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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL BEATRIZ ACCIOLY LINS A LEI NAS ENTRELINHAS A Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2014 2 A LEI NAS ENTRELINHAS: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo Dissertação apresentada ao Departamento de Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre. VERSÃO CORRIGIDA Beatriz Accioly Lins Orientadora: Profª. Drª. Heloísa Buarque de Almeida São Paulo, 2014 Email: bia.accioly.lins@gmail.com mailto:bia.accioly.lins@gmail.com 3 Para minha mãe: a maior entusiasta de todas as etapas de minha formação. De quem eu sinto saudades infinitas. 4 AGRADECIMENTOS A preocupação com o reconhecimento daquelas/les que não constam na autoria individual fictícia desta dissertação é constante, pois raras são as palavras, ideias e ousadias que não dependeram de tantos outros que forneceram reflexões, comentários, críticas ou algum tipo de conforto durante o longo processo de gestação desse texto. Não tenho pretensão de conseguir evitar alguns equívocos e esquecimentos, portanto peço, desde já, desculpas antecipadas. Em primeiro lugar, agradeço o financiamento e o apoio da Fundação de Amparo e Apoio a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), cujo suporte material foi indispensável para a condução da pesquisa. Gostaria de agradecer e reconhecer minhas interlocutoras e meus interlocutores em campo, que, por quase dois anos, pela paciência, pelo carinho e pelo cuidado. À Dra. Gislaine Doraide Ribeiro Pato, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher do estado de São Paulo, pela autorização à condução da pesquisa e pela liberdade da qual gozei durante meus meses com a polícia. Às delegadas, escrivãs, investigadoras/es e demais funcionárias da 1ª e da 6ª DDMs de São Paulo, que dividiram comigo suas experiências, seus saberes e seus cotidianos de forma abnegada e honesta, agradeço profundamente o voto de confiança. Em especial, agradeço às dras. Celi Paulino Carlota e Dra. Isilda Cristina Vidoeiro, delegadas titulares da 1ª e da ª DDMs, pelo acolhimento nas delegacias. Às mulheres e aos homens que, pelos mais variados motivos, estiveram nas delegacias durante o período em que realizei minha pesquisa, pela compreensão e disponibilidade em um momento tenso e delicado de suas vidas, muito obrigada pela sinceridade e coragem em expor e compartilhar situações de intensa vulnerabilidade. É fundamental o reconhecimento, a gratidão e o agradecimento a minha orientadora, Heloísa Buarque de Almeida (“Helô”), que me recebeu carinhosamente desde a primeira conversa sobre uma possível, ainda que pouco delineada, intenção de pesquisa. Obrigada pelo cuidado, pela paciência balsâmica, pela atenção, pelos conselhos (não somente acadêmicos) e pelas repetidas leituras de diferentes versões que me deram segurança e determinação para fazer deste trabalho o melhor possível. Aos meus primeiros orientadores, Sylvia Gemignani Garcia e Álvaro Augusto Comin, professores do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, pela firmeza com 5 a qual guiaram meus primeiros passos na vida acadêmica. À Sylvia, em especial, obrigada pela intensa vigilância epistemológica, pela constante exigência de excelência, pelo reconhecimento afetuoso e pelo rigor que jamais se confundiu com rigidez. A Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer e Guita Grin Debert, presentes na banca de qualificação, pela leitura rigorosa, crítica e estimulante de algumas de minhas primeiras ideias. À Ana, em especial, minha primeira professora de Antropologia, por estar presente em etapas tão seminais de minha formação como cientista social, sempre de forma atenciosa e carinhosa. À Guita, por sua vez, por ser fonte de inspiração acadêmica e política. Gostaria de reconhecer a professora Lilia Moritz Schwarcz, pelo o apoio e o cuidado com minha formação e com essa pesquisa expressos em conversas, e-mails, indagações e comentários sempre pertinentes e estimulantes. Agradeço profundamente, também os comentários do professor Didier Fassin (Princeton University) durante o workshop “Etnografia Crítica”, que me incentivaram e inspiraram a perseguir um ousado, mas importante, caminho de análise nessa dissertação. A minha companheira de mestrado e amiga, Marcella Uceda Betti, com quem dividi inseguranças, relatórios, militância e carinho: obrigada por ter me recebido de maneira tão generosa, e por ter acompanhando todos os percalços desta pesquisa. Agradeço profundamente as/os colegas e amiga/os do NUMAS (Núcleo de Estudo sobre os Marcadores Sociais da Diferença/USP) pela produtiva relação pessoal e acadêmica, a partir da qual construímos coletivamente um fazer assustadoramente solitário. Obrigada pela competência, pela descontração, pela parceria militante e pelo desafio de alcançá-los, Márcio Zamboni, Gibran Teixeira Braga, Pedro Lopes, Mariane Pisani, Gustavo Saggese, Lais Higa, Letizia Pretarca, Luiza Ferreira Lima, Isabela Venturosa, Marisol Marini e Renata Mourão. Aos membros do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR/USP), obrigada pelas leituras, ideias, sugestões e críticas sempre desafiadoras e desestabilizadoras. Agradeço e reconheço as/os colegas do Programa de Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS/USP) e da graduação em Ciências Sociais pela companhia e companheirismo acadêmico, político e emocional. Sou grata, também, às/aos colegas de orientação, Túlio, Fernanda, Izabela, Michele e Sônia, pelas leituras e trocas contínuas em tantas tardes e manhãs estimulantes. Às queridas e aos queridos de Princeton, em especial a Minerva Pedrosa, pela troca intelectual e afetiva que estabelecemos ao longo dos últimos meses. 6 Gostaria de reconhecer profundamente, também, a amiga Rocío Alonso Lorenzo, pelas sugestões e pela credibilidade que conferiu as minhas ideias, assim como pela intensa relação acadêmica e afetiva que estabelecemos. Agradeço os colegas do Programa de Educação Tutorial (PET) em Ciências Sociais, em especial, Bianca Barbosa Chizzolini, Luis Felipe Serrao, Tiago Cortes Rangel, Nicolau Dela Bandera e Juliano Almeida, por dividirem comigo as primeiras agruras acadêmicas. A minha numerosa, “almodovariana” e ruidosa família carioca na figura de muitos tios, primos e toda sorte de agregados, mas especialmente, ao rol de mulheres fortes, corajosas e inspiradoras pelas quais sempre estive cercada: minha avó, Debora e minhas tias Nádia e Deborah e minhas primas. À memória de meu avô, Henrique Accioly Lins. Das anedotas sobre sua coragem em mudar o estado das coisas e seu apreço por ideias de justiça e fraternidade, retirei boa parte de minhas primeiras inspirações para perseguir o papel de pensadora e militante. Aos meus pais, Natércia e Wilson, pela confiança – às vezes excessiva – nas minhas capacidades e possibilidades, e pelos constantes esforços que dedicaram a minha formação. Aos meus amigos, que expandem e redefinem os contornos do parentesco, por cuidarem tão bem de mim e pela reconfortante presença, Bruna Pereira Brandão, Gabriela Couto Rosa, Jorge Gustavo Pinna Rodrigues, Luciana Mello Guedes, Priscila Lutfi, Rachel Rua, Rene Guedes e tantos outros. Ao amado BernardoFonseca Machado, por andar sempre ao meu lado, me protegendo do lado “perigoso” da rua. À Veridiana Domingos (“Veri”), grande responsável pela existência desta pesquisa, por me emprestar, diversas vezes, a energia e a iniciativa que me faltavam, e, também, pelas muitas leituras rigorosas. À família Beringhs, pela carinhosa adoção compulsória. Aos companheiros e às companheiras do Projeto Raiz, em especial Carlos Miranda, Mayra Lourenço, Acácio Santos e Gabriela Araújo, obrigada pela militância, pela admiração recíproca e por compartilharem comigo a força das quebradas da Zona Sul. Ao meu companheiro de vida, mente e luta, Steevens Beringhs (o “Zé”). Obrigada pela inspiração de viver todos os dias ao seu lado, pela parceria irrestrita, pelo encontro quase metafísico, pelas trocas infinitas, e por me desafiar, sempre. Nas palavras do aguerrido poeta uruguaio Mario Benedetti: “te amo porque tua boca sabe gritar rebeldia.” 7 LINS, Beatriz Accioly. A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo. 174 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. RESUMO Com o advento da Lei nº 11.430/2006 (Lei Maria da Penha), foi alterada substancialmente a tipificação jurídica da criminalização dos casos de violência doméstica no Brasil, sendo modificadas a autuação e o tratamento, nas esferas policiais e jurídicas, desses delitos. O texto da nova lei tipifica e pune de maneira mais rigorosa situações que, até então, encontravam-se em uma alçada de legislações genéricas consideradas, pelos seus críticos, como mais vulneráveis às reproduções das desigualdades de gênero. A partir do acompanhamento do expediente policial de duas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) na cidade de São Paulo, investigo os usos e as mudanças trazidas pela Lei Maria da Penha para a prática policial nas DDMs – órgãos especializados da Polícia Civil responsáveis pelo atendimento de mulheres vítimas de violência –, e de que maneira tais mudanças se articulam com percepções de gênero, família, conjugalidade e justiça que circulam entre as policiais. Para além de avaliar a aplicação correta da norma jurídica, viso entender a lei como algo dinâmico, plástico, polimorfo e polissêmico, e que ganha sentidos e práticas conforme é manuseada e utilizada na prática de diferentes profissionais; indagando à lei justamente o que ela não diz em texto seu formal: seus significados implícitos, subentendidos e interpretativos, isto é, ler a Lei Maria da Penha em suas entrelinhas. Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Delegacia de Defesa da Mulher; violência doméstica; gênero. 8 LINS, Beatriz Accioly. The law between the lines: Lei Maria da Penha law and the police work in two Women’s Police Stations in São Paulo. 174 p. Thesis (Masters) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. ABSTRACT With the enactment of Law No. 11.430/2006 (Maria da Penha Law), Brazil substantially changed the legal classification of the criminalization of domestic violence cases, modifying the assessment and treatment, in the police and legal spheres, of these offenses. The text of the new law criminalizes and punishes more rigorously situations that, in the past, were subject to a generic scope of legislation considered by its critics as vulnerable to the reproduction of gender inequalities. Through the expedient of two Women’s Police Stations (DDMs) in the city of São Paulo, I investigate the changes and uses that the promulgation of the Maria da Penha Law have brought to the police practice inside these specialized organs of the Civil Police (responsible for the care of women victims of violence), and how these changes are linked to perceptions of gender, family, marriage and justice operated by the police. This dissertation does not aim to assess the correct application of the legal norm, but tries to understand the law as dynamic, plastic, polymorphous and polysemous experience, whose meanings and uses may change and transform through the practices of different professionals. It is about questioning the law not in its formal text: but the implicit, implied and interpretive meanings it has, in other words, to read the Maria da Penha Law between the lines. Keywords: Maria da Penha law; Women’s Police Station; domestic violence; gender. 9 Índice Introdução 11 “Agora é lei”: antes e Depois da Lei 11.340 14 Uma breve recapitulação sobre as Delegacias de Defesa da Mulher 18 Uma delegacia de centro e uma delegacia de fundão: o campo 24 Capítulo 1: “Não existe policial de DDM, existe policial”: reflexões sobre um campo minado 31 1.1 Imagine-se em uma ilha deserta: um campo (in)desejado 37 1.2 Polícia para quem precisa: afinal, no que consiste ser polícia? 47 1.3 Entre a polícia e a assistência social: justiceiro e burocrata 50 1.4 Dança das cadeiras: circulação e formação na Polícia Civil 55 1.5 Uma coisa é completamente diferente da outra: tiras, escrivãs e delegadas 58 1.6 “É a sua palavra contra a dele”: o papel da dúvida no trabalho policial 67 Capítulo 2 – “A lei ficou louca”: A Lei Maria da Penha e o trabalho policial nas DDMs 70 2.1“Burocratas da linha de frente”: práticas e decisões nas DDMs 71 2.2 Do B.O. ao Inquérito: o fluxo interno das denúncias 76 2.3 Lei enlouquecida: a Lei Maria da Penha e a incondicionalidade 80 2.4 “Minha senhora, o quê aconteceu?”: a elaboração do Boletim de Ocorrência 87 2.5 “Lei é lei, minha filha, ele não pode te bater”: a lei é dura, mas é a lei? 93 2.6 Gradiente da violência doméstica: o que dói mais? 98 Capítulo 3 – “Vítima de verdade existe, mas eu nunca vi”: mulheres, vítimas e verdades 105 3.1 Entre feminismo (s) e teoria social: a vítima como conceito político-teórico 110 3.2 Nem toda a vítima é vítima: a triagem da verdade dentro das delegacias115 3.3 “Mulher mente muito”: quem é que diz a verdade 125 3.4 “Eu não gosto de mulher!”: sobre mulheres, homens e algumas ambiguidades convictas 132 3.5 Violência doméstica é crime? Legalidade e legitimidade da Lei Maria da Penha 144 Epílogo: pode uma vilã ser vítima? 148 Referências Bibliográficas 154 Anexo - Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) 162 10 O momento em que você estende a mão para fazer a coisa – o homem lá do hospício tinha razão, não me lembro daquele momento, mas consigo recriá-lo, fui obrigado a recriá-lo; constatei que você pensa que é uma descoberta, uma coisa que você antes não sabia e agora sabe. Mas, não, a coisa sempre esteve aí, já foi descoberta vez após vez, desde sempre. Vez após vez, o que Odisseu, e o que Homero sabia, fosse ele quem fosse. A violência é uma repetição que não parecemos sermos capazes de romper; (...). (Nadine Gordimer. A arma da casa). 11 Introdução “Meu marido me humilha! Eu não aguento mais. Não sei o que fazer!”, bradou a mulher ao se debruçar bruscamente sobre o balcão da delegacia. Visivelmente abalada, sua interpelação aflita chamou a atenção de todos os presentes na recepção, atraindo olhares perplexos e curiosos das funcionárias em serviço, de outras mulheres que aguardavam atendimento e de policiais militares que acompanhavam um flagrante levado à polícia civil. Do lado de dentro do balcão, a policial civil responsável pela recepção e triagem dos casos se levantou de sua mesa e abordou a recém-chegada com um costumeiro: “minha senhora, o que está acontecendo?”. Se para as policiais a pergunta introdutória serviria, invariavelmente, para identificar e classificar os relatos das mulheres que buscavam os serviços da delegacia; para muitas mulheres, a indagação operava como um convite ao desabafo. No caso da recém-chegada, não foi diferente. Em meio a lamentos indignados e chorosos, a mulher tratou de explicar que vivia em um casamento tenso e conflituoso, e que seu marido costumava desmerecer-lhe com palavras depreciativas, além de pressioná-la a manter relações sexuais indesejadas. Ela queria, por isso, denunciá-lo. Após ouvir o longo relato, a policial, um tanto impaciente, pediu calma e “menos escândalo”, perguntando à mulher quais seriam os tais termos ofensivos e de que forma o marido a obrigaria a fazer sexo sem consentimento. “Ele diz que eu sou feia, que ele não sente atração por mim, depois diz que vai sair de casa, que vai parar de comprar comida para as crianças se eu não obedecê-lo”, explicou a mulher. Um tanto frustrada, a policial replicou: “senhora, isso não é crime! Só seria crime se ele lhe agredisse ou ameaçasse. Ele lhe agride? Faz ameaças à sua vida?”. Com a negativa da mulher, a policial concluiu: “não há nada que possa ser feito aqui, senhora. Isso não é crime.” Insatisfeita, a mulher questionou a profissional, “mas essa não é uma delegacia da mulher? Vocês não têm que me defender?”. “Aqui é uma delegacia, a gente investiga crimes, senhora”. Enquanto a mulher argumentava com a policial, o menino que a acompanhara desde sua chegada à recepção parecia constrangido e ansioso. Após diversas tentativas frustradas de intervir nas falas da mãe para defender o pai, ele optou por caminhar pela delegacia, não se contentando, contudo, ao restrito espaço da recepção. Já alheio à discussão do balcão, o menino, que aparentava ter cerca de oito anos de idade, abria e fechava portas, manuseava papéis e provocava ruídos, sendo eventualmente abordado e reprimido por outras policiais que transitavam pelo corredor de entrada. Bruscamente, ele puxou cabos telefônicos que estavam próximos a uma parede, tentando rompê-los. A policial da recepção, notando a 12 movimentação, interrompeu o diálogo com a mulher de maneira enérgica e virou-se para a criança: “menino, você não pode entrar aqui! Isso é uma delegacia! Tenha mais respeito!”. Sem medo, o menino continuou a romper os cabos e respondeu em um tom desafiador: “mas é só uma delegacia de mulher!”. A conotação negativa utilizada pelo menino não passou despercebida pelas policiais, que esboçaram certo incômodo diante do inesperado desdém de uma criança. Mais do que uma resposta, a fala do menino parecia ser um ataque, um posicionamento bastante claro de menosprezo direcionado ao fato daquele ser reconhecidamente um espaço de mulheres policiais que atendiam crimes cometidos contra outras mulheres. A policial da recepção, um pouco indignada, retirou o menino do espaço restrito carregando-o pelo braço e enfatizando rispidamente: “não, querido. Essa é uma delegacia de polícia!”