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Francis Silva de Almeida Introdução A formação do pensamento crítico Capítulo 3 A pergunta se impõe. Chega um momento em que já não se pode continuar evitando nem permanecer na opinião de costume. Immanuel Kant A educação escolar apresenta características plurais: aprender, na escola, é um processo multifacetado que considera diferentes contextos e assinala um movimento de significação e geração de movimentos individuais e coletivos em torno de sistemas de signos históricos e culturalmente situados. Nesse ínterim, algumas questões se destacam. Há uma relação entre filosofia e pedagogia? Qual a natureza dessa relação? A questão educativa pertence à ordem didática ou se constitui como um problema de natureza filosófica? A filosofia deve permear os processos educativos? De que maneira? De que modo e em que medida a relação entre filosofia e pedagogia corroboram a formação do pensamento crítico? As questões que enunciamos acima orientam o ponto de partida das reflexões que propomos neste capítulo: discutir a relação entre filosofia e pedagogia no âmbito da educação escolar, e, a partir daí, os limites e as possibilidades dessa relação no processo de 116 UNIUBE formação do pensamento crítico; colocar em questão o papel que a escola e o professor desempenham nesse processo, e, ainda, compreender de que modo a demanda por sentido que se insere nesse curso formativo assinala a extensão da vida ética e política na qual professor e aluno encontram-se inseridos. Nessa perspectiva, os papéis e as representações assumidas pelo homem na vida em sociedade, bem como o papel das instituições que se inscrevem no domínio da coletividade, têm promovido a elucidação de que as diferentes dimensões do ser humano revelam uma unicidade, uma integralidade que carece ser revista, sobretudo, pela instituição escolar que, no tempo presente, assume a tarefa de superar o legado da razão instrumental, resgatando as dimensões do desejo, da ludicidade, da linguagem e do fazer significativo, como abertura para a dimensão das vivências socioculturais como espaço de construção dos sentidos de ser e estar no mundo. Aproveitamos para esclarecer que, em algumas passagens deste capítulo, utilizamos trechos retirados de nossa dissertação de mestrado – Filosofia e fazer filosófico no Ensino Médio: ressonâncias e deslocamentos em Deleuze-Guatari – apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2016. Ao final deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • discutir a relação entre filosofia e pedagogia no âmbito da educação escolar bem como os limites e possibilidades dessa relação no processo de formação do pensamento crítico; • inferir o papel da filosofia como elemento de um processo de ensino-aprendizagem que paute a construção da autonomia e a formação de sujeitos críticos e reflexivos; Objetivos UNIUBE 117 3.1 Filosofia e Educação: definindo conceitos 3.2 O problema filosófico e o problema pedagógico 3.2.1 A Filosofia como elemento do processo de ensino- -aprendizagem 3.3 Escola: experiência e memória 3.4.1 O papel da escola no contexto brasileiro 3.5 Considerações finais Esquema • descrever o papel que a escola e o professor desempenham no processo de formação do pensamento crítico; • explorar sobre como o processo de formação do pensamento crítico assinala a extensão da vida ética e política na qual professor e aluno encontram-se inseridos. Filosofia e Educação: definindo conceitos3.1 Filosofia. Do grego: philo (amigo, amante) e sophia (sabedoria). Em sua origem, a palavra filosofia assinala uma atitude, uma postura. Enamorar- -se da sabedoria significa colocar-se diante de suas próprias razões num movimento contínuo de busca pela verdade e resistência a toda forma de dogmatismo. A filosofia é uma forma de saber e produzir conhecimento; apenas uma entre tantas outras que se destacaram no decurso histórico de interpretação da realidade. Desde a sua origem, a filosofia tem sido tomada como uma postura intelectual que preza pela produção de conhecimentos capazes de traduzir de forma racional, lógica e sistemática as diferentes respostas para a origem, causas e transformações da realidade humana bem como da origem e das causas do próprio pensamento. Com uma postura intelectual, a filosofia revela a necessidade que o homem possui de inserir-se no interior das questões que enredam os diferentes aspectos da vida humana. 118 UNIUBE As grandes interrogações que os filósofos do passado fizeram permanecem no presente: os homens de hoje continuam a colocar problemas sobre eles mesmos, sobre a vida, sobre a sociedade, sobre a cultura, sobre o transcendente etc., que constituem verdadeiros desafios à nossa atividade reflexiva (JAPIASSU, 1997 apud LORIERI, 2002, p. 36). PONTO-CHAVE O sentido da filosofia como uma postura crítico-reflexiva reafirma a tradição filosófica que, desde a Antiguidade, enfatiza a descontinuidade entre o pensamento filosófico e o senso comum. Por isso, parece-nos significativo que o ensino da filosofia em nível médio reproduza a perspectiva do pensamento antigo que opunha doxa e episteme. É precisamente essa atitude de distanciamento entre a filosofia e o senso comum que assinala o entendimento de que o fazer filosófico consiste num árido trabalho intelectual sustentado, em primeiro plano, pela crítica e pela reflexividade. Segundo Lalande (1999), a palavra crítica, radicalizada do grego kritikos (derivada da palavra krisis – julgamento, seleção), diz respeito à capacidade de constituir juízos; isto é, concerne à disposição do sujeito pensante para pôr em crise não só as visões de mundo construídas pelo conjunto das crenças, opiniões e diferentes modos de viver e demonstrar sua subjetividade, que exprime não só a herança cultural dos sujeitos, mas também o próprio conhecimento que “sob a forma de palavra, ideia, teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e Doxa Filosofia. Sistema ou conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um determinado momento histórico supondo tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que para a filosofia não passa de crença ingênua, a ser superada para a obtenção do verdadeiro conhecimento. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 711) Episteme Filosofia. O conhecimento verdadeiro, de natureza científica, em oposição à opinião infundada ou irrefletida. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 783 UNIUBE 119 do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro.” (MORIN, 2000 apud LORIERI, 2002, p. 34). Assim, enquanto uma postura crítica, a filosofia concentra a função depurativa das certezas e das verdades que constituem o ideário dos indivíduos e seus universos simbólicos, cujo termo indica as condições para a construção de uma consciência individual e coletiva do caráter histórico, cultural e dialógico em que se inscrevem as relações humanas e a produção dos saberes. Por seu lado, a palavra reflexão, originada dos radicais latinos re, outra vez, novamente; e flexus, dobrado (derivado do verbo flectere, dobrar), enuncia o processo mental em que nos movimentamos sobre as dobras do nosso próprio pensamento (LALANDE, 1999). Trata-se da disposição de (re)ver o já pensado; (re)pensar e colocar em questão os próprios fundamentos do conhecimento. Cumpre destacar, conforme corroboramos as ideias de Deleuze e Guattari (2005), que a filosofia não é necessária para refletir sobre o que quer que seja: refletir não é uma prerrogativa da filosofia, mas a propriedade comum de qualquer área do saber. Ao indagarmos o sentido da filosofia como uma postura crítico-reflexiva, aludimos à forma de uma pluralidade que descreve tanto a filosofia como sua atividade. Por esse motivo, não nos permitimos afirmar a existência de uma filosofia, mas, como sugerem Deleuze e Guattari (2005), de filosofias; de diferentes experiências do filosofar como processosde construção abertos e inacabados. Logo, se compreendemos que o