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25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 1/21 TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 5 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 2/21 Profª Natali Hoff CONVERSA INICIAL O final da década de 1980 e o início da década seguinte representaram um ponto de inflexão nos estudos em Relações Internacionais: abordagens inspiradas em inovações teórico-metodológicas oriundas de disciplinas próximas começaram gradativamente a ampliar o leque de opções de pesquisa e de teorização na área, colocando, ao mesmo tempo, sob novas lentes de escrutínio, os pressupostos tradicionais por meio dos quais a realidade internacional era pensada. As abordagens pós-coloniais e decoloniais fazem parte desse momento de intensa reflexividade crítica na disciplina, ao explicitarem tudo o que a maneira tradicional de se pensar as relações internacionais deve ao fato de sua constituição localizada no espaço e no tempo, quer dizer, como teorias oriundas da experiência europeia e, mais especificamente, de uma experiência europeia ligada à modernidade capitalista. O pós-colonialismo e o pensamento decolonial procuraram, cada um à sua maneira, romper com a herança do colonialismo, pensada por ambas as correntes como algo que vai além do legado político e econômico: o colonialismo incide, sobretudo, sobre a produção das identidades de colonizador e de colonizado, bem como sobre os conhecimentos que são produzidos a respeito de cada um deles. No Tema 1 da aula, serão identificados autores e correntes que se estabeleceram como precursores do pensamento pós-colonial, tal como Edward Said, Franz Fanon e o Grupo de Estudos Subalternos. Em comum, tais autores procuravam estabelecer uma análise crítica do legado do neocolonialismo europeu sobre a constituição das identidades e das historiografias a respeito das sociedades recém independentes da Ásia e da África, explorando os mecanismos por meio dos quais o discurso eurocêntrico produzia esse Outro, oriental ou não europeu. O Tema 2 explorará a inserção do pós-colonialismo nas relações internacionais, processo ocorrido a partir da década de 1990 e que visava a romper com o silêncio da disciplina a respeito de temáticas como colonialismo, raça e escravidão. Em função de tal inserção, a realidade internacional 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 3/21 passa a poder ser analisada a partir do ponto de vista do subalternizado, e não apenas com base no olhar eurocêntrico do colonizador. No Tema 3, será apresentada a contribuição do pensamento decolonial, abordagem nascida da reflexão de autores – sobretudo latino-americanos – como Walter Mignolo e Aníbal Quijano. Tal abordagem foi responsável por oferecer uma crítica ao legado colonialista que procurava ir além dos limites intrínsecos às primeiras teorizações pós-colonialistas, procurando trazer a experiência do colonialismo europeu nas Américas para o centro de uma crítica radical à modernidade capitalista e ao pensamento acadêmico eurocêntrico. O Tema 4 tratará de um dos principais argumentos da abordagem decolonial: a da ligação histórica, a partir da colonização das Américas, entre modernidade e colonialidade. De acordo com esse argumento, o colonialismo no Novo Mundo foi fundamental para a constituição de um Outro racializado e para a cristalização da colonialidade no próprio seio do direito internacional moderno. Por fim, o Tema 5 abordará a colonialidade do saber, ou seja, o impacto do legado do colonialismo sobre a produção de conhecimento na modernidade. Por meio de categorias como racismo epistêmico, a abordagem decolonial pretende sublinhar os mecanismos de silenciamento e de invisibilização das alteridades epistêmicas, ou seja, dos conhecimentos produzidos fora da concepção europeia de cientificidade e de racionalidade. Será também mencionada a noção de geopolítica do conhecimento, quer dizer, o conjunto de relações assimétricas entre Norte e Sul Global na produção e circulação do discurso científico contemporâneo. TEMA 1 – RAÍZES DO PENSAMENTO PÓS-COLONIAL A expressão pós-colonialismo pode ser entendida em dois sentidos diversos, ainda que interligados: primeiramente, ela refere-se a um recorte temporal, o do momento histórico posterior aos processos de descolonização em países africanos e asiáticos até então subjugados pelo imperialismo e neocolonialismo de potências europeias como Reino Unido e França. Trata-se, assim, de uma referência aos movimentos de independência e emancipação política ocorridos no chamado terceiro mundo a partir dos anos 1950 (Ballestrin, 2013, p. 90). Em um segundo sentido, de maior interesse nesta aula, a expressão alude a um conjunto de autores, obras e teorizações surgidas, inicialmente, no meio acadêmico estadunidense e europeu a 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 4/21 partir da década de 1980, e que possuíam como fio-condutor a crítica à experiência e ao legado político, econômico e cultural das relações colonialistas em geral e, também, às concepções dominantes (europeias e eurocêntricas) acerca do significado da modernidade (ibidem). Especificamente no caso dos estudos em Relações Internacionais, o pensamento