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1 Camila Carminate – 7 FASE Doença Renal Crônica INTRODUÇÃO A doença renal crônica (DRC) emerge como um grave problema de saúde pública, com implicações sociais e econômicas. O encargo financeiro é ainda maior quando se avalia a complexa interação da DRC com o risco aumentado de eventos cardiovasculares. A prevalência aumentada de diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica (HAS), responsável por cerca de 70% dos casos de DRC, associada ao envelhecimento da população contribui para o aumento no número de pacientes com DRC. A doença tem caráter progressivo, e a evolução natural para falência renal e necessidade de TRS (diálise e transplante renal) tem sido o infortunado desfecho mais freqüentemente observado.Mudar a história natural da DRC dependerá de políticas públicas e privadas de diagnóstico precoce e tratamento de suas complicações e das comorbidades, bem como de estratégias terapêuticas que inibam a progressão das nefropatias. DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO A doença renal crônica está inserida em um contexto clínico amplo que inclui desde a presença isolada de fatores de risco, como hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus, passando por alterações que denotam injúria renal (microalbuminúria), ainda que com preservação de função, até a redução progressiva da filtração glomerular. Define-se, assim, DRC como lesão renal por tempo igual ou maior que três meses, caracterizada por anormalidades estruturais ou funcionais dos rins, manifestada por alterações histopatológicas ou por anormalidades nos testes de imagens ou na composição da urina e do sangue, ainda que se tenha preservação da filtração glomerular. A definição de DRC também engloba a redução na taxa ou no ritmo de filtração glomerular (RFG) abaixo de 60 mL/min/1,73 m2, por um período superior a três meses, independentemente da presença ou ausência de lesão renal supracitada. ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS No Brasil, a primeira causa de DRC é a hipertensão arterial sistêmica, seguida por diabetes mellitus e glomerulonefrite crônica. A doença renal crônica tem elevada prevalência mundial. No Brasil, em último senso reportado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia em janeiro de 2006, a prevalência foi de 383 pacientes por milhão de habitantes. A mortalidade dos pacientes em programa de diálise tem sido calculada em 24% nos Estados Unidos, em 16% no Brasil, em torno de 12-14% na Europa e em 9% no Japão, mas deve-se ter cautela na comparação de tais índices; no Brasil, por exemplo, a população em diálise é mais jovem e tem menor prevalência de diabetes. As principais causas de morte entre os pacientes que recebem terapia renal são as doenças cardiovasculares, seguidas por doenças infecciosas. ETIOLOGIA E FIS IOPATOLOGIA Independentemente da etiologia, se de origem imunomediada ou não, na fase de progressão das doenças renais, tanto mecanismos hemodinâmicos quanto imunológicos estão presentes na fisiopatologia da DRC. A doença renal crônica é uma fase final comum a diversas doenças renais de etiologias heterogêneas, tais como a nefroesclerose hipertensiva, a nefropatia diabética, as glomerulonefrites crescênticas por diversas causas, a doença 2 Camila Carminate – 7 FASE renal policística autossômica dominante, as doenças urológicas etc. Ante a redução da massa renal, os néfrons remanescentes sofrem mudanças adaptativas na hemodinâmica glomerular que levam à hipertensão e hipertrofia glomerulares, com aumento na taxa de filtração por glomérulo. No entanto, em longo prazo, esse mesmo mecanismo de adaptação aparentemente benéfico torna-se lesivo, gerando proteinúria, esclerose glomerular e agravamento na perda de massa renal funcionante. De que maneira o aumento da pressão no capilar glomerular leva à progressiva injúria renal. Para explicar a chamada teoria hemodinâmica, a hipertensão intracapilar e a hipertrofia glomerular seriam os deflagradores da agressão mecânica ao glomérulo. A tensão mecânica constante sob a parede do capilar gera dano glomerular progressivo, com lesão de podócitos, aumento da permeabilidade e perda da seletividade da barreira glomerular. Além disso, o estiramento mecânico de células mesangiais e endoteliais gera alterações fenotípicas celulares, com síntese aumentada de TGF-beta, de componentes da matriz extracelular e angiotensinogênio, com conseqüente produção aumentada de angiotensina II. Na progressão das nefropatias, a angiotensina II, ao menos em grande parte, é responsável não só pelas alterações hemodinâmicas intraglomerulares, como também inflamatórias. Os efeitos da angiotensina II sob a