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ESPAÇO Silvio Abreu* & CRÍTICA/urbanismo 'Â vida tem sempre razão. O arquiteto, não" A comemoração do centenário de nas- cimento de Le Corbusier, marcada entre nós por uma série de eventos, constitui ocasião ideal para uma reavaliação crítica de sua obra, de suas ideias e, conjunta- mente, avaliar sua persistente influência sobre a Arquitetura e o Urbanismo brasi- leiros. Trata-se, na realidade, de um indis- pensável acerto de contas com aquele que foi, inegavelmente, o arquiteto do sécu- lo, com profundas ligações com o Brasil e o desenvolvimento da arquitetura moder- na brasileira, e cujo espectro rigoroso con- tinua a assombrar os desvãos dos brises, os cantos sombreados de nossos pilotis e os jardins mais ou menos floridos de nos- sas superquadras. O legado de Le Corbusier para a arqui- tetura moderna brasileira é inconteste. Além de farta bibliografia pregressa, do- cumentando prolongado intercurso, uma série de trabalhos recentes tem ilumina- do, sob novo enfoque, suas relações com obras-chave da mesma, como o prédio do Ministério da Educação e Saúde e o pro- jeto da Cidade Universitária do Rio de Ja- neiro, e com o desenvolvimento tanto da 1'escola carioca1', a partir do final da déca- da de 30, quanto do chamado "brutalis- mo paulista'1 a partir dos anos 50. Parece haver certo consenso quanto a isso. Entre- tanto, com o urbanismo as coisas não ocor- rem de forma tão tranquila e mais neces- sário se torna o acerto de contas quando notamos o acúmulo de equívocos que tem permeado a avaliação de seu legado para o projeto e a construção da cidade brasi- leira. A avaliação tem oscilado da exaltação total à contestação indignada da impor- tância de sua contribuição, ambas posições acríticas, emocionais e, consequentemen- te, de escassa utilidade para o debate ar- quitetônico. A primeira posição conten- ta-se com o panegírico, a elegia, e as lem- branças pessoais do contato com o mestre ou com suas ideias são acalentadas ora com nostalgia, saudosas do que teriam sido os melhores anos de nossas vidas, ora com rancor dos que ousam enodoá-los. Poste- riormente, o filho de pródigo passa a par- ricida, e são atribuídas a Le Corbusier to- das as maztlas recentes da arquitetura e da cidade brasileiras. Passam a ser debita- das em sua conta exclusiva as deficiências dos grandes conjuntos habitacionais que infestaram a periferia da cidade brasileira nos últimos 25 anos, os centros cívicos va- zios de civismo e de arquitetura, as bru- tais intervenções viárias, a destruição ge- neralizada do tecido urbano, os problemas de Brasília e, até, a notória má qualidade de vida em nossas cidades. Nesses casos, a reação vem com o desespero e a fúria da- queles que, sentindo-se traídos, investem cegos contra o antigo objeto de seu desejo. Obscuro objeto. Na realidade, esta ir- racionalidade parece alimentada por uma prolongada relação amor-ódio que turva a análise, azeda o debate e impede a emer- gência de uma atitude mais objetiva frente a Le Corbusier, ao movimento moderno no Brasil e à própria Arquitetura. Como bem nota Comas, somos sentimentais. 0 panegírico e a catarse se unem para trun- car o conhecimento da realidade urbana brasileira, de seus processos de transforma- ção, da influência inegável que sobre eles exerceu a ideologia do movimento moder- no, e das possibilidades de utilização cria- tiva desse legado para a construção de uma cidade melhor. A postura tranquila e lúcida de Lúcio Costa, ilustrada por numerosos depoimen- tos sobre o processo que testemunhou e pessoalmente avalizou, aparece como uma exceção entre os arquitetos das primeiras gerações do movimento moderno brasilei- ro. Entre as novas gerações, o fascínio se mescla à repulsa, alimentado por alguma desinformação, leituras equivocadas, per- sistentes preconceitos ou meias-verdades. Estamos quase todos no mesmo barco e, quando mais avançamos, é na direção de um sentimento difuso e relativamente ge- neralizado de que Le Corbusier, tendo si- do o maior arquiteto do século, foi ao mes- mo tempo seu pior urbanista. Vamos com calma. As coisas não são tão dicotômicas assim, mesmo numa persona- lidade tão complexa, dividida e torturada como Le Corbusier, engenheiro da socie- dade e artista, demiurgo e poeta, luz e sombra, razão e paixão tão bem ilustradas no seu desenho-chave de Apolo e Medu- sa. E as coisas não podem ser assim justa- mente em Le Corbusier, cuja obra segue uma trajetória onde arquitetura e urbanis- mo, tipologia e morfologia urbana encontram-se tão indissoluvelmente liga- das, da Casa Citrohan do primeiro pós- guerra até as sucessivas "Unités" de Mar- selha em diante. Em função disso, é conveniente pedir emprestado ao mestre um pouco de seu racionalismo, evitando cuidadosamente recaídas messiânicas, para ajudar a escla- recer um pouco as coisas. Comecemos por descrever e analisar resumidamente sua ex- tensa produção urbanística, em projetos, obras e escritos, discriminando as ideolo- gias e os paradigmas de projeto que a sus- tentaram, confrontando o discurso à prá- tica e procurando, em meio ao formidá- vel acervo legado pelo seu trabalho, des- cobrir os laços explícitos e implícitos que o ligam ao urbanismo moderno brasileiro e suas iéias de cidade. > Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 59 ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo ville contemporaine, 22, plano de área urbana casa Citrohan, 22 50 anos em 5 A teoria urbanística de Le Corbusier desenvolve-se basicamente em paralelo com suas explorações arquitetônicas. Po- demos periodizá-la sumariamente, como Tim Benton, em quatro fases distintas, aceitando certas simplificações que as pe- riodizações exigem. Até a 1 * Guerra, ob- servamos um interesse pelo desenho urba- no pitoresco, sob influência de Camilo Sit- te e do movimento da Cidade Jardim de- rivado de Howard, rapidamente assimila- do em toda a Europa nas duas primeiras décadas do século. Para nosso objetivo, não demandam maior atenção. Nos anos 20, Le Corbusier desenvolve sua teoria cartesiana da "Ville Contempo- raine" como solução diagramática para os problemas de trafego, moradia, lazer e tra- balho da metrópole moderna, através da separação de funções geometricamente or- ganizadas, abrigadas em protótipos arqui- tetônicos definidos, num esforço de racio- nalização, sistematização e ordenação ló- gica da estrutura urbana. Ela se beneficia das explorações arquitetônicas do período (Sistema DOMINO e Casa Citrohan) e re- torna dialeticamente a elas com os proje- tos para Pessac, Liga das Nações e para a série de casas burguesas dos anos 20. Está esboçada arquitetonicamente em "Vers une Architecture" e claramente explicita- da em "Urbanisme". Do final dos anos 20 até a 2 f Guerra, produz um conjunto de teorias, projetos e atitudes relacionadas à ideia da "Ville Radieuse" ("Ville Radieuse", planos para Buenos Aires, Montevideu, São Paulo e Rio de Janeiro, Plano Obus para Argel, Ci- dade Linear Industrial, Nemours e os "Trois Établissements Humains"). Nesta fase, a preocupação transcende a cidade f i - nita para abarcar o padrão de vida, traba- lho, locomoção e lazer no território como um todo, através de modelos regionais, quase