pós-colonial procura problematizar a realidade internacional levando em conta as relações coloniais como centro de sua reflexão acerca da mesma (Pereira; Blanco, 2021). Saiba mais Neste texto, por eurocentrismo, entenda-se a visão de mundo que atribui à Europa e à história europeia a centralidade e o protagonismo exclusivos no devir histórico da espécie humana. Conceitos como os de colonialismo e neocolonialismo – focos da reflexão pós-colonial – procuram denotar relações políticas, econômicas e culturais de caráter assimétrico que têm lugar na realidade internacional ao longo da história. De maneira mais específica, colonialismo refere-se a uma “relação de dominação e subordinação entre uma entidade política (chamada ‘metrópole’) e um ou mais territórios (chamados ‘colônias’) que ficam fora dos limites da metrópole, mas que são reivindicados como suas possessões legais” (Abernethy, 2000, p. 19). Ainda que envolva uma série de elementos subjetivos e culturais, o colonialismo é marcado essencialmente pela posse territorial de uma entidade política por outra (Blanco; Delgado, 2019, p. 601), sendo utilizado para caracterizar relações históricas de subordinação e exploração como aquelas estabelecidas entre as colônias do continente americano e as metrópoles europeias a partir do século XVI. O neocolonialismo, por sua vez, designa outra forma de operacionalização de uma relação hierárquica na realidade internacional, em que o controle e a posse direta do território alheio ocorrem de maneira mais flexível ou até mesmo desnecessária para a manutenção da subordinação política e econômica (Blanco; Delgado, 2019). Em outras palavras, “o Estado que é sujeito a ele [neocolonialismo] é, em teoria, independente e tem todas as características externas de soberania internacional. Na realidade, o seu sistema econômico e, portanto, a sua política é direcionada de fora” (Nkrumah, 1965, p. ix). São tais relações históricas de subordinação que o pós-colonialismo procura problematizar, utilizando-as como ponto de partida para um questionamento epistemológico profundo do 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 5/21 conhecimento produzido pela (e acerca da) modernidade. Pode-se dizer que ele procura tanto “analisar empiricamente as relações de poder (pós-)coloniais” quanto “derivar estratégias normativas para resistir ou descolonizar historiografias dominantes, assim como suposições epistemológicas e ontológicas que se baseiam nas experiências eurocêntricas” (Wilkens, 2017, p. 1). Como salientado por Graham Huggan (2013, p. 10), o pós-colonialismo é um modo performativo de revisionismo crítico,consistentemente direcionado ao passado colonial e avaliando seus legados para o presente, mas também focando nas formas de colonialismo que emergiram mais recentemente no contexto de um mundo cada vez mais globalizado, mas incompletamente descolonizado. (Huggan, 2013, p. 10) Como marcos importantes para a precipitação do pós-colonialismo como forma específica de discurso acerca da política e da cultura, pode se apontar para a Conferência de Bandung, realizada em 1955, da qual participaram vinte e nove representantes de países da África e da Ásia, tendo sido a primeira conferência internacional realizada por países recém independentes do antigo mundo colonial (Young, 2001, p. 191). Também importantes foram as reflexões e práticas anticoloniais de figuras como Mahatma Gandhi, W. E. B. Du Bois, Amílcar Cabral e Léopold Senghor (Pereira; Blanco, 2021), além de obras precursoras do pensamento pós-colonial, como as da tríade francesa representada por Aimé Césaire, Albert Memmi e Franz Fanon. Livros como Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador, publicado por Memmi, em 1947; Discurso sobre o colonialismo, de Césaire, lançado em 1950; e Os condenados da terra, obra de Fanon, de 1961, ajudaram a delinear o caminho de uma crítica pós-colonialista à modernidade europeia (Ballestrin, 2013, p. 92). Igualmente relevante é a obra Orientalismo (1978), do crítico literário de origem palestina Edward Said, dedicada à problematização da maneira como o Ocidente representa e, como efeito disso, constrói uma identidade específica para o Oriente, transformado assim em Outro do Eu ocidental. Said mostra como o “Oriente não é um fato inerte da natureza, mas um fenômeno construído por gerações de intelectuais, artistas, comentaristas, escritores, políticos e, mais importante, construído pela naturalização de uma ampla gama de suposições e estereótipos orientalistas” (Ashcroft; Griffiths; Tiffin, 2000, p. 153). Foi, contudo, por meio dos chamados estudos subalternos que o pós-colonialismo se consolidou como movimento intelectual e como área de teorização acadêmica. Com liderança inicial de Ranajit Guha, intelectual dissidente do marxismo indiano, o Grupo de Estudos Subalternos formou-se ainda na década de 1970, a fim de problematizar a historiografia dominante – de matriz europeia – a 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 6/21 respeito da Índia, bem como a própria historiografia nacionalista indiana (Ballestrini, 2013, p. 92). Questionando muitos dos pressupostos das historiografias tradicionais – fossem elas conservadoras ou críticas, como