. Quando mãe e filho deixaram a recepção, o ocorrido, apesar de ter causado momentânea insatisfação, foi tratado pelas policiais como apenas um dos muitos casos anedóticos e inusitados que circulavam pelos corredores de uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). A mim, contudo, esse pareceu um dos momentos mais emblemáticos dos quinze meses em que acompanhei as atividades de duas DDMs paulistanas. De certo modo, aquela experiência parecia reunir alguns aspectos centrais para a compreensão da realidade de um distrito policial especializado no atendimento a crimes contra mulheres: desde a confusão da mulher atendida, que parecia ter buscado um espaço em que se sentia autorizada a demandar algum apoio, ao descobrir que sua concepção de violência não se enquadrava nos tipos criminais utilizados nos registros de ocorrências; passando pela frustração da policial ao entender que aquele relato não corresponderia a um crime doméstico e/ou sexual; e derrocando na petulância inocentemente desafiadora do menino, que contestava a legitimidade social da delegacia, de seu público e de suas demandas. Foi visando justamente compreender as especificidades e os significados do trabalho policial nas Delegacias de Defesa da Mulher, em especial a partir da promulgação da Lei Maria da Penha, que se desenrolou essa pesquisa. A partir do acompanhamento cotidiano das atividades de duas DDMs da cidade de São Paulo, busquei entender de que maneira a recente alteração do tratamento jurídico da violência doméstica – que passara de um delito de menor potencial ofensivo para um crime hediondo punido e coibido com maior rigor – teria impactado as práticas e as percepções das policiais dentro de uma das primeiras instâncias responsáveis pelo atendimento a mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Meu objetivo, nesse sentido, seria o de delinear os contornos a partir dos quais a nova lei estaria sendo incorporada e compreendida, levando em consideração, também, de que maneira 13 percepções de gênero, conjugalidade, família e justiça seriam acionadas e articuladas nas falas e práticas policiais, assim como nas relações que essas profissionais estabeleciam com as mulheres atendidas. Adoto, nessa dissertação, um tom que conscientemente visa superar uma abordagem estritamente avaliativa do trabalho policial. No dia a dia das duas delegacias, encontrei diferentes e criativas maneiras de manusear e operacionalizar a nova norma jurídica, que mobilizavam ambíguas percepções de gênero entrelaçadas em múltiplos sensos de justiça, e que permitam acesso a complexos emaranhados morais, tão múltiplos quanto repletos de significados ambivalentes. Para destrinchá-los, optei por analisar as diferentes formasatravés das quais essas profissionais entendiam e explicavam escolhas, dilemas e procedimentos comuns em seus cotidianos, evitando, assim, apresentar as práticas policiais a partir de binarismos pautados por negativas e ausências, isto é, listando privilegiadamente deficiências, falhas e equívocos de seu trabalho. Distanciando-me de uma abordagem que conceba leis como instrumentos meramente repressores e coibidores, e em essência, negativas; busquei entender a Lei Maria da Penha também em sua faceta positiva, isto é, como força produtora de subjetividades, moralidades e ilegalidades (Foucault, 1975, 1973; Butler, 1990), que constrói, administra e estipula normas e desvios; definindo padrões de comportamento desejáveis ou condenáveis dentro de determinados contextos sociais. A partir dessa perspectiva, pensei a nova lei não somente como um instrumento criado para proteger determinados sujeitos pré-existentes, mas como criadora, também, dos sujeitos a serem protegidos (Butler, 1990). Proponho, assim, que pensemos as leis como processos que envolvem uma gama variada de irregularidades e mudanças (Moore, 2000), a partir das quais diferentes sociedades (ou diferentes grupos em uma mesma sociedade) construiriam ordens sociais e simbólicas. Esses processos – mais do que formados por normativas rígidas, inflexíveis e lógicas – seriam indeterminados, mutáveis, parciais e não sistemáticos. Isso implica a compreensão de que embora o Direito e as leis projetem uma autoimagem de coerência, ordem, abrangência e aquiescência; na prática, seus usos e leituras se dariam a partir de processos de ressignificação, fugas, e diferentes entendimentos e aplicações. Nesse sentido, pensar o manuseio das leis envolveria investigar a relação entre “ideologia” e “ação” (Moore, 2000), isto é, entre normas e práticas, buscando os significados e sentidos por trás de seus diferentes usos, levando em consideração suas dilatações hermenêuticas, seus elementos de ambiguidade, descontinuidade, contradição, paradoxo e conflito. 14 Foi pensando que as leis ganham múltiplas utilizações e diversos entendimentos na prática das profissionais que as manuseiam e nas relações que elas estabelecem com os sujeitos “protegidos” pelas leis, que me interessei por compreender de que maneira a Lei Maria da Penha tomaria vida dentro das Delegacias de Defesa da Mulher, pensando-a como algo dinâmico, plástico, polimorfo, polissêmico e que acumula sentidos e práticas conforme utilizada em diferentes contextos. O esforço deste trabalho, portanto, talvez possa ser resumido na tentativa de indagar à lei o que ela não diz necessariamente em texto seu formal: seus significados implícitos, subentendidos, interpretativos, criativos e criadores; isto é, conhecer a Lei Maria da Penha em suas entrelinhas. “Agora é lei”: Antes e Depois da Lei 11.340/06 Em setembro de 2006, entrou em vigor em todo o território nacional a Lei 11.340/06, ou como popularmente ficou conhecida, a Lei Maria da Penha, responsável pela definição da primeira norma jurídica visando à punição e à prevenção à violência doméstica e familiar contra mulheres no Brasil. Promulgada no dia seis de agosto do mesmo ano, a lei surgiu tanto como uma resposta tardia a articulações de diferentes demandas de organizações de defesa dos direitos das mulheres – que há mais de três décadas reivindicavam medidas mais austeras a violências cometidas em relações de afetividade e proximidade –, quanto como uma tentativa do Estado brasileiro de se adequar a convenções e tratados internacionais dos quais é signatário1, ampliando o acesso à justiça para suas cidadãs. Trazendo mudanças profundas em relação ao tratamento jurídico anterior dado à violência doméstica, o texto da nova lei foi apresentado e comemorado como uma importante vitória diversos grupos envolvidos em sua concepção. O tom, com a promulgação, para muitos militantes e juristas, parecia ser de alívio e otimismo 2 . A nova lei, de certo modo, iria ao encontro de um consenso segundo o qual, pelo menos do ponto de vista normativo, seria necessário contar com uma estipulação jurídica específica para punir conflitos que 1 O Brasil ratificou dois tratados internacionais referentes a essa questão: a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW, ONU, 1979) e a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994). 2 É importante ressalvar a presença de críticas e questionamentos envolvidos no processo de elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha empreendidos tanto por juristas quanto por alguns grupos militantes feministas que problematizavam a aposta punitiva contida na lei, isto é, a demanda de penas mais rigorosas para os agressores que culminaria na centralidade dada à possibilidade do encarceramento (ver Batista, 2007; Celmer e Azevedo, 2007). Após a promulgação, houve também um importante questionamento acerca da constitucionalidade da nova lei, que viria a ser aprovada por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de 2012 (ver Machado et al, 2012). 15 costumavam ser trivializados e tratados condescendentemente pelo sistema de justiça brasileiro. O “Agora é lei” se transformou em um importante jargão daqueles que lutaram pelo aumento do rigor punitivo para autores das agressões contra mulheres, pelo menos em âmbito doméstico e familiar. No entanto, apesar do tom majoritariamente positivo, parecia ser também generalizada a cautela em relação ao fato de que, para além das inovações normativas que a Lei Maria da Penha anunciava, seriam necessárias altas dose de atenção, vigilância e paciência até que a nova lei fosse absorvida e efetivamente aplicada em casos reais levados à justiça. Após a vitória, restava a dúvida: seria a lei aplicada de fato ou as diferentes esferas da justiça responsáveis pelo seu tratamento encontrariam formas de subutilização ou até mesmo de boicote ao que está estipulado em seu texto? Visando sanar tal limitação, entendeu-se ser vital mobilizar esforços para investigar a inserção da Lei Maria da Penha dentro das instâncias responsáveis pela sua aplicação, em especial as Delegacias de Defesa da Mulher e os recém-criados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher (JVD). Dentro desse contexto, buscando sinalizar possíveis incongruências entre a lei enquanto norma e a lei enquanto prática, algumas pesquisadoras teceram importantes críticas e ressalvas quanto à efetiva aplicação da lei, isto é, sua existência de acordo com a normativa estabelecida a partir das interpretações conferidas por profissionais do sistema de justiça (Andrade, 2012; Lemos, 2010; OBSERVE/UNIFEM, 2011; Pasinato, 2010; Zapater & Perrone, 2010; Santos, 2008; Debert & Gregori, 2008; Pasinato & Santos, 2008). Tais análises, em geral, apontam para os limites e entraves que a lei teria passado a enfrentar dentro do próprio sistema, começando com a atuação da polícia nas delegacias, passando pelos demais órgãos da rede de atendimento e culminando na atividade de promotores, defensores e juízes dentro dos juizados especializados. Grosso modo, observa-se que antigas ressalvas feitas ao trabalho de profissionais que lidavam com mulheres em situação de violência doméstica continuam pertinentes, tais como o descaso e a desconfiança para com os relatos das vítimas e a permanência de práticas que influenciavam negativamente a aplicação da lei, gerando possibilidades de burlar e boicotar a norma, auxiliando na perpetuação da violência. Para compreendermos os avanços trazidos pela nova lei, se