geográficos. O esquematismo geo- métrico cede lugar a uma abordagem mais sistémica, "orgânica", voltada para mode- los de crescimento ilimitado, apoiado pe- lo aparelho ideológico fornecido pelos CIAM, empalmado por ele a partir do 4? Congresso. A fase "branca" do purismo dá lugar à exploração sistemática do "pan de verre" e à busca de tectonicidade. As teorias urbanísticas aparecem em "Préci- sions...", são detalhadas em "La Ville Ra- dieuse", "Sur les 4 Routes" e "Les Trois Établissements Humains", adquirindo es- tatuto de corpo de doutrina na edição da Cartade Atenas. A fase após-2* Guerra é marcada, por 60 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 silvio abreu um lado, pelo desenvolvimento e aplica- ção dos princípios da "Ville Radieuse" em uma série de projetos e planos parciais ou totais, e, por outro lado, por sua prolon- gada experiência em Chandigarh. Exceção feita ao trabalho para Chandigarh (mes- mo assim muito concentrado no Capitó- lio), assistimos a uma concentração pro- gressiva na "Unité" como unidade habi- tacional de escala ampliada, prototípica do novo modelo urbano, em situações de re- novação e expansão do tecido, e na cria- ção de novas cidades (planos para Marse- lha, Saint-Dié, La Rochelle-Pallice, Stras- burgo, Bogotá, Firminy, Meaux, Berlim...). Em arquitetura, desenvolve os estudos do Modulor como sistema de proporções uni- versal, das sucessivas "Unités" e das obras maduras da fase brutalista, deixando aber- ta uma série de caminhos com os projetos inacabados da década de 60. Suas ideias urbanísticas se encontram condensadas em um quase-testamento, "Maniete de Pen- ser 1'Urbanisme". Vale a pena descrever em maior deta- lhe alguns desses projetos, exemplares en- quanto modelos de suas ideias urbanísti- cas. Uma cidade feita para o su- cesso O primeiro dos grandes projetos urba- nos é a "Ville Contemporaine", apresen- tada na seção de Arte Urbana do Salão de Outono de 22, em Paris. Ignorando olim- picamente as diretrizes do programa, vol- tado basicamente para o mobiliário urba- no — luminárias, fontes, bancos, quios- ques —, Le Corbusier propõe o desenho de uma fonte, mas dispondo, ao seu re- dor, um esquema urbano completo para uma cidade contemporânea de três mi- lhões de habitantes. O plano é impressionante, megaloma- níaco mesmo, ocupando uma área cerca de quatro vezes maior que Manhattan. O ma- pa fundo-figura apresenta uma composi- ção que pode ser lida como uma tapeça- ria persa. O traçado é simétrico e forte- mente centralizado, a partir de uma ma- lha básica de 400/400 m dividida por dois eixos monumentais, norte/sul e leste/oes- te, ocupados por superautopistas. No cen- tro estão 24 arranha-céus cruciformes de 60 pisos, dedicados aos negócios e à ad- ministração da cidade. Quatro dessas tor- res enquadram um grande centro de in- terconexão de transportes, em vários níveis, no cruzamento dos eixos, separando ver- ticalmente o nó de circulações, com um inacreditável aeroporto-suicida no último nível. Ao redor do coração administrativo, de negócios e de comunicações, são localiza- das habitações para os cidadãos de elite, que Le Corbusier identificava como os ca- pitães de indústria, cientistas, intelectuais, artistas e, obviamente, arquitetos. As ha- bitações são de dois tipos. Dispostas sime- tricamente a partir do centro, estão barras denteadas de 12 pisos (os "rédents"). Mais além, estão blocos perimetrais de mesma altura (os "Immeubles-Villa"), formando um tecido regular de ruas e quadras com grandes pátios centrais coletivos. Os dois tipos consistem em apartamentos duplex superpostos, baseados nos princípios da Casa Citrohan, e fartamente detalhados nos "Immeubles-Villa", com sua sala de duplo pé-direito e organização em "L" ao redor de um grande terraço ajardinado, co- mo autênticas Villas reunidas em um edi- fício coletivo. A área mais densa do plano é cercada por um extenso e relativamente indiferen- ciado cinturão verde, incorporado à cida- de do lado oeste como parque urbano. A leste, está a zona industrial, segregada da cidade e tangenciada pela via férrea. A sul e sudoeste, na periferia do plano, lotea- mentos tipo cidade-jardim destinados à classe operária são sumariamente apresen- tados. O esquema é claramente centralizado e hierarquizado. "Ordenar é classificar", pontificava axiomaticamente Le Corbusier. A recíproca é verdadeira: as diversas fun- ções da cidade administrativa e comercial, residencial, industrial, circulação e lazer, são metodicamente classificadas e rigoro- samente segregadas. A forma da cidade re- flete um modelo social igualmente cen- tralizado e hierárquico. Os arranha-céus de escritórios que a dominam constituem centros seculares de poder, símbolos de au- toridade moral, coincidente, no caso, com o poder económico e a burocracia. O sim- bolismo é evidente no desenho do plano, onde ocupam a seção áurea dentro do du- plo quadrado do conjunto da cidade e em sua volumetria, onde as torres de cristal, descritas liricamente por Le Corbusier, aparecem como equivalentes modernos das catedrais ou uma versão altamente ra- cionalizada das ideias de "Stadtkrone", de Bruno Taut. Das imagens da cidade, fartamente ilus- tradas através de perspectivas, se despren- de uma forte exaltação da modernidade, representada por seus símbolos mais po- derosos à época (aviões, automóveis, arranha-céus), aliada ao poder da razão co- mo elemento ordenador do mundo, atra- vés da geometria. Dessa forma, a "Ville Contemporaine" deve ser interpretada co- mo um discurso ideológico sobre a cida- de e um pronunciamento de vanguarda tanto quanto um projeto urbanístico con- creto. A crítica, consequentemente, deve estender-se aos três aspectos. Apesar de sua imagem visionária, a "Ville Contemporaine" não era para ser entendida como projeto utópico para um futuro iluminado e distante, mas como um verdadeiro modelo para a transforma- ção da cidade contemporânea, válido uni- versalmente. Trata-se de uma cidade ca- pitalista de elite, com os princípios fun- cionalistas e mecanicistas que regiam a produção incorporados à organização do espaço e, consequentemente, à esfera do consumo. As influências presentes em seu projeto são inúmeras, algumas comuns às outras fontes do movimento moderno, ou- tras peculiares à formação corbusiana. E evidente a influência direta da "Ci- dade Industrial" de Tony Garnier no ri- goroso zoneamento de funções e no insis- tente apelo às imagens da modernidade expressa pelas formas da Revolução Indus- trial. O plano reflete a admiração pelos trabalhos de "regularização" de Paris le- vados a cabo pelo prefeito Haussmann ao tempo de Napoleão I I I , clarificando sua estrutura urbana através da abertura de avenidas e fazendo a cidade respirar atra- vés de um complexo sistema de parques e jardins. A referência aos "Boulevards à rédents" de Eugene Hénard é explícita no desenho dos setores residenciais, e a reifi- cação dos valores naturais do verde, do sol e do espaço livre como "alegrias essenciais" acompanha as ideias higienistas e natura- listas do século XIX, e relaciona a "Ville Contemporaine" ao movimento da Cida- de Jardim. Segundo Le Corbusier, existem momen- tos onde os ditames da "razão pura" são