filosofar é uma experiência de singularidade que se desdobra dos múltiplos movimentos reflexivos que conferem unidade ao exame crítico dos fundamentos daquilo que se constitui nos domínios da doxa – postulante da representação e primado da identidade –, então, a filosofia encontra a sua legitimidade como uma 120 UNIUBE postura crítico-reflexiva das condições concretas da existência e abertura à episteme – condição de uma “filosofia da diferença.” (DELEUZE, 2006). Opor doxa à episteme é, portanto, tarefa da filosofia. Isso porque, segundo Deleuze, a redução da imagem do pensamento como representação propõe uma nova imagem em que as noções de sentido e o valor do exercício do pensar não se constituem como trabalho natural de uma faculdade que conjectura que “o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro” e, por isso, presume “que cada um saiba o que significa pensar.” (DELEUZE, 2006, p. 192). Nesse sentido, a abertura à episteme depende necessariamente das forças que se apoderam do pensamento. São as condições concretas às quais nos referimos e que dizem respeito a tudo aquilo que se manifesta no plano da sensibilidade e exprimem a força mobilizadora do pensamento: o objeto de um encontro fundamental, o de-fora, o signo, o sentiendum, aquilo que, segundo Deleuze (2006), sensibiliza a alma, torna-a perplexa e, por isso, força a passagem da doxa à episteme. A identificação da filosofia à atividade que constitui o pensamento, como este movimento de ruptura pode ser apreendido de diferentes formas, contudo, conforme notamos, ele só pode ser sentido: “do sentiendum ao cogitandum se desenvolveu a violência daquilo que força a pensar.” (DELEUZE, 2006, p. 205). Toda relação que o homem estabelece com mundo é mediada por representações construídas a partir de diferentes experiências de subjetividades. Por isso, pensar o sentido da filosofia como processo criativo capaz de inserir o homem no mundo por meio do pensamento nos remete às seguintes proposições: (i) a possibilidade de uma “experiência de mundo” que se desenha a partir das experiências vivenciadas pelo pensamento, se configura, precisamente, pela relação que o homem UNIUBE 121 constitui com o mundo, e com aquilo que lhe parece problemático; (ii) se assumimos o problema como aquilo que afeta o homem – razão dos espantos que lhe são provocados pela existência –, o processo criativo de inserção no mundo pelo pensamento é um processo naturalmente filosófico à medida que provoca desencontros, rupturas e força criações. Como se vê, a filosofia e o pensamento se entretecem de forma tal que a experiência do mundo como pensamento só se torna possível à medida em que o ato de pensar agencia múltiplas aberturas, processos de tensão e composição em que as relações e os acontecimentos se constroem e se desconstroem. Nesse sentido, afirmam Gallo e Kohan (2000, p. 192), “a filosofia é uma atividade de fazer experiências de pensamento, transversalmente atravessando o vivido e construindo sentidos para esses acontecimentos.” Educação. De origem latina, a palavra educação resulta da transliteração de dois vocábulos: educere, de ex-ducere; e educare. Enquanto no primeiro termo o prefixo “ex” indica o ato de conduzir (à força) para fora; o segundo remete ao sentido de alimentar. Nesse sentido, conduzir e alimentar são acepções que lançam luz à ideia de uma prática que é, em última análise, movimento de passagem: do mundo animal ao mundo humano, do mundo instintivo ao mundo consciente, do mundo concreto ao mundo representado; passagem viva do não saber ao saber. É, portanto, processo de humanização, um fenômeno tipicamente humano que se caracteriza pelo conjunto das ações e influências intencionais e mutuamente exercidas entre pessoas, cujo propósito concorre a construção dos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos de uma sociedade (REZENDE, 1990; LORIERI, 2002). Compete afirmar que a educação é uma prática social, e, como tal, existe em toda e qualquer sociedade humana, em todo tempo e lugar. Desde os agrupamentos sociais mais primitivos a educação já se manifestava como uma ação intencional orientada pelo conjunto dos valores que permitem 122 UNIUBE a coesão social e cultural entre as gerações. É precisamente a intenção de introduzir as novas gerações no mundo da cultura que distingue essa prática social de outras práticas sociais, e faz da educação o espaço de produção simbólica da existência. Por isso, podemos afirmar: a educação é o espaço de construção do humano como sentido que não se esgota e que, por essa razão, evidencia o aspecto fundador do conhecimento como o que conduz à compreensão da existência humana no mundo. A educação é o “processo-projeto de aprendizagem humano-significativa da cultura” (REZENDE, 1990, p. 59). Ou seja, enquanto fenômeno tipicamente humano e uma prática social, traz consigo três sentidos fundamentais: a. da condição corpórea como dimensão objetiva por meio da qual o ser humano é capaz de apreender da realidade externa: “há na educação todo um trabalho de educar os sentidos e a partir deles: aprende-se a ouvir, a ver, a cheirar, a degustar, a sentir, como também se aprende a lidar com a imaginação.” (REZENDE, 1990, p. 52). b. da condição intelectiva como expansão das capacidades cognitivas que permitem o ser humano compreender as relações de sentido que se entretecem por meio da linguagem: “a educação da inteligência diz respeito não apenas ao conhecimento, mas ao pensamento, isto é, à capacidade de refletir, meditar e acrescentar sentido.” (REZENDE, 1990, p. 53). c. do caráter histórico, político e social como condição de uma postura crítica ante o mundo e a si mesmo: “as intenções humanas, dos indivíduos e dos grupos, entram realmente em cena, na forma de conflitos subjetivos, no sentido forte deste termo.” (REZENDE, 1990, p. 55, grifo do autor). O ato intencional em que se sustenta a educação como prática social e de humanização se desdobra sobre os complexos processos de subjetivação e construção de sentidos. Constitui um espaço de relações concretas, onde diferentes sujeitos, com distintas percepções de seus UNIUBE 123 papéis sociais, revelam um exercício subjetivo que traz à tona a dinâmica de interação Eu-Outro: no interior da educação os indivíduos elaboram as suas visões de mundo e se elaboram no mundo, pelo Outro. Subjetivação é o processo de tornar-se sujeito. Ao nos referimos aos processos de subjetivação, dizemos das diferentes formas pelas quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos. Esses processos são realizados num plano histórico-político a partir do qual a forma do sujeito emerge como efeito. Dito de outro modo: os processos de subjetivação dizem respeito à produção de modos de existências, ou seja, dos diferentes modos de agir, de sentir e de dizer o mundo. EXPLICANDO MELHOR Logo, compreendemos que a educação é aquilo que se constitui nas mais variadas formas da ação humana como intensidade que marca a própria vida enquanto processos híbridos, múltiplos e heterogêneos. Encontrando- -se histórico, social, cultural e politicamente situado, o fenômeno educativo traz consigo a força plástica daquilo que é imanente, ou seja, que se define como o que não está nem para o sujeito nem para o objeto; como o que é pré-reflexivo, a-subjetivo e se forma na anterioridade e na exterioridade da relação sujeito-objeto enquanto movimento que não começa nem termina (DELEUZE, 2002). No interior do fenômeno educativo, a cultura se manifesta como dinâmica própria do relacionamento que o indivíduo tem com o trabalho e a história. Segundo Rezende (1990, p. 63), “é pelo trabalho, pelas práxis, que o Híbrido Que ou que é composto de elementos diferentes. (HOUAISS, 2009, p. 1018). Múltiplo O que apresenta grande númeroou variedade de algo. (HOUAISS, 2009, p. 1329). Heterogêneo Que possui natureza desigual e/ou apresenta diferença de estrutura, função, distribuição etc. (HOUAISS, 2009, p. 1016). Plástico Aquilo que pode ser moldado (HOUAISS, 2009, p. 1507). Imanente Que está inseparavelmente contido na natureza de um ser ou de um objeto (HOUAISS, 2009, p. 1048). 