no caso do marxismo ortodoxo –, os intelectuais indianos ligados ao Grupo, como Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri Chakrabarty Spivak, buscavam “restaurar as histórias suprimidas pelo colonialismo” (Bush, 2006, p. 55) e analisar os efeitos da relação entre colonizador e colonizado para a constituição da identidade de ambos. O termo subalterno é tomado de empréstimo da obra do marxista italiano Antonio Gramsci, que visava, por meio do termo, designar classes ou frações de classe cuja mobilização coletiva, no capitalismo industrial, era errática e episódica. Em sua utilização no contexto do pós-colonialismo, o termo adquire conotação expandida, designando grupos estigmatizados e explorados em geral, seja essa exclusão determinada por critérios de classe, raça, etnicidade, gênero, nacionalidade, entre outros. Em 1985, Gayatri Spivak publicou aquele que seria considerado um dos grandes marcos dos estudos subalternos e do pensamento pós-colonial em geral. Intitulado Pode o subalterno falar?, o texto explora a relação entre conhecimento e poder (tema caro ao pós-estruturalismo, de autores como Michel Foucault), mostrando como o colonialismo marca o pensamento filosófico e científico ocidental, que se desenvolve fundamentalmente com base em uma ótica do colonizador (Spivak, 1993; Pereira; Blanco, 2021). O trabalho é também uma análise crítica sobre o papel do intelectual pós-colonial e sobre o perigo de que o sujeito subalterno permaneça silenciado por um discurso essencialista que pretende falar em seu nome (Spivak, 19993). TEMA 2 – PÓS-COLONIALISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Nas relações internacionais, foi no início da década de 1990 que a abordagem pós-colonialista começou a se inserir de maneira mais consistente e regular. Apesar de o colonialismo, neocolonialismo, imperialismo e escravidão serem processos estruturantes da realidade internacional ao longo da história, a problematização a respeito desses temas, surpreendentemente, nunca havia encontrado centralidade na disciplina, em especial nas teorias tradicionais e hegemônicas (Pereira; Blanco, 2021). De acordo com Sankaran Krishna, as relações internacionais “foram e são baseadas em uma política sistemática do esquecimento, uma amnésia voluntária da questão da raça” (Krishna, 2001, p. 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 7/21 401). Com isso, apaga-se também o fato de que a “emergência do sistema de Estado moderno e territorialmente soberano na Europa foi coincidente com o – e indissociável do – genocídio das populações indígenas do ‘novo’ mundo, a escravidão dos nativos do continente africano e a colonização das sociedades da Ásia” (Krishna, 2001, p. 401). Foi em função de tais constatações, relativas a essa política de esquecimento, que autores como Philip Darby e A. J. Paolini passaram a defender um maior diálogo entre o pós-colonialismo e os estudos em Relações Internacionais, a fim de “subverter as categorias mentais e intelectuais de uma academia eurocentrada” (Darby; Paolini, 1994, p. 377). A própria noção de internacional, no cerne da disciplina, é profundamentamente fundamentada nas experiências e discursos ocidentais: “as representações da ‘realidade internacional’ e da ‘existência internacional’ permaneceram fundamentadas nas práticas institucionais e discursivas ocidentais, de modo a refletir e afirmar estruturas paroquiais de poder, interesse e identidade” (Abrahamsen, 2007, p. 111). Um dos principais objetivos da agenda pós-colonialista nas relações internacionais, portanto, tem sido o da problematização do eurocentrismo da área, procurando questionar a Europa – e o Ocidente em geral – como centro definidor das normas e valores internacionais, bem como dos entendimentos legítimos a respeito da realidade internacional e da história mundial. Problematiza-se, assim, a noção de que o Ocidente é o único locus habilitado a produzir conhecimento legítimo – a respeito de si e, sobretudo, a respeito das sociedades não ocidentais (Pereira; Blanco, 2021). Para o alcance de tal objetivo, as abordagens inspiradas pelo pensamento pós-colonial operam uma inversão analítica: em vez de analisar a realidade internacional pelo ponto de vista do dominante – ou do colonizador –, elas procuram problematizá-la por meio do olhar do subalternizado – aquele ou aquela tornado subalterno por um processo histórico internacional de dominação e exploração. Dessa forma, é o subalternizado – suas práticas, visões, linguagens e resistências – que se torna o foco das abordagens pós-colonialistas em relações internacionais (Pereira; Blanco, 2021). Outra estratégia de desestabilização e de desconstrução do discurso eurocêntrico – com seus binarismos: Ocidente/Oriente ou Ocidente/não Ocidente – é a produção de uma historiografia capaz de evidenciar as forças históricas não ocidentais que colaboraram para moldar aquilo que se passou a chamar de civilização ocidental. Nas relações internacionais, autores como John Hobson (2004) procuram justamente evidenciar tais “origens orientais da civilização ocidental”, ao mostrar como o 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 8/21 Ocidente se beneficiou de interações dinâmicas, especialmente