faz necessário um breve percurso pelas outras respostas jurídicas encontradas pela justiça brasileira para a questão da violência doméstica contramulheres. Anteriormente à Lei Maria da Penha, o tratamento 16 jurídico da violência doméstica no Brasil era responsabilidade da Lei nº 9.099/953, norma que institucionalizou no sistema de justiça criminal brasileiro a chamada “justiça consensual” ou “restaurativa” (Nader, 1994; Rifiotis, 2004, Oliveira, 2007; e Alvarez, 2010). Tal corrente do pensamento jurídico visa à conciliação entre as partes através de procedimentos menos burocráticos para a resolução dos conflitos considerados de menor potencial ofensivo, tendo como propósito desonerar o poder judiciário de uma quantidade significativa de processos penais. No Código Penal brasileiro são considerados delitos de menor potencial ofensivo uma enorme gama de atividades ilícitas, tais como crimes referentes à posse e uso de drogas, atentados à honra, à moral e à ordem pública e violações do Código Brasileiro de Trânsito. Tais infrações dispensam a realização de um registro de Boletim de Ocorrência, sendo necessária, somente, a realização de um Termo Circunstanciado (TC) contendo um breve relato dos fatos e a caracterização das partes envolvidas. Após a realização do TC, o caso deve ser rapidamente encaminhado para um foro especializado que privilegia negociações e acordos. Do ponto de vista burocrático, isso significa que a infração levada à delegacia não se torna, necessariamente, uma investigação policial ou um processo judicial, e pode ser resolvida através de acordos diretos entre as partes. Para julgar os crimes de menor potencial ofensivo, a Lei nº 9.099/95 criou os Juizados Especiais Criminais (JECRIM), que passaram a ser responsáveis pela regulamentação de procedimentos judiciais relativos às infrações consideradas brandas em relação à escala de penalidades prevista no Código Penal brasileiro. Dentro dos JECRIM, operam mecanismos que buscam conciliação entre as partes e cujas condenações previstas não ultrapassam dois anos em regime de reclusão ou o pagamento de multas, muitas vezes transformadas em doação de cestas básicas ou prestação de serviços à comunidade. Como a Lei nº 9.099/95 incorpora os delitos de lesão corporal e ameaça, após sua promulgação, a maior parte dos casos entendidos como violência doméstica acabou por ser levado aos JECRIM, e suas punições consistiam majoritariamente em pagamentos de multas e cestas básicas, não havendo nenhuma proteção maior à vítima. Entre 1995 e 2006, esses casos foram tratados na esfera policial e jurídica como leves discordâncias que deveriam ser resolvidas através de acordos. Em outras situações, na prática dos julgamentos e das audiências, era comum que mulheres fossem induzidas a desistir de levar às causas adiante, 3 BRASIL, Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Legislação Federal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 30 jun. 2014. Antes da promulgação da lei 9.099/95, os casos de violência doméstica eram tratados de maneira genérica nas tipificações penais de “Lesão Corporal” e “Ameaça” do Código Penal Brasileiro (Ardaillon & Debert, 1987). 17 fazendo com que a maior parte dos crimes de violência doméstica não se transformasse em processo judicial (Rifiotis, 2004). Na prática, os JECRIM acabavam atuando como um espaço de “ressignificação das penas”, em que a questão da violência doméstica era, na maioria dos casos, “trivializada”; e a conciliação aparecia sempre como um fim, e não um meio de solução do litígio, banalizando o crime e abrindo espaço para a impunidade (Santos, 2008). A utilização da Lei 9.099/95 para casos de violência doméstica e familiar contra mulheres recebeu diversas críticas por parte de militantes feministas, pesquisadores e, inclusive, criminalistas e agentes do Estado. Para os críticos, era evidente a inadequação da lei em relação aos casos de violência doméstica, uma vez que tal arranjo jurídico não levaria em consideração a desigualdade de poder nas relações entre agressor e vítima, e não oferecia uma solução satisfatória para as mulheres em situação de violência. Na tentativa de sanar algumas das limitações dos JECRIM, foi criado, em 2003, o JECrifam (Juizado Especial Criminal Familiar), especializado na condução de casos de violência conjugal. Contudo, Almeida (2008) afirma que, na atividade desses juizados, embora fosse favorecida a transação legal e penas consideradas “pedagógicas” (como prestação de serviços à comunidade), permanecia a insistência, por parte de alguns operadores da justiça, para que a vítima renunciasse à representação, sendo privilegiado o aspecto da “celeridade” da lei. Segundo a autora, os profissionais do direito pareciam ter dificuldades em encarar as mulheres, especialmente aquelas de camadas populares, como detentoras dos mesmos direitos, e acabavam por reproduzir um discurso moral e religioso de defesa da família, trivializando e banalizando a violência doméstica. Nesse contexto, a Lei Maria da Penha trouxe mudanças substanciais na forma como a justiça tipifica delitos de violência doméstica, retirando as agressões e ameaças sofridas por mulheres do rol de delitos de menor potencial ofensivo e da incumbência da Lei nº 9.099/95. A partir de seu texto, surgiu uma norma específica para lidar com as mulheres em situação de violência visando à punição mais efetiva dos agressores e a criação de mecanismos de proteção e coibição de crimes dessa natureza. Conceitualmente, como argumenta Pasinato (2007), a nova lei trouxe importantes inovações, como a definição de violência doméstica contra a mulher enunciada a partir de uma perspectiva de gênero, a compreensão de tal violência não pode ser tratada como um problema de justiça criminal genérico e a incorporação de medidas de caráter preventivo e pedagógico para coibir a reprodução da violência contra as mulheres. Do ponto de vista policial e jurídico, a nova lei tornou possível a realização de prisões em flagrante, prescreveu a forma de atendimento da vítima pela autoridade policial e por uma 18 equipe multidisciplinar, criou medidas protetivas emergenciais, aumentou a pena máxima para três anos de reclusão, impediu a aplicação da pena do pagamento da cesta básica e dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVD), órgãos da Justiça Comum com competência civil e criminal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica. A Lei Maria da Penha também trouxe alterações normativas para a prática da autoridade policial no dia a dia das Delegacias de Defesa da Mulher, órgãos especializados da Polícia Civil responsáveis pelo atendimento de mulheres vítimas de violência. O corpo da nova lei inclui uma detalhada orientação das normas de conduta para o atendimento policial à mulher em situação de violência, limitando o espaço da “ideologia da harmonia” (Nader, 1994) e da identificação do papel policial, dentro destas instituições, como de mero conciliador de discordâncias familiares. Uma breve recapitulação sobre as Delegacias de Defesa da Mulher Criadas em meados na década de 1980, no contexto de expansão dos movimentos feministas e de redemocratização pós-ditadura, as Delegacias de Defesa da Mulher têm como objetivo institucional atuar como dispositivo da polícia civil na ampliação do acesso à justiça, aparecendo como a principal política pública no combate à violência contra as mulheres e ocupando uma posição central nos debates a respeito das questões de gênero, direitos e violência no Brasil. Conceitualmente, as DDMs foram idealizadas como unidades policiais que atendessem mulheres de maneira multidisciplinar e com profissionais capacitados e especializados nas diferentes nuances da violência contra a mulher 4. Desde sua criação, contudo, as DDMs recebiam, em sua maioria,queixas referentes a agressões físicas e ameaças cometidas por cônjuges ou companheiros. Tal circunstância fez com que as policiais tendessem a restringir os crimes atendidos nas delegacias às infrações cometidas no âmbito conjugal, ignorando ou subestimando outros tipos de violência. Na prática, as DDMs foram adquirindo para si, a competência de lidar com a violência no âmbito doméstico, e se tornaram a principal política do Estado para prevenção e punição 4 Contudo, é importante ressaltar que não existe um modelo único de delegacia da mulher no Brasil, havendo uma razoável variação regional quanto ao tipo de serviços, o público atendido e, até a promulgação da Lei Maria da Penha, os tipos de crime definidos como sendo de sua competência (ver Izumino, 1998). 