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A Elite do Atraso - Da Escravidão à Bolsonaro. Edição Revista e Ampliada. Jessé de Souza. Rio de Janeiro: Estação Brasil. 2019. Jessé José Freire de Souza, nascido em Natal, Rio Grande do Norte, em 29 de março de 1960, é um dos maiores intelectuais brasileiros da contemporaneidade. Iniciou sua carreira acadêmica como bacharel em Direito (UNB - 1981), porém fez mestrado (UNB - 1986) e doutorado (Universidade de Heidelberg, Alemanha) em sociologia e o seu pós-doutorado em filosofia e psicanálise (New School for Social Research, Nova Iorque). Foi presidente do IPEA (Instituto de Política Econômica Aplicada) de 2015 a 2016, nomeado pela Presidente Dilma Rousseff (PT) e exonerado pelo então Presidente Interino Michel Temer (MDB), durante o processo de impeachment, que Souza classifica, e eu assino embaixo, como golpe. É autor de mais de 20 obras em português, inglês e alemão sobre sociologia política e atualmente é professor da Universidade Federal do ABC e integra o conselho editorial do Brasil 247, portal de notícias identificado com a esquerda política. “A Elite do Atraso”, agora em sua versão ampliada, “Da Escravidão à Bolsonaro”, tem como ponto central confrontar ideias que sempre foram consenso entre os mais variados setores da sociedade Brasileira, mostrando como conceitos aparentemente progressistas, emancipadores e acadêmicos, elaborados pelos mais conceituados intelectuais do país, supostamente independentes e livres para tecer críticas, são, na verdade, conceitos pseudocríticos que, de forma programática ou não, visam legitimar a Elite do Poder e seus mecanismos de dominção econômica e cultural, baseados antes no racismo e hoje no culturalismo - evolução mais ampla e sutil da discriminação meramente pela cor da pele. Autores sempre admirados, seja pela esquerda ou pela direita, como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre são os principais responsáveis, segundo Souza, por produzir uma interpretação falsamente crítica da realidade, na qual a responsabilidade do fracasso do desenvolvimento do Brasil e da corrupção generalizada como seu modelo de poder é imputada ao jeitinho brasileiro dos seus cidadãos, nos levando a culpar a corrupção Estatal, insignificante, se comparada à privada (que além de maior, é legalizada), a se esquecendo dos verdadeiros concentradores de poder e riqueza: a Elite do Atraso, que rouba de braçada e concede esmolas ao políticos, que levam a culpa em troca de legitimá-la no poder, perpetuando seus privilégios. Dessa forma, Buarque de Holanda (1936) se equivoca ao excluir da construção da hierarquia social brasileira, sua fundação: a escravidão, tratada por ele como mais um elemnto da nossa organização social, não como a gênese que se perpetuou na essência das nossas relações. Para Souza (2019), desde a chegada dos europeus ao Brasil, nossa hierarquia social é baseada na exploração do trabalho escravo, de indígenas e depois de negros, com respaldo, à época, científico (depois se mostrou pseudociêntífico), que justificou essa exploração atavés da animalização do homem negro. Os tempos mudaram e a justificativa também, porém a exploração do trabalho dos excluídos da sociedade, da ralé de miseráveis, dos eternos escravos, continua essencialmente a mesma. O mesmo modelo, antes baseado em ideais explícitamente racistas, hoje é justificado pelo culturalismo, ideia de igual preconceito, porém com um alvo diferente: o animalizado https://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_de_Heidelberg não é mais o negro, ao menos não diretamente, e sim todo um povo. A tese culturalista diz que o desenvolvimento dos EUA e da Europa Ocidental é fruto de um povo pragmático, progressista, colaborativo e produtivo, enquanto o subdesenvolvimento da América Latina, fruto de um povo “pré moderno, tradicional, particularista, afetivo e, para completar, com uma tendência irresistível à desonestidade.” (p. 28). Podemos simplificar a diferença entre o racismo e o culturalismo da seguinte forma: o racismo é o que faz um branco se sentir superior a um negro, baseado simplesmente na cor da sua pele e o culturalismo é o que faz um americano se sentir superior a um brasileiro, baseado simplesmente na sua nacionalidade. Fato que observo com facilidade ao ver a recepção que um americano recebe em solo brasileiro em contrapartida à recepção que um compatriota nosso recebe em solo americano. O americano é percebido pelos brasileiros como charmoso, culto, civilizado, interessante dono dos valores e pertencente a um plano superior, mesmo sem abrir a boca. Já o brasileiro é primeiramente visto como coitado, ignorante, inculto, imoral, primitivo, descartável e terá que fazer um grande esforço para mudar essa percepção. O brasileiro é moralmente inferior na hierarquia do culturalismo e ele sabe, e até concorda, com isso. Como o culturalismo ataca a essência de todo um povo, classificando sua