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1 Ensaios no real Apresentação Cezar Migliorin 2 3 Cezar Migliorin (org.) Ensaios no real azougue editorial 2010 4 Coordenação editorial Amélia Cohn e Sergio Cohn Capa Carolina Noury Foto Pablo Lobato e Cao Guimarães Equipe Azougue Carolina Noury, Eduardo Coelho, Elisa Ramone, Evelyn Rocha, Filipe Gonçalves, Giselle Andrade, Ingrid Vieira, Karina Lopes, Luana Maria e Marta Lozano Revisão Gabriel Cohn [ 2010 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. Rua Jardim Botânico, 674 sala 605 CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel/fax 55_21_2259-7712 www.azougue.com.br azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E52 Ensaios no real / Cezar Migliorin (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7920-040-3 1. Documentário (Cinema) - Brasil. I. Migliorin, Cezar. 10-3967. CDD: 791.430981 CDU: 791.222.2(81) 12.08.10 23.08.10 020953 5 Documentário recente brasileiro e a política das imagens Cezar Migliorin 9 A representação da política no documentário brasileiro Miguel Pereira 27 Deslocamentos subjetivos e reservas de mundo Ivana Bentes 45 Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna Ismail Xavier 65 Cinema documentário e efeitos de real na arte Andréa França 81 Perguntar (não) ofende Anotações sobre a entrevista: de Glauber Rocha ao documentário brasileiro recente Stella Senra 97 6 A câmera lúcida José Carlos Avellar 123 Na contramão do confessional: O ensaísmo em Santiago, Jogo de cena e Pan-Cinema Permanente Ilana Feldman 149 Ensaios de uma imagem só André Brasil 169 Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo César Guimarães 181 A superfície do cotidiano Uma aproximação a Acidente e Uma encruzilhada aprazível Cláudia Mesquita 199 7 Cotidianos em performance: Estamira encontra as mulheres de Jogo de Cena Mariana Baltar 217 Bibliografia 235 Sobre os autores 247 Agradecimentos 253 8 9 Documentário recente brasileiro e a política das imagens Cezar Migliorin O documentário contemporâneo é o nome de uma multiplicidade, de algo indefinível, de uma imagem que é arte e que não é, que é afetada e transforma o real, que é fundamentalmente aquela imagem que no cinema se liberou de uma identidade. Se digo documentário não sei do que falo, pelo menos não exatamente, mas ao mesmo tempo ele existe e insiste, se transformando a cada filme. O que a princípio pode ser um problema é, na verdade, o grande trunfo do documentário. Lembremos de Agamben quando diz que o Estado – e eu pensaria nos poderes – não sabe agir quando as reivindicações vêm de um lugar sem identidade, ou melhor, os poderes sabem lidar com as reivindicações que partem de um lugar definido. O lugar do documentário é esse lugar de indefinição, inapreensível. Dito de outra maneira: todo poder sabe lidar com o que ele sabe nomear. Todo poder sabe administrar as reivindicações daqueles que ele pode reconhecer como sujeitos de direito, mesmo que seja para dizer que eles não têm direito – ainda, agora, aqui. O documentário hoje é o nome de uma liberdade no cinema. Seria tentador inventar outro nome para essa entrada definitiva na indiscernibilidade desse cinema, porque, convenhamos, o nome documentário não é lá grande coisa, tão impregnado ele está de um regime de imagens em que a representação era o único problema a ser considerado, o que certamente não é o caso da produção contemporânea. O que não significa que o desafio de apre- sentar o outro, de forjar encontros e pensamentos com o desconhecido das vidas e das imagens não seja o que move o melhor desse cinema. * 10 O documentário, urgentemente; esse poderia ser outro título para este livro. Não é pouca coisa o que acontece no país quando identificamos um grande interesse pelo documentário presente nas políticas públicas, nas publicações, nos festivais, entre os jovens e nas múltiplas estéticas que essa produção apresenta. Não é pouca coisa. Mais do que falar sobre o documentário, esse interesse parece se pautar por uma atenção a esses modos de estar no mundo e de inventar mundos e, ao mesmo tempo, compartilhar essas invenções. O documentário não é o que diz ou mostra o que existe, mas o que inventa a existência com o que existe. “Retocar o real com o real”, como dizia Bresson. Atravessa o documentário um interesse pelo humano. O que esse homem comum faz, como aquela mulher ganha a vida, como conta seu passado, como mobiliza a palavra e enfrenta os poderes, como exerce o poder, como afirma sua inteligência, como ocupa os espaços, como formula o futuro ou se