19 da violência conjugal 5 . Nota-se que as DDMs surgiram enquanto instituição especializada em lidar com a violência conjugal e familiar contra a mulher anteriormente à elaboração de uma norma jurídica responsável por tipificar tais delitos, e como consequência, em suas primeiras décadas de funcionamento, as ocorrências eram classificadas com base nas representações sociais das profissionais responsáveis pelo registro das ocorrências – delegadas e escrivãs. Dada sua importância política, social e simbólica no enfrentamento da violência contra mulheres no país, as DDMs foram constantemente pesquisadas por acadêmicos, feministas e órgãos nacionais e internacionais de defesa dos direitos das mulheres. Há uma quantidade significativa de estudos sobre o funcionamento das delegacias, que investigam sua história político-institucional, sua estrutura física, atividades cotidianas e práticas policiais que se dão em seu interior (Soares, 1999; Brandão, 2006; Debert, 2006; Debert & Gregori, 2008; Jubb et all, 2010; Pasinato, 2006 e 2010; e Andrade, 2012). De maneira geral, as análises sobre as delegacias apontam que, embora tenham sido fruto de lutas de organizações políticas por respostas estatais a respeito da condição da mulher, as DDMs logo se tornaram problemáticas para as reivindicações de cunho feminista, uma vez que não conseguiram realizar boa parte das demandas originais, como a articulação de um atendimento multidisciplinar, integral e mais humanizado e a redução de crimes contra a mulher. A atividade das delegacias mostrou-se, desde seus primeiros anos de funcionamento, muito aquém das expectativas daqueles envolvidos em sua idealização. Debert e Gregori (2008) argumentam que as DDMs seriam órgãos que combinam, de maneira complexa, elementos da universalidade e da particularidade, uma vez que partiriam do pressuposto de que a universalidade dos direitos só poderia ser atingida se a sociedade contemplasse a particularidade das formas de opressão. Nesse cenário, as DDMs trariam sérios dilemas para os indivíduos que estão em seu interior. Para as autoras, as atividades das delegacias seriam um profundo desafio para as policiais, pois exigiriam que elas conseguissem “combinar ética policial com defesa dos interesses das minorias atendidas” (Debert & Gregori, 2008, p. 166): [a DDM] cria arenas de conflitos éticos, dando uma dinâmica específica ao cotidiano das delegacias e exigindo de seus agentes uma dose de criatividade monumental. (Debert & Gregori, 2008, p.167) 5 As principais críticas a esse processo debatem justamente a restrição da atuação das DDMs quase que exclusivamente à violência doméstica. Para os críticos, a Lei Maria da Penha padece ao confundir violência com crime e esquecer que as desigualdades entre homens e mulheres perpassam a relação doméstica e familiar. Ver Debert & Gregori (2008). 20 A bibliografia sobre a atuação policial nas DDMs, grosso modo, aponta para o fato de que diferentes concepções interfeririam na interpretação da lei e na atuação das profissionais das DDMs, atrapalhando a conversão dos direitos de jure em direito de facto (Jubb et al., 2010). Isso quer dizer que no dia-a-dia das delegacias, as respostas das DDMs seriam influenciadas por concepções tradicionais de gênero e família que orientariam as práticas de suas funcionárias, impedindo a aplicação formal da lei e influenciando diretamente no resultado dos processos jurídico-policiais. Debert (2006) afirma que, nas DDMs, estariam em jogo diferentes concepções de justiça, sendo mobilizada, sobretudo, a defesa de uma noção de família como instituição privilegiada, que deve ser salvaguardada e privilegiada em detrimento da defesa e da proteção da mulher em situação de violência 6 . Por isso, na prática dessas policiais seriam aplicados filtros no atendimento das ocorrências, sendo mobilizados valores, representações e discursos que culpabilizariam o álcool, as drogas, a falta de instrução e a situação financeira precária pelos crimes cometidos pelos maridos e companheiros. As policiais das DDMs, em suas práticas, de maneira bastante subjetiva, se situariam a meio caminho entre o mundo das ocorrências e a esfera da legalidade e realizariam, na prática, a tradução entre dois domínios: de um lado ofereceriam instrumentos de pressão e negociação para as mulheres denunciantes e, de outro, seriam forçadas a abrir mão de algumas de suas referências legais normativas. Dentro desse contexto, seria possível concluir que as mulheres presentes nas DDMs – sejam as policiais ou as mulheres em situação de violência – apostariam, majoritariamente, em intervenções informais que mantivessem unida a família, e acabariam por banalizar as motivações das reclamantes, além de responsabilizarem as próprias mulheres pela violência sofrida. Sendo assim, apesar das DDMs serem vistas como a porta de entrada de mulheres em situação de violência no acesso à justiça, a prática de suas funcionárias sinalizariam percepções, valores e preconceitos que influenciariam a prática policial, evidenciando conflitos entre determinada postura feminista e a ética policial. Em outras palavras, esperar- se-ia que aquelas que atuam dentro das DDMs agissem de maneira a defender os direitos das mulheres, o que não ocorreria na prática dessas instituições. A aproximação ou não com o discurso feminista dependeria de uma conjuntura política extremamente variável e de posturas subjetivas e individuais. As delegadas, escrivãs e investigadoras poderiam até ter alguma 6 No caso específico do estado de São Paulo, em 1996, as DDMs ganharam a incumbência de investigar crimes sobre crianças e adolescentes (Decreto n. 40.693/1996), enfatizando a função da delegacia como espaço de defesa da família (ver Debert, 2006). 21 solidariedade com a clientela, mas criariam tipologias e teorias explicativas que geram mecanismos para burlar a normativa jurídica. Parte das pesquisas sobre as delegacias especializadas aponta como principais obstáculos para sua eficácia: a falta de capacitação das policiais; a relativa ausência de parcerias entre as delegacias e outros órgãos estatais de auxílio a mulheres em situação de violência, a fragilidade e invisibilidade dos serviços dentro das do aparato jurídico-policial; a ausência de mecanismos de seguimento dos casos e de investigação dos inquéritos; a inexistência de estatísticas gerais; a falta de espaços comuns para a troca de informações; e, também, e talvez de maneira central, a atuação das policiais, responsáveis por sua interpretação e aplicação da legislação (Soares, 1999; Pasinato, 2006 e 2010; Debert & Gregori, 2008; Jubb et al. 2010). . Apesar do pouco tempo de promulgação da Lei Maria da Penha, alguns estudos salientam que delegadas, escrivãs e investigadores das Delegacias De Defesa da Mulher interpretam, ressignificam, vivenciam e aplicam a Lei Maria da Penha no seu cotidiano, ignorando a normativa, criandoobstáculos à denúncia, destituindo a responsabilidade do agressor e culpando as mulheres por não seguirem os processos jurídicos e afastando-se do que está previsto na lei (Jubb et al. , 2010; Lemos, 2010; e Andrade, 2012). Assim, embora a Lei Maria da Penha traga mudanças substanciais no tratamento da violência doméstica no aparato jurídico-policial ao se basear numa noção de violência contra a mulher resultante de uma estrutura de dominação e de desigualdade de poder, tal concepção: (...) enfrenta imensas resistências nas práticas e nos saberes que compõem o campo da aplicação e da efetividade das leis. (Debert & Gregori, 2008, p. 169). Dado que as Delegacias de Defesa da Mulher teriam um papel central tanto na investigação policial quanto no processo criminal como no acesso às medidas de proteção e assistência das mulheres em situação de violência, a bibliografia sobre o tema enfatiza a noção de que, na tradução do fato real em fato legal, haveria um processo de ressignificação a partir do qual valores, costumes e símbolos sociais interfeririam na apreensão e na tradução da violência no discurso da justiça (Ardaillon & Debert, 1987). Sendo assim, a aplicação da lei incluiria processos de ressignificação por parte das policiais que estão dentro das DDMs. Esses valores e representações interfeririam nas “representações jurídicas de papéis sexuais” (Côrrea, 1983) e afetariam a atividade policial no contexto da coibição e punição à violência doméstica. Em outras palavras, a lei sairia das normas jurídicas e se corporificaria na 22 atividade profissional criando uma distância entre os “direitos do papel” e os “direitos vividos” (Wayled apud Jubb et al., 2010). Segundo Correa (1983), os agentes da lei compartilhariam um terreno comum de aceitação de certas normas sociais que definiriam o que seria o comportamento adequado para mulheres e homens. Haveria, nesse sentido, um perfil de comportamento considerado “normal”, em que os envolvidos seriam enquadrados e tratados dentro da estrutura jurídico- policial. Por isso, pesos diferentes seriam atribuídos a atitudes de vítimas e agressores, e operadores jurídico-policiais mobilizariam argumentos diferentes na construção do ocorrido. No caso da violência doméstica, o papel mais importante não seria o do crime em si, mas as características e atributos da vida sexual, profissional e social das personagens envolvidas. Esses perfis seriam traçados, pelos profissionais da justiça, a partir de padrões socioculturais de feminilidade e masculinidade, isto é, por normativas de gênero, que incluem representações acerca de comportamentos desejados em homens e mulheres. Levando em consideração as análises anteriores, percebe-se que, para compreender a influência das percepções e valores das policiais em sua interação com a Lei Maria da Penha, far-se-ia central conhecer suas percepções de gênero; e de maneira elas entrariam em conflito ou estariam em consonância com as práticas jurídico-policiais utilizadas por essas profissionais. Presente no texto da Lei Maria da Penha, que define a violência doméstica e familiar contra a mulher como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (grifo próprio)7, o termo gênero não encontra no corpo da lei uma definição explícita ou aprofundada. No dia a dia das policiais, o termo gênero poucas vezes era mobilizado como categoria êmica. Na teoria social, contudo, gênero possui múltiplas e diferentes conceptualizações e propostas, algumas das quais são fundamentais para a compreensão das análises empreendidas nos capítulos posteriores desta dissertação. Utilizado pela teoria social a partir do final dos anos 1970, gênero surgiu como um conceito essencialmente desestabilizador e dessencializador, uma maneira de pensar as características consideradas femininas e masculinas para além de determinações entendidas como naturais e inserindo-as em hierarquias sociais de poder. Em uma de suas definições conceituais mais célebres, gênero aparece como uma categoria socialmente construída, histórica e culturalmente variável, que categoriza atitudes e esferas sociais como femininos e masculinos a partir de diferenças socialmente percebidas entre os sexos, assim como um 7 BRASIL, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Legislação Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 11 jun. 2014. 