124 UNIUBE homem gera cultura. [...] o homem se faz, se transforma, no trabalho, na história e na cultura”. Ora, se a cultura é o resultado de tudo o que homem produz por meio do trabalho para significar simbolicamente sua existência, então “não apenas o trabalho manual, mas o intelectual, o educacional, são igualmente geradores de cultura.” (REZENDE, 1990, p. 63). O trabalho se coloca em relação direta com a cultura e com a história e, justamente por isso, constitui o território sobre o qual se desdobra a história do homem a partir dos significados que ele atribui à sua própria existência. Conforme Rezende (1990, p. 63): “Educar-se é aprender a fazer a história, fazendo cultura. Isto é trabalho”. Logo, a educação deve implicar, para o trabalho, o sentido mais profundo de produção da cultura pela transformação do homem e do mundo; para a cultura, o sentido da compreensão teórica e prática das relações humanas e do modo, como a partir dessa trama, a existência é simbolicamente representada. A educação como aprendizado do trabalho e da cultua figura o espaço da criação da consciência e da identidade de ser-no-mundo, “da compreensão do sentido do relacionamento dialético entre a estrutura do sujeito e a do mundo [...]. Somente essa compreensão permitirá o acesso dos sujeitos da educação à condição de sujeitos da cultura pela apropriação dos sentidos da existência.” (REZENDE, 1990, p. 70). Por seu lado, a educação escolar diz respeito aos processos formais de escolarização, de construção e aquisição de conhecimentos na escola. Essa perspectiva nos leva a reconhecer a educação escolar como uma dimensão que se encontra contida na educação, ou seja, como a fração de um fenômeno que “se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com que ele aconteça” (DELEUZE, 2002, p. 16). Assim, ao pensarmos a escola como instituição social, o fazemos pelo viés de uma concepção que temos de educação, o que, por seu lado, implicará diretamente as relações humanas e de aprendizagem. UNIUBE 125 Os papéis e as representações assumidas pelo homem na vida em sociedade, bem como o papel das instituições que se inscrevem no domínio da coletividade, têm promovido a elucidação de que as diferentes dimensões do ser humano revelam uma unicidade, uma integralidade que carece ser revista, sobretudo, pela instituição escolar que, no tempo presente, assume a tarefa de superar o legado da razão instrumental, resgatando as dimensões do desejo, da ludicidade, da linguagem e do fazer significativo, como abertura para a dimensão das vivências socioculturais como espaço de construção dos sentidos de ser e estar no mundo. Nessa perspectiva, nos reportamos ao papel que a escola vem exercendo nas sociedades contemporâneas, haja vista que a ela se atribui, cada vez mais, a tarefa de realizar, junto às novas gerações, os ideais educacionais propostos pela sociedade como um todo. Por isso, a despeito dos sentidos que foram atribuídos à educação escolar após a revolução industrial e do modo como esses sentidos tenham legado à escola contemporânea um projeto social hegemônico, sublinhamos que o modo como os professores de filosofia participantes deste estudo reconhecem a formação humana e integral não só subjaz o papel central da instituição escolar, como também reafirma que a apropriação do conhecimento constitui apenas uma parte dos seus fazeres. A respeito do caráter emancipador que se revela na formação humana integral, notamos: O conteúdo da educação – tal como a forma – tem caráter eminentemente social e, portanto, histórico. É definido para cada fase e para cada situação da evolução em uma comunidade. Por conseguinte, deve atender primordialmente aos interesses da sociedade. Se esta é democrática, os interesses dominantes têm que ser os do povo, e se considerarmos um país em esforço de crescimento, tem que ser o de suas populações que anseiam por modificar sua existência. (PINTO, 2005, p. 43). 126 UNIUBE Por isso, cabe à escola: (a) transformar a sociedade, de modo a eliminar as divisões sociais estabelecidas; (b) desbarbarizar a humanidade, no que concerne aos seus preconceitos, opressão, genocídio, tortura etc; (c) conscientizar os indivíduos, tendo em vista uma formação de sujeitos críticos, autônomos e emancipados; (d) desenvolver uma educação integral, que permita o desabrochar das potencialidades humanas; (e) apropriar-se do saber social, que permita uma socialização ampla da cultura e apreensão dos conhecimentos e saberes historicamente produzidos; (f) formar para o exercício pleno da cidadania. (OLIVEIRA, 2009, p. 238) Corroboramos, assim, a tese de que o sentido da instituição escolar implica a complexidade das práticas inerentes ao próprio processo de humanização. Nesse contexto, as práticas pedagógicas terminam por circunstanciar questionamentos, reflexões e ideias que evocam hipóteses e ações, clareiam significados, reelaboram conceitos, interpretam situações e, bem frequentemente, inspiram e despertam uma relação intrínseca entre os sentidos e o intelecto. O problema filosófico e o problema pedagógico3.2 Ao considerarmos a filosofia como uma atividade de pensamento, comprometemos-nos com a clássica premissa que acompanha o fazer filosófico desde a sua origem: de que a philosophia nasce como admiração ante o desconhecido, como amizade pelo saber e, por isso, como busca pela verdade. O movimento de ruptura com a mitologia, como marco da origem histórica da filosofia entre os gregos antigos, nos permite apontar um duplo e importante registro: primeiro, que ao longo de toda a sua história, o fazer filosófico como atividade do pensamento UNIUBE 127 primou pela autenticidade do saber como o resultado de um movimento de superação da realidade aparente e busca do entendimento do que as coisas são em sua essência; segundo, que o pensamento filosófico possui uma característica que excede o consenso de que pensar filosoficamente é pensar de modo radical, rigoroso e de conjunto. O pensamento filosófico é também criativo. Conforme afirmam Deleuze e Guattari (2005), lançar mão deste segundo registro significa admitir que, como uma potência do pensamento, a filosofia não só toma para si a atividade de criação de conceitos, mas, em função de sua condição dialética, torna possível uma atividade intelectual que produza suas próprias versões de mundo, ou seja, subversões dos valores políticos, éticos e estéticos que atravessam os processos históricos e a história particular de cada pessoa. Segundo Deleuze e Guattari (2005, p. 143), “pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante que substituem a aparência de verdade e são mais exigentes que ela”. A experiência do pensamento é a experiência de fazer filosofia. É, portanto, o próprio fazer filosófico como ato concreto, permeado pela intencionalidade, pelos desejos, pelos discursos e pela singularidade dos sujeitos. Quando afinado com essa perspectiva, o problema filosófico inclui no horizonte de seu plano a forma do conceito (filosofia), a função do conhecimento (ciência) e a força da sensação (arte). Para Deleuze e Guattari (2005), a filosofia, a ciência e a arte constituem as três potências do pensamento quando “traçam planos sobre o caos” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 260). Ao traçarem seus planos sobre o caos, a filosofia, a ciência e a arte agem de modo próprio, criando, cada uma ao seu modo, um conteúdo distinto. 