moral como inferior, desonesta e incorrigível, esse consenso sociológico que se criou é um prato fertil para a propagação de políticas públicas neoliberais, vendidas ao povo brasileiro como ciência boa, enquanto os países desenvolvidos tomam medidas cada vez mais nacionalistas e protetoras dos interesses nacionais (como a taxação dos produtos agropecuários brasileiros na europa para proteger o produtor local e o Plano de Recuperação econômica estadunidense, onde o país fetiche dos neoliberais e da Elite do Poder investe 1,9 trilhão de dólares de dinheiro público, enquanto prega responsabilidade fiscal aos países subdesenvolvidos). Cria-se o mito de um Estado ineficiente e corrompido e uma elite privada eficiente e incorruptível. O mesmo Estado que fez o Brasil ser um fenômeno de crescimento no século passado, através de Projetos Nacionais de Desenvolvimento, é taxado como incapaz de desenvolver seu país para, assim, justificar o verdadeiro assalto às riquezas nacionais feito pela Elite do Poder nacional e internacional. Mais vale privatizar para se evitar corrupção e desperdício de dinheiro público é o mantra repetido pela mídia, como se na iniciativa privada não houvesse corrupção ou esta fosse incapaz de lesar o interesse público e causar danos fabulosos. Nas palavras de Souza (2019): “Afinal, é preciso convencer todo um povo de que ele é inferior não só intelectualmente, mas, tão ou mais importante, também moralmente. Que é melhor entregar nossas riquezas a quem sabe melhor utilizá-las, já que os outros são honestos de berço enquanto nós seríamos corruptos de berço." (p. 24). O culturalismo traça o mito meritocrático e protestante da prosperidade pelo merecimento e ignora toda uma sequência de fatos históricos que dominaram as relações nacionais durante praticamente toda a nossa história: “Todo racismo, inclusive o culturalismo racista dominante no mundo inteiro, precisa escravizar o oprimido no seu espírito, e não apenas no seu corpo (p.24).”. Não só nossa organização, mas o espírito da nossa sociedade é racista. Após desenvolver a crítica ao culturalismo e seus raciocínios paralelos, Souza dedica um dos três grandes eixos do livro à classe média, sua relação com a elite, com a ralé dos miseráveis e seus diferentes graus de capital cultural e percepção da realidade. Para melhor entender essa classe tão heterogênea, Souza subdivide-a em quatro tipos: a classe média protofascista, a classe média liberal, a classe média expressivista (que ele chama “classe média de Oslo'') e a classe média crítica (p. 184). A classe média liberal e protofascista somam 65% do seu todo e compõem a sua fração de menor capital cultural e reflexivo. Os 35% restantes são a soma da classe média expressivista e a classe média critica, possuidoras de maior capital cultural e capacidade reflexiva, pessoas que estudaram mais, conhecem outras línguas e tiveram mais contato com experiências emancipadoras. Esse ganho de capital cultural através de estudo e experiências torna esses 35% capazes de perceber a realidade mais como produto cultural e menos como verdade imutável. Apenas esses 35% são capazes de perceber o problema da desigualdadesocial e a urgência do seu combate, porém, para Souza, o que ele chama de “classe média de Oslo”, a classe média expressivista, consiste em uma parcela da classe média com maior capital cultural, porém que é alheia à realidade brasileira e adota pautas que, para Souza, só caberiam em uma realidade de primeiro mundo, como, segundo seu exemplo muito mal colocado do ambientalismo que, na minha opinião, é problema tão ou mais urgente do que o combate à desigualdade, pois a desigualdade é o enredo e o planeta o palco. O primeiro necessita do segundo para mudar. Souza mostra aqui uma ignorância em relação ao colapso ambiental (p. 185) e a necessidade do protagonismo brasileiro nessa questão, dado que nosso país tem a maior área de floresta conservada e a maior biodiversidade do mundo. Souza personifica a classe média de Oslo na figura da política Marina Silva e seus eleitores de forma extremamente covarde pois, apenas alegando uma espécie de ambientalismo difuso, tenta pintar Marina Silva como alheia ao combate da desigualdade, apenas pelo fato da mesma defender a causa ambiental, como se uma discussão excluísse a outra. Isso, na minha visão, vem da perspectiva lulopetista de Souza (que ele não esconde de ninguém e é legítima), que busca deslegitimar toda liderança de esquerda que não seja o ex-presidente Lula (nem mesmo Haddad é perdoado). O PT e suas contradições aparecem em seu texto, mas o nome do ex-presidente não é citado para elogiar ou criticar. Lula, para Souza, paira acima do bem e do mal, isento de críticas de qualquer espécie. Talvez uma autoproteção contra a hipocrisia. Para Souza apenas a classe média crítica luta contra a desigualdade social sem ser desvirtuada por pautas internacionais, talvez essa composta apenas por Lula e seu séquito.