livra do presente. O documentário que nos inte- ressa é essa arte no humano. Mas, como arte, não lhe interessam apenas suas possibilidades de apresentar ou escrever os sujeitos, mas também suas capacidades produtivas. A busca de uma maneira de abordar o mundo, de estar em contato com outras vidas e outros espaços nunca esteve tão próxima de um proble- ma estético, de uma reflexão sobre os modos de operar essa aproximação, esses encontros entre cenas. Cena do realizador, cena do filmado, cena do espectador, cada cena dialogando com múltiplas e heterogêneas forças. Os artigos presentes neste livro são ações que enfatizam determinadas vibrações ou apenas as mantêm em movimento. Na escrita e nas escolhas dos filmes, na atenção que dedicam a este ou àquele gesto, a este ou àquele filmado, vão delineando um universo de crenças no documentário e no real, forjando, com os filmes, o mundo em que vivemos. Ao reunirmos artigos com múltiplas abordagens do documentário temos consciência da heterogeneidade deste livro; entretanto, essa aparente fragmentação é fruto, acredito, do momento que vive o documentário 11 brasileiro. Filmes complexos que ensejam abordagens teóricas diver- sas, todas atentas às suas condições de possibilidade e às escrituras ali forjadas. Pensar é também operar por montagem, aproximar eventos, fatos, fragmentos, imagens e sons, possibilidade de uma memória se tornar um acontecimento. Assim, é o pensamento que se esboça em um livro que reúne estudos apoiados em bases teóricas e abordagens distintas. Entretanto, há um norte em todo o livro: trabalhamos com filmes brasileiros recentes. Os textos, evidentemente, são autônomos, escritos por ensaístas e pesquisadores diferentes, mas o contato entre eles não é nada desprezível. Nas próximas páginas o leitor poderá percorrer alguns dos mais importantes conceitos inventados para se trabalhar com o documen- tário contemporâneo; porque assim ele demanda, poderá acompanhar algumas análises minuciosas e artigos mais amplos, imbuídos de um esforço de síntese. Muitos dos mais importantes documentários brasi- leiros aparecem neste livro: Jogo de cena (2008), de Eduardo Coutinho; Estamira (2004), de Marcos Prado; Juízo (2008), de Maria Augusta Ramos; Santiago (2006) e Entreatos (2004), de João Salles; Pancinema permanente (2008) e Preto e branco (2004), de Carlos Nader; Man. Road. River. (2004), de Marcelvs L.; Landscape theory (2003), de Roberto Bellini; Do outro lado do rio (2004), de Lucas Bambozzi, Rua de mão dupla (2003), de Cao Guimarães; A pessoa é para o que nasce (2003), de Roberto Berli- ner; Vocação do poder (2005), de Eduardo Escorel e José Joffily; Utopia e barbárie (2005), de Silvio Tendler; Acidente (2006), de Pablo Lobato e Cao Guimarães; Encruzilhada aprazível (2007), de Ruy Vasconcelos, entre outros. Da mesma forma, esta introdução também opera por montagem. Se aqui dedicarei algumas páginas para falar de capitalismo, modos de subjetivação contemporâneos, formas de poder ou espetacularização do eu, não é para chegar a conclusões fechadas sobre a atual fase do documentário, mas por necessidade e intuição; é preciso aproximar 12 eventos que dizem sobre o real, os sujeitosem que o documentário está interessado e os múltiplos modos de constituição de si no mundo con- temporâneo. Sujeitos comuns, banais, eventualmente espetacularizados em relação com os mais diversos poderes. Arriscaria ainda: uma leitura atenta dos artigos que aqui coloca- mos em contato torna possível um diagnóstico do mundo atual. Sem esse contexto é impossível pensar o documentário contemporâneo, parecem nos dizer, com frequência, estes pensadores. Esse contex- to que fala de poder, mídia, Brasil, subjetividade e capitalismo está constantemente atravessando os filmes. O documentário está colado à política e, por isso, é aqui frequentemente pensado como operador no real. Às vezes é preciso um olhar atento, delicado, para o cotidia- no, pois ali se insinuam as diferenças, uma outra prática de consumo, de relação com as imagens. Dizer, por exemplo, que o capitalismo é essencialmente homogeneizador do desejo é ignorar a micropolítica em que estão engajados os sujeitos nas suas relações cotidianas com as imagens ou com o consumo. No cotidiano se esboça a imaginação sobre si e sobre o outro. Estar com o outro, tornar visível um modo de vida sem fazer com que essa aproximação se confunda com um modo de gestão da vida do outro, um modo de inventariar mais uma excentricidade, eis o desafio do documentário. Como estar com esses outros sem que eles