23 campo a partir do qual se articula o poder (Scott, 1995). Em outras palavras, isso significa que as formas pelas quais grupos humanos compreendem diferenças entre os corpos e a elas atribuem significados são múltiplas, assimétricas e, e acima de tudo sociais, o que colocaria em xeque a estabilidade e universalidade das categorias biologizantes “mulher” e “homem”. Segundo Butler (1990, 1993, 2004), gênero também pode ser entendido como norma, um ideal regulatório produzido discursivamente através de atos performativos que estipulam expectativas e ideais de normalização. Essa norma atribui a corpos e a sujeitos regulações restritivas relacionadas a ideais de feminino e masculino, operando para além de mero marcador descritivo, mas também como produtor de sujeitos. Nesse sentido, não poderíamos falar em sexo como uma realidade pré-discursiva ou como um dado natural, sendo que diferenças sexuais seriam indissociáveis de demarcações discursivas que regulamentam e estipulam normas a respeito de comportamentos e corpos entendidos de maneira “genereficada”. Gênero, portanto, seria o aparato que produz e normaliza o feminino e o masculino nas formas hormonais, cromossômicas, psíquicas e performativas que o próprio gênero assume. Portanto, mais do que uma descrição das diferentes formas pelas quais grupos humanos concebem diferenças entre feminino e masculino, ou entre homens e mulheres, gênero operaria como um imperativo, uma expectativa, uma estipulação restritiva e regulamentadora do que consistiriam essas diferenças, tornando-as socialmente inteligíveis 8 . Teresa de Lauretis (1994) sugere a compreensão de gênero como um termo classificatório de pertencimento a processos identitários. Isso significa que, fora dos corpos, gênero seria representação, um conjunto de efeitos produzidos nos corpos, comportamentos e relações sociais de diferentes tecnologias sociais que classificam e hierarquizam o mundo, atribuindo significados, valores e lugares a indivíduos, instituições, objetos e ações; saturando corpos e espaços de símbolos associados a ideias de feminilidade e masculinidade. Tanto a forma como percebermos o mundo quanto as relações sociais e os significados produzidos seriam sempre “generificados”, uma vez que passíveis de serem compreendidos em termos de gênero. Ao longo do texto da dissertação, mobilizo e articulo as formas de pensar gênero apresentadas por Scott, Butler e de Lauretis, salientando e analisando de que maneira as policiais atribuíam certas características a mulheres e homens, como hierarquizavam 8 Butler (1990) salienta que, ao pensarmos gênero de forma analítico-conceitual, devemos tentar escapar das armadilhas do binarismo, isto é, de supor a universalidade da existência de apenas dois gêneros a corpos sexuados. 24 elementos associados ao feminino e ao masculino, de que forma estipulavam ideais e normas de feminilidade e masculinidade; e, posteriormente, avaliavam e classificavam esses elementos a partir de seu repertório moral, criando noções e explicações que impactavam diretamente suas práticas cotidianas. Além disso, determinadas performances policiais também podiam ser compreendidas de maneira “generificada”, ou melhor, associadas a ideais de feminilidade e masculinidade.Nessa dissertação, apresentarei alguns conjuntos de reflexões desenvolvidos em três capítulos: no primeiro, detalho as nuances e especificidades do campo realizado entre policiais, os dilemas político-metodológicos específicos da condução de uma pesquisa com membros da polícia, assim como as circunstâncias e contingências que encontrei ao longo dos quinze meses em que acompanhei as atividades das delegacias; no segundo capítulo, discuto os efeitos da promulgação da Lei Maria da Penha na atividade policial e os principais significados atribuídos à nova lei, os impactos da lei nas práticas cotidianas e as avaliações das profissionais, e também realizo uma pequena discussão sobre os significados e as limitações encontrados pela polícia no tratamento de casos de injúria e violência psicológica levados às delegacias; no terceiro e último capítulo, me proponho a esmiuçar os diferentes sentidos atribuídos pelas policiais à noção de vítima, analisando a categoria êmica vítima de verdade, e refletindo sobre as maneiras pelas quais tal categoria se relaciona a percepções de gênero, conjugalidade, família e justiça presentes nas práticas e falas policiais nas DDMs. Uma delegacia de centro e uma delegacia de fundão: o campo Durante quinze meses, entre agosto de 2012 e novembro de 2013, acompanhei o expediente policial de duas Delegacias de Defesa da Mulher: a 1ª e a 6ª DDMs de São Paulo. Durante esse período, tive acesso a diferentes procedimentos e momentos do trabalho realizado dentro das delegacias: desde o primeiro atendimento no balcão, o registro das ocorrências no plantão, ao colhimento das oitivas (depoimentos), até as conclusões dos inquéritos policiais. A experiência de acompanhar duas delegacias e, com isso, de conhecer especificidades, diferenças e semelhanças entre duas realidades policiais trouxe importantes nuances para a análise. Inaugurada em seis de agosto de 1985 – exatos vinte e um anos antes da promulgação da Lei Maria da Penha –, a 1ª DDM de São Paulo foi a primeira experiência de delegacia especializada no atendimento de crimes contra mulheres no mundo. Sua elaboração e criação envolveram complexas articulações entre poder público e militância feminista, fazendo dela 25 uma experiência suis generis no tratamento dado a violência contra mulheres no Brasil9. Central em localização e de relativo fácil acesso via transporte público – próxima à Praça da Sé, a diversas estações de metrô, ao terminal de ônibus Parque Dom Pedro II e à região de comércio popular conhecida como “Vinte e Cinco de Março” –, durante o período em que acompanhei suas atividades, a 1ª DDM era procurada por mulheres de diversas regiões da cidade (inclusive de municípios vizinhos), sendo a única delegacia especializada com horário de funcionamento estendido durante a semana10. Entre agosto de 2012 e novembro de 2013, acompanhei, duas vezes por semana e em dias variados, suas atividades. Localizada em um envelhecido sobrado branco, sua fechada apresentava uma pequena e despretensiosa placa onde se lia: “1ª Delegacia da Mulher. Atendimento Psicossocial”. Atrás de uma porta de vidro, se encontrava a recepção e seu característico ambiente sinestésico: o balcão de informações cercado por mulheres ansiosas, chorosas e aflitas que buscavam respostas e orientações; telefones que tocavam insistentemente; vozes de homens e mulheres que vazavam por entre frestas e portas abertas; advogados e policiais que subiam e desciam, apressadamente, as escadas; escrivãs que registravam ocorrências no plantão; uma televisão, quase sempre sintonizada em programas policiais ou de variedades; policiais militares que aguardavam o andamento de flagrantes; e o constante sons de crianças, que ora brincavam ora choravam, mas quase sempre se faziam notar. Na 1ª DDM, poucas policiais pareciam conhecer ou valorizar as especificidades por trás de sua criação, sendo a das únicas lembranças de sua importância histórico-institucional uma discreta placa de inauguração, localizada na recepção, acima dos bancos destinados ao público. Pouco mencionada, a placa quase sempre passava incólume para funcionários e população. Seu texto reconhecia algumas das lideranças políticas por trás de sua criação: o então governador paulista, Franco Montoro, do PMDB; seu Secretário de Segurança Pública, Michel Temer; o então Delegado-Geral da Polícia Civil, Dr. José Osvaldo Pereira Vieira; e duas mulheres, nas figuras de sua primeira delegada titular, Dra. Rosmary Correa, e de sua primeira delegada-assistente, Dra. Maria Clementina de Souza. Nota-se que os títulos das delegadas mulheres presentes na placa estavam em sua variante masculina, sendo Dra. Rosmary e Dra. Maria Clementina apresentadas como “delegado”. 