128 UNIUBE A filosofia não é ciência e não é arte e, por isso, não pode ser confundidaou substituída por elas. Cada uma dessas potências, guardando-lhe o que é específico, delimita suas fronteiras epistemológicas e suas condições de existência. Os signos emanados da filosofia, da ciência e da arte convidam- -nos, então, a experimentar o pensamento de modo intenso e não linear; a vivê-lo como expressão de um exercício que, permitindo-nos ir além do já pensado, postula o pensamento como novidade, como movimento e como ato complexo, singular e criativo. Ao atravessarmos os campos epistemológicos da filosofia e da educação, promovendo o corte de um pelo outro, o problema pedagógico ganha contornos claros e revela a necessidade de que os processos de ensino- -aprendizado se constituam como espaço privilegiado para a formação do pensamento crítico. PONTO-CHAVE Para Cescon (2009, p. 11): A natureza e as características da pedagogia estão estreitamente ligadas tanto ao que se entende por educação quanto ao que se entende por saber científico ou filosófico. Visto que a educação está sempre conectada às várias formas de vida historicamente determinadas, todas as concepções pedagógicas, ao definir os critérios da formação humana e os objetivos da aprendizagem refletem, inevitavelmente, os ideais, os valores, os interesses políticos e econômicos do tempo ao qual se referem. Por isso: A pedagogia busca na filosofia um ideal que nutra de sentido e conteúdo a educação; a filosofia, por sua vez, é sempre algo mais que ensino e recordação de ideias; é, desde a sua origem, a vigilância crítica, o espaço do debate, o impulso à fecundidade do pensamento. Por isso, a relação entre a reflexão filosófica e o processo educativo é tão íntima que se este não estiver contido naquela, a educação formará, no máximo, reprodutores da ciência, da técnica e dos valores culturais. (CESCON, 2009, p. 13). UNIUBE 129 Desse modo, o substantivo pedagogia não se limita ao campo das ações didáticas e das práticas interventivas de sentido instrutivo. Ao contrário, consideramos a pedagogia como uma tomada de consciência, empreendimento de teorização de um determinado projeto educativo, inscrito no quadro geral de uma reflexão filosófica. Trata-se, portanto, de assinalar a dimensão metarreflexiva dos estudos que se desenvolvem a partir do século XX e que se desdobram na busca pelos fundamentos epistemológicos, sentido, objeto e método da pesquisa educacional. A Filosofia como elemento do processo de ensino- -aprendizagem 3.2.1 No contexto do processo de ensino-aprendizagem, a identificação de uma pedagogia que ensine a pensar “e não só memorizar o que os outros dizem por mais profundo que seja o pensamento” (CESCON, 2009, p. 18) parece, antes de tudo, responder à disposição que acompanha o fazer filosófico desde os gregos antigos: estimando que a atividade do pensamento não comporta prescindir o caráter educativo de que sua ação se reveste, compreendemos que a formação do pensamento crítico se desdobra como processo de emancipação. Ora, se entre os gregos da antiguidade o ideal de educação como paideia atravessava expressivamente o fazer filosófico, então, temos que, ainda em nossos dias, educar para a emancipação do pensamento não passe por outros caminhos que não sejam aqueles que coadunam a formação do homem como ser integral. Ensino é a atividade que torna possível a construção de uma aprendizagem. Para Souza (2014, p. 77), “pode existir uma aprendizagem sem ensino, mas não existe ensino que não esteja orientado para um aprendiz”. Dessa maneira, ensinar e aprender designam ações que não se exprimem de outro modo que não seja numa relação de interação e interdependência: ensino- -aprendizagem. SAIBA MAIS 130 UNIUBE Enquanto fundamento dos processos de ensino e aprendizagem, a filosofia não só cria ressonâncias diretas sobre a educação e suas questões como, sobremaneira, recobra a experiência do pensamento como exercício de multiplicidade. Nesse sentido, o fazer filosófico como processo de emancipação intelectual retrata a articulação de movimentos: diz respeito àquele que emancipa, que liberta o outro; àquele que conquista a sua emancipação; e, por fim, à síntese dos movimentos anteriores como produto da emancipação. São movimentos essencialmente educativos. Educação do pensamento como condição de ruptura com a linearidade, com os processos de conformação e dominação; ruptura com os lugares-comuns que massificam a subjetividade. Educação para o pensamento como ato de criação e imprevisibilidade: são movimentos transversais que promovem a emancipação de quem ensina e de quem aprende. O sentido da emancipação ocorre, antes de tudo, como a forma do trabalho que comporta descobrir veredas, abrir sendas, criar caminhos alternativos; libertar-se das tutelas intelectuais: “Ousa saber! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento”, dizia Kant (1974). A conquista da autonomia ocorre na medida em que somos capazes de reconhecer as tensões crítico-criativas que nos atravessam o pensamento. Por isso, para Deleuze (1992, p. 167): “Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível.” A figura dos movimentos que aqui apresentamos nos remete ao esforço educativo daquele que, agenciando a formação do pensamento crítico, permite-se emancipar e colabora sobremaneira para a emancipação do outro. Sendas Caminho estreito usado pelos pedestres ou pelo gado de tamanho pequeno. Atalho, vereda, sendeiro. Rumo, direção, rota. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p.1728) UNIUBE 131 Em Nietzsche (2003), encontramos um significativo aporte para essa discussão. Nas Considerações Intempestivas, o filósofo recobra em Schopenhauer um modelo de educador capaz de conduzir o seu aluno à superação de sua própria cultura: “Era, então, realmente tomar os meus desejos por realidades, quando imaginava poder encontrar como educador um verdadeiro filósofo, capaz de elevar alguém acima da insuficiência da atualidade [...]” (NIETZSCHE, 2003, p. 146). Para Nietzsche, a filosofia não pode se desobrigar da tarefa educadora que lhe é própria; educar o homem contra o seu próprio tempo (NIETZSCHE, 2003). Algo que só pode se constituir nos atos de exterioridade do pensamento. A intenção da filosofia como educação emancipatória não se constitui na privacidade, mas na alteridade, numa dimensão de reciprocidade em que aquele que educa, termina também por se educar. O exercício público do pensamento constitui um intenso fluxo de revezamentos capazes de colocar o pensamento em contato com o de-fora. Com efeito, a exterioridade do pensamento filosófico constitue, para Nietzsche (2003, p. 141), os signos maiores da liberdade proposta pela filosofia educadora: “[...] teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores”. As Considerações Intempestivas de Nietzsche atacam, sobretudo, o projeto pedagógico da modernidade. Para o filósofo, a despeito da criação de singularidades, a educação apequenaria o homem formando-o unicamente para o serviço do Estado, da ciência positivista e do mercado. Os textos do “primeiro Nietzsche” denunciam a forma medíocre com que a educação moderna tende à conformação dos valores de “rebanho” (NIETZSCHE, 2003). Em Nietzsche e Deleuze-Guattari, a crítica da filosofia como educação emancipatória passa necessariamente pela formação política do pensamento. Trata-se de fazer nascer no pensamento o ato de pensar como matéria a ser reconhecida, acontecimento, criação de saídas. 