sejam parte de uma unidade que religa suas singularidades de maneira homogeneizante, em torno de linhas consensuais: o louco, o sábio, o pobre talentoso etc. Nesse sentido, veremos como diversos filmes estão atentos às vidas que escaparam à funcionalização. Não se trata apenas da escolha dos personagens, mas de uma abordagem que se distancia do idealismo ou do discurso acabado para estar com os corpos, com os gestos, com as falas, em frequente deriva. Jogo de cena é, provavelmente, o filme mais presente nestas páginas. O filme de Eduardo Coutinho coloca ênfase na dimensão coletiva das falas, 13 algo que já vinha acontecendo em Edifício Master (2002), Santo forte (1999) ou Babilônia 2000 (2000), mas que nesse filme ganha contornos comoventes. O texto é dito por alguém, mas ao mesmo tempo que é dito faz a pessoa desaparecer como indivíduo para ser uma ponte para a própria linguagem. Uma enunciação sem propriedade. Eis a dimensão coletiva da linguagem, uma luz que Coutinho lança sobre seus outros filmes recentes. A fala sai de “um” e se torna “infinita”; do “um” ao “múltiplo” com um corte. Nesse gesto, a fala não pertence a mais ninguém e, ao mesmo tempo, pertence a todo mundo. É o que acontece quando percebemos que duas mulheres contam a mesma história como o mesmo grau de envolvimento. Maneira explícita de destruir as fronteiras entre o individual e o coletivo. E não sei mais quem é Fernanda ou Andréa, Marília ou… A “prisão” de Coutinho aqui ganhou asas e se liberou, nem por isso deixou de ser um dispositivo. Eis uma das mais fortes dimensões políticas dessas imagens. Momento em que o filme nos apresenta o que há de mais singular circulando de maneira desregrada pela comunidade. Mas não são apenas as falas e entrevistas que circulam. Depois de abrir o século com a entrevista pautando o documentário brasileiro, o silêncio é uma reação, como Cláudia Mesquita nos lembra em seu artigo. Ao mesmo tempo, ao incorporar o encontro, operação fundamental no cinema de Jean Rouch nos 1950, o documentário contemporâneo com frequência duvidou dele também. Até que ponto o encontro não é apenas um jogo, um conexionismo desprovido das tensões lentas e a longo prazo? Quanto de desafio pessoal é o que move o encontro? No lugar da presença do outro, da relação e da imaginação, inseparável do estar junto, o encontro não pode se tornar apenas um desafio de perfor- mance? Uma ansiedade em instaurar a transformação já com o filme. Eis o risco, e mais uma tensão: que o documentário não se confunda com o audiovisual que coloca o espectador no lugar daquele que julga se o realizador e os filmados estão se saindo bem diante do risco do encontro, mobilização fundamental dos reality shows. 14 Muitos dos mais relevantes filmes recentes, como sabemos, foram fundados nessa disposição para o encontro. Acompanhamos nos últimos anos uma série de dispositivos, entrevistas e invenções de situações em que não havia uma roteirização possível, em que o docu- mentário se colocava sob o “risco do real”, como escreveu Comolli. Esse risco permitia marcar a diferença e a contraposição entre cena e roteiro. Oposição construída por Comolli para que possamos pensar a partir da presença ou não de um operador externo. Ou seja, a cena é o lugar da negociação das representações em que os sujeitos operam, enquanto o roteiro aparece como uma operação exterior às tensões da cena, colocando o espectador não como um eventual personagem ativo da cena, mas como um consumidor do quadro acabado. No ro- teiro, o sujeito encontra seu papel já desenhado, sabe como deve atuar para que a ordem narrativa funcione, enquanto a cena é política. O sujeito na cena tem o seu papel a definir, ou seja, ele tem a definir sua função na polis, a forma como sua palavra vai operar e transformar. Ora, Comolli escreve, então, em Ver e poder: “O imperativo do ‘como filmar’ (...) coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme.” O filme aqui não é apenas uma sequência de imagens que tem uma determinada duração, isso aparece quando se faz um filme, mas para que haja filme é preciso que a cena se reconstitua, que o espectador seja transportado para a instabilidade do encontro entre sujeitos políticos, operando na polis e não apenas executando um roteiro que servirá para o consumo. Se a copresença dos elementos que compõem uma cena não é necessária e, pelo contrário, deve ser domada, é a cena que se torna inútil. Se a imagem que me chega perdeu toda potência de contágio de outras imagens e outros sujeitos, é a própria cena que tende ao