requeridos para resolver e clarificar confli- tos intoleráveis. O caso da cidade contem- porânea, premida pela industrialização, motorização e crescimento populacional, seria um desses. Sua salvação só poderia se dar com os instrumentos fornecidos pelo "Novo Espírito", baseado na razão, na geo- metria e na industrialização, a revolução do urbanismo substituindo a revolução so- cial inevitável. Essa revolução seria condu- zida por uma elite esclarecida, no topo do qual estaria o arquiteto-urbanista, demiúr- gico, engenheiro da sociedade, ditando e conduzindo sua transformação através da arquitetura. A fé na razão como elemento de clari- ficação e ordenação do mundo nos reme- te à tradição humanista ocidental, passan- > Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 61 ESPAÇO & CRITICA/urbanismo m plano voisin para paris, 25, maquete plano voisin, diagrama plano urbanístico para o rio, 29 plano urbanístico para são paulo, 29 62 do pelo positivismo, o Iluminismo e pela tradição clássica francesa. A razão envolve geometria, uma geometria rigorosa("A cultura é um estado de espírito ortogo- nal"), feita de linhas retas, que constituem o caminho do homem, pois este tem um objetivo e sabe onde quer chegar, ao con- trário do asno, dado a sinuosidades. O apego a esta geometria feita de grandes ei- xos, simetrias e malhas reguladoras orto- gonais vincula-o à tradição "Beaus-Arts". O plano da "Ville Contemporaine" cons- titui um ensaio de desenho total e a cul- minância de uma tradição compositiva co- dificada pela "Ecole" ao longo do século XIX. Essa tradição se conjuga com a tradição do novo. Os eixos monumentais e a "clas- sificação" racional do espaço urbano t i - nham função de facilitar a locomoção. A "Ville Contemporaine" é feita para o su- cesso, pois a cidade para a velocidade é uma cidade feita para o sucesso. Isto faz parte de uma retórica maior, baseada na suposição paradoxal de que os automóveis, apesar de terem contribuído para a des- truição e inviabilidade da cidade europeia, poderiam ser explorados como instrumen- tos de sua salvação, dentro de um sonho "fordiano" de mobilidade individual total. A tradição do novo passa igualmente pela utilização de uma estética "purista", feita de formas puras, pela aceitação e exal- tação da dimensão metropolitana, e pela proposição original de uma Cidade Jardim vertical. Ao contrário dos seguidores do movimento, que previam a descongestão da metrópole com a criação de cidades-sa- télites de baixa densidade, Le Corbusier defendia a concentração e o aumento de densidade através de edifícios em altura, perseguindo objetivos aparentemente ex- cludentes: incrementar a densidade do te- cido urbano, reafirmar a primazia de seu centro, evitar a dispersão suburbana e, ao mesmo tempo, trazer a natureza para den- tro da cidade. Não parece coincidência que o projeto fosse pensado para uma cidade com apro- ximadamente a mesma população de Pa- ris nos anos 20. No horizonte do projeto, estava claramente delineado o perfil da ca- pital francesa e do sonho corbusiano de dotá-la de um centro de negócios à escala mundial, renovando conjuntamente boa parte de seu tecido. Três anos depois, Le Corbusier tornaria explícita essa associação, com a exibição si- multânea de gigantescos dioramas da "Ville Contemporaine" e de seu "Plan Voisin" para Paris, num anexo do Pavilhão Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 M Silvio abreu "Esprit Nouveau" (ele próprio um protó- t ipo da unidade habitacional do "Immeuble-Villa" de 22) construído pa- ra a Exposição de Art Déco de Paris, em 1925. Os mesmos princípios tipo morfo- lógicos e ideológicos eram aplicados a um ambicioso projeto de reestruturação do centro de Paris, envolvendo a demolição de quase todo o tecido entre o Sena e Montmartre, com a preservação de monu- mentos de interesse museológico, e a cons- trução de uma cidade de negócios como coração do capitalismo francês, entre lar- gas avenidas e extensas áreas verdes. O plano, que leva o nome de seu pa- trocinador, não por acaso o cartel fabrican- te de aviões e automóveis Voisin, propõe - se como solução radical para todos os pro- blemas funcionais, tecnológicos e ambien- tais de Paris, ilustrando na capital euro- peia por excelência a aplicabilidade de seu modelo para a metrópole moderna. São utilizados o mesmo arranha-céu crucifor- me, os blocos denteados, o padrão viário ampliado e as áreas verdes contínuas da "Ville Contemporaine". O caráter panfletário e polémico, de projeto manifesto, especialmente agudiza- do quando de sua aplicação sobre Paris, a cidade-luz, não deve esconder a nature- za operativa das propostas. Através da "Ville Contemporaine" e do "Plan Voi- sin", e da sistematização apresentada na publicação de "Urbanisme" em 25, Le Corbusier adquire não apenas notorieda- de pública e publicidade sobre seu traba- lho e ideias, colocando-se na vanguarda do movimento moderno europeu, como des- cobre, a partir das investigações desenvol- vidas, muitas das certezas, regras e para- digmas de projeto que fundamentarão sua obra futura, em arquitetura e urbanismo. O subdesenvolvimento é curvo? A passagem da hierárquica "Ville Con- temporaine" de 22 à evolutiva "Ville Ra- dieuse" do início da década de 30 reflete mudanças significativas na maneira como Le Corbusier concebe a cidade moderna. Essas mudanças estão relacionadas às suas experiências com as megaestruturas linea- res propostas em 29, em sua viagem à América do Sul, e com o conhecimento das experiências de cidade linear dos ur- banistas soviéticos nos anos 20. A viagem à América do Sul parece constituir um marco. No verão europeu de 29, Le Corbusier visita a Argentina, Uruguai e Brasil, so- brevoando parte do território, proferindo palestras e estabelecendo contatos em Bue- nos Aires, Montevideu, São Paulo e Rio de Janeiro. Na volta à Europa, organiza um sumário das palestras e de algumas propostas urbanas, editadas no livro "Pré- cision sur un état présent de 1'Architectu- re et de 1'Urbanisme". Ao contrário dos l i - vros anteriores, não é didático nem enfá- tico, aparecendo como uma espécie de tri- buto ao Novo Mundo, inspirado pela es- cala e esplendor da paisagem. Os proje- tos apresentados são caudatários desse sen- timento, mostrando um urbanismo épico, em resposta aos desafios da natureza. Os esquemas anteriores parecem-lhe de- masiado rígidos, sem a vitalidade e a flexi- bilidade necessárias para responder a con- dições naturais, culturais e sócio-econômi- cas tão distintas. As novas respostas consis- tem em partidos urbanísticos diagramáti- cos e sintéticos, de grande força, clareza e simplicidade conceituai, quase gestos épi- cos sobre a paisagem. Em Buenos Aieres, aproveitando as ave- nidas e diagonais convergindo para o por- to, propõe a utilização da margem do rio como centro cultural, administrativo e co- mercial, redesenha o porto e faz a proje- ção monumental de cinco torres gémeas sobre o Rio da Prata, numa antevisão poé- tica e majestosa do "waterfront" urbano de uma metrópole-porto. Em Montevideu, propõe uma superestrutura linear sobre o divisor de águas da península, cruzando- se ortogonalmente em outra versão do pro- jeto, culminando com um gigantesco edifício-pier