132 UNIUBE Nesse contexto, uma importante questão se destaca: a leitura crítica. Segundo Cescon (2009), em Crítica do juízo, o filósofo Immanuel Kant observa haver três condições básicas para a realização de uma leitura crítica: a) pensar por si mesmo; b) pensar no lugar do outro; e c) ser consequente. Pensar por si mesmo significa pensar algo a partir das próprias premissas, mesmo que o objeto já tenha sido pensado outras tantas vezes poroutras pessoas. Não se trata de subtrair nenhuma ideia à livre discussão, mas, ao contrário, de promover as condições de verificação da validade dos argumentos que sejam próprios. Pensar por si mesmo significa elaborar suas questões sem a imposição de ordens, de pressupostos; criar problemas e ocupar-se deles mais do que com a possibilidade da solução. Pensar no lugar do outro diz respeito à capacidade de colocar-se “do outro lado” para vivenciar o lugar de fala como experiência de uma visão de mundo que, naturalmente diferente, justifica a apreciação e a crítica do outro em relação ao objeto da discussão. Para ilustrar essa perspectiva, recordamos o filósofo e teólogo Leonardo Boff: “Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” (BOFF, 1997, p. 9, grifos nossos). Pensar no lugar do outro exige o abandono das crenças e das verdades que orientam o modo como compreendemos, interpretamos e representamos o mundo; o modo como construímos e reproduzimos o conhecimento. Colocar-se no lugar do outro exige abertura, diálogo e empatia. Cumpre considerar que cada pensamento exprime o estado das experiências vividas pelo sujeito, sua visão de mundo e, portanto, seu lugar de fala. Assim, “é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, UNIUBE 133 em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam” (BOFF, 1997, p. 10). Nesse sentido, não se pode aceitar ou rejeitar o pensamento do outro se não me puser no seu lugar, se não for capaz de um processo de identificação mínima com o outro. Contrário disso, a leitura deixa de ser crítica para manifestar uma postura de intolerância e negação às diferentes formas de intepretar e representar o mundo e suas questões, o que, por sua vez, é profundamente deletério aos processos de ensino e formação humana. Por fim, ser consequente significa que se as consequências necessárias da tese que defendemos forem insustentáveis ou contraditórias, deveremos abandoná-la. Trata-se de uma condição extremamente difícil, pois exige o esforço do abandono: abandonar uma convicção a qual, muitas vezes, nos ligamos afetivamente para chegar à conclusão de que a tese que defendíamos, na verdade, não se sustenta. Ser consequente é fundamental para a formação do pensamento crítico, para avançar na construção do conhecimento e da autonomia intelectual. Dessa modo, a leitura crítica se caracteriza não só pela compreensão e reflexão sobre o que foi lido, mas, especialmente, pela construção de relação com outros textos, contextos e situações, comparando e distinguindo os sentidos que emergem do texto. A leitura crítica é, então, o diálogo e a interação do leitor, sujeito histórico e social, com o seu tempo e lugar. Enquanto pressuposto da capacidade de pensar por si mesmo, de formular questões e partir, com autonomia, das próprias premissas, a leitura crítica implica a formação de um pensamento que ao mesmo tempo compreenda diferentes ideias e seja capaz de expressar- -se reflexivamente criando sentidos políticos, éticos e estéticos que expressem o conteúdo e o valor do objeto da observação. Deletério Que possui um efeito destrutivo, danoso, nocivo. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 609) 134 UNIUBE No contexto de uma pedagogia que ensine a pensar, trabalhar pela emancipação intelectual do aluno significa movimentar o pensamento como tentativa de “suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou volume reduzidos” (DELEUZE, 1992, p. 218). Emancipar intelectualmente esse aluno significa dar-lhe o direito aos seus próprios problemas e conferir-lhe autorização para criar os caminhos de descobertas que a cada um singularmente pertence. A formação que inclui a consciência crítica, a valorização do conhecimento e o domínio das tecnologias faz parte da escola que pretende contribuir para a emancipação do ser humano. Educar para o pensamento crítico. [...] favorece a abertura do espírito, a responsabilidade cívica, a compreensão e a tolerância entre os indivíduos e entre os grupos, [...] formando espíritos livres e reflexivos - capazes de resistir às diversas formas de propaganda, de fanatismo, de exclusão e de intolerância - contribui para a paz e prepara cada um a assumir suas responsabilidades face às grandes interrogações contemporâneas, notadamente no domínio da ética. (UNESCO, 1995, p. 13). Nesse contexto, é imprescindível que não se desvincule a formação técnica da valorização da cultura própria das comunidades, da conscientização do uso da tecnologia em favor do bem comum e da vida no nosso planeta. O importante é que a tecnologia, entre outros benefícios que a ciência proporciona, alcance os excluídos pela pobreza. Nesse contexto de domínio das novas tecnologias, Moran (1994, p. 26) escreveu: “o professor se transforma agora no estimulador da curiosidade do aluno por querer conhecer, por pesquisar, por buscar informação mais relevante." Escola: experiência e memória3.3 A escola ocupa um lugar de fundamental relevância na formação do homem e do cidadão. Presente na espacialidade das relações sociais, políticas e culturais, a escola assume o papel de agenciar diálogos e UNIUBE 135 apurar, por meio de experiências comunicativas, práticas de participação democrática e política. Corresponde, portanto, a um território permeado de palavra: ditos e interditos; narrativas: domínio próprio dos sujeitos que ensinam e aprendem. Ensinar e aprender assumem, então, a forma imanente por meio da qual podemos pensar um movimento contínuo de reflexão, pesquisa, ação, descoberta, organização, fundamentação, revisão e construção teórica dos saberes, metodologias de ensino e desenvolvimento de projetos pedagógicos e de vida que abalizem a educação escolar como processo de emancipação humana. Por isso, entendemos como parte fundamental das reflexões que propomos neste capítulo, situar os aportes teóricos que nos permitam pensar a escola como campo de uma experiência que se constitui nos atravessamentos da história e da cultura. Partimos da seguinte questão: qual o lugar e o papel da escola num contexto marcado pelo fenômeno do empobrecimento da experiência? A ideia de experiência surge de maneira constante na obra de Benjamin e, quando aparece – ou apenas se insinua –, provoca uma série de reflexões que se constituem antes como desvios do próprio pensamento. Confome o autor: “O que são desvios para os outros, são para mim os dados que determinam minha rota. – Construo meus cálculos sobre os diferenciais de tempo [...]” (BENJAMIN, 2006, p. 499). Para Benjamin (1994, 2006), a experiência é algo que se passa entre pessoas: lugar da construção dos sentidos; ciclos abertos, possibilidade de construção intercambiada que promove no homem uma profunda capacidade de comunicação, de aproximação com o Outro. Logo, a experiência é algo que se constitui no campo dialético: Eu-Outro. A experiência nos remete ao conhecimento construído num intenso fluxo de correspondências alimentado pela memória; algo que se passa como 136 UNIUBE acúmulo e prolongamento. Precisamente por isso, a experiência permite que o sujeito se integre no universo das linguagens e práticas que se sedimentam no tempo e associam a vida particular à vida coletiva: é a condição de um encontro que se impõe ao sujeito e já não lhe permite mais ser o mesmo. E isto não ocorre no tempo do acontecimento. Pelo contrário, supõe uma tradição retomada e compartilhada na transmissão da palavra como condição de continuidade (BENJAMIN, 1994, 2006). A crítica de Benjamin ao processo de empobrecimento da experiência possibilita a compreensão habitual do termo como o que diz respeito às vivências, e, por isso mesmo, aoisolamento do indivíduo em sua história pessoal como exacerbado apego às exigências de sua existência. “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem.” (BENJAMIN, 1994, p. 115). Para o filósofo, a pobreza da experiência decorre justamente da perda da capacidade de intercambiar experiências de comunicação, de elaborar alegorias (allos, “outro, diferente”, e agoreuein, “falar em público, falar abertamente”): de lançar à luz a palavra como experiência vivida. Por isso, no campo da educação escolar, a crítica que se destaca coloca sob suspeita a ideia de formação e de cultura estabelecidas nas sociedades capitalistas do pós-iluminismo. Na escola, as consequências do isolamento e da progressiva perda das capacidades comunicativas como intercâmbio de conhecimentos e mútua implicação de saberes é desastrosa, pois modificam o domínio das