hemodinâmica renal já são bem conhecidos, com sua ação vasoconstritora maior na arteríola eferente levando à hipertensão intraglomerular para manter a pressão de perfusão glomerular. A angiotensina II tem efeito imunomodulador, estimulando a síntese de diversos fatores de crescimento como PDGF (platelet- derived growth factor), TGF-beta (transforming growth factor beta) e FGF (fibroblast growth factor), induzindo a proliferação de células mesangiais e o acúmulo de matriz extracelular. Receptores de angiotensina II estão presentes na superfície dos podócitos, e sua ativação pode alterar as propriedades contráteis do complexo citoesqueleto dessas células; portanto, a angiotensina II pode alterar, de forma direta e não somente via alterações hemodinâmicas, a permeabilidade seletiva do capilar glomerular, permitindo escape de proteínas à luz tubular. A sobrecarga protéica no túbulo também pode gerar mudanças fenotípicas na célula tubular com maior secreção de substâncias vasoativos, citocinas e fatores de crescimento na membrana basolateral, com conseqüentes inflamação e fibrose intersticial. QUADRO CLÍNICO A progressão insidiosa é a característica clínica da DRC, de modo que o rim mantém a capacidade de regulação da homeostase até fases avançadas da doença. 3 Camila Carminate – 7 FASE A noctúria, decorrente da perda da capacidade de concentração urinária, costuma ser um dos primeiros sintomas da DRC mas dificilmente é valorizada pelo paciente. Posteriormente, surgem os sintomas decorrentes dos distúrbios hidroeletrolíticos e do acúmulo de escórias nitrogenadas, acometendo diversos sistemas do organismo. A DRC pode ter como primeira manifestação situações emergenciais como tamponamento pericárdico, edema agudo de pulmão, parada cardiorrespiratória, acidose metabólica e hipercalemia graves, convulsões e estados comatosos. Nessas circunstâncias, é comum surgir dúvida sobre a natureza aguda ou crônica da nefropatia. Os distúrbios hidroeletrolíticos, a anemia e os sintomas urêmicos são comuns tanto à insuficiência renal aguda quanto à DRC; para o diagnóstico diferencial, devem-se pesquisar: 1) achados ultra-sonográficos compatíveis com nefropatia crônica, como o aumento da ecogenicidade do parênquima renal e a redução do diâmetro renal e da espessura do córtex renal; 2) exame de fundo de olho com evidência de retinopatia diabética ou hipertensiva; 3) a presença de sinais de osteodistrofia renal como a elevação dos níveis séricos de paratormônio. DIAGNÓSTICO Muitos pacientes podem ser assintomáticos ou oligossintomáticos, e o diagnóstico da doença renal crônica inclui necessariamente a realização de exames complementares. É importante salientar que o diagnóstico de DRC pode ser feito mesmo quando a etiologia da doença renal seja desconhecida. O primeiro passo na abordagem do paciente com suspeita de doença renal, após anamnese e exame físico, é determinar se há perda de função e qual o grau de declínio na filtração glomerular; o passo seguinte é identificar fatores de risco para doença renal crônica e sua progressão e evidenciar sinais de injúria renal por meio da análise do sedimento urinário, da pesquisade proteínas na urina e da avaliação ultra-sonográfica do parênquima renal. DETERMINAÇÃO DO NÍVEL DE FUNÇÃO RENAL O ritmo de filtração glomerular (RFG) é considerado o melhor índice de função renal, baseado na evidência de que a filtração glomerular guarda intrínseca relação com as demais funções do néfron. A técnica mais utilizada para sua avaliação é a medida da depuração (clearance) plasmática de certos compostos, endógenos ou exógenos, pelos rins. A necessidade da realização do exame em condições padronizadas com infusão contínua endovenosa do marcador, o elevado custo do produto para uso endovenoso em humanos e aspectos peculiares da dosagem laboratorial trazem limitações ao uso da depuração renal de inulina na prática clínica, restringindo-a praticamente ao ambiente da pesquisa. A creatinina sérica é o marcador mais utilizado para estimar a função renal, é acessível na maioria dos laboratórios, com técnica simples e rápida de dosagem, além do baixo custo. Entretanto, a medida de creatinina sérica não deve ser utilizada isoladamente quando se avalia função renal, em razão de sua elevação no sangue, em geral, só ser observada quando o clearance declina a valores abaixo de 60 mL/min, sendo de baixa 4 Camila Carminate – 7 FASE sensibilidade para detectar insuficiência renal incipiente, o que pode gerar subinvestigação e subdiagnóstico de DRC. A depuração renal de creatinina medida em urina de 24 horas, por sua vez, pode também superestimar a filtração glomerular. A National Kidney Foundation (K/DOQI) preconiza o uso de fórmulas ou