projetado sobre o porto. Pa- ra São Paulo, sugere o cruzamento de dois eixos monumentais, organizando através de megaestruturas lineares ortogonais o crescimento da cidade radioconcêntrica, como um gigantesco "cardo-decumano" edificado. Para o Rio de Janeiro, parece reservar o plano mais ambicioso e de maior impac- to da série. Na chegada, esmagado pela beleza, imposição e força da paisagem, du- vida da possibilidade de solução urbanís- tica nessa escala. Do ar, a bordo de um avião, a vista panorâmica influencia a cla- reza do plano. O Rio de Janeiro é visto co- mo uma cidade linear natural, prensada entre o mar e as montanhas. O partido re- sulta no traçado de uma megaestrutura l i - near sinuosa, com a cornija alinhada pela cota 100, com cerca de 6 km de extensão, serpenteando pelos vales, enseadas e mor- ros, unificando soluções de tráfego, resi- dência e infra-estrutura num sítio dificí- limo, e liberando a cidade existente e a paisagem. A megaestrutura abriga 15 pisos — ou "solos artificiais" — para uso residencial sob a autopista e sobre pilotis contínuos, favorecendo a adaptação às contingências topográficas. Um tramo desvia-se em pon- te na direção de Niterói, prenunciando a futura ligação. São previstos um aeropor- to internacional, uma cidade universitá- ria e um centro de negócios junto à cida- de antiga e ao porto, e uma série de arranha-céus "cartesianos" em forma de pé de galinha espalhados pelos interstícios. Esta proposta conduziu diretamente aos projetos para Argel, desenvolvidos entre 30 e 42. O primeirodeles previa igual- mente uma megaestrutura linear abrigan- do residências e autopista, em toda a ex- tensão da "comiche" de Argel, e levou o nome de "Plan Obus", em função, ao que parece, de seu traçado côncavo ao redor da enseada assemelhar-se à trajetória de um projétil. A autopista não estava no topo, como no plano para o Rio, e sim no meio, com seis pisos abaixo e 12 acima. Cada pi- so possuía 5 metros de altura, permitindo ao usuário a edificação de unidades de dois pisos como julgasse mais apropriado. Um desenho famoso ilustra essa possibilidade, indicando um cardápio bastante aberto de estilos que variavam do "árabe" ao "mo- derno". De forma surpreendente para o ca- ráter dogmático do arquiteto, ele prenun- cia as propostas das décadas de 60 e 70, de participação e apropriação individual do usuário sobre uma estrutura flexível de suporte. Seu preenchimento deveria ser progressivo, abrigando até 180 mil habi- tantes quando completamente ocupada. Nas colinas de Fort 1'Empereur, um se- tor residencial com uma série de elegan- tes edifícios curvos abrigava a elite colo- nial e administrativa, ligada ao novo cen- tro de negócios do Quartier de la Marine por um viaduto. A pitoresca Casbah de Argel era integralmente preservada. A es- se plano, seguem-se cinco outros (Planos Obus, B, C, D, E e "Plan Directeur" de 42), introduzindo ligeiras modificações nas diretrizes originais. O mais conhecido é o "Plan Obus D", de 38, com o projeto do magnífico "Arranha-céu" de Argel no Quartier de la Marine. As configurações "eróticas" dos planos para o Rio e Argel, conforme nota K. Frampton, estão diretamente ligadas às transformações na pintura de Le Corbu- sier. A partir de 26, observa-se um aban- dono progressivo da abstração purista em favor de composições sensorialmente figu- rativas, representando seus "objets à réac- tion poétique" e formas femininas arre- dondadas, quase neolíticas. A utilização da curva, já presente nas casas dos anos 20, > Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 63 ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo obus, arranha-céu, argel plano obus D, argel, 38 se faz mais intensa e dominante, e adqui- re uma sensualidade "orgânica" distante dos arcos de circunferência anteriores. O contato com o trópico humaniza e descon- trai o mestre, depois desse encontro, co- mo diz Fernando Perez Oyarzun, nenhum dos dois voltará a ser o mesmo. A busca dos modelos de crescimento ilimitado A partir do início da década de 30, pa- ralelamente aos planos para Argel, Le Cor- busier dedica-se ao desenvolvimento de um novo modelo urbano completo, a "Vi l - le Radieuse", que teria desdobramentos na produção teórica e nos projetos arquite- tônicos e urbanísticos corbusianos até a dé- cada de 50. Os primeiros estudos da "Ville Radieuse" são de 30, como resposta a uma consulta de planejadores soviéticos para a reconstrução de Moscou. No mesmo ano, 17 painéis do projeto são apresentados ao 3? CIAM, em Bruxelas, dentro do tema "O Bairro Racional", e posteriormente de- senvolvidos até a publicação em livro, com extenso texto explicativo, em 35. As discussões do 4? CIAM sobre a ci- dade racional foram bastante influencia- das pelo modelo, e a redação da Carta de Atenas com as conclusões e recomendações do Congresso, por Le Corbusier, acabou por conferir-lhe o estatuto de corpo de doutrina do urbanismo moderno. O projeto recicla alguns elementos- chave da "Ville Contemporaine", como o uso de torres cruciformes de escritórios, áreas residenciais com blocos denteados contínuos sobre pilotis, o uso de uma gre- lha modular, e a ideia de espaço urbano "classificado". O conceito geral, entretan- to, é completamente diferente. Enquanto a "Ville Contemporaine", com seu plano centralizado, era concebi- da para uma cidade de tamanho limita- do, a "Ville Radieuse", mesmo axialmen- te organizada, adotava um plano linear, com as diversas funções colocadas em ban- das paralelas capazes, teoricamente, de ex- pansão ilimitada. O plano parece menos hierarquizado que o do modelo anterior, e não são previstas distinções de classe en- tre os cidadãos. Entretanto, nota-se uma hierarquia de funções, expressa espacial- mente, e organizada a partir de uma ana- logia biológica: a ordem geométrica esta- belecida pela malha modular do plano é contrabalançada por uma ordem "natu- ral", expressa na planta claramente antro- pomórfica. Ela mostra uma "cabeça" iso- lada, ocupada pelos arranha-céus de escri- tórios, sobre um "tronco" retangular com- 64 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 si lvio abreu posto pela "espinha" do centro cultural entre os dois "pulmões" das zonas resi- denciais, apoiadas por sua vez sobre a "ba- cia" e as "pernas" das zonas industriais. A "Ville Radieuse" levou o conceito de "cidade aberta" da "Ville Contemporai- ne" à sua conclusão lógica e radical. Uma seção mostra os blocos denteados clara- mente elevados do solo através dos pilo- tis. O solo, totalmente liberado, estava convertido em um parque contínuo à dis- posição dos pedestres que, aparentemen- te, disporiam de tempo praticamente i l i - mitado para gozá-lo. A utilização da parede-cortina (o "pan de verre"), a estru- tura independente, a planta livre e um ter- raço jardim contínuo acentuavam a busca das "qualidades essenciais" do sol, espa- ço e verde, em elaboração desde a Casa Ci- trohan e enunciados sistematicamente nos cinco pontos da Nova Arquitetura pouco antes. A redução tipo-morfológica é sensível. A presença de dois protótipos habitacio- nais na "Ville Contemporaine" (blocos periféricos e barras denteadas) ilustra a convivência de duas ideias distintas de ci- dade: a primeira