no sentido material, com outras partes do mundo, como a China, os impérios islâmicos e a África,e como o racismo, por exemplo, arraigado no nacionalismo europeu, abriu o caminho para o abuso violento dos recursos disponíveis ao redor do globo. (Wilkens, 2017, p. 7-8) Também importante para a agenda pós-colonialista nas relações internacionais têm sido as reflexões de caráter metatéorico, problematizando a própria maneira por meio da qual a disciplina teoriza e constrói a realidade internacional (Pereira; Blanco, 2021). Nesse sentido, o pós-colonialismo tem sido fundamental para lançar luz sobre a “negligência das teorias de Relações Internacionais no que toca às interseções críticas de império, raça/etnia, gênero e classe (dentre outros fatores) no funcionamento do poder global que reproduz relações internacionais hierárquicas” (Nair, 2017, p. 69). Ao analisar a produção teórica do Ocidente acerca da realidade internacional, cobrindo um amplo período de 1760 a 2010, John Hobson (2012, p. 1) chega à conclusão de que as teorias ocidentais não explicam tanto a política internacional de maneira objetiva, positivista e universalista [como afirmam fazer], mas sim buscam, ao invés disso, paroquialmente celebrar e defender ou promover o Ocidente como sujeito proativo, e como o referencial normativo mais alto ou ideal na política mundial. (Hobson, 2012, p. 1) De acordo com o autor, o eurocentrismo que serve como base para a teorização ocidental a respeito da realidade internacional pode tomar diversas formas, indo de versões mais explícitas e manifestas – de autores como Fukuyama e S. P. Huntington – até aquelas mais subliminares – como em Carr, Keohane, Morgenthau ou Waltz (Hobson, 2012, p. 314). Em comum, elas têm a visão do Ocidente como uma força civilizacional e como sujeito histórico dotado da capacidade de controlar e escrever a história mundial, em contraposição ao não Ocidente passivo e objetificado. A crítica pós-colonialista às concepções tradicionais de direito internacional, diplomacia e soberania estatal também tem procurado mostrar como estas não são apenas fórmulas neutras, mas construções ideacionais que reforçam a dominância de algumas nações sobre outras, além de servirem como justificativa para um discurso triunfalista a respeito do caráter único ou excepcional dos atributos institucionais (econômicos e políticos) e culturais da Europa e do Ocidente (Seth, 2012, p. 4). TEMA 3 – A AMÉRICA LATINA E O GIRO DECOLONIAL 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 9/21 Os movimentos iniciais de constituição de um pensamento pós-colonial estiveram muito ligados, como já mostrado, à experiência neocolonial na Ásia e na África, bem como aos processos de libertação e de independência ocorridos nessas regiões do globo. Sendo o produto da reflexão de intelectuais vinculados a essas ex-colônias, ainda que muitas vezes produzindo suas obras baseadas em ideias europeias, essa primeira leva de pensamento pós-colonial esteve inevitavelmente muito vinculada à problematização da realidade internacional levando em conta as experiências e vivências de ex-colônias britânicas ou francesas, como é o caso de Índia e Argélia (Pereira; Blanco, 2021). Procurando expandir a perspectiva crítica a respeito dos legados da experiência colonial, outros intelectuais – dessa vez de origem latino-americana – também iniciaram um novo tipo de problematização acerca dos efeitos da relação entre as antigas metrópoles europeias e suas ex- colônias, não apenas do ponto de vista econômico e político, mas também cultural e identitário. Tal tentativa de problematização da realidade internacional tomando, dessa vez, a América Latina como “ponto de partida epistêmico” (Taylor, 2012) – ou seja, colocando a experiência latinoamericana como centro análitico da discussão – veio a ser conhecida como abordagem decolonial. A noção de uma virada ou de um giro decolonial nas teorias das relações internacionais procura designar justamente esse momento, ocorrido ao final dos anos 1990, em que um conjunto de intelectuais – vinculados a diferentes universidades das Américas – deu início a uma tentativa de atualização da tradição crítica do pensamento latino-americano (Ballestrin, 2013, p. 89). Essa tentativa de atualização crítica procurava levar em conta os ganhos analíticos legados pelo pensamento pós- colonial – de autores como Fanon, Said e Spivak –, mas também superá-los: entendendo o pensamento pós-colonial como uma ruptura ainda incompleta com o legado do colonialismo, a abordagem decolonial propõe uma radicalização da crítica à modernidade europeia e a tudo o que esta deve às relações históricas de dominação estabelecidas entre os centros metropolitanos e as periferias colonizadas (Pereira; Blanco, 2021). As raízes da abordagem decolonial podem ser retraçadas à fundação do Grupo Latino- Americano de Estudos Subalternos, ainda no início da década de 1990, que se inspirava em seu congênere sul-asiático: O trabalho do Grupo de Estudos Subalternos, uma organização interdisciplinar de intelectuais sul- asiáticos dirigida por Ranajit Guha, inspirou-nos a fundar um projeto semelhante dedicado ao estudo do subalterno na América Latina. O atual desmantelamento dos