9 Para conhecer melhor a história da 1ª DDM, ver Santos (2005). 10 No momento em que iniciei minhas atividades em campo, a 1ª DDM funcionava também aos sábados, além de oferecer serviço, nos dias de semana, até às vinte e duas horas. Contudo, após mudanças estruturais na polícia, o horário de funcionamento da delegacia foi alterado para dias de semana, assim como o esquema “das oito as oito”, para grande satisfação de suas funcionárias. Em outras administrações, contudo, a 1ª DDM chegou a funcionar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. 26 Organizada em dois andares, a 1ª DDM estava quase sempre movimentada. No primeiro andar, estavam a recepção, as salas em que eram registradas as ocorrências e colhidos alguns depoimentos, assim como as salas das delegadas plantonistas; sendo o fluxo de pessoas contínuo e ruidoso por entre esses espaços. No segundo andar, ficavam as salas da delegada titular e da chefia das escrivãs e dos investigadores; sendo as salas restantes utilizadas por algumas escrivãs de cartório para a condução de oitivas. A circulação de pessoas pelo segundo andar era restrita e controlada, sendo seus espaços mais silenciosos e relativamente isolados em relação aos demais. Em um local intermediário entre o primeiro e o segundo andar, se encontravam os banheiros utilizados pelo público e pelas policiais para a prática da revista em presos em flagrante; e a pequena cozinha onde algumas funcionárias armazenavam e preparavam as refeições trazidas de casa11. Assim como a acanhada aparência externa do sobrado, o espaço interno da 1ª DDM também parecia indicar pouca manutenção e relativa falta de recursos materiais: móveis, salas e objetos antigos e não funcionais eram fonte de reclamações constantes. Através de uma interligação pelos fundos, a delegacia conectava-se a um Centro de Cidadania da Mulher (CCM), órgão da prefeitura coordenado por uma psicóloga, que desenvolvia diversas atividades direcionadas a mulheres: como cursos de profissionalização, atendimento psicológico e assistência jurídica, e cuja porta de entrada oficial localizava-se em uma rua próxima à delegacia. Apesar da proximidade física e da placa que nos recebia na entrada da delegacia, havia pouco – ou quase nenhum12 – contato entre os dois espaços, e o “atendimento psicossocial” se configurava apenas em dizeres de um letreiro antigo, que guardava resquícios de diferentes processos institucionais e políticos pelos quais a 1ª DDM havia passado nos seus quase vinte e nove anos de atividade. A vinte quilômetros do centro, ocupando o segundo andar do 99º DP da capital, encravada em um bairro de classe média na região conhecida como “extremo sul” da cidade, cercada por escolas, prédios de alto padrão, shoppings, padarias, restaurantes e outras atividades comerciais, estava a 6ª DDM de São Paulo. Em termos geográficos, esta era a última delegacia especializada para mulheres da vasta zona sul da cidade, sendo responsável por atender a população de empobrecidas, populosas e longínquas localidades da região sul da11 Havia, também, um andar inferior ao térreo, praticamente não utilizado pelas policiais em consequência de uma enchente que havia inutilizado algumas de suas salas. “A gente tá esperando verba para consertar, mas já fazem anos”, me explicou uma escrivã. 12 Cheguei a visitar, algumas vezes, o CCM para conversar com a psicóloga responsável pela condução do espaço. Sozinha, a profissional ressentia-se da ausência de apoio e da dificuldade em associar-se a diferentes elos da rede no tratamento à violência doméstica. 27 capital, como Grajaú, Parelheiros, Jardim Ângela e Capão Redondo. Uma das delegacias do fundão13, a 6ª DDM funcionava de segunda à sexta, das 9 às 18h14. A 6ª DDM era conhecida, de maneira geral, como uma delegacia sobrecarregada e essencialmente problemática: “com menos policiais, pessoal mais estressado e na favela”, como me explicou um investigador. Iniciei o acompanhamento das atividades da 6ª DDM em janeiro de 2013 e as encerrei em novembro do mesmo ano. Nessa delegacia, frequentei o expediente policial sempre as quartas-feiras, como estipulado por sua delegada-titular. Não encontrei nenhuma informação oficial acerca do momento de inauguração das oito demais delegacias especializadas da cidade. Segundo suas funcionárias mais antigas, entretanto, a 6ª DDM havia sido inaugurada em meados dos anos 1990, havendo alguma divergência a respeito da data oficial. Durante seus primeiros anos de funcionamento, a 6ª DDM teria ocupado uma parte de outra delegacia da região, tendo sido transferida posteriormente para o 99º DP, sua atual localização. A impressão de que a 6ª DDM seria uma espécie de “batata quente” de sua Seccional – setor responsável pelas delegacias da região mais periférica da zona sul –, tendo sido rejeitada por diversos distritos policiais comuns, era tão generalizada entre suas funcionárias quanto a demanda pela criação de uma nova DDM na zona sul da cidade, de preferência localizada mais próxima aos bairros mais distantes: a esperada e desejada 10ª DDM15. O acesso à 6ª DDM por transporte público era uma das principais reclamações feitas pela população e pelas funcionárias da delegacia. Relativamente distante da estação de trem mais próxima e das principais avenidas da região, a delegacia parecia ser igualmente apartada dos bairros centrais e daqueles mais afastados do centro16. Fisicamente, as salas e ambientes da 6ª DDM eram menores e mais concisos do que aqueles da 1ª DDM, entretanto, sua aparência indicava melhor manutenção do que os de sua congênere central. Os cuidados com o espaço físico da delegacia, contudo, deviam-se, sobretudo, aos esforços da delegada titular e do chefe dos investigadores, que muitas vezes realizavam pequenos consertos e disponibilizavam itens de uso burocrático (como papéis, elásticos, tintas para impressoras) por conta própria. 13 Ao longo do texto da dissertação, optei por utilizar itálico para me referir aos termos mobilizados pelas policiais, isto é, categorias êmicas comuns no vocabulário comumente utilizado por estas profissionais. As policiais utilizavam variadas expressões técnicas, gírias e jargões da profissão, que considero indispensáveis para a compreensão de suas falas e práticas dentro das DDM. 14 Atendimentos eram realizados somente até às 17h. 15 Atualmente existem nove DDMs localizadas na capital e 124 no estado de São Paulo (ver Pasinato & Santos, 2008). 16 O Instituto Médico Legal (IML) responsável pela realização dos laudos da 6ª DDM também se localizava relativamente distante da delegacia, o que trazia novas dificuldades para policiais e vítimas. 28 A recepção da delegacia, separada dos demais ambientes por uma portinhola, encontrava-se quase sempre cheia. Pedia-se às mulheres e aos homens que mantivessem o ambiente silencioso, sendo conversas desencorajadas. A policial responsável pela triagem dos casos era a mesma que realizava o registro das ocorrências, por isso, em muitas situações, as mulheres aguardavam alguns minutos até terem suas demandas encaminhadas pela profissional. Optei por acompanhar duas delegacias devido tanto ao interesse por conhecer realidades distintas dentro de um mesmo órgão institucional, quanto ao forte encorajamento das próprias policiais para que eu “desbravasse” as diferentes realidades entre uma DDM central e uma de bairro/do fundão. Na percepção de minhas interlocutoras, delegacias em bairros centrais, e em especial a 1ª DDM, seriam mais bem equipadas do ponto de vista físico e humano, maquiando, de certa forma, a “verdadeira” face das desigualdades presentes no trabalho policial fatigante e estruturalmente limitado comum às delegacias especializadas. Ouvi, diversas vezes, que eu só conheceria a realidade policial uma vez que transitasse pelas delegacias menos prestigiosas e mais problemáticas. Lá, me diziam, eu encontraria policiais estressados, cansados e assustados. A 6ª DDM me foi apresentada como uma das mais problemáticas entre as delegacias especializadas paulistanas. As desigualdades percebidas pelas policiais entre diferentes delegacias se confirmaram em números do efetivo policial. Se na 1ª DDM, uma delegacia de primeira classe, em um dado momento, havia cinco delegadas, doze escrivãs e dezoito investigadores alocados para seus serviços, a 6ª DDM contava, na mesma ocasião, com apenas duas delegadas, seis escrivãs e dois investigadores. Considerando que a delegacia da zona sul tinha um número superior de inquéritos em seus cartórios – quase o dobro em comparação à 1ª DDM – e registrava consideravelmente mais ocorrências, era notável a distribuição desigual de recursos pela Polícia Civil entre as delegacias. Tal assimetria se evidenciava também em questões materiais, como acesso a computadores, impressoras, espaço físico e viaturas. Entre as duas delegacias havia diferenças na organização do trabalho, na população atendida e nas respostas encontradas por estas profissionais no manuseio das leis. Algumas das principais diferenças entre a 1ª e a 6ª DDM diziam respeito a decisões superiores da polícia (cada delegacia correspondia a uma determinada Seccional) ou a circunstâncias associadas à sua localização e às especificidades de seu público. A 1ª DDM recebia uma quantidade significativa