ainda vinculada a uma ideia de cidade contínua formada por um tecido de ruas e quadras alinhadas, e a se- gunda pressupondo uma ideia de "cida- de aberta" sem ruas-corredores, finalmen- te hegemónica e exclusiva na "Ville Radieuse". Da mesma forma, o arranha-céu cruci- forme foi abandonado em favor da torre em forma de pé de galinha ou " Y " (o arranha-céu "cartesiano"), a unidade du- plex do "Immeuble-Villa" transforma-se nos apartamentos flexíveis em um piso do bloco denteado VR, e posteriormente nos apartamentos longitudinais duplex encai- xáveis ao redor da "rua interior" da "Unité d'Habitation", desenvolvidos a partir de meados da década de 30 sob influência das experiências anteriores do grupo constru- tivista de Ginzburg na URSS (célula ha- bitacional "Stroikom", das Casas-Comu- na). Finalmente, os próprios blocos dentea- dos contínuos da VR fracionam-se em bar- ras individuais, as "Unités", já nos planos para Nemours, na Africa do Norte, e pa- ra a cidade linear de Zlin, na Tchecoslová- quia, em 34 e 35, como culminância ló- gica do longo processo de decomposição e "abertura" do tecido. O plano para Ne- mours mostra o abandono da retícula geo- métrica como base para o traçado urbano, com a localização de 18 "Unités" isoladas na mesma orientação, em meio a um sis- tema viário e pedestre informal e curvilí- Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 nemours, projeto nemours, africa do norte, 33, maquete > 65 ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo "unité" cie marselha, 47/52 neo, enfatizando a independência absolu- ta das circulações com respeito às edifica- ções. O plano de Zlin, feito para o fabri- cante de calçados Bata, mostra as "Uni- tés" dispostas em seis "clusters" ao longo de um eixo de circulação, com a indústria de outro lado, ligando a antiga cidade ao novo aeroporto, numa concretização algo ingénua do conceito de cidade linear pro- posto inicialmente por Soria y Mata e de- senvolvido principalmente por Milyutin, na URSS. Esta solução seria posteriormente uti l i - zada como um dos tipos de unidades pro- dutivasde assentamento em seu modelo regional, definido em "Les Trois Établis- sements Humains" de 44. Os outros dois seriam a cidade tradicional de crescimen- to radioconcêntrico, mantida como centro institucional e de trocas, e a "cooperativa agrícola". O modelo, influenciado pelas ideias sindicalistas, mescla os estudos re- gionais de Walter Christaller com as ideias da cidade linear e da "Ville Radieuse", propondo a ligação entre as cidades exis- tentes através de assentamentos industriais lineares cujas áreas residenciais seriam compostas de "Unités", com os interstícios rurais preenchidos por cooperativas agrí- colas segundo um padrão hexagonal de distribuição. Trata-se da organização de todo o terri- tório através de um modelo regional com- pleto, prevendo a superação dos conflitos entre a cidade e o campo que atormenta- ram os marxistas do século XIX em dian- te e dividiram os planejadores e urbanis- tas soviéticos nos anos 20. A "Unité" como protótipo habitacional do novo modelo urbano A reconstrução da França após a 2? Guerra lhe parecia a ocasião ideal para a aplicação, em larga escala, de seu mode- lo, substituindo o tecido destruído por uma nova cidade, radiosa, composta de Unidades de Vizinhança verticais auto- suficientes em abastecimento e serviços lo- cais, em meio a extensas áreas verdes, l i - gadas por um sistema viário eficiente e in- dependente das edificações aos centros cívico-institucionais e comerciais, e aos lo- cais de trabalho e lazer. As primeiras encomendas levaram aos planos para Marselha, Saint-Dié, La Rochelle-Pallice e Antony que, logo obs- truídos pela administração, decretam a in- viabilidade de sua utilização como modelo institucional para o processo de reconstru- ção. A "Ville Radieuse" acaba reduzida à 66 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 construção de alguns protótipos, "Unités" isoladas que subsistem enquanto situações excepcionais, habitação coletiva elevada à condição de monumento, como restos dra- máticos de uma cidade que não chegou a se completar e, ainda assim, marcos in- contestáveis da arquitetura moderna. Cu- riosamente, sua força reside, ao contrário do que Le Corbusier previa, justamente em sua condição de prédios excepcionais dentro de um tecido comum, o que seria perdido se estivessem submersos em um tecido feito apenas de "Unités". Unité de Marselha A "Unité" de Marselha dá forma e vi- da à ideia da "Unité d'Habitation de Grandeur Conforme", e marca de manei- ra grandiosa a guinada brutalista da fase madura. Trata-se de uma barra de 18 pi- sos, com 137 m de comprimento, 24,5 m de largura e 53 m de altura, totalmente regulada pelo Modulor, contendo 337 apartamentos duplex em 25 tipos. Os apartamentos, orientados leste/oeste (com apartamentos especiais sobre a empena sul) articulam-se dois a dois ao redor de um corredor interno de circulação a cada três níveis, e dispõem de balcões ligados a uma peça de pé-direito duplo. O pré- dio eleva-se do solo sobre uma dupla f i - leira de pilotis gigantescos, possui uma rua interna de comércio local, manifesta em meio à fachada, servida por escada exter- na sobre a empena norte, cega, e equipa- mentos sociais coletivos no terraço jardim, povoado por objetos arquitetônicos com formas livres em contraponto à rigorosa or- denação da fachada, totalmente executa- da em concreto bruto. Projetada a partir de 45, inaugurada em 52, a "Unité" de Marselha, com sua mas- sa, proporções e dramático jogo de luz e sombra sobre o concreto bruto, é um dos prédios mais emblemáticos do século XX, e seu impacto é enorme. Mesmo que a rua comercial interior nunca tenha funciona- do a contento, ou que a lógica do "jogo de montar" com os dois apartamentos ao redor do corredor torne um deles dificil- mente habitável dentro de qualquer pa- drão familiar usual, a "Unité" constitui a culminância da busca em resolver a eter- na equação entre indivíduo e coletivida- de, problema central da habitação urba- na e preocupação contínua de Le Corbu- sier desde sua visita à Cartuxa de Ema, no início do século. A ela, seguem-se as "Unités" construí- das em Nantes-Rezé, Berlim, Briey-en- Forêt e Firminy-Vert, e os projetos para Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 Strasburgo, Bogotá e Meaux, já com o pro- tótipo passando a tipo, e mostrando uma simplificação conceituai e a perda, pela re- petição e certa degradação do tratamen- to, da força inicial. Mesmo que a "Ville Radieuse" não te- nha sido realizada, sua influência como modelo evolutivo no desenvolvimento ur- bano do pós-guerra é considerável, e a in- fluência das "Unités' construídas para a linguagem arquitetônica é dificilmente avaliável em toda sua extensão. Além de incontáveis conjuntos habitacionais e pro- gramas de renovação e expansão urbana, a organização de novas cidades presta nor- malmente tributo às ideias corbusianas. Esta trajetória é auxiliada pela fetichi- zação de um texto. A Carta de Atenas, re- digida por Le Corbusier com as conclusões e recomendações do 4? Congresso dos CIAM e publicada apenas na década de 40, consagra o modelo inicial da "Ville Ra- dieuse", pregando