regimes autoritários na América Latina, o final do comunismo e o consequente deslocamento dos projetos revolucionários, 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 10/21 os processos de democratização, as novas dinâmicas criadas pelo efeito dos meios de comunicação de massa e a nova ordem econômica transnacional: todos esses são processos que convidam a buscar novas formas de pensar e de atuar politicamente. (Grupo Latino-americano de Estudios Subalternos, 1998, p. 70, citado por Ballestrin, 2013, p. 94) Logo, contudo, autores vinculados a essa iniciativa, como Walter Mignolo, passaram a expressar descontentamento com os limites analíticos dos estudos subalternos originais, ainda muito calcados, segundo eles, em uma crítica pós-moderna e, portanto, eurocêntrica (além de baseada fundamentalmente em autores europeus, como Gramsci e Foucault) ao eurocentrismo. De acordo com Mignolo (1998), o pensamento crítico latino-americano deveria ir além das respostas dadas pelo grupo sul-asiático, já que “a história do continente [americano] para o desenvolvimento do capitalismo mundial fora diferenciada, sendo a primeira a sofrer a violência do esquema colonial/imperial moderno” Essas divergências políticas e teóricas levaram ao desmembramento do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos em 1998 e, posteriormente, ao surgimento daquele que seria o centro de irradiação intelectual da abordagem decolonial na América Latina, o Grupo Modernidade/Colonialidade (Mignolo, 1998). Contando com intelectuais como Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo e Immanuel Wallerstein, esse grupo herdava uma série de influências de diferentes tradições críticas do pensamento latino-americano, como a teoria da dependência e a filosofia da libertação, além de incorporarem parte da perspectiva desenvolvida por Wallerstein em sua teoria do sistema-mundo (Escobar, 2003, p. 53). Saiba mais A teoria do sistema-mundo, tal como proposta por Wallerstein, é uma abordagem das relações internacionais que não toma o Estado-nação como unidade de análise, mas sim estruturas mais amplas de relações econômicas, políticas e socioculturais que se desenvolvem em determinado espaço geográfico (podendo abarcar uma dimensão mundial) e em determinado período (de algumas poucas gerações ou de muitos séculos): nessa visão, a chamada modernidade capitalista seria um sistema mundial, cuja lógica de funcionamento foi capaz de absorver, desde o século XVI, sistemas menores (como os impérios ou os minissistemas) (Wallerstein, 1996). 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 11/21 Fundamental para a perspectiva decolonial foi a publicação do texto, agora clássico, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, de Aníbal Quijano (1992). Nele, o sociólogoperuano desenvolve o conceito de colonialidade, por meio do qual pretende designar a “continuidade de formas coloniais de dominação, [mesmo] após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista/moderno/colonial” (Grosfoguel, 2007, p. 219). Em outras palavras, o conceito de colonialidade faz referência à articulação entre a divisão internacional do trabalho (com sua divisão entre centro e periferia) e a hierarquia étnico-racial global, que torna as nações periféricas e os povos não europeus partes de uma mesma posição subjugada na ordem mundial, atualmente mantida pelos Estados Unidos e por organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Econômico Mundial (Grosfoguel, 2008, p. 126). Como legado do processo colonial, a colonialidade serve como matriz ou base de diversas formas de poder e opressão, que acabam por constituir uma “estrutura complexa de níveis entrelaçados”, em que os controles sobre a economia, a autoridade, a natureza, o gênero e a sexualidade, a subjetividade e o conhecimento alimentam-se mutuamente (Mignolo, 2010, p. 12). O argumento fundamental levantado pelo Grupo Modernidade/Colonialidade, portanto, e que está sintetizado em seu próprio nome, é justamente o da relação intrínseca e constitutiva entre a modernidade e a experiência colonial iniciada nas Américas. Dessa forma, a conclusão, sintetizada por Quijano (2000, p. 343), é de que não existiria uma modernidade, nem um sistema-mundo capitalista, sem o colonialismo europeu na América Latina. TEMA 4 – RELAÇÃO ENTRE MODERNIDADE, RAÇA E COLONIALIDADE Do ponto de vista da abordagem decolonial, a colonialidade é um dos elementos específicos da ordem mundial capitalista e do padrão de poder sobre o qual ela se assenta. De acordo com Quijano (1992, p. 11), com a “conquista das sociedades e das culturas que habitam o que hoje é chamado de América Latina, começou a formação de uma ordem mundial que culmina, quinhentos anos depois, em um poder global que articula todo o planeta”. Fundamental para essa relação entre colonialidade e poder capitalista global, a empresa colonial europeia nas Américas, a partir do século XVI, foi responsável por produzir e mundializar novas formas de construção da diferença e da superioridade do europeu perante os demais povos (Quijano, 2000, p. 342). 