de prisões em flagrante envolvendo casos de violência doméstica 29 trazidos pela Polícia Militar que agitavam e alongavam seus plantões17; ao passo que a 6ª DDM, por decisão de sua Seccional, não recebia casos trazidos pelos militares. Flagrantes envolvendo violência doméstica ocorridos na circunscrição geográfica desta delegacia eram levados para “Centrais de Flagrante”, localizadas em outros DPs. A 1ª DDM atendia muitos casos de violência sexual contra crianças, dada a proximidade com um dos hospitais referência no atendimento a vítimas de violência sexual; e muito embora a 6ª DDM também atendesse e registrasse crimes dessa natureza, a quantidade de casos envolvendo crianças era consideravelmente menor nessa delegacia. Na 1ª DDM, também, muitas vezes eram atendidas pessoas em situação de rua que viviam próximas à delegacia, assim como dependentes químicos e transeuntes que circulavam pelas ruas do centro de São Paulo. As demandas dessas pessoas, embora algumas vezes envolvessem relatos de violência sexual e/ou violência doméstica, constantemente apresentavam narrativas complexas e suis generis que poucas vezes eram entendidas como crimes. Conhecidos pelo jargão jocoso treze, tais casos eram tratados como fruto de alucinação e transtornos emocionais ou mentais. Na 6ª DDM, uma delegacia de bairro, situações como essas eram consideravelmente menos frequentes. Algumas diferenças de procedimentos entre as duas delegacias, entretanto, longe de estarem somente associadas a determinações superiores ou a características de sua localizaçãoou de seu público, eram fruto direto de escolhas e orientações das delegadas titulares para suas funcionárias. Na 6ª DDM, por incentivo de sua titular, os investigadores efetuavam muitas prisões de homens que não haviam realizado o pagamento da pensão alimentícia para seus filhos ou ex-companheiras; ao passo que na 1ª DDM, tal prática era consideravelmente menos comum. Na 1ª DDM, por ordem de sua titular, as policiais deveriam atender e registrar todas as ocorrências atendidas, mesmo aquelas cuja circunscrição burocrático-geográfica fosse de responsabilidade de outras DDMs18. Na 6ª DDM, por sua vez, a prática de registros de ocorrências pertinentes a outras delegacias era comumente evitada, sendo as vítimas encaminhadas para outros locais. Entretanto, para além das diferenças, entre as duas delegacias, havia também uma importante convergência de sons, histórias e dinâmica do trabalho policial que enunciavam elementos comuns em seus cotidianos. No dia a dia das DDMs, portas abertas e paredes 17 O registro de uma prisão em flagrante, diferentemente da elaboração de um Boletim de Ocorrência, é um procedimento que poderia levar horas para ser concluído e envolvia os esforços de mais de uma policial. 18 No entanto, tal orientação era constantemente questionada e, por vezes, burlada por suas funcionárias, que encaminhavam as mulheres para as delegacias que seriam responsáveis pela possível condução do inquérito policial, alegando que tal decisão aceleraria os procedimentos e diminuiria a sobrecarga de trabalho de suas escrivãs. 30 vazadas eram incapazes de isolar ambientes e conter conversas de corredor, carregando choros e histórias de vida, entrecortados por falas e ruídos de um trabalho essencialmente burocrático, mas também marcado por anedotas, risos e piadas. Embora fossem distritos policiais, espaços que abrigam a força encarregada de averiguar e coibir a criminalidade na maior cidade do país; na realidade dessas duas delegacias, se desenhava também a experiência de um espaço suis generis de prática policial, com suas próprias especificidades, dificuldades, pressões e saídas no atendimento de mulheres em situação de violência. Sobrecarga de trabalho; aumento paulatino e expressivo na quantidade de inquéritos instaurados, dificuldade – ou completa ausência – de relacionamento com demais entidades da rede de atendimento criada e articulada pela Lei Maria da Penha para o atendimento a mulheres em situação de violência; dúvidas, hesitações e questionamentos acerca de possíveis distintos entendimentos da lei e de realização de procedimentos; e cansaço, frustração e pessimismo com relação aos efeitos de seu trabalho pareciam aproximar as experiências das profissionais que trabalhavam nestas delegacias. Estar simultaneamente em duas delegacias permitiu que eu atribuísse pesos para recorrências e exceções nos casos atendidos, percebesse o impacto de diferentes orientações e entendimentos nas práticas policiais, conhecesse características específicas de diferentes regiões da cidade, descobrisse diferenças oriundas de escolhas burocrático-institucionais concernentes a cada delegacia, e descortinasse os efeitos dessas distinções não somente no fluxo e na quantidade de trabalho, mas no ânimo das funcionárias das delegacias. Tais elementos permitiram acesso às múltiplas formas pelas quais a Lei Maria da Penha estaria sendo incorporada, simbolizada e vivida no cotidiano desses espaços. Por fim, acredito ser relevante mencionar que essa dissertação está povoada de personagens que incluem policiais, e mulheres e homens que, de alguma forma, estiveram nas DDMs durante os quinze meses em que acompanhei as atividades das delegacias. No entanto, optei por utilizar nomes fictícios, excluindo caracterizações pessoais ou profissionais. Na maior parte dos casos, menciono falas e posicionamentos valendo-me somente da categoria policial de minhas interlocutoras. Ciente do risco de generalizações como “as policiais diziam”, ressalto que busquei, em minha pesquisa, recorrências e repetições no cotidiano das DDMs que auxiliassem a descortinar práticas e percepções compartilhadas por essas profissionais. Esta escolha, é claro, tem consequências textualmente limitadas, entretanto, avaliei que longas descrições seriam desnecessárias e cansativas; e poderiam romper com o acordo de sigilo e anonimato estabelecido com as policiais. 31 Capítulo 1: “Não existe policial de DDM, existe policial”: reflexões sobre um campo minado As pessoas ainda associam a polícia à repressão, à ditadura militar, à corrupção, a tudo que é ruim na sociedade. De certo modo, não deixa de ser. Nós lidamos com a banda podre mesmo, com criminosos, seja o traficante ou o aliciador de menores, é isso que você vê como polícia. Só que elas acabam nos culpando pela impunidade, pela não resolução de um caso, não entendem que não somos nós que decidimos, não somos nós que fazemos o sistema e as leis, ou que são eles próprios que contam versões que se desencontram, não contribuem com a investigação. É muito difícil trabalhar tanto, ganhar pouco e sempre ser mal visto (Investigador de polícia). (…) os policiais não se comportam como o fazem puramente por causa de seus traços psicológicos ou qualidades morais; suas ações dependem em grande medida de sua história pessoal, do treinamento a que foram submetidos, da supervisão que recebem, das condições de trabalho que lhes são impostas, das atribuições oriundas de políticas governamentais e das representações do mundo social que a sociedade produz 19 . (Didier Fassin, Enforcing order: an ethnography of urban policing). É condição de trabalhos acadêmicos que, previamente à inserção em campo, o pesquisador esteja munido de uma vasta bibliografia sobre o tema que escolheu investigar. Baseado nesse conhecimento pautado por teorizações, reflexões e experiências daqueles que o antecederam, o aspirante pode traçar objetivos, metas e perguntas a serem abordados em sua própria experiência de pesquisa. Contudo, também é costumeiro, em especial em pesquisas de cunho antropológico, que as incursões em campo embaralhem os recortes e preocupações originais planejados tão minuciosamente em projetos. O campo embaça perguntas, redireciona olhares, inquieta convicções a priori; e soterra, sem quaisquer cerimônias, algumas das expectativas iniciais em relação à pesquisa. Comigo não foi diferente. Munida de uma considerável bibliografia sobre violência doméstica, Delegacias de Defesa da Mulher e Lei Maria da Penha, iniciei minhas atividades dentro das delegacias com perguntas que transitavam majoritariamente por discussões que pensavam as especificidades do trabalho policial no tratamento e coibição de um tipo bastante específico de crime: violências cometidas contra mulheres dentro de um contexto familiar e afetivo. Minhas inquietações iniciais orbitavam as seguintes questões: o que seria singular no trabalho policial 19 Tradução própria. “(…) the police do not behave as they do purely because of their psychological traits or moral qualities; their actions depend very largely on their personal history, the training they have undergone, the supervision they receive, the conditions of work imposed on them, the tasks conferred by government policies and the representations of the social world that society produces.” 32 nesse contexto? E de que maneira a Lei Maria da Penha teria modificado e/ou impactado esse trabalho? Não foi sem susto, porém, que me deparei com um aparente desvio de rota: uma vez dentro das DDMs, encontrei majoritariamente policiais que não se pensavam como profissionais especializadas no tratamento específico da violência contra as mulheres. Longe disso. Ao cruzar pela primeira vez a porta