uma cidade feita de tor- res e barras bastante afastadas entre si, so- bre espaço verde contínuo, com classifica- ção e segregação espacial de funções ur- banas (definidas como sendo Habitação, Trabalho, Circulação e Lazer), e rígida hie- rarquização da circulação. Mesmo consis- tindo num texto bastante esquemático, datado, e perigosamente superficial em muitos pontos, a autoria de Le Corbusier e a chancela e prestígio do aparelho dos CIAM conferem-lhe um estatuto desme- surado, de texto normativo do urbanismo moderno. Usado como manual de plane- jamento e desenho urbano, em mãos mui- to menos dotadas que as de seus idealiza- dores, e institucionalizado de forma equi- vocada em muitas legislações urbanas, o resultado já é história, e fica para depois. Chandigarh Já Chandigarh aparece como um caso específico no desenvolvimento do urbanis- mo corbusiano. Trata-se da aplicação de al- guns princípios da "Ville Radieuse" a uma cidade concreta, com demandas de natu- reza simbólica e institucional muito espe- cíficas, em contexto e organização social peculiaríssimos. Le Corbusier parte do es- quema de cidade-jardim traçado inicial- mente pelo americano Albert Mayer, transformando-o completamente. O tra- çado é retificado e normalizado, e intro- duzido um eixo monumental com referên- cias ao trabalho de Lutyens em Nova De- lhi, organizando duas áreas residenciais di- vididas em setores retangulares, penetra- dos em cruz por um sistema linear de áreas verdes. si lvio abreu plano de urbanização, saint-dié, 45 ftrminy, 60/65 > 67 ESPAÇO & CRÍTICA/urbanisrao chandigarh, índia, 52/65, planta Na "cabeça" da cidade, ligada a ela pela "espinha" do eixo (ojan Marg), está o Ca- pitólio, com os edifícios institucionais re- presentativos em meio a uma praça seca, tudo regulado ao centímetro pelo Modu- lor. O esquema lembra a "Ville Radieu- se", mas sua organização abandona a ideia de simetria em favor de um sistema mo- dular de proporções. Delegando boa par- te do trabalho nos setores residenciais aos membros da equipe, Jane Drew e Maxwell Fry, Le Corbusier concentrou-se nos pro- jetos para o Capitólio, produzindo alguns dos edifícios mais memoráveis de sua obra brutalista. Gigantescas estruturas em con- creto bruto erguem-se do enorme "pla- teau" da praça como monstros pré-histó- ricos desafiando a paisagem, com dramá- ticos jogos de sombra, volumes brutais, de uma empatia, proporção e escala quase in- descritíveis, chegando afinal à materiali- zação de seu "espace inéfable". Daí para a frente, conforme Frampton, como os grandes mestres do renascimen-to, Le Corbusier dá a impressão de procu- rar compensar um todo jamais realizável através do projeto e concretização de ele- mentos representativos de escala monu- mental, âncoras arquitetônicas de um mo- delo urbano que não se completará. Duas ou três coisas que ficaram dele O projeto e a construção da cidade bra- sileira, sem dúvida, têm se efetuado se- gundo determinados modelos espaciais, fundamentados em ideologias que se f i - liam diretamente ao movimento moder- no. E forçoso reconhecer a hegemonia glo- bal de um conjunto de paradigmas de pro- jeto, que se manifestam tanto nos proces- sos de renovação e extensão urbana, e na criação de cidades novas ou partes delas, quanto na institucionalização normativa do urbanismo e do planejamento urbano. A influência de Le Corbusier sobre eles é inegável, não só porque sua contribuição para o corpo de doutrina do movimento moderno é capital, como porque a arqui- tetura moderna brasileira se filia especifi- camente ao movimento moderno em sua vertente corbusiana. O entendimento um tanto apressado dessa constatação óbvia, entretanto, pro- cura atribuir à sua exclusiva competência o conjunto de consequências — muitas francamente desastrosas — da aplicação dos modelos e dos paradigmas de projeto entre nós nos últimos 40 anos, e mais ex- tensivamente nos últimos 25 anos. Assim fazendo, comete uma injustiça básica. 68 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 si lvio abreu É verdade que o urbanismo brasileiro utilizou, com maior ou frequentemente menor acerto, os modelos desenvolvidos por Le Corbusier, e certas sementes dos er- ros cometidos em seu nome já estavam presentes na própria estrutura teórico- ideológica dos mesmos. Entretanto, todos eles pressupunham, para sua viabilidade, determinadas pré-condições básicas que nunca foram consideradas na sua aplica- ção indiscriminada, comprometendo par- cial ou totalmente os sonhos originais. E preciso diferenciar as propostas originais da infinidade de propostas que, mesmo derivadas ou inspiradas nelas, levaram a seu abastardamento, distorção ou banali- zação. As propostas originais já foram des- critas. E preciso avaliar sua real influência nas derivações. Vamos por partes. Critica-se Le Corbu- sier pela miséria de nossos conjuntos ha- bitacionais, responsáveis pela extensa e pouco densa periferia de muitas cidades, formada pela simples justaposição de con- juntos isolados, desprovidos de articulação interna, entre si e com o conjunto do es- paço urbano, gerando um tecido descon- tínuo e fragmentado. A ideia do conjun- to habitacional vincula-se diretamente aos conceitos de zoniflcação/segregação espa- cial de funções em zonas exclusivas, defen- didos pelo urbanismo moderno e clara- mente explicitados pelo próprio Le Cor- busier em seus projetos e escritos, a come- çar pela Carta de Atenas. Entretanto, se o conceito é relativamente ingénuo e me- canicista, vendo a cidade como uma mera soma de partes, ele não sugeria exatamen- te a forma como tem sido implantado, nem sua repetitividade, banalidade e alienação. Os conjuntos habitacionais tipo "BNH" pautam-se por duas fórmulas de projeto distintas. Por um lado, o loteamento de casas unifamiliares mínimas, seguidamen- te isoladas em lotes privados, miniaturi- zando o loteamento operário do século XIX. Por outro lado, o conjunto de blo- cos de apartamentos sobre terreno condo- minial, seguindo padrões de distribuição em barras paralelas de média altura na mesma orientação, ou em blocos isolados de configuração variada passíveis de arti- culação formando "clusters". Ambas caracterizam-se pelo grande porte, caráter unitário de projeto, construção e gestão, localização periférica e repetitividade tipo- lógica, e nestes sentidos prestam tributo às soluções centralizadas defendidas pelo movimento moderno e, especificamente, por Le Corbusier. Mas paramos por aí. A primeira fórmula reproduz exatamen- te uma das soluções mais criticadas por Le Corbusier, o loteamento convencional, que era apontado como perdulário, anti- econômico e anacrónico com as demandas da cidade moderna, conduzindo à disper- são suburbana em baixa densidade, que destruiria tanto a cidade quanto o cam- po. Contra ela bateu-se toda sua trajetó- ria, e debitar seus notórios prejuízos e de- seconomias ambientais, culturais e socio- económicas à sua conta parece no míni- mo descabido. A segunda fórmula pode apresentar ecos de modelos corbusianos, especial- mente da "Ville Radieuse", cidade de bar- ras sobre o parque. São, entretanto, ecos distantes, que nos chegam quase irreco- nhecíveis. No caso das barras paralelas de média altura, sua filiação