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 12/21 A noção de raça, nascida justamente do processo de colonização da América Latina, tem servido desde então como “o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema- mundo” (Grosfoguel, 2008, p. 123), sendo uma categoria mental típica da modernidade. Nesse sentido, a noção de raça e o pensamento racista, fundamentos da colonialidade, podem ser vistos como a dimensão oculta da modernidade, servindo como justificação de uma “práxis irracional da violência” por parte dos colonizadores: 1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa [...] 4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). (Dussel, 2000, p. 49) A conquista e a colonização das Américas permitiram, pela primeira vez, a construção de uma diferença colonial, quer dizer, a produção desse Outro ameríndio em relação ao qual o Eu europeu poderia se definir e se afirmar. Isso significa dizer, como faz Walter Mignolo (2003, p. 57), que a colonização das Américas foi, tal como a Grécia antiga, uma das origens da chamada civilização ocidental. Além disso, o continente foi também a primeira periferia do sistema-mundo capitalista, em que se deu início ao processo de acumulação primitiva de capital que permitiria, posteriormente, a modernização econômica europeia (Ballestrin, 2013, p. 103). Para a operacionalização da colonialidade como novo padrão global de poder, a categoria de raça mostrou-se fundamental para a classificação social das figuras do colonizador e do colonizado, tendo sido construída inicialmente a partir da referência às diferenças fenotípicas – mas também culturais, como religião, vestimentas e língua – entre eles e, posteriormente, extrapolada como uma diferença biológica e ontológica de caráter absoluto, a ser mobilizada em uma (re)classificação de toda a população global (Quijano, 1992; 2000). Para o pensamento decolonial, “a hierarquia racial/ étnica da divisão europeu/não-europeu reconfigura transversalmente todas as outras estruturas globais de poder” (Grosfoguel, 2007, p. 217), transformando-se em critério principal de distribuição de status e de privilégios entre a população mundial. Indo além, a colonialidade do poder, inaugurada pela relação entre o Eu europeu e o Outro ameríndio, cristaliza-se na política internacional por meio do processo histórico de formação do próprio direito internacional, processo este também oriundo do contexto específico de colonização 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 13/21 europeia das Américas: o direito internacional “não precedeu e assim sem esforço resolveu o problema das relações espanhóis-ameríndios; ao invés disso, o direito internacional foi criado a partir das questões únicas geradas pelo encontro entre os espanhóis e os ameríndios” (Anghie, 1996, p. 322; ênfase no original). A relação entre as origens do direito internacional e a emergente colonialidade do poder fica clara no pensamento e na obra de Francisco de Vitoria (1483-1546), teólogo espanhol considerado um dos criadores do moderno direito internacional e da noção de guerra justa (Blanco; Delgado, 2019). Vitoria questionava quais seriam as razões jurídicas e os marcos legais de fundamentação da invasão e conquista espanholas, tendo sido figura de relevo para a criação de uma teorização jurídica capaz de lidar com a relação entre sociedades vistas como pertencentes a diferentes ordens culturais, cada uma com sua própria noção de propriedade e de governo (Anghie, 1996, p. 322). Rompendo com muitas das convicções de seus contemporâneos, Francisco de Vitoria não negava o pertencimento dos ameríndios à humanidade, fato, segundo ele, evidenciado pela presença, no Novo Mundo, de instituições que apenas a razão humana poderia produzir, como cidades organizadas, casamentos, comércio e domínio político. Nesse sentido, o teólogo espanhol colocava conquistadores e conquistados como estando no mesmo nível de humanidade, o que tornava, justamente por conta dessa característica compartilhada, imperativo que espanhóis procurassem, por todos os meios disponíveis – incluindo aí a guerra de conquista –, estender a fé e as instituições cristãs a tais povos “bárbaros”, cuja história havia transcorrido ao longo de milhares de anos “fora do estado de salvação”. A conquista seria, assim, um ato de caridade cristã feito em benefício dos próprios ameríndios, e não apenas em nome dos interesses espanhóis (Blanco; Delgado, 2019, p. 608-609). Como se nota, a obra de Francisco de Vitoria é um elemento fundamental da cristalização da colonialidade na política internacional, já que insere, no seio mesmo do moderno direito internacional, a noção de humanidade comum como argumento de legitimidade para a assimilação do diferente, pensado como humano racializado e, portanto, inferior (Inayatullah; Blaney, 2004, p. 10). Outro momento crítico de cristalização da colonialidade como novo padrão de poder global pode ser observado nas discussões teológicas e jurídicas daquele que ficou conhecido como Debate ou Controvérsia de Valladolid. Realizado no Colégio de San Gregorio, na cidadeespanhola já citada, e tendo como figuras principais da contenda Bartolomeu de las Casas e Juan Gines de Sepulveda, a Controvérsia reuniu diferentes argumentos em torno da conquista das Américas e do tratamento a 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 