desapareci- mento. A retirada, neste caso, é da política mesmo. O risco do real, trabalhado por Comolli para caracterizar o encon- tro e largamente utilizado por nós, críticos e pesquisadores, não pode, 15 entretanto, se reduzir a um elogio ao conexionismo, como se qualquer corpo a corpo com o real regido pelo acaso trouxesse a dimensão desse risco do real. Da mesma maneira, antes do corpo a corpo, há o risco das imagens. Também aí estão em jogo as indeterminações e descontroles, o imprevisto e o improvável, ou seja, a potência aconte- cimental. O documentário se faz sob o risco das imagens, com ou sem roteiro ou dispositivos, sozinho ou com outros corpos; as imagens têm a potência de se desdobrarem em mundos desconhecidos, irredutíveis à programação. Para o documentarista, um dos riscos dessa política dos encon- tros reside no papel preponderante que o acaso assume na seleção dos encontros no momento em que o realizador está de saída. A saída do realizador, sua impossibilidade de enunciar de fora pode se configurar como uma nova transcendência, a do acaso. No lugar da Voz de Deus, a Voz do Acaso. A saída do realizador do filme se faz com tal intensidade que o filme é tomado não mais por uma individuação coletiva, ou seja, pela copresença criativa de vários sujeitos, mas pelo esvaziamento da cena e das tensões a ela inerentes. Sem o filme, sobram o jogo e as regras. Eis outro risco com que se depara um cinema político baseado no encontro; conexionista. Ou seja, nem a entrevista/conversa, nem o dispositivo, nem o filme de busca traziam em si qualquer garantia e, além disso, serão vistos com desconfiança por aqueles que começam a duvidar do próprio conexionismo como possibilidade política para o documentário. Coloca-se no problema do encontro a questão de até aonde ir, que distância manter em relação ao outro, que garantias prever no dispositi- vo. Volto a Coutinho e seu mais recente filme, Moscou (2009). Uma das mais importantes formasde o documentário mobilizar o espectador é o modo como ele compartilha a possibilidade de ele não se fazer, não se realizar, de o encontro não se efetivar, de o dispositivo não funcionar, de o personagem não “render” – triste expressão. Depois de vários filmes 16 em que o risco da própria existência do filme mobilizava o espectador, mas em que algo se atualizava, a noção mesma de fabulação – tão uti- lizada para pensarmos a obra de Coutinho – implica uma atualização; uma organização da memória e dos eventos que inventam um mundo, uma pessoa, inexistente até então. Em Moscou, a concentração parece se deslocar de maneira incisiva para a individuação, para o coletivo, para o que faz passagem entre as atualizações. A diferença é, antes de tudo, uma vibração que ainda não tomou corpo. O que nos mobiliza nos documentários fundados na fabulação, no desejo de fabulação, nos acontecimentos de linguagem é a passagem entre atualidades que fazem sentir a multiplicidade, ou seja, entre indivíduos que dão a ver as possibi- lidades de criação que os ultrapassa. O outro se propagando no filme, o outro se inventando com o filme e com a memória. Se na fabulação há a passagem entre singularidades que se fazem coletivas na medida em que se transformam como parte de um devir coletivo, entendo que em Moscou há uma concentração no que ainda não achou a singularidade onde se desdobrar. Pois Moscou, e não apenas, parece já ser um desdobramento contemporâneo de uma prática que não para de se colocar à prova. Notas Flanantes (2008), de Clarissa Campolina, Sábado à Noite (2007), de Ivo Lopes, ou Encruzilhada aprazível (2007) de Ruy Vasconcelos, se juntam a Moscou ao forçarem o limite, desconfiarem do dispositivo e mesmo do encontro e praticamente evitarem que algo realmente se atualize. São filmes que se colocam sob o risco da não-atualização, seja dos perso- nagens, dos discursos ou de um espaço. O interesse do documentário está em sustentar o “entre atualizações”, a individuação, a virtualidade, aquilo que ainda não pertence a x ou a y, mas que vibra e está a ponto de se atualizar. Nesses casos, filmes muito estranhos e curiosos, é como se essa vibração fosse o filme todo, na carência de algo que se solidifique, para o qual possamos tranquilamente apontar. São filmes que parecem estar ainda na vibração, sem o encontro (ainda), como se tivéssemos chegado cedo demais. Desde Rouch nos interessamos pelo documentário 17 fundado nessa atualização do ser. O sujeito, no filme, produz uma fala até então desconhecida, constrói uma ideia, transforma sua memória, inventa um corpo. Vemos