interações humanas e de construção de aprendizagens significativas em espaço marcado pelo pragmatismo utilitário que professor e aluno tendem a suportar no cotidiano de suas relações. O conhecimento cede lugar à informação, pura e simples, imediata e aplicável. Nesse sentido, notamos: a pobreza da experiência decorre da supressão das experiências comunicativas, e supervaloriza os processos de aquisição de informação em detrimento dos processos de elaboração de sentidos por meio da palavra, do prolongamento das experiências vividas pelo aluno e pelo professor. UNIUBE 137 Neste ponto, uma importante pergunta se impõe: seria possível resistir ao empobrecimento da experiência? É admissível que a resposta seja sim, pelo menos se nos orientarmos no sentido de pensar a educação e suas questões pelo par experiência/sentido (BONDÍA, 2002), e, a partir daí, nos permitirmos as itinerâncias da cria(atividade) como atos de reconhecimento: estabelecer, entre professor e aluno, relações que considerem as experiências e as múltiplas referências culturais que ambos levam à sala de aula. Construir interesses: despertar virtualidades, relações intensas que ligam pontos, criam conexões entre-pessoas, entre-coisas, entre-problemas; assumir os riscos dessa travessia e provocar o que está entre como o que evidencia a relação pensamento-prática: formação humana como prática social, educação como práxis: atos de uma micropolítica que se opõe aos mecanismos de enquadramento da vida e, por isso mesmo, são capazes de produzir uma outra experiência (linguística, estética, histórica e de liberdade). Há intrínseca relação entre experiência e memória. Essas dimensões se articulam no interior do fenômeno educativo na medida em que a memória se manifesta como a dinâmica própria do relacionamento que o homem mantém com o mundo. Ora, se a experiência descreve os modos de significação do homem através da história, a trama de suas memórias não poderia ser outra coisa senão o território mesmo sobre o qual se desdobram os significados que ele atribui à sua própria existência. Por essa razão, a educação escolar deve implicar o sentido mais profundo do engajamento da memória como espaço da criação da consciência e da identidade de ser-no-mundo, sentido do relacionamento dialético entre o sujeito, suas memórias e o mundo. PONTO-CHAVE Em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Benjamin (1994) evidencia o papel da arte narrativa como instrumento que opera, a partir da trama intercambiada de sentidos, a construção da consciência, lugar da memória, da sensibilidade, da imaginação e da inteligibilidade. Por isso, afirma o filósofo: “Metade da arte narrativa 138 UNIUBE está em evitar explicações” (BENJAMIN, 1994, p. 203). Nesse sentido, a educação escolar se revela como espaço de comunicação da experiência histórica do homem e, precisamente por isso, como a condição mais importante do desenvolvimento da memória e da identidade. Assumir essa prerrogativa significa admitir um movimento contínuo de questionamentos e ideias que conjuram hipóteses e ações, clareiam significados, reelaboram conceitos, interpretam situações e, bem frequentemente, inspiram outras versões de ensinar e aprender: subversões; versões outras que permitem interpretar e reescrever a história de uma forma sempre nova. A memória exprime o ethos como dimensão comunicante entre o sujeito e o mundo, entre saber e não saber; a memória faz da experiência do vivido a substância mesma de que se constitui a história, uma espécie de comunicação sintagmática, manifestada em entremeios: “ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si” (BENJAMIN, 1994, p. 211). Por isso é possível ao narrador contar muitas histórias: sua fala repercute do lugar de quem as viveu e ouviu de outros narradores. Por isso, inclusive, a arte narrativa é sempre uma experiência de (trans) formação dos sujeitos: movimento de circularidade que produz entre narrador e ouvinte novas maneiras de ver, sentir e perceber o mundo. Na narrativa, afirma Benjamin (1994, p. 201): “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora coisas narradas à experiência de seus ouvintes”. Logo, narrar é construir interlocuções, intertextualidades; é suscitar espanto e reflexão. Ao conservar suas forças vitais, criativas e plásticas, a arte narrativa se relaciona direta e intensamente com a produção de experiências humanas comunicáveis: tessitura de memórias. É, pois, neste ponto, em que apoiamos a tese de que os processos educativos se constituam antes como experiências narrativas. Nessa UNIUBE 139 perspectiva, a construção de aprendizagens significativas passa sempre, e necessariamente, pelo reconhecimento do mundo como lugar de tessituras outras: memórias, identidades; ensaio de uma descrição direta da experiência como ela é: produção de sentidos, ditos e inter-ditos que fazem da experiência um exercício de coletividade e da tradição oral uma “lenta superposição de camadas finas e translúcidas que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.” (BENJAMIN, 1994, p. 206). A educação escolar como experiência narrativa se expõe, então, como campo transcendental, condição do fenômeno possível: uma narrativa é matéria em movimento, ela conserva pontos fixos a partir dos quais é possível criar algo sempre novo. Nesse sentido, ensinar e aprender definem movimentos de circularidade, repetição e diferença: uma nova história em cada passagem da história. Ademais, se pressupomos que o homem é, ao mesmo tempo, sujeito que aprende e que ensina, então esse duplo movimento emprega um processo repleto de significação em quaisquer direções em que se observe o seu deslocamento. Ensinar e aprender são, essencialmente, experiências; algo que se passa com os sujeitos no interior da relação educação/cultura/história. Por essa razão, a educação escolar deve constituir-se como espaço que corrobore a elaboração e a circulação de sentidos através das práticas narrativas como práticas significativas. A escola e seus sujeitos revelam a plenitude e a constância de uma interlocução em que os dizeres e as práticas significam condições de uma enunciação concreta. O papel da escola no contexto político-social brasileiro3.3.1 Colocar em questão o papel da escola no contexto político-social brasileiro exige reconhecer de que modo os processos históricos implicaram as concepções de educação e de organização da educação escolar desde 140 UNIUBE a chegada dos jesuítas em 1549. Não se trata de uma questão que se resume ao âmbito das narrativas históricas, mas da compreensão do modo como os interesses políticos forjaram os diferentes ideais de homem e sociedade dos quais somos herdeiros. De acordo com Saviani (2010), a chegada dos Padres da Companhia de Jesus nas terras da colônia brasileira não aspirava outro propósito senão a doutrinaçãodos nativos em conformidade com a fé cristã católica. Ao catolicismo da Contrarreforma incumbia-se a revitalização da doutrina, a moralização do clero e a confirmação das tradições em um tempo marcado pela ascensão do racionalismo cartesiano e o enfraquecimento da hegemonia política e espiritual da Igreja Católica. A criação das primeiras escolas e a instalação dos primeiros colégios e seminários, como cumprimento da demanda política fixada por Dom João III lançaram as bases da história da educação brasileira, cujo movimento se revela na forma intrínseca em que se articulam os processos de expansão e consolidação da colônia, da educação e da catequese. Há, nesse processo, um importante aspecto a ser considerado: a centralidade da catequese, meio pelo qual se pôde implantar na “nova” terra a civilização dos que dela se apropriavam. Nesse contexto, a instalação das escolas superiores não respondia senão aos interesses da Coroa Portuguesa que, associada à Igreja, reproduzia a conformação intelectual e disciplinar necessárias à criação de uma elite erudita, religiosa e moralmente abancada sobre os princípios e valores do conservadorismo