14/21 ser despendido em relação aos nativos, sendo interpretado, por autores decoloniais como Dussel, como o momento em que a concepção propriamente moderna de razão teve início ou, ainda, como o primeiro debate público fundamental a respeito da modernidade (Dussel, 2014, p. 32). De um lado, Gines de Sepulveda afirmava a legitimidade da guerra de conquista, argumentando que seria sempre justo e em conformidade com as leis da natureza que povos bárbaros fossem sujeitados ao poder de príncipes e de nações mais cultas e humanas, a fim de serem forçados a abandonar o barbarismo. Las Casas, por outro lado, argumentava que, embora em estágio atrasado de desenvolvimento humano em relação aos europeus, os ameríndios necessitavam ser convertidos ao cristianismo pela persuasão, e não mortos em guerras de conquista (Blanco; Delgado, 2019, p. 611-612). Do ponto de vista decolonial, a aparente oposição entre as duas posições expressa na verdade aquilo que está no cerne da colonialidade: a paradoxal negação da diferença em conjunto com o reconhecimento dela sob o registro hierárquico da inferioridade – os ameríndios são iguais, pois compartilham do acesso à razão, mas são “iguais inferiores”, pois incapazes de utilizar a razão para, por eles mesmos, desenvolver as instituições (europeias) ligadas à ideia (eurocêntrica) de civilização, fugindo assim do estado de barbárie. Seja qual for a linha argumentativa, do ponto de vista da lógica da colonialidade, o diferente precisa ser transformado (Blanco; Delgado, 2019, p. 613). Esse mesmo duplo movimento – de negação e de inferiorização; de assimilação e de conquista –, típico da colonialidade global, pode ser visto ainda hoje na realidade internacional, em noções como as de desenvolvimento, modernização, democratização e construção da paz, geralmente direcionadas a apontar as faltas e anomalias presentes nas sociedades da periferia da ordem global (Blanco; Delgado, 2019), justificando e legitimando intervenções externas. TEMA 5 – COLONIALIDADE DO SABER E GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO Um tema recorrente nas reflexões decoloniais diz respeito à colonialidade do saber, ou seja, aos efeitos do padrão global de poder oriundo do processo de colonização, iniciado nas Américas, sobre a produção de conhecimento na modernidade. Como dito anteriormente, a colonização foi fundamental para a afirmação de um Eu europeu e ocidental em contraposição a esse Outro, primeiramente ameríndio e, em momento histórico posterior, oriental (processo que a abordagem pós-colonialista de Said, como visto, designou como orientalismo). A esse Outro, desde sempre 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 15/21 racializado, cuja cultura poderia assim ser relativizada e inferiorizada, o discurso eurocêntrico, desde o Iluminismo, contrapôs o universalismo da ciência e da filosofia racionalista, os quais representariam uma espécie de ponto zero, quer dizer, um ponto de vista puro e absoluto, não relativizável, que refletiria a “mais pura estrutura universal da razão” (Castro-Gómez, 2005, p. 14). De acordo com Grosfoguel (2007, p. 64-65), esse discurso eurocêntrico pressupõe um “sujeito epistêmico [que] não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em nenhuma relação de poder, e produz a verdade desde um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com ninguém fora de si”. Esse mesmo discurso seria assumido pelas “ciências humanas a partir do século XIX, como a epistemologia da neutralidade axiológica e da objetividade empírica do sujeito que produz o conhecimento científico” (Grosfoguel (2007). Do ponto de vista decolonial, a epistemologia positivista, portanto, longe de ser a expressão de uma razão pura e universal, é ela própria o produto de uma colonialidade do saber baseada no racismo epistêmico e na negação da alteridade epistêmica, ou seja, fundamentada na deslegitimação sistemática das formas de conhecimento não europeias e não ocidentais. Decolonizar o conhecimento, assim, significaria redescobrir e revalorizar as teorias e epistemologias produzidas na periferia da ordem global, assim como os saberes tradicionais e nativos que a colonialidade torna invisíveis. Saiba mais A utilização da expressão decolonial (ou decolonizar), sem a letra “s” (como em descolonização), é sugerida por autoras como Catherine Walsh, a fim de demarcar a diferença entre a proposta teórica dessa abordagem e o nome dado ao processo histórico de independência política das ex-colônias europeias na Ásia e na África durante a Guerra Fria (Ballestrin, 2013, p. 108). Para Walter Mignolo (2003, p. 52), essa descolonização do saber passa também pela incorporação do conhecimento produzido por movimentos sociais e coletivos políticos e pela crítica radical ao pensamento (eurocêntrico) da modernidade, seja ele de esquerda ou de direita, a fim de afirmar um “pensamento fronteiriço”: 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 16/21 O pensamento fronteiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial, é um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas que não pode tampouco subjugar-se a ele, ainda que tal pensamento moderno seja de esquerda ou progressista. O pensamento