e nos encantamos com filmados em vias de desaparecimento, não como sujeitos, mas como identidades. Como se a imagem fosse apenas um clarão fugidio de um ser que aparece e de- saparece para que continuemos com tudo que está para além e aquém dele. Eis o lugar em que o espectador se insere. No desequilíbrio e no risco de nada se atualizar. Coutinho e Comolli se aproximam, Coutinho na angústia de não saber se há filme enquanto filma – às vezes nem enquanto monta. Comolli ao dizer que o problema é como fazer para que haja filme. Ora, e se nada se atualizar, e se o real não deixar a sua vibração e potência, e se não vier à superfície aquilo que se atualiza em direção a mil mundos possíveis? Seria essa suspensão radical, esses filmes silenciosos e dispersos, uma reação à inflacionada presença do homem ordinário na imagem, na televisão e no documentário? Homem ordinário esse que tão raramente aparece fora dos polos que o colocam entre exemplo – Estamira (2004), de Marcos Prado – ou puro grito, tão frequente no jornalismo. Ser exemplo ou um grito é sempre uma construção exterior, uma fabricação discursiva e estética; o papel do documentário é recolocar esses sujeitos na política, o que não se faz sem escritura, sem tensão e dissenso – entre as próprias imagens –, sem paciência de todas as partes. O exemplo e o grito (Rancière, 1995) são velhos conhecidos, a política é a diferença; o um qualquer que pode aparecer de qualquer lugar e fazer diferença na polis. O personagem exemplar deve atender às necessidades que não lhe pertencem, o persona- gem que grita, que reclama, pode ter sua demanda aceita, como discurso, mas se enquadra no próprio discurso que avisa que sua demanda não pode ainda ser atendida. Nos dois casos, na excentricidade ou na nulidade, não há comunidade possível, não há conexão, tensão. Pensar o outro como singular é colocá-lo como presente na polis, alguém que não é exemplar, mas faz diferença na comunidade, por vezes simplesmente porque nele 18 passa um mundo que não é igual sem ele – microesteticamente falando. O singular não é o exemplar, nem o que sente diferente do outro ele é; justamente o que faz vibrar – sem isolamento – um mundo na sua dife- rença, eis o interesse da singularidade no cinema documentário. Mas, como vimos, não podemos nos fiar em um elogio incondi- cional do encontro e da conexão entre os múltiplos atores que fazem a cena documental. Conectar, se colocar em relação com o outro, procurar coimplicações, confrontações com o espaço coletivo; ação no lugar da contemplação, a experiência para alargar o saber, os gestos, as atitudes, os conhecimentos, dinamizar as criações e as conexões, possibilitando a vivência de fenômenos inéditos, “o cineasta como conector”. Enfim, são exemplos em que a crítica ao isolamento do artista, que enseja uma territorialização do ser e do mundo, encontra, no elogio à proposição contrária – conexão, “estar junto”, improviso, escuta e experiência com a diferença –, os caminhos para um processo de individuação do espectador e do documentarista que forjam um outro mundo sem isola- mento. Entretanto, com sabemos, é o próprio lugar do capitalismo e de diversos poderes contemporâneos que, ao estabelecer um lugar crítico em relação à disciplina, passa a operar buscando a experiência e a co- nexão. A experiência, a produção subjetiva, o elogio ao conexionismo não estão separados de um paradoxo próprio às formas como a vida e suas potências estéticas, conexionistas e afetivas interessam os mais diversos poderes. Foi a própria expansão do capitalismo que demandou uma ruptura com padrões de conduta normatizados. Como escreveu Vladimir Safatle, com base em uma leitura de O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, “o capitalismo não procura mais impor conteúdos normativos privilegiados, mas socializar o desejo por meio de sua desterritorialização violenta, da fragilização de seus próprios códigos, da flexibilização das identidades que ele mesmo produz”. Se efetivamente estamos em uma sociedade de controle que en- seja transformações radicais na forma como a vida é demandada pelo 19 poderes, não apenas o corpo da disciplina ou a gestão da população na biopolítica, mas uma liberação de potencialidades de invenção sub- jetivas que gerará novos produtos e consumidores capazes de fazer, inventar e reinventar o – e no – capitalismo hedonista, pós-disciplinar, não-normatizador, decodificador dos fluxos sociais e subjetivos, seria o próprio roteiro – essa mão invisível fora das tensões cotidianas e subjetivas, como