político europeu (SAVIANI, 2010). Em termos didático-metodológicos, observamos uma fórmula que, não obstante sua ambição universalista, se caracterizava também pelo modo elitista com que a educação se destinava apenas à formação da elite colonial. É precisamente nesse ponto que a pedagogia dos missionários jesuítas encontra êxito como expressão de uma doutrina UNIUBE 141 explicitamente baseada na conformação de uma estrutura social marcada pela hegemonia político-religiosa e pela desigualdade social. Sua função hegemônica se vê inteiramente abordada quando os conteúdos do conhecimento serviam não à formação espiritual do homem por meio da cultura – como enunciava a pedagogia humanista –, mas à construção dos consensos sobre os quais se vincularam diferentes códigos de normas e estratégias políticas. Nesse sentido, enquanto na Europa a escola aprofundava o caráter científico, literário e filosófico fundamentais ao humanismo renascentista; no Brasil, a instituição escolar destacava-se como preâmbulo de uma formação ao ensino da teologia, sobretudo dos padres catequistas. O fechamento dos colégios jesuítas por decisão do Marquês de Pombal em junho de 1759 e, posteriormente, a determinação de Dom João I pela desnaturalização e proscrição dos missionários da Companhia de Jesus de todo o território português e das terras de além-mar marcaram a ruptura do modo como a educação havia sido organizada no Brasil ao longo dos últimos duzentos e dez anos, e, especialmente, a abertura ao cientificismo e às novas ideias humanistas e universais do pensamento ilustrado europeu (SAVIANI, 2010). As reformas daí decorrentes indicam- -nos o papel e o lugar da educação nesse novo contexto e a forma como as práticas pedagógicas contribuíram com a articulação entre os ideais iluministas e a nova organização política portuguesa. Portanto, são os imperativos da própria circunstância histórica que sinalizam este novo período para a organização social de Portugal e da colônia, cujo prólogo, afirma Saviani (2010, p. 77), foi marcado “pelo contraste entre a atmosfera religiosa, ainda dominante com seu séquito de crendices, e a visão racionalista pautada pela lógica; entre o anseio por mudanças e o peso das tradições; entre fé e ciência.” 142 UNIUBE A frustração do projeto português de promover a economia industrial em superação de sua estrutura econômica mercantilista levou o Marquês de Pombal a centralizar a administração da colônia de modo a exercer sobre ela maior controle e eficiência na exploração de seus recursos. Nesse contexto, reformar a educação figurava como necessidade de “criar a escola útil aos fins do Estado e, nesse sentido, ao invés de preconizarem uma política de difusão intensa e extensa do trabalho escolar, pretenderam os homens de Pombal organizar a escola que, antes de servir aos interesses da fé, servisse aos imperativos da Coroa.” (CARVALHO, 1978 apud PILETTI; PILETTI, 2012, p. 76). Cabe destacar que a reforma pombalina não ocorreu ao mesmo tempo nem da mesma forma em Portugal e no Brasil. Somente três décadas após a ruptura com a Companhia de Jesus, a Coroa Portuguesa assumiu, de fato, o controle pedagógico da educação em terras brasileiras: longo período entre o completo banimento dos missionários jesuítas e a desconstrução sistêmica de seu aparelho educacional. Ao passo que na metrópole se intentava a construção de um sistema público e laico de ensino, na colônia, a despeito dos inúmeros alvarás e cartas régias, as reformas educacionais propostas pelo Marquês de Pombal lograram apenas o desarranjo da estrutura de ensino subsidiada pelos jesuítas. Ao que se tem notícia, antes de 1772, são notadas apenas algumas aulas régias de latim em Pernambuco (PILETTI; PILETTI, 2012). PONTO-CHAVE Embora o ideário pedagógico pombalino visasse à modernização da sociedade portuguesa alinhando-a ao pensamento ilustrado do século XVIII, as influências de Verney e Ribeiro Sanches deslocaram o foco da educação como questão pedagógica para o centro das discussões de economia política. O modo como a sociedade burguesa passou a encarrar o problema educativo se via retratado na clara distinção dos propósitos educacionais e do papel que a filosofia assumia no contexto maior da educação (SAVIANI, 2010). No âmbito de uma sociedade rural, UNIUBE 143 cuja predominância de uma economia agrária subsidiava a concentração de riquezas e o fortalecimento dos latifúndios, a extinção das escolas populares e a transferência da responsabilidade sobre a instrução dos pobres aos párocos refletia a clareza, as “contradições entre o projeto civilizatório burguês e as lições do capital.” (LINS, 2003 apud SAVIANI, 2010, p. 103). Mesmo com a instalação do Vice-reinado de Dom João VI no Brasil, em 1808, e com a introdução de importantes mudanças no cenário educacional e cultural brasileiro, o contexto do ensino permaneceu, em certa medida, inalterado (SAVIANI, 2010). Da instalação da colônia ao seu declínio, a educação escolar não se ocupou de outras tarefas que não fossem a substantivação da ordem política e das bases ideológicas que sustentavam as relações de dominação ora por interesses da Igreja, ora por interesses da Coroa Portuguesa. Nesse contexto, destacamos o fato de que as pretensões que se alinhavam à educação continuaram por reproduzir os interesses políticos de determinados setores da elite imperial – assim, enquanto a educação básica era oferecida em escolas instaladas nas cidades e grandes vilas, o que a tornava, de certo modo, acessível a um número maior de pessoas, o ensino superior restrito tinha como objetivo a manutenção dos privilégios da elite, da monarquia e das oligarquias rurais. O advento da República em 1889 e as grandes transformações que se seguiram no campo político, econômico e, consequentemente, nos campos social e cultural, deslocaram a educação para o centro das questões de primeira ordem. Assim, as primeiras décadas do século XX marcaram um modelo de educação que, sob a égide das demandas de expansão e consolidação do capital financeiro e da forte influência da elite industrial paulista, tinha como objetivo não apenas a formação de mão de obra qualificada aos ofícios mecânicos, mas, com isso, a conformação de 144 UNIUBE uma classe de homens proletarizados, cujo distanciamento das questões de natureza política favorecia a unificação do discurso e interesses da burguesia industrial. De acordo com Saviani (2010), foi nesse clima que duas importantes frentes se destacaram e antagonizaram seus papéis no projeto de fortalecimento da hegemonia industrial. Se por um lado, afirma o autor, destacaram-se “as forças do movimento renovador impulsionado pelos ventos modernizantes do processo de industrialização e urbanização”; por outro, “a Igreja Católicaprocurou recuperar terreno organizando suas fileiras para travar a batalha pedagógica.” (SAVIANI, 2010, p. 193). Para Saviani (2010), a ascensão das ideias liberais e positivistas introduzidas no campo educacional brasileiro no final do século XIX e, consequentemente, a declaração de um Estado laico exporam as tensões geradas entre os republicanos e a elite católica que contestava a ruptura com a pedagogia tradicional afiançando sua recusa pelos ideais progressistas de educação. O resultado dessas querelas provocou um intenso movimento de busca pela restauração da hegemonia cultural que outrora pertencia aos grupos religiosos e que, a partir de então, passaram a se preocupar mais agudamente com a ocupação de espaços culturais. Conforme Silveira (1994), com a ascenção dos militares ao governo, em 1964, os fatores políticos, econômicos e ideológicos que caracterizam esse período elucidam esse processo de exclusão. O modelo de sociedade radicado pelo regime ditatorial de 1964 encontrava-se fixado sobre a chamada Doutrina de Segurança Nacional que, sob o pretexto das garantias políticas, econômicas e sociais, legitimavam as ações militares providas pelo Estado como instrumento de manutenção dos objetivos