equações para estimar o RFG a partir da concentração sérica de creatinina. A estimativa do RFG por equações não necessita da medida de urina de 24 horas, sujeita a erros de coleta e esvaziamento inadequado da bexiga, e tem o propósito de reduzir a influência dos fatores, não relacionados à filtração glomerular, que determinam a concentração sérica de creatinina, tais como peso, altura, idade, sexo e raça. A medida da concentração sérica de cistatina C tem sido utilizada como marcador de função renal. MARCADORES LABORATORIAIS DE LESÃO RENAL O exame de urina é o primeiro e mais importante teste não- invasivo a ser feito na avaliação inicial de paciente com suspeita de doença renal crônica. Devem-se pesquisar anormalidades no sedimento urinário que sejam indicativas de doenças glomerular, tubulointersticial ou vascular renal. A análise microscópica do sedimento compreende basicamente a pesquisa de células, cilindros e cristais. A hematúria é definida como a presença de quantidade anormal de eritrócitos na urina, acima de 3 a 5 eritrócitos por campo microscópico de aumento de 400 vezes ou até 3.000 hemácias por mililitro, quando a análise é feita por meio de câmaras de contagem. Hemácias com origem no parênquima renal são dismórficas e indicativas de glomerulonefrites proliferativas ou nefrites hereditárias. A presença de grande número de leucócitos, acima de 10 por campo ou 10.000/mL, define piúria e indica inflamação no trato urinário. Embora a infecção seja a causa mais comum de leucocitúria, vale ressaltar situações clínicas em que há leucocitúria com cultura de urina negativa (leucocitúria estéril), tais como tuberculose de trato urinário, infecção por clamídia, doença glomerular proliferativa difusa, litíase renal, nefrite intersticial aguda (linfomononucleares e eosinófilos) e doença renal ateroembólica (eosinófilos). A cilindrúria, definida como a excreção aumentada de cilindros na urina, nem sempre significa doença renal. Diversas situações clínicas, como desidratação, exercício extenuante, uso de diurético e febre, podem provocar cilindrúrias transitórias, que remitem em um período que varia de 24 a 48 horas após desaparecer o estímulo inicial. A excreção urinária de proteínas é um indicador sensível de lesão glomerular. A identificação de proteínas na urina pode ser feita inicialmente por meio de fitas reagentes. As fitas, ou dipstiks, constituem teste simples e de levada especificidade, mas de baixa sensibilidade para diagnóstico de proteinúria, visto que se torna positivo apenas quando a excreção de proteínas excede de 300 a 500 mg/dia. A microalbuminúria é um marcador precoce de doença renal e sua medida deve ser solicitada na população de risco para DRC, em especial se a proteinúria for negativa no exame de amostra isolada de urina. O índice proteinúria/ creatininúria (mg/mg) é um método alternativo para estimar a excreção de proteínas e são considerados normais os valores abaixo de 0,2, enquanto os valores acima de 3,5 sugerem proteinúria em nível nefrótico. ULTRA-SONOGRAFIA RENAL A ultra-sonografia das vias urinárias é adequada para definir o diagnóstico de obstrução do trato urinário, de refluxo 5 Camila Carminate – 7 FASE vesicoureteral, da doença renal policística autossômica dominante e na diferenciação entre tumores sólidos e cistos renais. BIÓPSIA RENAL NA DRC A avaliação da histologia renal é um importante instrumento para o diagnóstico, determina o prognóstico e direciona a terapêutica dos pacientes com doença renal. Saber a causa da doença renal tem importância prognóstica também no transplante renal, uma vez que algumas doenças podem recidivar no enxerto renal. TRATAMENTO A nefropatia crônica é uma doença sem cura, e a perda de função renal progride até fases terminais, quando a terapia renal substitutiva (TRS) se impõe necessária. Quando a filtração glomerular declina a taxas de 30 a 40 mL/min, os pacientes cursam com complicações clínicas e metabólicas, tais como distúrbios do metabo lismo do cálcio e fósforo, acidose metabólica, anemia, desnutrição e fatores que aceleram o processo de aterosclerose, como hipertensão e dislipidemia. Embora a perda progressiva de função renal e evolução para necessidade de TRS seja ainda a situação mais freqüente, o médico pode atuar na desaceleração do processo de perda de função renal por meio de uma rigorosa avaliação clínica que tenha como metas: 1) diagnosticar, classificar o estágio da DRC e, quando possível, buscar por definição diagnóstica da causa da nefropatia, identificando aquelas com potencial de reversão; 2) detectar fatores de risco para doença cardiovascular e os fatores determinantes da progressão da DRC; 3) diagnosticar e tratar complicações da