colocado por Comolli – que não operaria mais nos destinos do capitalismo. Nossas vidas são demandas fora do roteiro, e talvez não exista maior motivo de angústia do que a exigência de sair do roteiro. Se há uma dicotomia entre a cena como o espaço do acon- tecimento – esse encontro entre vários em que algo se produz – e o roteiro como a ordem que carece de acontecimento, despotencializada, não podemos simplesmente aderir a uma tomada de posição sem levar em consideração que é próprio ao capitalismo contemporâneo uma apropriação da invenção subjetiva individual e coletiva; aliás, mais do que uma apropriação: o capitalismo contemporâneo é a atualização de uma potência dos sujeitos e do capital. Potência de invenção (e captura) de mundo sensível. “Uma produção que não se faz sem uma produçãode mundo que é o próprio acontecimento entre os sujeitos e seus processos subjetivos e as forças do capitalismo. Uma empresa não cria um objeto (mercadoria), mas o mundo onde o objeto existe”, escreve Lazzarato ao discutir as “revoluções do capitalismo”. E nós completaríamos: esse mundo é feito com a participação e o engajamento dos sujeitos, não necessariamente privilegiados, pelo funcionamento do capitalismo. Eis seu efeito simbólico. Lazzarato completa afirmando que na sociedade de controle a questão é efetuar os mundos. Podemos dizer, assim, que a guerra econômica do capitalismo é uma guerra sensível, uma disputa que se dá na virtualidade, no acontecimento. É nessa disputa sem fora que o documentário encontra e tensiona o capitalismo. A luta é paradoxal e sem inimigos localizáveis. Toda percepção foucaultiana de poder – em sua dimensão produtiva e micropolítica – 20 parece mais atual do que nunca. No momento em que as disputas se dão no nível das produções subjetivadas, não mais por molde – “seja isso ou aquilo” –, mas por modulação – “seja isso, mas invente algo” –, o documentário é um projeto político e estético inserido no interior desse paradoxo, já que interessado no outro, nas trocas, nas diferenças e no desconhecido. Em algum momento esse fluxo de produção subjetiva, de formas de ser e habitar o mundo, deve ser interrompido pelo capital para que ele possa ser funcionalizado. Fluxo e corte, velocidade e estagnação – essas duplas andam juntas no capitalismo. Mas imaginar e inventar o real é um meio sem fim, definição mesma da política (Agamben, 2002). O documentário não opera interrompendo o fluxo, sua velocidade é infinita e anacrônica. Em seu artigo, André França recoloca a sempre necessária pergunta: por que fazer documentário? Certamente não há uma resposta única, mas se o documentário insiste, urgentemente, é porque o real está sendo inventado, com imaginação e ficção, porque podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam sem fazer diferença no mundo, porque os recortes do que é visível e do que é dizível dependem da nossa força de imaginação e de invenção do real. Porque diante da dor do outro não há retake. * Rouch – sempre ele – percebera pela antropologia algo de que o cinema iria se apropriar de maneira indelével: a realidade é inseparável da imaginação. Ficcionalizar e viver a realidade, sonhar e carregar sacos no porto de Abidjan (Eu, um negro, 1958) são partes de uma mesma vida que o documentário não pode negligenciar. “Fazendo de conta, ficamos mais perto da realidade”, diz Rouch. Fazer de conta nos filmes de Rouch não era apenas um agenciamento para fazer parecer verdadeiro o que era falso, não se trata de encenar para o filme o que na vida acontece coti- 21 dianamente, mas de fazer da cena a possibilidade de um acontecimento, fazer da encenação uma diferença com o já conhecido. Ficcionalizar já é em si mudança, e não mimese realista, o que vemos com toda clareza na mimese irônica do mundo inglês feita pelos Houka, em Gana, no filme Os mestres loucos (1955). Uma prática renovada em documentários recentes como o próprio Jogo de cena, mas também em Avenida Brasília formosa (2009), de Gabriel Mascaro, no brilhante Aquele meu querido mês de agosto (2008), do português Miguel Gomes, e na trilogia do também português Pedro Costa, O quarto de Vanda (2000), Ossos (1997) e Juventude em marcha (2006). Uma das noções que permitem abordar essa relação reflexiva e inventiva com o real no documentário contemporâneo é a de ensaio. Estava claro que o documentário se distanciava de uma cientificidade e de uma possibilidade de pura objetividade em relação ao seus objetos. Estava claro que os realizadores se faziam presentes ao falarem na pri- meira pessoa, ao forjarem