma-
lismo. Le Corbusier propõe-se a oferecer 
nada menos que uma solução completa e 
acabada para todos os problemas urbanos 
modernos. Assim agindo, coloca o arqui-
teto (e o urbanista) numa posição de po-
der autocrático, encorajando-o a propor so-
luções numa escala megalomaníaca. Se po-
de eventualmente fazer bem para o ego 
de arquitetos em crise de identidade, não 
acontece da mesma forma com a cidade 
e a sociedade. Podemos argumentar que 
este é um problema central de arquitetu-
ra moderna, aplicável a planejadores de 
qualquerideologia, respondendo antes de 
mais nada às condições de produção do ca-
pitalismo monopolista de Estado e das 
economias de planejamento centralizado. 
Focando a crítica em Le Corbusier, joga-
se sobre um indivíduo-arquiteto, por mais 
genial e megalomaníaco que seja, acusa-
ções que deveriam ser debitadas à nature-
za da economia, do Estado e da cidade 
moderna que, ele, no entreguerras, assu-
miu e de certa forma prenunciou. Políti-
cas de planejamento, ou grandes operações 
urbanas, não são determinadas pela in-
fluência de um arquiteto, mas por forças 
e interesses sócio-econômicos, padrões ins-
titucionais e ideologias (não necessaria-
mente urbanísticas). Mesmo que Le Cor-
busier tenha criado uma imagem poderosa 
e convincente para tais forças num primei-
ro momento, ele certamente não as levou 
à vida, e muito menos na forma como hoje 
a criticamos. 
Ao lado da imagem demiúrgica, é pre-
ciso resgatar o Le Corbusier do plano para 
Argel, antevendo a necessidade de parti-
cipação do usuário ao interior de uma es-
trutura pública de suporte; dos gestos ge-
nerosos para o Rio de Janeiro, parcialmen-
te seguidos e executados como fragmen-
tos nos conjuntos do Pedregulho e da Gá-
vea, de Reidy; do rigor, seriedade e com-
prometimento com que lutou, toda a vi-
da, por uma cidade melhor, reafirmando 
a necessidade e a pertinência da arquite-
tura na construção do mundo. No mo-
mento em que um furor "integrista" var-
re Brasília, procurando apagar as marcas 
e caminhos que a cidade traçou sobre si 
própria, reinventando-se e transformando-
se, aos poucos, em algo diferente do que 
tinha sido traçado (não necessariamente 
pior), é preciso voltar ao mestre. Confron-
tando com as modificações que os usuá-
rios haviam efetuado sobre seu rigoroso 
projeto para Pessac, "conspurcando" os de-
sígnios do arquiteto, ele nos indica com 
resignação e grandeza que "A vida tem 
sempre razão. O arquiteto, não." A obra 
urbanística de Le Corbusier é gigantesca, 
multifacetada apesar da fidelidade cons-
tante a alguns conceitos, contraditória até, 
e dela tivemos muitas influências, nem to-
das positivas para o projeto e a construção 
da cidade brasileira. Dessa influência, en-
tretanto, certamente ainda não tivemos o 
bastante. 
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quência do texto) 
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1979. 
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1981. 
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tions de TArchitecture dAujourd'hui, 1935. 
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mains. Paris, Denoel. 1945. 
__. Maniére de Penser 1'Urba-
nisme. Paris, Éditions de TArchitecture dAu-
jourd'hui, 1946. 
My Work. London, Archi-
tectural Press, 1960. 
* Silvio Belmonte de Abreu Filho, arqui-
teto formado pela UFRGS em 1975, pós-
graduado pelo IEDES da Université de Paris I, 
em 1979, é professor e pesquisador do PRO-
PAR da Faculdade de Arquitetura da UFRGS 
desde 1980, com prática profissional em Porto 
Alegre. 
Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 71

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