DRC. RETARDAR A PROGRESSÃO DA DRC Para inibir a progressão das nefropatias, a estratégia terapêutica deve iniciar pelo diagnóstico e tratamento dos fatores de risco, em especial diabetes mellitus e HAS, mas também dislipidemia, tabagismo, obesidade, entre outros que serão descritos mais adiante. Em associação a essas medidas, é preconizada a utilização de drogas que inibam o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), bem como a detecção precoce e o tratamento das complicações da DRC. HIPERTENSÃO ARTERIAL SISTÊMICA A terapia anti-hipertensiva inclui terapia farmacológica e mudança no estilo de vida, e deve ter como alvo atingir nível pressórico menor que 130 x 80 mmHg, diminuir progressão da insuficiência renal e reduzir risco de doença cardiovascular. Drogas que inibam o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) podem tanto minimizar a agressão mecânica quanto combater os efeitos celulares imunológicos da angiotensina II. A redução na progressão de nefropatias crônicas com uso do inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA) ou do bloqueador do receptor da angiotensina II (BRA) tem sido confirmada por diversos estudos clínicos em nefropatias diabéticas e não-diabéticas. DIABETES MELLITUS Preconiza-se controle glicêmico rigoroso em pacientes diabéticos. O objetivo é manter a glicemia capilar pré-prandial entre 90 e 130 mg/dL, pico pós-prandial < 180 e hemoglobina glicada < 7,0%. Uma das medidas mais importantes de prevençãoda nefropatia diabética é a mensuração anual da microalbuminúria. DISLIPIDEMIA O diagnóstico e tratamento de dislipidemia no paciente com doença renal crônica são referendados não só na redução de incidência de doença cardiovascular aterosclerótica (insuficiência vascular periférica, doença cardíaca coronariana, estenose de artéria renal e doença cerebrovascular), como também na redução de progressão de doença renal, independentemente de sua etiologia. O paciente com DRC é considerado de alto risco para doença cardiovascular aterosclerótica, de risco equivalente a pacientes com doença arterial coronariana, e, portanto, o alvo terapêutico a ser atingido é LDL < 100 mg/dL, HDL colesterol > 40 mg/dL e triglicérides < 150 mg/dL16. 6 Camila Carminate – 7 FASE OBESIDADE A obesidade sabidamente eleva o risco de proteinúria ao longo dos anos, provavelmente relacionado a mecanismos de hiperfiltração glomerular. TABAGISMO O tabagismo aumenta o risco de proteinúria tanto na população geral quanto em portadores de nefropatia diabética ou hipertensiva. NUTRIÇÃO O paciente com doença renal crônica deve receber orientação nutricional adequada, sendo extremamente importante a redução na ingestão de sódio. Nas fases mais adiantadas da DRC, restrições de potássio, fósforo e de ingestão hídrica podem tornar-se necessárias. A aplicação de dieta hipoprotéica visa a reduzir a progressão da DRC. DIÁLISE E TRANSPLANTE NO TRATAMENTO DA DRC A doença renal crônica em estágio 5 é definida pela presença de anormalidades estruturais associadas à severa redução da função renal. Quando o ritmo de filtração glomerular é menor que 15 mL/min, os indivíduos se apresentam habitualmente sintomáticos e têm indicação absoluta de iniciar uma terapia de substituição da função renal, seja por método de depuração artificial do sangue (diálise), seja por implante de um aloenxerto renal. As indicações para iniciar a terapia renal substitutiva (TRS) no paciente com DRC se baseiam na presença de sinais e sintomas de uremia e no nível de função renal. Há condições clínicas que, quando presentes, são sinalizadoras de DRC avançada e tornam mandatório o início de TRS: pericardite urêmica, sobrecarga volêmica refratária ao uso de diuréticos, hipertensão não controlada, encefalopatia ou neuropatia periférica avançadas, diátese hemorrágica atribuída à uremia, hipercalemia e acidose metabólica não controladas e desnutrição energético-protéica. Assim, em vista da associação entre desnutrição e risco de morte, recomenda-se iniciar diálise ou trans- plante renal nos pacientes com clearance menor que 20 mL/min, quando existe evidência de deterioração do estado nutricional, mesmo na ausência das indicações tradicionais como hipercalemia e hipervolemia, clearance < 10 mL/min em não-diabéticos e < 15 mL/min em diabéticos. Pacientes com nível de função renal entre 15 e 20 mL/min devem ser sempre indagados, a cada consulta, quanto a sinais de desnutrição, como redução do apetite, perda de peso sem outra causa aparente, náuseas e vômitos persistentes. A terapia renal substitutiva (TRS) compreende três modalidades terapêuticas: hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal.
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