nacionais. No cenário de um regime totalitário, parece-nos claro não haver modo mais adequado ao enfraquecimento do conceito de subversão que não pelo controle sobre a educação e a produção UNIUBE 145 intelectual, política e artística livre. A reforma da educação e o caráter tecnicista que lhe foi impresso retratam as propriedades políticas e ideológicas do pós-1964: a estabilização do discurso nacionalista, cujas estruturas de poder centravam-se sobre a ideia de comunidade indivisa e a conformação de uma classe proletária capaz de levar a termo o processo de acumulação de capital através da internacionalização da economia; a ação extenuante dos espaços de caráter humanista dentro e fora da educação tinha como foco a extinção das ações contra ideológicas e o treinamento de uma força de trabalho especializada para atender às necessidades do processo produtivo. Considerando-se, assim, a tendência tecnicista sobre a qual se encontrava alicerçada a reforma educacional proposta na nova legislação, as questões pedagógicas orientaram-se no sentido de responder às novas exigências de formação imbuídas dos ideais de racionalidade, organização, objetividade, eficiência e produtividade, tendo em vista as demandas da sociedade industrial, tecnológica e econômica da época. O concurso dessas ações se orientava no sentido de que a organização racional da educação escolar fosse capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência do modelo político- -econômico radicado com o regime militar (SAVIANI, 2010). De que modo a escola pode educar para a cidadania e promover o espírito crítico-reflexivo? De que maneira a experiência com o pensamento e os saberes produzidos nos diversos campos do conhecimento poderão transformar o que somos e o modo como pensamos e agimos no tempo/ espaço da nossa existência? PARADA PARA REFLEXÃO 146 UNIUBE Em que pesem estas questões, há, e isso nos parece claro, um ponto crucial na relação com o que dissemos anteriormente: o modelo político- -econômico, que tem nos acompanhado desde a colônia, reforça e amplia a crise de sentido que se abate sobre a escola em nosso tempo. Romper com esses processos enuncia uma forma de resistência aos processos que se efetivam na identificação da aprendizagem como aquisição de informação, nas representações pragmáticas que os alunos fazem de suas necessidades intelectuais, na imposição de um currículo prescritivo que cerceia de professores e alunos a construção de um pensamento complexo e sistêmico, na centralização didática do professor, na incompatibilidade entre o atual discurso tecnológico e as tensões de sua integração como linguagem didática, na burocratização do exercício docente, na naturalização da violência cotidiana...; processos estes que ratificam a perda da capacidade de dizer a educação escolar como “abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver nem ‘pré-dizer’” (BONDÍA, 2002, p. 28). Desse modo, a despeito dos sentidos que foram atribuídos pela sociedade burguesa à educação escolar no Brasil, e do modo como estes sentidos tenham legado à escola contemporânea um projeto social hegemônico, sublinhamos que a importância da escola como espaço democrático e de formação humana integral; formação de sujeitos aprendentes e pensantes, capazes de compreender os desequilíbrios sociais e atuar, de modo consciente, na promoção dos direitos humanos. Para tanto, é papel da escola criar as condições e os espaços necessários para que o conhecimento seja reelaborado a partir dos muitos saberes que o aluno traz consigo. Cabe à escola promover o protagonismo dos sujeitos que se relacionam no processo de construção de conhecimento. As práticas pedagógicas da escola devem aproximar o conhecimento científico à realidade dos alunos, ampliando o interesse pelos conteúdos ensinados e tornando o fazer pedagógico eficiente. UNIUBE 147 Considerações finais3.4 O papel da escola nas sociedades contemporâneas não se resume ao fecho de transmissora do conhecimento, mas de constituir-se como espaço de interlocução capaz de despertar no aluno o desejo e a curiosidade pelo saber. Formar alunos pensantes que não fiquem presos apenas em conhecimentos produzidos por outros, mas que saibam refletir e que tenham seus próprios pensamentos, que busquem compreender a origem dos fatos, selecionando as fontes, fazendo questionamentos. Formando, portanto, alunos que tenham condições de se posicionar criticamente diante das questões, mas mostrando sempre que cada pessoa é diferente e tem um modo de pensar, devendo respeitar o outro, respeitar as diferentes ideias. Uma educação cuja principal pauta seja a emancipação humana em seus diferentes níveis requer a formação de sujeitos que sabiam interagir com meio em que vivem, que façam uso do conhecimento como instrumento de transformação e busca de melhores caminhos e alternativas, que aprendam a ver o mundo com outros olhos, com um olhar de quem questiona que as coisas não foram sempre do mesmo jeito e não tendem a ser no futuro como são agora. Nesse contexto, o papel do professor é fundamental: ele é o mediador entre os diferentes espaços da produção do conhecimento. Por isso, inclusive, nos parece uma necessidade imperiosa que o fazer pedagógico seja continuamente posto em questão: há que considerar o duplo movimento entre ensinar e aprender como aquilo que é, essencialmente, acontecimento; devir. Em outras palavras: reconhecer a aula como matéria em movimento, mapa dos seus próprios problemas e lugar de multiplicidade; espaços de imprevisilidade que se constituam entre-pontos; superfície sobre a qual se deslocam os múltiplos processos de construção dos sentidos que sustentam o ato educativo. Uma pedagogia que ensine 148 UNIUBE O objetivo deste capítulo foi discutir a relação entre filosofia e pedagogia no âmbito da educação escolar, e, a partir desse ponto, os limites e as possibilidades dessa relação no processo de formação do pensamento crítico. A partir dos conceitos de filosofia e educação, destacamos que toda relação que o homem estabelece com o mundo é mediada por representações construídas nas diferentes experiências de subjetividade, e que, precisamente por isso, a escola se constitui como espaço que implica a complexidade das práticas inerentes ao próprio processo de humanização. Nesse contexto, destacamos que a formação que inclui a consciência crítica, a valorização do conhecimento e o domínio das tecnologias faz parte da escola que pretende contribuir para a promoção do ser humano. Ao compreender a formação do pensamento crítico como elemento fundamental à promoção do protagonismo dos sujeitos que se relacionam no processode construção de conhecimento, evidenciamos a educação escolar como espaço de elaboração e circulação de sentidos: constância de uma interlocução em que os dizeres e as práticas enunciem concretamente a formação de sujeitos intelectualmente emancipados, politicamente engajados e socialmente solidários. a pensar deve, por premissa, resgatar a ideia de desequilíbrio, de difusão de movimentos sempre novos e que se interpenetram como espaço de vivências singulares e construção de sentidos. Por isso, cumpre destacar: independente de sua área de formação e conhecimento, cabe ao professor a tarefa de ajudar o aluno a pensar bem, mesmo porque nos referimos aqui a um processo marcado pela irregularidade e pela difícil tarefa de abandonar o estado de coisas relativamente confortável sobre o qual aprendemos estar. É fundamental preparar o aluno para olhar o seu próprio tempo, percebê-lo de modo sensível e perceber-se como sujeito que nele se inscreve. Resumo UNIUBE 149 Referências ALMEIDA, Francis Silva de. Filosofia e fazer filosófico no ensino médio: ressonâncias e deslocamentos em Deleuze-Guattari. 2016. 172 f. Dissertação (Mestrado em Educação)–Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, 2016. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. BOFF, Leonardo. 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