fronteiriço é o pensamento que afirma o espaço de onde o pensamento foi negado pelo pensamento da modernidade, de esquerda ou de direita. Nessa crítica radical ao pensamento da modernidade reside também a principal diferença da abordagem decolonial em relação à teoria pós-colonialista, vista, por autores como Mignolo, como ainda muito ancorada na tradição da teoria pós-estruturalista européia (Foucault, Derrida, Lacan) e nas experiências da elite intelectual das ex-colônias inglesas e francesas na Ásia e na África (como é o caso dos intelectuais ligados ao Grupo de Estudos Subalternos sul-asiático) (Ballestrin, 2013, p. 108). A crítica decolonial a respeito da colonialidade do saber colabora para que se ilumine também a geopolítica do conhecimento envolvida na crescente globalização da produção e da circulação do conhecimento acadêmico e científico. O que se nota é como essa globalização ocorre em bases profundamente assimétricas, com o Norte e o Sul Globais, ocupando posições bastante distintas naquilo que pode ser tratado como uma divisão internacional do trabalho intelectual (Alatas, 2003). No caso das ciências sociais, por exemplo, tais assimetriais expressam-se em aspectos como o do fluxo da tradução de livros – que ocorre mais do Norte para o Sul – ou na natureza das colaborações acadêmicas internacionais, muito mais comuns entre intelectuais europeus e estadunidenses (Ribeiro, 2019, p. 2). Além disso, a hegemonia da língua inglesa não apenas privilegia a propagação da produção de autores do Norte, mas também estabelece uma estrutura argumentativa e cognitiva ligada às particularidades dessa língua, o que representa um reforço adicional aos obstáculos enfrentados pela produção intelectual do Sul, sobretudo daquela de países que não possuem o inglês como idioma oficial (Ribeiro, 2019, p. 11). Por fim, tal como ocorre na geopolítica econômica, em que o Norte Global é o responsável majoritário pela inovação tecnológica e pela exportação de bens e serviços de alto valor agregado, também nessa geopolítica do conhecimento o Sul ocupa a posição subalterna de replicador de teorias e de agendas de pesquisa oriundas majoritariamente dos países centrais; ou, quando muito, de fornecedor de casos exóticos ou singulares a serem utilizados como ilustrações para as generalizações teóricas de autores do Norte (Ribeiro, p. 20-21). NA PRÁTICA 25/07/22, 19:46 UNINTERhttps://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 17/21 Uma das dimensões mais importantes da colonialidade é aquela que diz respeito ao impacto das relações de poder globais sobre a produção do conhecimento. O artigo “As expressões da divisão internacional do trabalho intelectual: um estudo a partir do debate internacional em revistas de teoria social”, de Matheus Ribeiro, explora a divisão internacional do trabalho intelectual, caracterizada pelo predomínio dos países do Norte Global como locais privilegiados de produção do conhecimento. O trabalho demonstra a baixa participação de autores do Sul nas publicações de algumas das principais revistas de ciências sociais do mundo. Faça a leitura do texto e procure relacioná-lo às problematizações pós-coloniais e decoloniais apresentadas nesta aula. Saiba mais RIBEIRO, M. As expressões da divisão internacional do trabalho intelectual: um estudo a partir do debate internacional em revistas de teoria social. In: 43º ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS. Caxambu, 21-25 out. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3k7lYSg>. Acesso em: 11 jul. 2021. FINALIZANDO Nesta aula, foram apresentados alguns dos pressupostos e das principais contribuições das abordagens pós-colonial e decolonial para os estudos em Relações Internacionais. Em comum, ambas procuram romper com o silêncio da área a respeito de temáticas como colonialismo, neocolonialismo, raça e escravidão. O pós-colonialismo, especificamente, baseia-se sobretudo na experiência de descolonização vivida pelas ex-colônias europeias na África e na Ásia a partir da década de 1950, procurando chamar a atenção para os processos históricos de produção desse Outro – o não ocidental – em relação ao qual o Eu europeu pôde se afirmar, como no caso do orientalismo, teorizado por Said. A abordagem decolonial, por seu turno, baseia-se na experiência do colonialismo europeu na América Latina a partir do século XVI, chamando a atenção para o papel fundamental que esse processo histórico desempenhou na constituição de um discurso propriamente moderno sobre o lugar da Europa perante as demais sociedades. De acordo com autores como Mignolo e Quijano, a modernidade é inaugurada justamente pela colonialidade nascida da experiência colonial no novo https://bit.ly/3k7lYSg 25/07/22, 19:46 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 18/21 mundo, quando a noção de raça passa a ser a categorial principal de hierarquização das populações do globo. REFERÊNCIAS Abernethy, D. The dynamics of global dominance. New Haven; London: Yale University, 2000. Abrahamsen, R. Postcolonialism. In: Griffiths, M. (ed.). International Relations Theory for the Twenty-First Century. New York: Routledge, 2007, p. 111-122. ALATAS, S. F. 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