remonta muito mais à cidade funcional dos urbanistas ale- mães, através de uma versão algo degra- dada do princípio "Zeilenbau" da déca- da de 20. Qualquer semelhança com o projeto do "siedlung" Goldstein de Ernst May em Frankfurt não é mera coincidên- cia. As ideias de Ludwig Hilberseimer e as imagens racionais de sua "Cidade Mo- derna" estão igualmente presentes. Não é necessário estender-se sobre o fato de que Le Corbusier se bateu ao interior dos CIAM contra o modelo, contrapondo-o à sua "Ville Radieuse" em altura como so- luções opostas para a moradia na cidade moderna. Este foi, justamente, um dos grandes debates internos dos primeiros congressos, e finalizou com a hegemonia ideológica do modelo corbusiano, afastan- do os alemães, a partir do 4? Congresso, ratificada com a publicação posterior da Carta de Atenas. Quanto aos blocos de formas proliferan- tes, em suástica, H, T, Y, I ou configura- ções compósitas, que infestam os conjun- tos mais recentes em busca de suposta "va- riedade" (formando uma virtual cidade "alfabética" quando vistas do alto), resul- tam do abastardamento de ideias estrutu- ralistas e brutalistas das décadas de 50 e 60. Comparar sua estrutura compositiva arbitrária, e a arquitetura anódina e ba- nal das vigas de concreto e painéis de fa- chada recuados (num "decorativismo" brutalista degenerado), com o vigor Ç S L dramaticidade da fase brutalista de Le Cor- busier não merece comentários. E apenas lamentável. Brasília Brasília é normalmente descrita e acei- ta como a cidade da Carta de Atenas. A afirmação é verdadeira, já que Brasília sur- ge como o maior exemplo concreto de ci- dade construída de acordo com as teorias urbanísticas do movimento moderno, tal como sumariadas em seu principal corpo de doutrina. O projeto de Lúcio Costa, inegavelmente a melhor submissão ao con- curso (entre os que se conhece, ao menos), consagra o zoneamento funcional, o tra- çado urbano ampliado e independente das edificações, a hierarquização do sistema viário e a racionalização da estrutura ur- bana. Em suas superquadras residenciais, barras sobre pilotis em meio a jardins co- letivos ilustram a cidade das torres e bar- ras no parque. A partir dela podemos ava- liar as potencialidades e limitações do mo- delo, aplicado com rigor, fartos recursos e determinação política. Entretanto, Brasília é, também, uma ci- dade única. Assim como a arquitetura mo- derna brasileira a partir dos anos 30 não é cópia ou aplicação direta do movimen- to moderno em sua versão corbusiana, e sim síntese, na qual elementos são rein- terpretados e transformados à luz de uma tradição e um contexto próprios, o proje- to da nova capital não escapa a esta con- dição. Brasília é uma cidade administra- tiva e institucional, e não industrial, co- mo a "Ville Radieuse" pressupunha. Des- sa forma, atende a demandas de escala re- presentativa e simbólica decisivas, e é co- mo cidade-monumento de um novo Bra- sil que podemos entender toda a lógica de seu desenho. O monumento não é proto- típico, é necessariamente único. Assim, o paralelo de Brasílianão seria a "Ville Radieuse" enquanto modelo ge- nérico, e sim Chandigarh, igualmente ci- dade-monumento da nova índia. Brasília representa o encontro de duas tradições, a tradição do movimento mo- derno — já história à época de seu proje- to e construção — e a tradição do huma- nismo ocidental transferida à herança ar- quitetônica e urbanística brasileira. Deve muito de sua simplicidade e clareza con- ceituai, certamente, à formação e sensibi- lidade clássica de Lúcio Costa. Já se falou muito do cruzamento de ei- xos como gesto épico e simbólico sobre o território (e nisso lembra a clareza de al- guns partidos corbusianos). Entretanto, o cruzamento de eixos alude igualmente ao encontro das duas tradições, uma repre- sentada pelas asas da cidade residencial l i - near, outra pelo eixo monumental, admi- nistrativo e institucional, de clara extração barroca. Brasília guarda certa semelhança com o conceito da "Ville Radieuse" de Chandi- garh na localização de uma "cabeça" ins- > Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 69 ESPAÇO & CRÍTICA/urbanismo Ferroviária Plano-Piloto ) ! escala 1/100.000 < brasília, plano-piloto 'porte mo/itor". paris, 33 créditos das fotos, Le Corbusier, W. Boesiger/H. Girsberger, Verlag fúr Architektur (Ártemis) Zúrich, 67 titucional e monumental separada do cor- po da cidade. Entretanto, em Brasília a "cabeça" constitui culminância de com- posição clássica, axial, enquadrada pelo ei- xo dos Ministérios, com acentos das "pla- ces" barrocas francesas (Lúcio Costa refere - se explicitamente à Place de la Concorde), enquanto em Chandigarh a composição do Capitólio é assimétrica, baseada numa grelha modular ideal (o Modulor), e as re- lações entre os prédios se dão por locali- zação na grelha, escala e motivos formais similares, e por sua contraposição dramá- tica e singular com a escala desmesurada da paisagem. Nesse sentido podemos di- zer que o Capitólio de Chandigarh se pau- ta por modelos compositivos que se reme- tem à Acrópole grega, ao contrário de Bra- sília, que se filia aos grandes eixos proces- sionais, e daí ao espaço urbano barroco, inclusive com foco ao final, constituído pe- la alça de mira do Congresso. A estrutura urbana das duas cidades é distinta. Enquanto Brasília enfatiza o cru- zamento de dois eixos distintos em fun- ção, escala, configuração e representativi- dade, Chandigarh possui apenas um eixo, relativamente pouco formalizado para sua escala monumental, espinha de dois gran- des setores residenciais que leva até o Ca- pitólio (à grande praça seca, e não a al- gum edifício), mas na realidade remete, diretamente, à paisagem colossal do fundo. Os dois eixos de Brasília se cruzam no grande nó de circulação e comércio da ci- dade, e neste sentido podemos pensar na "Ville Contemporaine". Entretanto, a ên- fase aí não é dada a arranha-céus de escri- tórios, que poderiam competir com o fo- co principal, institucional, e sim à própria plataforma, de onde se descortina a estru- tura monumental da cidade, à torre de co- municações mais além e, em menor me- dida, aos setores hoteleiro, bancário e co- mercial que a cercam por dois lados. As duas casas residenciais configuram- se como autêntica cidade linear, dividida por um eixo viário, com superquadras re- gulares ocupadas por barras dispostas se- gundo composições geométricas ortogo- nais, seja periféricas descontínuas, seja com subdivisão de espaços abertos, quase pá- tios, num padrão relativamente regular de repetição de soluções-tipo. Curiosamente, lembram "rédents" fracionados, e não o tecido composto de "Unités" isoladas dis- postas na mesma orientação sobre um par- que contínuo e ilimitado das propostas corbusianas após Nemours. Nesse sentido, estão formalmente mais próximas das ima- gens da Cidade Moderna de Hilberseimer que da "Ville Radieuse" original. 