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CONHECIMENTO E CRENÇA A razoabilidade da fé cristã e do conhecimento de Deus Aula 01 O Conhecimento de Deus colocado em questão Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada A nossa questão é esta: acaso uma crença desse gênero é intelectualmente aceitável? Em particular, é intelectualmente aceitável para nós, hoje? Para pessoas instruídas e inteligentes que vivem no século 21, com tudo o que aconteceu nos últimos quatro ou cinco séculos? Haverá quem admita que a crença cristã era aceitável até apropriada para os nossos antepassados, pessoas que pouco sabiam de outras religiões, que nada sabiam da evolução e da nossa ascendência animal, que nada sabia da física subatômica, nem do mundo estranho, fantasmagórico e inquietante por ela postulado, que não conheciam Nietzsche, Marx e Freud (p. 17-18). Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Recentemente, essa questão tornou-se ainda mais importante com o chamado “novo ateísmo” irrompendo em cena… Em sentido filosófico, os novos ateístas são sem dúvida inferiores aos atingis ateístas (e.g., Bertrand Russell, Charlie Dunbar Broad e John Leslie Mackie), porém eles parecem fazer mais barulho. Alguém poderia dizer que eles têm mais estilo do que conteúdo, exceto que também não há muito estilo; suas obras parecem pender menos para o academicismo sério que para a denúncia panfletária e raivosa… Apesar disso, algumas das questões por eles colocadas precisam de respostas (p. 26-27) Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Qual é exatamente, o problema? A resposta, penso, é que se alega haver dois problemas principais. O pensamento ocidental desde o Iluminismo do século 18 evidenciou pelo menos dois estilos distintos de objeção. Primeiro, existem as objeções de facto: objeções à veracidade da crença cristã. Talvez a mais importante objeção de facto seja o argumento baseado no sofrimento e no mal… O argumento do mal talvez seja a mais importante objeção de facto, mas não é a única. Há também as teses de que as principais doutrinas cristãs — A trindade, a Encarnação e a Expiação, por exemplo — são incoerentes ou necessariamente falsas (p. 18). As objeções de facto são, portanto, muitas, e gozam de uma história longa e marcante no pensamento ocidental. Ainda mais disseminadas, contudo, têm sido as objeções de jure. Trata-se nesse caso de argumentos que concluem que a crença cristã, seja verdadeira, seja falsa, é de qualquer modo injustificável, ou não tem justificativa racional, ou é irracional, ou não é intelectualmente respeitável, ou é contrária a uma moralidade saudável, ou não tem evidências suficientes ao seu favor, ou é, de algum outro modo, inaceitável para a razão, não sendo adequada da perspectiva intelectual (p. 18). Há, por exemplo, a tese freudiana de que a crença em Deus é na realidade o resultado da realização de um desejo; há a tese evidencial de que não ha evidência suficiente a favor da crença cristã; e há a tese pluralista de que ha algo de arbitrário e até de arrogante em sustentar que a crença cristã é verdadeira e que é falso tudo o que com ela for incompatível. As objeções de facto e de jure pertencem a diferentes espécies, mas às vezes coincidem (p. 19). As objeções de jure, por sua vez, apesar de serem talvez mais amplamente apresentadas que as suas homólogas de facto, são muito menos claras. A conclusão de uma objeção desse tipo é sempre a de que há algo de errado na crença cristã — algo que não a sua falsidade — ou então que há algo de errado no crente cristão: a crença ou o crente não têm justificação, ou são irracionais, ou racionalmente inaceitáveis, ou deixam a desejardes algum modo. Mas de que modo, exatamente? O que significa, na realidade, não ter justificação ou ser irracional?.. Responder essas perguntas é muito mais difícil do que se poderia pensar (p. 19). Professar a fé cristã no século 21 diz respeito, dentre outras coisas, responder a dois estilos de objeção: quanto a veracidade do conhecimento de Deus e quanto à razoabilidade de sua justificação. Aula 02 A tese cética como questão prévia à justificação da fé Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Nossa questão neste livro tem relação com a justificação, razoabilidade ou racionalidade da manutenção da fé cristã. Contudo, de acordo com algumas pessoas, essa não é uma questão, pois, de acordo com elas, a fé cristã de fato não existe. Não é o caso que a fé cristã seja falsa, tola ou equivocada; o caso é que ninguém tem de fato uma fé cristã. Argumenta-se a impossibilidade de alguém, ou pelo menos para qualquer um de nós, seres humanos, ter essa crença. Isso soa bastante fantasioso, para dizer o mínimo: o que dizer de todas as pessoas que vão às igrejas cristãs todos os domingos? Ao menos algumas delas não têm crenças cristãs? Apesar disso, essa opinião — de que a fé cristã de fato inexiste — é e tem sido surpreendentemente difundida (p. 35). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Para que eu possa pensar acerca de Deus e atribuir-lhe propriedades, não é necessário somente que tal ser exista, mas também que os meus conceitos se apliquem a ele. Caso contrário, não estou autorizado a afirmar qualquer das proposições mencionadas anteriormente, a acreditar nelas ou até a fórmula mentalmente — se é que elas realmente existem… é aqui que o suposto problema ocorre. Parece que muitos teólogos, e outras pessoas, pensam que há uma genuína dificuldade na ideia de que o nossos conceitos poderiam aplicar-se a Deus — isto é, poderiam aplicar-se a um ser dotados das propriedades de ser infinito, transcendente, e absoluto. A ideia é que, se houvesse um ser assim, não poderíamos falar dele (p. 29-30). Immanuel Kant Crítica da Razão MI (1781) Pura Aquilo que denominamos númeno deveria, pois, como tal, ser entendido apenas em sentido negativo. Se retirar ao conhecimento empírico todo o pensamento (efetuado mediante categorias), não resta o conhecimento de nenhum objeto; porque pela simples intuição nada é pensado, e do fato desta afeição da minha sensibilidade se produzir em mim não deriva nenhuma referência de uma tal representação a qualquer objeto. Se, em contrapartida, abstrair de toda a intuição, resta ainda a forma de pensamento, isto é, o modo de determinar um objeto para o diverso de uma intuição possível (B 309). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada O que se afirma ou se dá a entender é que Kant nos mostrou, de algum modo, que há problemas genuínos, talvez insuperáveis, na ideia de que exista um ser como o que é reconhecido no cristianismo tradicional, ao qual podemos nos referir e ao qual os nossos conceitos se aplicam… A partir da década de 1930, os positivistas lógicos gostavam de insistir em que os enunciados que os cristãos tipicamente profere — “Deus nos ama” ou “o Universo foi criado por Deus”, ou “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”— tal como são comumente usados, não dizem seja o que for; não exprimem proposição alguma (p. 33). Os fenômenos são objetos, objetos que existe no tempo e no espaço. Os númenos, ao contrário, não são temporais nem espaciais; o espaço e o tempo são formas de nossa intuição e não realidades que caracterizam as coisas em si. Os númenos e os fenômenos são, consequentemente, distintos. Além disso, só temos experiência dos fenômenos e não dos númenos… Exprimindo-o sinteticamente e sem nenhum detalhamento, há dois domínios de objetos; a nossa experiência refere-se a apenas um domínio, o domínio dos fenômenos, que em si depende de nós para existir. (p. 37). Isso porque o domínio fenomenal é de algum modo construído por nós a partir dos dados, do material cru da experiência… Por fim, há uma conexão entre os dois mundos, à medida que uma espécie de transação causal entre númenos e o ego transcendental (que é em si um númeno) produz em nós os dados a partir dos quais construímoso mundo fenomenal. Denomina-se essa maneira de ver as coisas a imagem de dois mundos. (p. 37-38). Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã É claro que Deus deve estar entre as coisas em si. Essa orientação do pensamento de Kant implicaria, pois, que nós, seres humanos, não podemos pensar a respeito de Deus. Não temos qualquer conceito que se aplique a ele. Nossos conceitos se aplicam só às aparências, não ao mundo da realidade. Portanto, Deus, a realidade in excelsis, está tão acima de nós, ou tão além de nós, que nossa mente insignificante não pode alcançá-lo. Nossa mente, nosso pensamento e nossa linguagem apenas não chegam até Deus. Portanto, algumas pessoas que entendem Kant nesses termos e pensam que ele está fundamentalmente correto acerca disso, concluem que não podemos pensar a respeito de Deus. E, obviamente, se não podemos pensar a respeito de Deus, não podemos também falar a respeito dele (p. 38). Immanuel Kant colocou todo o pensamento ocidental diante de dois mundos radicalmente distintos, em que nossos conceitos e linguagem não se aplicam às coisas em si (que permanecem incognoscíveis), mas tão somente às aparências que experimentamos na realidade temporal. Para Kant, essa é a razão da multiplicação dogmática de perspectivas metafísicas e religiosas. Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Mas se isso for verdadeiro, é de se presumir que pelo menos um dos nossos conceitos — o de que esse ser é tal de modo que nossos conceitos não se lhe aplicam — aplica-se realmente a ele… Assim, se ele for bem-sucedido ao afirmar sua tese, torna a tese falsa (p. 31). Essa maneira de pensar é claramente caracterizada por uma incoerência profunda: nessa imagem, Kant sustenta que as Dinge têm uma relação causal ou interativa conosco, sendo nós tomados aqui como egos transcendentais; e também afirmar que as não estão no espaço nem no tempo. Entretanto, pela subimagem radical, Kant (pelo menos se o seu equipamento intelectual for como o nosso) não deveria ser capaz de se referir às Dinge nem sequer de especular sobre a existe cia de tais coisas. No mínimo, ele não seria capaz de se referir a elas nem de lhes atribuir as propriedades de serem atemporais e a-espaciais ou a propriedade de afetar o ego transcendental, produzindo assim experiência nele (p. 45). Não parece que haja uma boa razão, seja em Kant, ou em seus continuadores, a favor da conclusão de que os nossos conceitos não se aplicam a Deus, de modo que não possamos pensar ou falar a acerca dele. Aula 03 Os limites e o ocaso das teologias contemporâneas Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada O nosso tema é a questão de jure quanto à crença cristã: se é racional, ou razoável, ou racionalmente justificável, ou intelectualmente defensável aceitar tal crença… A crença é, entre outras coisas, uma crença na existência de Deus… Muitos teólogos contemporâneos, contudo, acreditam aparentemente que essas ideias são excessivamente ingênuas: sustentam que há problemas profundos na própria ideia de que podemos nos referir a um ser caracterizado como os cristãos caracterizam Deus e pensar acerca dele. Em particular, parecem acreditar que Immanuel Kant nos deu excelente razoes para (na melhor das hipóteses) desconfiar fortemente desse ingênuo realismo no pensamento acerca de Deus ou na linguagem religiosa (p. 57). Gordon Kaufman God The Problem MI (1972) O problema central do discurso teológico, não compartilhado com qualquer outro “jogo de linguagem”, é o significado do termo “Deus”. “Deus” suscita problemas especiais de significado porque é um nome que por definição se refere a uma realidade transcendente à experiência, e assim não localizável em seu interior. Um récem-convertido pode ter vontade de se referir ao “sentimento caloroso” no seu coração quanto a Deus, mas Deus não se identifica com essa emoção; o biblista pode considerar que a Bíblia é a Palavra de Deus, o moralista pode acreditar que Deus fala por meio da consciência humana, o pastor pode acreditar que Deus está presente no seu rebanho — mas todos concordariam que o próprio Deus transcende o locus referido (p. 7). Como o Criador ou fonte de tudo que existe, Deus não deve ser identificado com qualquer realidade finita particular; como o objeto próprio da lealdade última ou fé, Deus deve ser distinguido de todo valor ou ente próximo ou penúltimo. Contudo, se nada em nossa experiência pode ser identificado de forma direta com o que o termo “Deus” propriamente se refere, que significado essa palavra tem ou pode ter? (p. 7). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada O termo “Deus” tem um referente disponível: trata-se de uma construção humana, algo que criamos; quando falamos de Deus ao adorá-lo ou quando lhe falamos ao orar, é acerca desse referente disponível, ou com ele, que estamos falando. Talvez o termo tenha também um verdadeiro referente. Se o tem, contudo, tal referente transcende a nossa experiência e por isso é algo ao qual os nossos conceitos não se aplicam: um mero desconhecido X, para dotar a terminologia kantiana de Kaufman (p. 62). Suspeito, contudo, que essa posição oficial tem outras consequências que Kaufman não deseja. Se esse ser, este verdadeiro referente, é realmente tal que nenhum dos nossos conceitos se lhe aplica, então não terá também propriedades como a identidade consigo mesmo, a existência e ser um objeto material ou imaterial, dado que todas estas são propriedades das quais temos conceitos. Na verdade, ele não teria nem mesmo a propriedade de ser o verdadeiro referente do termo “Deus" ou de qualquer outro termo; o nosso conceito ser o referente de um termo não se lhe aplicaria. O fato é que este ser não teria nenhuma propriedade, porque o próprio conceito de ter pelo menos uma propriedade não se lhe aplica… Consequentemente, estritamente, a posição de Kaufman é incoerente (p. 64). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada As obras de John Hick são interessantes tanto por elas mesmas quanto no que diz respeito ao nosso tópico; também ele defende uma perspectiva que muito deve a Kant, perspectiva que pode ser entendida como a ideia de que os nossos conceitos são se aplicam a Deus ou a “O Real”. John Hick Uma interpretação MI (1989) da Religião Cada uma das grandes tradições fez uma distinção, ainda que com diferentes graus de ênfase, entre o Real (entendido como Deus, Brahma, o Dharmakaya…) em si e o Real tal como se manifesta no seu do domínio intelectual e experimental dessa tradição (p. 236). É no seio do domínio fenomênico ou da experiência que a linguagem se desenvolveu e é aí que se aplica literalmente. Com efeito, o sistema de conceitos integrados na linguagem humana contribuiu reciprocamente para a formação deu mundo percebido pelos seres humanos. Há aqui tanto de construído como de dado. Mas a nossa linguagem não pode aplicar-se a uma postulada realidade numênica que nem mesmo parcialmente é formada por conceitos humanos. Isso está além do âmbito das nossas capacidades cognitivas… Assim, apesar de não podemos falar do Real an sich em termos literais, vivemos inescapavelmente em uma relação com ele (p. 350-351). Só podemos fazer afirmações negativas sobre o Absoluto… Esta via negativa (ou via remotionis) consiste em aplicar conceitos negativos ao Absoluto — o conceito de não ser finito, etc. — para indicar que ele está além do alcance de todos as nossas caracterizações positivas substanciais. É nesse sentido restrito que faz perfeito sentido dizer que nossos conceitos substanciais não se aplicam ao Absoluto (p. 239). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Desse ponto de vista, a tese de Hick sobre o Real não é que nenhum dos nossos conceitos se lhe aplica; isso seria claramente incoerente. Sua tese é que só os nossos conceitos e termos formais e negativos se lhe aplicam, ou seja, as únicaspropriedades dele que aprendemos são as formais e negativas (p. 72). Como é obvio, isso apenas retarda o problema: como eles se refere a ele? Como é possível que os cristãos, ao usarem o termo “Deus”, estejam na realidade referindo-se a este ser que não tem propriedades positivas que eles apreendam, apesar do fato de que eles pensarem que estão se referindo a um ser com muitas propriedades positivas desse gênero? Uma vez mais, é preciso haver alguma conexão entre elas e o Real… Em tese, isso só poderia ocorrer se eles tivessem algum tipo de contato exponencial com ele, tivessem a experiência desse ser de um ou de outro modo (p. 76). Se as coisas são assim, o Real tem pelo menos uma propriedade positiva não formal da qual temos concepção: a propriedade de ser objeto da nossa experiência. Tem pelo menos uma relação positiva não toma da qual temos concepção: a relação ser objeto da minha experiência… Essa modificação pode levar a outras, pois o que significa dizer que algo é objeto da nossa experiência, ou da experiência dos praticantes das grandes religiões? (p. 76). A menos que recaia em uma contradição explicita e vexatória, a inspiração kantiana na teologia contemporânea lhe coloca na mesma posição de impasse que a teologia negativa está: a impossibilidade de proferir qualquer enunciado sobre a divindade. Um silenciamento sem saída. Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Seria de se esperar de quem é ateu ou agnóstico quanto a Deus que se afastasse completamente da religião, encarando a devoção e a crença religiosa com um olhar de hostilidade ou, na melhor das hipóteses, de dó. Não é essa a rota de Kaufman. Em vez disso, ele argumenta que a prática e a devoção religiosas “tem uma função importante a desempenhar na vida”. Essa função, é claro, não consiste em nos pôr em contato com um ser que tenha as propriedades tradicionalmente atribuídas a Deus ou permitir que nos apropriemos da salvação em Jesus Cristo que Deus nos prometeu (p. 66). Essa nova função exige, isso sim, que os teólogos construam e reconstruam o conceito de Deus. A linguagem religiosa ainda é importante, mas deve ser reformulada para deixar de lado a vã tentativa de se referir a um ser que não existe. Em vez disso, ela deve ser usada para promover o florescimento humano, “a realização humano e o sentido”… Ela deve ser vista como uma espécie de símbolo de certos estados de coisas. Por exemplo, os cristãos entenderam a transcendência como uma propriedade de Deus; Kaufman recomenda que, ao construir o novo símbolo, mantenhamos a transcendência (p. 66-7). Podemos levar alguma pate disso a sério?… essa reedição de secularidade disfarçada de “reconstrução" do cristianismo encoraja a desonestidade e a hipocrisia; tem como resultado uma espécie de código privado no qual se proferem as mesmas expressões de quem aceita a crença cristã, mas querem dizer algo inteiramente diferente (p. 67-68). Em uma postura de (falsa) tolerância às afirmações arrogantes de religiosos, o discurso do diálogo interreligioso é incoerente em sua base e incapaz de alcançar o florescimento humano que assevera, uma vez que coloca seus adeptos em uma posição de silêncio empobrecedora. Aula 04 O fundacionalismo clássico e sua inconsistência autorreferente Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Está longe de ser óbvio qual é exatamente a questão ou objeção de jure, que questão (ou questões) os críticos têm em mente quando perguntam se a crença cristã e teísta é racional, ou racionalmente defensável, ou racionalmente justificável, ou seja o que for?… qual é, exatamente, a fraqueza ou defeito que atribuem ao crente cristão? Qual é, exatamente, a questão? Vamos chamar essa investigação de “metaquestão”… As pessoas perguntam se a crença cristã é racional ou razoável ou racionamento justificável; e passam imediatamente a responder à pergunta, sem considerar qual é exatamente a questão (p. 93). Esse capítulo é dedicado ao exame de certa resposta à metaquestão: a questão de jure diria respeito à justificação da crença cristã. Essa questão surge no fundacionalismo clássico, uma maneira de pensar acerca destes tópicos que foi extremamente influente no decorrer da história e ainda está muito presente na época atual. Segundo os fundacionalistas clássicos, a questão de jure é, na verdade, a questão de saber se a crença cristã é justificada; mas como entender o termo “justificação”? (p. 93). A questão da justificação racional da crença cristã remonta à reação iluminista à atividade espiritual e intelectual gerada (parcialmente) pela Reforma; o início da resposta caracteristicamente moderna a essa atividade se manifesta nas obras de René Descartes e John Locke. Tanto um como outro ficaram impressionados com o grau de discordância que havia em questões religiosas e filosóficas; isso significa, é claro, que o erro afeta a nossa crença nessas áreas. Também ficaram impressionados (como os seus sucessores) com o escasso progresso alcançado em questões filosóficas (p. 94-95). John Locke Ensaio acerca do MI (1689) Entendimento Humano Se as capacidades do nosso entendimento fossem bem consideradas, e fossem descoberto o domínio do nosso conhecimento, e se encontrasse o horizonte que estabelece os limites entre as partes iluminadas e as partes obscuras das coisas, entre aquelas que são e aquelas que não são compreensíveis para nós, os homens aceitariam talvez com menos escrúpulo a ignorância manifesta das últimas, empregando os seus pensamentos e discursos com mais vantagem e satisfação nas primeiras (§ 7). A maior parte do nosso conhecimento depende de deduções e ideias intermediárias; e naqueles casos em que estamos dispostos a substituir o conhecimento pelo assentimento, tomando proposições como verdadeiras sem estarmos certos de que o sejam, precisamos descobrir, examinar e comparar as bases de sua probabilidade. Nesses dois casos, a faculdade que descobre os meios e os aplica corretamente, para descobrir a certeza em um caso e a probabilidade no outro, é aquilo a que chamamos razão (IV, xvii, § 2). Um homem nunca pode ter um conhecimento tão certo de que uma proposição que contradiz os princípios claros e a evidência de seu próprio conhecimento foi revelada por Deus, ou de que entende corretamente as palavras em que foi transmitida, quando pode ter certeza do contrário; por isso, é obrigado a considerá-la e apreciá-la como matéria de razão, não a simplesmente engoli-la (IV, xviii, § 8). A fé não é mais do que um assentimento mental firme: se for regulado, como é o nosso dever, ele não pode ser produzida por outra coisa senão pela razão; e assim não pode se opor a ela. Quem acredita sem ter qualquer razão para acreditar, pode estar apaixonado pelas próprias fantasias; mas não busca a verdade como deveria e nem presta a devida obediência ao Criador, que incentiva o uso das faculdades de discernimento que lhe concedeu, para mantê-lo afastado do engano e do erro. Quem não faz isso tanto quanto pode, embora algumas vezes atinja a verdade, está certo, mas por acaso; não sei se a sorte da fortuna desculpará a irregularidade do seu procedimento (IV, xvii, § 24). Ao menos isso é certo: ele seja responsável por qualquer erro que encontre. Quem faz uso da luz e das faculdades que Deus lhe deu — e busca com sinceridade descobrir a verdade com os recursos e capacidades que tem — pode ter essa satisfação ao cumprir seu dever como criatura racional, que, embora a verdade lhe escape, não perderá a recompensa por ela. Pois governa o próprio assentimento com correção, e o coloca como deveria, quem, em qualquer caso ou questão, acredita ou não acredita de acordo com o que a razão lhe diz. Quem faz outra coisa transgride a própria luz e faz mau uso das faculdades concedidas para buscar e seguir a mais clara evidência e a maior probabilidade (IV, xvii, § 24). Alvin Plantinga CrençaCristã MI (2000) Avalizada O pensamento de Locke dá início ao pacote clássico: evidencialismo, deontologismo e fundacionalismo clássico. É de acordo com os primeiros dois elementos que a crença cristã exige evidência; ou seja, os crentes cristãos só terão direitos intelectuais e só estarão cumprindo seus deveres intelectuais se tiverem evidências suficientes a favor dessa crença. E é graças ao terceiro elemento que as evidências devem remontar, finalmente, ao que é certo para eles: o que é autoevidente ou incorrigível ou evidente aos sentidos. Há tempos essa conexão entre justificação e evidências está no centro de toda a tradição justificacionalista da epistemologia ocidental (p. 111). ela foi especialmente importante no pensamento subsequente acerca da questão de jure quanto à crença cristã. Segundo essa tradição, a questão de jure é na realidade a questão de a crença cristã ter justificação racional ou não — ou seja, de os crentes terem ou não justificação para sustentar tais crenças e de estarem ou não cumprindo seu dever intelectual ao sustentá-las. O dever principal é o de adequar a crença às evidências, ao que é certo. Assim, a primeira versão da questão de jure vê-se transformada em uma segunda: acaso os crentes têm evidência suficientes a favor das suas crenças? (p. 111). Uma das primeiras e mais duradouras formas de questionar a razoabilidade da crença cristã foi o pacote iluminista clássico de evidencialismo associado ao fundacionalismo e o deontologismo. Desde o século 17, a crença religiosa só será racionalmente aceita se houver evidências suficientes para justificá-la racionalmente — caso contrário, estamos agindo em desrespeito aos nossos deveres epistêmicos. Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Por que aceitar tais pressupostos? Por que pensar que o teísmo só é racionalmente aceitável se houver bons argumentos a seu favor? Por que pensar que se trata de uma hipótese científica ou de algo significativamente semelhante a uma hipótese científica? Claro que esses pressupostos fazem parte do pacote clássico: bem, por que haveremos de aceitar esse pacote? É claro que há alternativas sensatas… Essa imagem, contudo, tal como algumas outras imagens gerais, não resiste a um exame atento; está sujeita a objeções poderosas e, na verdade, fatais (p. 114-115). Primeiro, como argumentei alhures, o fundacionalismo clássico parece autorreferencialmente incoerente: estabelece um padrão da crença justificada a que ele mesmo não obedece… ao afirmar o fundacionalismo clássico (e presumivelmente acreditar nele), estabelece um padrão para que tenhamos justificação, não tenhamos culpa, façamos jus ao nossos direitos intelectuais — um padrão, contudo, a que a sua própria crença na imagem clássica não obedece (p. 115). Para ser apropriadamente básica deveria ser autoevidente, incorrigível ou lockeanamente evidente aos sentidos. Entretanto, em primeiro lugar, ela não é autoevidente para os fundacionalistas (nem para qualquer outra pessoa)… Nesse aspecto, a imagem clássica é completamente diferente de 2+1 = 3 ou Se todos os gatos são animais e Maynard é um gato, então Maynard é um animal. Segundo, a imagem clássica não é uma crença acerca de estados mentais seja de quem for e, consequentemente, não é incorrigível para os fundacionalistas (nem para pessoas comuns). E terceiro, é óbvio que ela não é evidente aos sentidos (p. 116-117). Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Mas existe outro problema. De acordo com o fundacionalismo clássico, para estar justificado ao acreditar na existência de uma árvore no quintal, ou que vejo uma árvore no meu quintal, devo crer nessa proposição com base na evidência de proposições autoevidentes ou incorrigíveis. Talvez eu não possa encontrar um argumento decente desse tipo para a proposição de que há uma árvore no meu quintal… Eu poderia tentar: "Na maioria das vezes no passado em que parecia haver uma árvore no meu quintal, a árvore se encontrava de fato ali; agora parece haver uma árvore no meu quintal; portanto, agora é provável haver uma árvore ali". Mas como sei que nas vezes passadas em que parecia haver uma árvore no meu quintal ela de fato estava ali? Apelando para outras vezes? Obviamente, isso não funcionará (p. 58) E o que dizer da própria ideia de vezes passadas, ou, de forma mais geral, da própria ideia de passado? Sem dúvida, creio que realmente houve o passado; mas onde posso encontrar um bom argumento para a conclusão de que o passado ocorreu de verdade? Todo o desenvolvimento da filosofia moderna de Descartes a Hume mostra que não há um bom argumento a partir do que é autoevidente ou incorrigível para proposições do tipo. Além disso, quando olho da minha janela, formo a crença na existência de uma árvore lá fora; e não está em meu poder suspender a crença. O fato é que as crenças desse tipo não estão sob nosso controle voluntário. Não decidimos formá-las. Não se trata de eu olhar para o quintal, algo aparecer para mim de forma familiar e, na sequência, escolho acreditar na existência de uma árvore lá fora. Não escolho crer nisso ou não: apenas me vejo acreditando (p. 59). Quando confrontado com a formação das crenças mais banais de nosso cotidiano — como aquelas que se baseiam em nossa memória — a imagem clássica do fundacionalismo não é em sucedida. Além disso, se for confrontada com sua própria imagem de justificação racional, o fundacionalismo clássico não é autoevidente, incorrigível e evidente aos sentidos. Aula 05 A justificação da crença cristã Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada O pacote clássico tomado puro, por assim dizer, não pode estar correto: simplesmente não parece haver o dever de formar crenças de acordo com a imagem clássica. Claro que poderá haver outros gêneros de deveres intelectuais… sejam quais forem exatamente os nossos deveres para com a verdade, quero defender a seguir que a crença cristã pode certamente ser justificada de modo geral e pode, além disso, ser justificada quando tomada do modo básico (p. 121-122). Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Em todo o caso, evidencia-se com perfeição que uma pessoa pode estar justificada em aceitar toda a narrativa cristã; ou seja, é claro que uma pessoa poderia aceitar essa narrativa sem contrariar o dever. Não é difícil para o cristão — mesmo o crente sofisticado e instruído ciente de todas as objeções e correntes contrárias de opinião — estar justificado, nesse sentido, em sua crença; e isso independente de ele acreditar ou não em Deus (ou de forma mais especifica, nas doutrinas cristãs) com base em evidências proposicionais. Considere uma crente. Ela está ciente das objeções feitas à fé cristã; leu e refletiu sobre Freud, Marx e Nietzsche (sem mencionar Flew, Mackie e Nielsen) e outros críticos da fé cristã ou teísta; sabe que o mundo contém muitas pessoas desprovidas da mesma crença. (p. 60-61) Ela não acredita com base em evidências proposicionais; portanto, sua crença se dá de modo básico. Ela poderia estar justificada em acreditar em Deus desse modo? A resposta parece muito fácil. Ela leu Nietzsche, mas sua posição não foi alterada pela acusação nietzscheana de que o cristianismo cultiva um tipo de pessoa fraca, queixosa, descontente, pusilânime, enganadora, e geralmente muito desagradável: a maioria dos cristãos que conhece ou sobre os quais ouviu falar — madre Teresa, por exemplo — não se adequa ao molde. Ela considera a atitude desdenhosa de Freud para com o cristianismo e a crença teísta apoiada em nada mais que fantasias implausíveis sobre a origem da crença em Deus e ela vê só um pouco mais de substância em Marx. (p. 61) Embora esteja ciente dos argumentos teístas e pense que alguns deles não são sem valor, ela não acredita com base neles. Em vez disso, tem uma vida espiritual interior muito rica, do tipo descrito nas primeiras páginasde Afeições Religiosas de Jonathan Edwards; parece-lhe que algumas vezes se torna ciente, capta um vislumbre, de um pouco da extrema beleza e amor do Senhor; ela está muitas vezes cônscia, como fortemente lhe parece, da obra do Espírito Santo em seu coração, confortando, encorajando, ensinando, guiando-a para aceitar as “grandes coisas do evangelho” (como Edwards as chama), ajudando-a a ver que o esquema magnífico da salvação planejado pelo Senhor não é só para outras pessoas, mas também para si. (p. 61-62). Depois de uma longa, difícil e cuidadosa reflexão, isso tudo lhe parece muito mais convincente que as acusações dos críticos. Ela então contraria o dever por acreditar no que acredita? Está sendo irresponsável? É certo que não. Poderia haver algo defeituoso nela, alguma disfunção não aparente à primeira vista. Apesar dos seus melhores esforços, ela poderia estar enganada, ser a vítima de ilusão ou de produto da imaginação. Poderia estar errada, desesperadamente errada, lamentavelmente errada, quando pensa nessas coisas; porém não deixa de cumprir qualquer dever discernível. Ela cumpre suas responsabilidades epistêmicas e faz o melhor que pode; está justificada (p. 62). E isso não só é verdadeiro, mas é obviamente verdadeiro. Podemos sentir de algum modo oculto que ela não está justificada sem evidência se for esse o caso, isso acontece porque apresentamos aqui outro conceito de justificação. Mas se for a justificação no sentido deontológico, no sentido de responsabilidade, de proceder em conformidade com o direito intelectual, ela sem dúvida está justificada. Pois, como poderia merecer alguma censura ou ser irresponsável, se pensa sobre a questão com tanta seriedade quanto pode, do modo mais responsável possível, e ainda chega a essas conclusões? (p. 62). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Os crentes podem estar enganados, podem estar iludidos, podem ser tolos, podem ser insuficientemente críticos (de um modo que não implique censura); mas não há razão para pensar ou que negligenciaram inevitavelmente os seus deveres epistêmicos ou que não têm justificação em uma dessas extensões analógicas do termo (p. 131). Uma condução cuidadosa na análise da crença cristã — até mesmo frente às críticas tradicionais de Freud, Marx e Nietzsche —faz do crente cristão justificado em seus deveres epistêmicos. Não há censura para uma formação básica de crença como esta. Aula 06 A crítica de Freud e Marx e a falta da aval da crença cristã Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Os ateólogos (aqueles que argumentam contra a crença cristã) sustentaram muitas vezes que a crença cristã é irracional; até agora, não conseguimos encontrar uma versão sensata da tese. No entanto, talvez possamos ganhar terreno explorando as censuras à crenças cristã propostas por Freud, Marx e todo o exército de seus seguidores do séculos 19 e 20… É ao examinar os seus comentários críticos à crença religiosa que podemos finalmente encontrar, penso, uma questão de jure adequada: uma questão diferente da de facto, cuja resposta não é trivial e que é pertinente, já que uma resposta negativa representaria um ponto sério contra a crença cristã (p. 158). Sigmund Freud O futuro MI (1927) de uma ilusão Essas [as crenças religiosas] são apresentadas como doutrinas, não são produtos da experiência ou resultados do pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e persistentes desejos da humanidade. O segredo da força das crenças religiosas consiste na força desses desejos. Como já sabemos, as impressões terríveis de desamparo na infância dão origem à necessidade de proteção — de proteção por meio do amor — fornecida pelo pai; e o reconhecimento desse desamparo dura a vida toda, tornando necessário apegar-se à existência de um pai, mas dessa vez um pai mais poderoso. Assim, a regra benevolente da Providência divina diminui o medo dos perigos da vida; o estabelecimento da ordem moral para o mundo assegura a realização das demandas de justiça, não realizadas com muita frequência na civilização humana; e o prolongamento da existência humana na vida futura oferece uma estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo terão lugar. Nunca houve um caso de desculpa tão convincente, como o que nos encontramos diante. Ignorância é ignorância: nenhum direito de acreditar em algo pode ser daí derivado. Em outras questões, nenhuma pessoa razoável se comportará com tanta irresponsabilidade ou ficará satisfeita com razões fracas a respeito do ponto de vista e do lado que escolhe… Quando estão em jogo questões sobre religião, as pessoas são culpadas de todo tipo possível de desonestidade e maus hábitos intelectuais. Karl Marx Crítica da filosofia MI (1843) do Direito de Hegel A base da crítica irreligiosa é que o homem faz a religião, e não que a religião faz o homem. Em outras palavras, a religião é a autoconsciência e o sentimento próprio do homem que ainda não se encontrou ou (tendo se encontrado) se perdeu mais uma vez. Contudo, o homem não é um ser abstrato instalado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o estado, a sociedade. Esse estado, essa sociedade, produzem a religião, o mundo da consciência pervertida, porque eles são o mundo pervertido… A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração do mundo sem coração, como é o espírito da situação não espiritualizada. Ela é o ópio do povo. A supressão da religião como felicidade ilusória do povo é necessária para a felicidade real. A demanda de abrir mão de ilusões sobre sua condição é a demanda de abrir mão da condição que requer ilusões. A crítica da religião é, portanto, embrionariamente a crítica do vale de lágrimas, sua auréola é a religião. Richard Dawkins New York Times MI (1989) É a absolutamente seguro dizer que, se encontramos alguém que afirme não acreditar na evolução, essa pessoa é ignorante, obtusa ou louca (ou está mal-intensionada, mas prefere desconsiderar essa hipótese). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Quando F&M dizem que a crença cristã, ou a crença teísta, ou talvez a crença em geral, são irracionais, a ideia básica é que esse tipo de crença não fazem parte dos produtos apropriados das nossas faculdades racionais. Elas não são produzidas por faculdades ou processos cognitivos que estejam funcionando apontadamente e visem à verdade… E isso significa que o pressuposto de confiabilidade que acompanha as faculdades cognitivas que funcionam apropriadamente não se aplica aos processos que dão lugar à crença em Deus ou à crença cristã de modo mais geral (p. 171). A ideia fundamental é que a crença religiosa não é produzida por aquelas faculdades que visam à verdade, mas por uma fonte diferente. Alternativamente, se a crença religiosa resultar afinal, de algum modo, dessas faculdades que visam à verdade, é porque a operação delas, quando produzem a crença religiosa, está sendo cancelada ou obstruída por outro fator: uma necessidade de segurança, ou de nos sentirmos importantes no esquema geral das coisas, ou de sentirmos conforto psicológico em face de um mundo cruel, intimidante e implacável (p. 172). A crença cristã talvez seja verdadeira, talvez seja falsa; mas, de qualquer modo, é irracional aceitá-la. A melhor maneira de entender essa crítica, segundo penso, é vê-la como a queixa de que a crença cristã não é produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente e que visem à verdade. Ora, isso se refere à questão do aval. Freud e Marx, da perspectiva desse volume, estão se queixando de que a crença teísta e religiosa em geral carece de aval (p. 173). Seja pela obstrução dos arranjos sociais deturpados, seja pelas necessidades ilusórias de nossos desejos, a crítica de jure deve ser entendida comoa tese de que a crença cristã — seja ela verdadeira ou falsa — é destituída de aval. Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada A questão remonta ao Teeteto de Platão: o que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira? Que outra qualidade ou quantidade a crença verdadeira deve ter para que constitua conhecimento? Esta é uma das questões principais da epistemologia… uma crença só tem aval se for produzida por faculdades cognitivas que estão funcionando apropriadamente, que não estejam sujeitas a qualquer enfermidade ou disfunção — entendendo isso como ausência de empecilhos e de patologias. Todavia, essa noção está intimamente ligada a outra: a de plano de desígnio (design plan). Os seres humanos e os seus órgãos são constituídos de tal modo que devem funcionar de determinadas maneira, a maneira que funcionam quando funcionam bem; (p. 173-174). Todavia, não basta isso. É óbvio que muitos sistemas de nosso corpo foram concebidos para funcionar em certo tipo de ambiente. Não podemos respirar debaixo d’água… o mesmo acontece com claramente no caso de nossas faculdades cognitivas; também elas alcançam o seu propósito apenas se funcionarem em um ambiente parecido com aquele para o qual foram especificamente constituídas (por Deus ou pela evolução). Assim, não funcionam bem em um ambiente (um planeta, por exemplo) no qual uma radiação sutil qualquer obstrua o funcionamento da memória (p. 175). E mesmo isso ainda não basta… Pensamos que o propósito ou função de nossas faculdades de produção