montagens de imagens com encadeamentos que passavam pelos desejos, histórias e contextos do filme e do reali- zador. Entretanto, estava claro também que havia nesse lugar reflexivo dos filmes um desejo de outro: outras instituições, outras vidas, outros ritmos, sons e histórias – o teatro, o índio, o cotidiano de uma pequena cidade . O ensaísta estranha e conecta, estranha e observa, estranha e se interroga, sempre no limite do fracasso. André Brasil reflete sobre essa forma ensaio com base em quatro vídeos que transitam entre o documentário e o universo das artes. Em seu artigo, mais do que uma análise das obras ou uma reflexão sobre a forma ensaio, o autor mimetiza a característica que mais lhe interessa nas obras, um certo movimento do pensamento que não cessa de se diferenciar de si mesmo. Utopia política na imanência, como escreveram Deleuze e Guattari: “O pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito.” Nesse sentido, interessam-nos os filmes que não renunciam a um desvendar da história e do outro, mas se propõem a fazê-lo de 22 maneira fluida, incerta, ficcional, esburacada. Seres sem limites claros, sem palavras precisas, mas que precisam de palavras; sem imagens ou espaços precisos, mas que se ensaiam com as imagens. Por vezes é com atores que se chega nas invenções com o real, outras vezes na recepção do acaso ou na insistência dos tempos. No artigo “A câmera lúcida”, José Carlos Avellar escolhe dois filmes paradigmáticos dessa relação entre fabulação das pessoas que viveram a história e atuação de atores que, de maneiras distintas, nos dão a ver ainda outras formas de estar no mundo, além daquela que interpretam, para depois fazê-los dialogar com um filme de ficção, Mutum, de Sandra Kogut. O texto entra, assim, no próprio processo dos filmes. Adorno nos diz que “o ensaio não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório”. E Comolli lembra que “o movimento do mundo não se interrompe para que o documentarista possa lapidar seu sistema de escrita”. O homem ordinário do documentário, por mais banal que seja, não está na rua, à disposição de uma narrativa fechada e bem-acabada. O documentário ensaístico se dispõe ao risco dos movimentos que são próprios às vidas. Movimentos por vezes minimamente perceptíveis, fagulhas de desejo e de tesão, vontades de vida presentes em um gesto, em uma fala confusa – Andarilho (2006), Acidente (2006), As vilas volantes, O verbo contra o vento (2005) Jogo de cena (2008), Do outro lado do rio (2004), Man. Road. River. (2004). Eis a complexidade com a qual o ensaio se permite um contato. Complexidade do pensamento que se aventura no sem-limite das vidas. O complexo não demanda a profundidade, confusão que a busca da objetividade e do pensamento dedutivo arraigou no pensamento com- plexo. A profundidade frequentemente traz a limpeza que subtrai o ser. A complexidade do ensaio é frequentemente de superfície, operando em extensão, por montagem. A montagem: possibilidade de multiplicar e fazer coexistirem velocidades e vetores antagônicos, a velocidade da queda livre que leva Carapiru – Serras da Desordem (2006), de Andréa Tonacci, ao centro 23 do capitalismo que continua a demandar energias arcaicas, à velocidade da flutuação de Carapiru entre línguas que ele desconhece e deriva no consenso do “é bom”. Acordo e desacordo em uma mesma frase/gesto. Disparidade de vetores: do indivíduo e suas profundezas, do índio para o mundo e suas superfícies. A instabilidade dos enunciados do ensaio não se faz em detrimento nem da profundidade, nem da extensão em superfície. Nesses filmes e ensaios que aqui nos interessam, junto às vidas há o próprio trabalho das imagens. São essas também que os documentários põem a trabalho. Mas, quando é que as imagens param de trabalhar? Primeiramente quando ela é tudo o que se pode ver ou dizer sobre um evento, quando ela dá conta de todo dizível, quando ela não tem mais nada a esconder e passa a operar em um tal nível de transparência que nada resta – uma hipertransparência. Essa falta de trabalho aparece de maneirapremente nas imagens mais ligadas a um certo cinismo do capita- lismo, aquele que não esconde mais seus objetivos outrora inconfessáveis. Cinismo que aparece no cerne da democracia liberal contemporânea, em que não há mais nada a ser desmascarado, mais nada a ser denunciado, apenas um acordo consensual entre a lógica capitalista e o poder político. As denúncias de corrupção e manipulação servem antes como forma de exercer a falsa consciência esclarecida (Sloterdijk) da