70 Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 si lvio abreu Ao mesmo tempo, sua organização ló- gica constitui o desenvolvimento natural do conjunto de teorias sobre a "Unidade de Vizinhança", de matriz anglo-saxônica, utilizada por Le Corbusier (na unidade de vizinhança vertical da "Unité"), mas não exclusividade sua. Enfim, Brasília consti- tui síntese construída de boa parte das ideias urbanísticas do movimento moder- no, e não apenas de Le Corbusier, media- da por contexto, tradição e caráter especí- ficos. Dificilmente pode ser reproduzida como modelo, pois suas condições de ges- tação são muito excepcionais e não se re- petirão. Parte dela, como as superquadras residenciais, persiste como ilustração do sonho de um novo modo de vida urbano, para o qual a contribuição corbusiana é fundamental. Em função disso a conta, no caso, deve com ele ser compartilhada. Atribui-se a Le Corbusier responsabili- dade pelos processos recentes de renova- ção urbana. Os paradigmas de projeto do movimento moderno, quando aplicados à renovação do tecido, têm contribuído pa- ra a desfiguração da cidade e de seus bair- ros, reproduzindo à escala do lote a lógi- ca de dissociação e fragmentação da "ci- dade aberta", e substituindo o tecido ur- bano tradicional por uma coleção desco- nexa de objetos isolados. Le Corbusier, não hesitando em arrasar um trecho de Paris para a implantação de seu "Plan Voisin", constitui alvo fácil. A ideia de modelo re- produtível em qualquer situação implica relativa desconsideração ao contexto. E ver- dade que esta postura corresponde à fase dos anos 20. sendo parcialmente revisada na obra futura, e não constitui postura ex- clusivamente sua. Pelo contrário e, bem ou mal, compartilhada pelo movimento mo- derno como um todo. Uma parte do problema consiste na transição acrítica e indiscriminada dos pa- radigmas de projeto do movimento mo- derno, concebidos em e para determina- das condições, para a normativa urbana. Institucionalizados, incidem sobre uma ci- dade feita de lotes privados de dimensões modestas, regras e exigências elaboradas para uma cidade de solo contínuo, públi- co, dividida através de um traçado amplia- do em superquadras. Os resultados são, naturalmente, desastrosos. Nesse sentido, é preciso observar um pouco o mestre, quando trabalhava ao in- terior do tecido tradicional, em lotes ur- banos convencionais. Submetido, como to- do o mundo, à disciplina do gabarito e do alinhamento, reinterpretava magistral- mente os "constrangimentos" em proje- tos como o edifício da Porte Molitor e a "Armée du Salut", em Paris, ou o "Im- meuble Clarté", em Genebra. Algumas das melhores obras da arquitetura moder- na brasileira devem sua forma e impacto justamente a esse jogo dialético entre in- venção e convenção, inserindo-se como ob- jetos especiais em meio a um tecido tra- dicional, beneficiando-se do contraste em- prestado por esta condição. Transferir li- teralmente os preceitos da "Ville Radieu- se" de solo coletivo para um tecido de lo- tes não parece nada corbusiano. Parece, antes de mais nada, burro. A outra parte do problema consiste' num legado de atitude, persistente e in- sidioso, entre nós. Alguns de seus proje- tos urbanos, abstraído seu inegável apelo simbólico como exaltação de modernida- de, constituem atos quase intoleráveis de vaidade humana, auto-suficiência e forma- lismo. Le Corbusier propõe-se a oferecer nada menos que uma solução completa e acabada para todos os problemas urbanos modernos. Assim agindo, coloca o arqui- teto (e o urbanista) numa posição de po- der autocrático, encorajando-o a propor so- luções numa escala megalomaníaca. Se po- de eventualmente fazer bem para o ego de arquitetos em crise de identidade, não acontece da mesma forma com a cidade e a sociedade. Podemos argumentar que este é um problema central de arquitetu- ra moderna, aplicável a planejadores de qualquerideologia, respondendo antes de mais nada às condições de produção do ca- pitalismo monopolista de Estado e das economias de planejamento centralizado. Focando a crítica em Le Corbusier, joga- se sobre um indivíduo-arquiteto, por mais genial e megalomaníaco que seja, acusa- ções que deveriam ser debitadas à nature- za da economia, do Estado e da cidade moderna que, ele, no entreguerras, assu- miu e de certa forma prenunciou. Políti- cas de planejamento, ou grandes operações urbanas, não são determinadas pela in- fluência de um arquiteto, mas por forças e interesses sócio-econômicos, padrões ins- titucionais e ideologias (não necessaria- mente urbanísticas). Mesmo que Le Cor- busier tenha criado uma imagem poderosa e convincente para tais forças num primei- ro momento, ele certamente não as levou à vida, e muito menos na forma como hoje a criticamos. Ao lado da imagem demiúrgica, é pre- ciso resgatar o Le Corbusier do plano para Argel, antevendo a necessidade de parti- cipação do usuário ao interior de uma es- trutura pública de suporte; dos gestos ge- nerosos para o Rio de Janeiro, parcialmen- te seguidos e executados como fragmen- tos nos conjuntos do Pedregulho e da Gá- vea, de Reidy; do rigor, seriedade e com- prometimento com que lutou, toda a vi- da, por uma cidade melhor, reafirmando a necessidade e a pertinência da arquite- tura na construção do mundo. No mo- mento em que um furor "integrista" var- re Brasília, procurando apagar as marcas e caminhos que a cidade traçou sobre si própria, reinventando-se e transformando- se, aos poucos, em algo diferente do que tinha sido traçado (não necessariamente pior), é preciso voltar ao mestre. Confron- tando com as modificações que os usuá- rios haviam efetuado sobre seu rigoroso projeto para Pessac, "conspurcando" os de- sígnios do arquiteto, ele nos indica com resignação e grandeza que "A vida tem sempre razão. O arquiteto, não." A obra urbanística de Le Corbusier é gigantesca, multifacetada apesar da fidelidade cons- tante a alguns conceitos, contraditória até, e dela tivemos muitas influências, nem to- das positivas para o projeto e a construção da cidade brasileira. Dessa influência, en- tretanto, certamente ainda não tivemos o bastante. BIBLIOGRAFIA (referências conforme se- quência do texto) VON MOOS, S. Le Corbusier: Elements of a Synthesis. Cambridge (Mass.), The MIT Press, 1979. FRAMPTON, K. Historia Crítica de la Arqui- tectura Moderna. Barcelona, Gustavo Gili, 1981. CURTIS, W. La Arquitectura Moderna desde 1900. Madrid, Ed. Blume, 1986. BENTON, T. Urbanism, in: Le Corbusier. Ar- chitect of the Century (Catálogo da exibição na Hayward Gallery, London, 1987). CORBUSIER, LE. La Charte dAthènes. Paris, Les Éditions de Minuit, 1957. BOESIGER, W. & GIRSBERGER, H. Le Cor- busier 1910-65. Zurich, Les Éditions dArchi- tecture, 1967. CORBUSIER, LE. Urbanisme. Paris, Éditions Crés. 1925. Précisions sur un état pré- sent de TArchitecture et de 1'Urbanisme. Pa- ris, Éditions Crés, 1930. La Ville Radieuse. Paris, Édi- tions de TArchitecture dAujourd'hui, 1935. Les Trois Établissements Hu- mains. Paris, Denoel. 1945. __. Maniére de Penser 1'Urba- nisme. Paris, Éditions de TArchitecture dAu- jourd'hui, 1946. My Work. London, Archi- tectural Press, 1960. * Silvio Belmonte de Abreu Filho, arqui- teto formado pela UFRGS em 1975, pós- graduado pelo IEDES da Université de Paris I, em 1979, é professor e pesquisador do PRO- PAR da Faculdade de Arquitetura da UFRGS desde 1980, com prática profissional em Porto Alegre. Arquitetura e Urbanismo—outubro/novembro 87 71
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