de crença é fornecer- nos crenças verdadeiras (ou verossímeis). Como viemos ao examinar a queixa F&M, contudo, é claramente possível que o propósito ou função de algumas faculdades ou mecanismos de produção de crenças seja a produção de crenças com outras virtudes — talvez nos permitir enfrentar este mundo frio, cruel e ameaçador, ou nos permitir sobreviver a uma situação perigosa ou a uma doença potencialmente mortal. Assim, temos de acrescentar que a crença em questão seja produzida por faculdades cognitivas cujo propósito seja a produção de crenças verdadeiras (p. 175). Mesmo isso não é suficiente… imagine-se que uma divindade principiante, jovem e sem instrução, decide fazer seres cognitivos, capazes de crença e conhecimento. A imaturidade e a incompetência triunfam; a constituição desses seres tem defeitos muito sérios. De fato, em algumas áreas dessa constituição, quando as faculdades funcionam como foram concebidas, o resultado são crenças ridiculamente falsas… O que lhes falta? Como é óbvio, o que devemos acrescentar é que o plano de desígnio em questão seja bom, que vise com êxito à verdade, que seja tal a ponto de ser elevada a probabilidade (objetiva) de que uma crença produzida segundo o plano de desígnio seja verdadeira (ou aproximadamente verdadeira) (p. 176). Uma crença só tem aval para um indivíduo X se essa crença for (1) produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente, (2) em um ambiente cognitivo apropriado e (3) segundo um plano de desígnio que visa com êxito a verdade. Tão somente assim, essa crença tem aval — de acordo com o grau de força da crença e de firmeza com que X a sustenta. Aula 07 O modelo Calvino e Aquino de crença cristã avalizada Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada O que vimos foi que essa queixa é, na verdade, a tese de que a crença cristã e teísta é irracional por ter origem em uma disfunção cognitiva (Marx) ou em função cognitiva que, embora apropriada, visa a outra coisa que não a verdade (Freud)… Em outras palavras ainda, a acusação é que a crença teísta e cristã carece de aval. Como resposta, neste capítulo começarei oferecendo um modelo — baseado em uma tese defendida conjuntamente por Tomás de Aquino e João Calvino — de uma maneira pela qual a crença teísta poderia ter aval (p.185). Tomás de Aquino e João Calvino concordam que existe uma espécie de conhecimento natural de Deus…Segundo Tomás: “saber de uma maneira geral e instintiva que Deus existe é algo que está implantado em nós por natureza”… Calvino concorda: há uma espécie de conhecimento natural de Deus. Ele expande esse tema oferecendo uma sugestão de como as crenças acerca de Deus podem ter aval; ele tem uma ideia sobre a natureza da faculdade, o mecanismo pelo qual adquirimos crenças verdadeiras acerca de Deus. A sua ideia aqui também pode ser entendida como um desenvolvimento do que o apóstolo Paulo afirma em Romanos 1 (p. 188). Como afirma Étienne Gilson, foram muitíssimos os pensadores medievais e posteriores que encontraram nessa passagem um alvará para a teologia natural, entendida como o esforço para apresentar provas ou argumentos a favor da existência de Deus. Entretanto, será que Paulo realmente está falando, aqui, de provas ou argumentos? A teologia natural, como afirma Tomás, e muito difícil para a maior parte de nós; a maior parte de nós não têm o ócio, a capacidade, a vontade ou a instrução necessária para seguir essas provas teístas. Todavia, Paulo parece aqui estar falando de todos nós, seres humanos; o que se pode saber de Deus é manifesto, afirma ele. É verdade que este conhecimento resultado do que Deus criou, mas não se segue que resta por meio de argumentos — dos argumentos da teologia natural, por exemplo (p. 188, n.5). A ideia básica, parece-me, é que há uma espécie de faculdade ou mecanismo cognitivo, a que Calvino chama sensus divinitatis ou sentido do divino, que em muitíssimas circunstâncias produz em nós crenças acerca de Deus. Essas circunstâncias desencadeiam, por assim dizer, a disposição para formar as crenças em questão; propiciam a ocasião na qual essas crenças surgirem. Nessas circunstâncias, desenvolvemos ou formamos crenças teístas — ou antes, essas crenças surgem em nós; no caso típico, não decidimos conscientemente tê-las. Em vez disso, simplesmente as constatamos em nós, assim como constatamos as crenças perceptivas e de memória. Essas passagens sugerem que a consciência da existência de Deus é natural, comum e não é fácil esquecê-la ou destruí-la (p. 190). O sensus divinitatis é uma faculdade de produção de crenças (ou poder, ou mecanismo) que, nas condições certas, produz crenças que não se baseiam em outras crenças de forma evidenciam. Nesse modelo, as nossas faculdades cognitivas foram concebidas e criadas por Deus; o plano de desígnio, consequentemente, é um plano no sentido literal e paradigmático. É um diagrama ou projeto de nossas maneiras de funcionar e foi desenvolvido e instituído por um agente consciente e inteligente. O propósito do sensus divinitatis é permitir-nos ter crenças verdadeiras sobre Deus… Essas crenças satisfazem consequentemente as condições do aval; se as crenças produzidas forem suficientemente fortes, constituirão conhecimento (p. 196) O sensus divinitatis e sua relação com o conhecimento natural de Deus em Tomás funciona como um modelo de faculdade ou mecanismo de produção de crenças — um dispositivo de input-output, recebendo input de várias circunstâncias e dá como output as crenças teístas. Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Segundo o modelo presente, pois, o sensus divinitatis foi danificado ou corrompido pelo pecado. Além disso, segundo o modelo estendido que pretendo propor, o sensus divinitatis é parcialmente curado e restaurado pela fé e pela obra concomitante do Espírito Santo no coração, passando a funcionar apropriadamente. Assim, o modelo tal como até agora o esboçamos está incompleto… Apesar de incompleto, contudo, o modelo até agora esboçado é suficiente para os propósitos que temos por ora, pois esse modelo mostra-nos de maneira suficientemente pormenorizada como um sensus divinitatis funcionando apropriadamente pode produzir uma crença cristã que seja (1) tomada de maneira básica e que (2), tomada desse modo, possa realmente ter aval, um aval suficiente para o conhecimento (p. 202). Alvin PlantingaConhecimento e MI (2015) Crença Cristã Como Agostinho e Pascal notaram, toda a complexa e confusa coleção de atitudes, afetos e crenças que constitui o estado do pecado é um campo fértil para a ambiguidade e o autoengano. De acordo com o modelo Aquino e Calvino estendido, mesmo no estado de pecado, e mesmo com a exclusão da regeneração, nós, seres humanos, temos pelo menos algum conhecimento de Deus, e alguma apreensão do que se exige de nós. A condição do pecado envolve o dano do sensus divinitatis, mas não sua completa eliminação; ele permanece funcionando em parte na maioria de nós (p. 110) Portanto, temos alguma apreensão da presença, das propriedades e demandas de Deus, mas esse conhecimento é ocultado, impedido e suprimido. Estamos propensos a odiar a Deus, mas também, de forma confusa, estamos de algum modo inclinados a amá-lo e buscá-lo; estamos propensos a odiar o semelhante, a vê-lo como competidor por bens escassos, mas também, paradoxalmente, estamos inclinados a estimá-lo e amá-lo (p. 111). Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada A consequência mais importante do pecado, assim, é o desconhecimento de Deus. E esse desconhecimento pode ter outras consequências cognitivas. Atualmente, e especialmente na academia, a dúvida e o agnosticismo com respeito à própria existência de Deus são onipresentes. Entretanto, não sabemos que existe uma pessoa com as qualidades comumente atribuídas a Deus, não sabemos a primeira coisa (e a mais importante) sobre nós, os outros e o mundo. Isso porque, do ponto de vista do nosso modelo as verdades mais importantes sobre nós e os nossos semelhantes é que (p. 231) fomos criados pelo Senhor e dependemos completamente dele para continuar a existir. Não sabemos em que consiste a nossa felicidade e não sabemos como atingi-la. Não sabemos que fomos criados à imagem de Deus e não entendemos a importância desses fenômenos caracteristicamente humanos que são o amor, o humor, a aventura, a ciência, a arte, a música, a filosofia, a história e assim por diante (p. 231). Na contramão da crítica F&M, é o funcionamento inapropriado do sensus divinitatis que produz ilusão e descrença. Para uma completa compreensão do modelo Tomás de Aquino/Calvino é necessário acrescentar o queda do ser humano no pecado como um fator de danificação — mas sem eliminação — do sensus divinitatis. Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Meu modelo estendido terá uma característica adicional: completará e aprofundará a explicação prévia do conhecimento de Deus. Os temas centrais do modelo estendido são a Bíblia, o testemunho interior do Espírito Santo e a fé. De acordo com o modelo (como já vimos), nós, seres humanos, fomos criados à imagem de Deus. Infelizmente, caímos no pecado — condição perniciosa da qual precisamos ser resgatados e redimidos. Deus propôs e instituiu um plano de salvação: a vida, o sofrimento sacrificial, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo — a segunda pessoa da Trindade que se tornou carne. Para nós, resulta a possibilidade de salvação do pecado, da relação com Deus renovada e da vida eterna. No entanto, Deus precisava de um meio para nos informar — a nós, seres humanos, de diferentes eras e lugares — (p. 112-113). o esquema da salvação disponibilizado por ele de forma graciosa (e chegamos aqui à ampliação especificamente epistemológica do modelo). Ele escolheu fazer isso por meio de um processo cognitivo em três níveis. Primeiro, Deus falou por meio de profetas e apóstolos e providenciou a produção da Escritura, a Bíblia, um conjunto de livros ou escritos compostos por autores humanos diferentes, dos quais o próprio Deus é o autor principal. Nesse conjunto de livros e textos, ele propõe muitas coisas para a crença e a ação, mas há um tema e um foco centrais (por essa razão, esse conjunto de livros e textos consiste mesmo em um livro): o evangelho, as boas-novas do caminho da salvação disponibilizado por Deus de maneira graciosa (p. 114) Correlato à Escritura, e necessário para que ela cumpra propriamente o seu propósito, encontra-se o segundo elemento desse processo cognitivo: a presença e a ação do Espírito Santo prometidas por Cristo antes de sua morte e ressurreição, invocadas e celebradas nas epístolas do apóstolo Paulo. Em virtude da obra do Espírito Santo no coração de quem a fé é concedida, os danos do pecado (incluindo-se o aspecto cognitivo) são reparados, de modo gradual ou repentino, em pequena ou grande extensão. Além disso, por causa da atividade do Espírito Santo, os cristãos chegam a apreender, endossar e se regozijar com a verdade das grandes coisas do evangelho. Por essa atividade o cristão crê que "Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens" (2Co 5.19) (p. 115). A extensão do modelo Tomás de Aquino/ Calvino significa reconhecer os meios escolhidos por Deus para contornar a queda do ser humano no pecado e fazer com que o sensus divinitatis volte a funcionar apropriadamente na produção de crenças teístas básicas. Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Mas como esse modelo, com excursão na teologia, serve para a fé cristã obter ou poder obter justificação, racionalidade e garantia? A resposta é a própria simplicidade. Essas crenças não surgem no cristão por meio da memória, percepção, razão, do testemunho, sensus divinitatis, ou de quaisquer outras faculdades ou processos cognitivos com os quais nós, seres humanos, fomos originariamente criados; elas surgem, em vez disso, por obra do Espirito Santo, que nos leva a aceitar e enxergar a veracidade dessas grandes verdades do evangelho (p. 118) As crenças não surgem só por meio da atuação normal das nossas faculdades; elas são uma dádiva sobrenatural. Mesmo assim, o cristão recipiente da dádiva da fé estará obviamente justificado (no sentido básico do termo) ao crer como o faz; não há nada contrário ao dever epistêmico ou a algum outro dever quando acredita desse modo (e, de fato, uma vez ele tenha aceitado essa dádiva, pode não estar em seu poder suspender a crença) (p. 118). No entanto, dado o modelo, as crenças em questão terão tipicamente (ou frequentes vezes, pelo menos) outros tipos de valores epistêmicos que consideramos. Em primeiro lugar, essas crenças serão racionais: não precisa ocorrer nenhuma disfunção cognitiva no crente; todas as suas faculdades cognitivas podem funcionar bem. Em segundo lugar, no modelo, essas crenças contarão também com a garantia para o crente: elas serão produzidas nele por um processo que funciona de forma correta no ambiente cognitivo adequado (para o qual foi projetado) em conformidade com o projeto de design que visa com sucesso à produção da crença verdadeira (p. 118). A compreensão completa do modelo Tomás de Aquino/Calvino fornece aos crentes cristãos não só uma descrição da faculdade ou mecanismo de formação de crenças religiosas, mas o detalhamento do que realmente afeta esse mecanismo e como a própria divindade lida para ultrapassar tais danos — produzindo crenças teístas que respondem adequadamente os critérios de aval. Aula 08 A reavaliação da crítica F&M à luz do modelo Tomás de Aquino/Calvino Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Como vimos, Freud não argumenta realmente que a crença teísta não tem aval se for tomada de maneira básica: ele parece pressupor que essa crença é falsa depois infere de modo bastante rápido e casual que ela é produzida pela realização de desejo e, por isso, não tem aval. Nesse aspecto (apesar da aparente falta de cuidado), talvez os intentos de Freud estejam certos: argumentarei que se a crença cristã for falsa, mas for tomada do modo básico, provavelmente não tem aval… Se a pessoa de Deus não existe, é claro que o sensus divinitatis tampouco existe; e que faculdade visando à verdade seria esta que estaria funcionando nolimites da sua capacidade ao produzir a crença de que Deus efetivamente existe, se esta última crença for falsa? (p. 203). No fim das contas, Freud tinha razão: se a crença teísta for falsa, é no mínimo muito provável que ela tenha pouco aval, ou mesmo nenhum. No entanto, se a crença teísta for verdadeira, é provável que tenha aval. Se for verdadeira, é porque existe realmente uma pessoa divina, uma pessoa que nos criou à sua imagem (de modo que nos assemelhamos a ele, entre outros aspectos, porque somos capazes de o conhecer), que nos ama, deseja que o contestamos e amemos, e sendo tal que conhecê-lo e amá-lo é a nossa finalidade e o nosso bem. Mas se estas coisas forem verdadeiras, então ela visaria, claro, a que fôssemos capazes de ter consciência da sua presença e de saber algo acerca dele (p. 204-205). E se isso for assim, então natural pensar que aquele que concebeu os processos cognitivos que realmente produzem a crença em Deus concebeu- os em vista da produção dessa crença. Nesse caso, então, a crença em questão será produzida por faculdades cognitivas funcionando propriamente segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade: terá, portanto, aval (p. 205). Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Aqui vemos as raízes metafísicas ou últimas da questão da racionalidade ou garantia ou da sua falta para a crença em Deus. O que se toma como racional ou garantido depende do tipo de posicionamento metafísico ou religioso. Depende do tipo de seres considerados seres humanos, dos tipos de crenças produzidos por suas faculdades quando funcionam propriamente e quais faculdades ou mecanismos cognitivos visam à verdade. Sua perspectiva sobre que tipo de criatura é o ser humano determinará, ou pelo menos influenciará fortemente, suas opiniões sobre a gatanha da crença teísta e a racionalidade dos seres humanos. Assim a disputa sobre a racionalidade (garantia) da crença teísta não pode ser decidida apenas com considerações epistemológicas; no fundo, ela não consiste apenas em uma disputa epistemológica, e sim metafísica ou teológica (p. 94). Talvez você pense que a humanidade foi criada por Deus à imagem dele — e criada com a tendência natural de enxergar a mão de Deus sobre nós no mundo, de reconhecer que fomos de fato criados e temos obrigações para co nosso Criador, devendo a ele louvor e obediência. Nesse caso, você obviamente não considerará a crença em Deus uma manifestação de qualquer tipo de defeito intelectual. Nem pensará que ela é a manifestação de um poder ou mecanismo de produção de crença que não visa à verdade. Em vez disso, entenderá ser ela a manifestação do mecanismo pelo qual somos colocados em contato com parte da realidade — e de longe a parte mais importante. Nesse aspecto, ela se parece com um produto da percepção sensível, memória ou razão (p. 94-95). Entretanto, você pode pensar que os seres humanos são produtos de forças evolucionárias cegas, que Deus não existe e somos parte do universo sem Deus. Assim estará inclinado a aceitar o tipo de perspectiva com a qual a crença em Deus é uma ilusão de algum tipo, que remonta ao pensamento ilusório, a algum outro mecanismo cognitivo que não visa á verdade (Freud), ou a um tipo de doença ou disfunção do indivíduo ou da sociedade (Marx) (p. 95). A relação de dependência entre a questão da garantia ou racionalidade e a verdade ou falsidade do teísmo leva a uma conclusão bastante interessante. Se a garantia, que tem a crença em Deus, se relaciona desse modo com a verdade dessa crença, então a questão da garantia da crença teísta não independe da questão da verdade da crença teísta. Assim, a questão de jure que por fim se estabelece não é independente da questão de facto; para responder à primeira deve-se responder à segunda. Isto é importante: essa conclusão mostra que a objeção ateológica bem-sucedida (i.e., a objeção à crença teísta bem-sucedida) terá de incidir sobre a verdade do teísmo, e não só sobre sua racionalidade, justificação, respeitabilidade intelectual, ou justificação racional (p. 95-96) O ateólogo que deseja atacar a crença teísta deverá se restringir às objeções — como o argumento do mal, a afirmação da incoerência do teísmo, ou a ideia que existe, de algum outro modo, uma forte evidência contra a crença teísta. Ele não pode mais adotar a seguinte posição: “Ora, eu não sei se a crença teísta é verdadeira — quem poderia saber uma coisa dessas? Mas sei o seguinte: ela é irracional, injustificada, não racionalmente justificada, contrária à razão, intelectualmente irresponsável, ou…”. Inexiste questão ou objeção de jure razoável independente da questão de facto (p. 96). O raciocínio de Plantinga invalida uma enorme quantidade de ateologia contemporânea. Isso porque grande parte dessa ateologia é devotada a objeções de jure — alegando a independência da questão de facto. Segundo o filósofo americano, até hoje não foi colocada nenhuma objeção razoável desse tipo. Alvin Plantinga Crença Cristã MI (2000) Avalizada Agora que temos o modelo A/C perante nós, podemos lidar sumariamente com a queixa F&M… Além da famosa frase “A religião é o ópio do povo”, contudo, Marx não tem muito que dizer acerca da crença religiosa — exceto, claro, vários insultos e zombarias mais ou menos jornalísticos e outras expressões de hostilidade. Irei por isso concentrar-me em Freud, que sustenta não que a origem da crença teísta seja uma disfunção cognitiva, mas que é uma ilusão no sentido técnico (p. 208). Há alguma razão para creditar nessas coisas? Há algum indício a favor da queixa F&M? Por que haveria alguém de acreditar nessa queixa?… O estilo F&M de crítica à crença religiosa (ou outra) costuma ser inadequadamente rechaçado por ser um exemplo da “falácia genética”. A questão, segundo essa reação, é saber se as crenças teístas em causa são verdadeiras; a questão não é saber como alguém começou a tê-las nem qual poderá ser a origem delas. Além disso, (continua essa reação), a questão da origem em geral em nada se relaciona com a questão da veracidade… Por exemplo, podemos saber que Samuel começou a acreditar em uma proposição aceitando o testemunho de alguém que, quanto ao tema da crença em questão, só diz falsidade (p. 209-210). Essa crítica da queixa F&M está equivocada. É verdade que a questão da origem, em geral, em nada se relaciona com a questão da veracidade de uma crença; mas ela pode estar totalmente relacionada com a questão do aval que essa crença tem. O objetor não se dá conta de que não existem somente questões e críticas de facto, mas também de jure; e sua objeção só é cabível se o que estiver em causa for as questões e críticas de facto e nada mais (p. 210). Contudo, será que Freud estava certo? Será que a crença teísta realmente nasce da realização de desejos, não tendo, por isso, aval? Há alguma razão para acreditar nisto? Oferece ele argumentos ou indícios a favor dessa tese ou, no mínimo (para usar a expressão de Mill), outras considerações para determinar o intelecto? Note-se que, para que a queixa F&M constitua uma crítica bem-sucedida, para que efetivamente demonstre que a crença teísta não tem aval, ela deveria satisfazer duas condições. Primeiro, precisa demonstrar que a crença teísta nasce realmente do mecanismo da satisfação de desejos; segundo, precisa demonstrar que a operação particular desse mecanismo não visa à produção de crenças verdadeiras (p. 210-211). Considere-se a primeira condição. Freud não oferece aqui sendo o argumento mais superficial, e vê-se bem por que: não é fácil argumentar a favor dessa ideia. Como se argumentaria que é esse mecanismo — a realização de desejos —, e não qualquer outro, que produz a crença religiosa?… onde estão os indícios (empíricos ou não) a favor da tese de Freud? Uma pesquisa de opinião em nada nos ajudaria. Dificilmente alguém declara acreditar em Deus por causa do processo de realizaçãode desejos; o que as pessoas dizem habitualmente, em vez disso, é que elas foram arrebatadas por essa crença, como que compelidas a adotá- las, ou que a crerá apenas lhes pareceu correta depois de muito pensar e de muita agonia, ou que sempre lhes pareceu claramente verdadeira, ou que subitamente se tornou óbvio que as coisas são realmente desse modo (p. 211). E como Freud ou um de seus seguidores provaria que o mecanismo pelo qual os seres humanos começam a acreditar e Deus (começar a acreditar que a pessoa de Deus existe) não visa à verdade? Este é de fato o coração da questão. Freud não oferece aqui quaisquer argumentos ou razões. Tanto quanto consigo ver, limita-se a pressupor que não há Deus e que a crença teísta é falsa; procura então algum tipo de explicação desse fenômeno comum de crença errada… Como vimos, esse pressuposto é seguro se o teísmo de fato for falso. Mas, nesse caso, a versão de Freud da crítica de jure depende do seu ateísmo, é uma consequência deste (p. 213). Alvin Plantinga Conhecimento e MI (2015) Crença Cristã Naturalmente, quem acredita em Deus, seja cristão, judeu ou muçulmano, provavelmente não aceita a afirmação Freud e Marx de que a crença em Deus não tem garantia. (Só certa variedade de teólogo “liberal", enlouquecido pela sede de novidade e pelo desejo de acomodar a secularidade corrente poderia concordar aqui tom Freud e Marx). De fato, ele verá a situação de outro modo. De acordo tom Paulo, a descrença resulta de uma disfunção, um defeito, uma falha no funcionamento adequado, ou o impedimento das faculdades racionais. A descrença, Paulo afirma, é o resultado do pecados tomo se diz em Romanos 1, ela tem origem no esforço de “suprimir a verdade pela injustiça”… De fato, a descrença também pode ser considerada resultado da realização do desejo — o resultado do desejo de viver no mundo sem Deus, o mundo em que não há ninguém a quem se deva louvor e obediência (p. 99). A mais adequada candidata à crença de jure à fé cristã não se mantém em pé por simples questionamentos sobre suas conclusões. Afirmam a ausência de aval da crença teísta, mas não explicam em momento algum como essa afirmação se sustenta. Obrigado! Que o rigor de Plantinga com as críticas feitas ao cristianismo te inspire a ser igualmente austero contra altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus!
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