mídia. Como nos lembram Deleuze e Guattari, “no capitalismo, tudo é racional, menos o capital”. Racionalizar o capital é parte da operação mais cínica que envolve as imagens. A publicidade incorporou sua crítica ou o voyeurismo das emissões televisivas que visam a moldar os participantes, como o quadro “Mudança geral”, apresentado no programa Fantástico, da Rede Globo, em 2009. Nestes casos, a adequação absoluta entre o fim e os meios elimina a imagem como trabalho que demanda o espectador, uma vez que tudo o que há a sentir e dizer já está dito na imagem e na sua perfeita adequação; mesmo que o fim seja perverso, nada precisa ser escondido. A imagem para de trabalhar quando, por outro lado, não há mais nada para ver. Quando ela não se liga mais com nada. Quando ela 24 é apenas uma aparição que perdeu o evento. Uma publicidade de um carro que anda a 200 km por hora e que perdeu a poluição e o engarra- famento da Linha Amarela. Uma mãe que perdeu o filho com a queda de um barraco. Seu choro para as câmeras do jornalismo não apresenta qualquer distância em relação ao clichê do que é o barraco cair com a chuva, no Rio de Janeiro ou em Bangladesh. A imagem para de trabalhar quando o grito não se liga com o contexto, só nessa abertura é possível fazer diferença na polis. É só na possibilidade de o grito se conectar a outras imagens e outros eventos que a imagem passa a existir. A democracia liberal, a face administrativa do capitalismo con- temporâneo, nos acostumou à universalidade dos direitos; entretanto, dentro de seus princípios, a presença da voz e das reivindicações dos excluídos e explorados aparece no momento em que estão organizados e como minoria – numericamente falando –, uma minoria que deve ter a paciência e a continuidade das lutas ininterruptas e lentas. Como representações efetivas, são irrelevantes na polis. Pois no documentário que nos interessa, quando se aproxima daquele que não tem uma parte que faça diferença na polis, é de outra democracia que se trata: urgente e estética, opõe resistência nas formas como ocupa e inventa o tempo e o espaço. Imagens e sons operando resistências no nível mesmo da linguagem, resistência às máquinas de apaziguamento político dos con- flitos estéticos operadas, principalmente, pela grande mídia. Compartilhar, urgentemente, um lugar para uma presença estética de outra ordem, que arromba o dizível, que inventa sensíveis e faz o pensamento não caber nele mesmo, eis o que nos parecem fazer as do- bras das imagens – Juízo, Jogo de cena, a reencenação Serras da Desordem, e circulação não individual do texto e da estética – Acidente, Jogo de cena –, a atenção ao tempo e aos pequenos gestos do cotidiano – Encruzilhada aprazível, Man. Road. River. –, as reflexões sobre o poder – Santiago. Nes- sas invenções estéticas reside o documentário como força política que não reivindica nem a indignação do espectador, nem a culpa, mas uma 25 participação com um trabalho que não se faz sem a inadequação entre o narrado e a narração. Fazer as imagens trabalharem, ver duas vezes, dobrar a imagem para que o texto, o evento não sejam mais a história de um indivíduo, mas para que ela passe a ser compartilhada e engaje múltiplas subjetividades em suas diferenças. 26 27 A representação da política no documentário brasileiro Miguel Pereira Política é um termo de definição complexa. Cobre múltiplos significados, dependendo do contexto em que é aplicado. No presente texto, pretende dar conta do que podemos chamar de campo insti- tucional da política. Não se trata do conceito de biopolítica utilizado por Michel Foucault para se referir aos procedimentos do poder en- quanto forma de sujeição dos indivíduos ou sujeitos, utilizados como “máquina de produzir”. Partimos do pressuposto de que a política é a arte e a técnica de um discurso sobre a organização da sociedade. Estamos assim mais próximos do sentido original criado pelos gregos relacionado à polis, isto é, ao espaço da convivência e da troca das experiências humanas. Ao mesmo tempo, o lugar da organização dos espaços públicos como ambientes comuns diretos ou indiretos, por meio de representatividade ou outras formas de legitimação, onde se movem todos os atores de uma sociedade. Também faz parte da política o processo ritualístico e consensuado desses movimentos que podem tomar feições múltiplas e diferenciadas de cultura para cultura. É neste sentido provisório que vamos analisar três documentários brasileiros recentes que tratam exatamente do movimento que constrói a ação política e seu discurso sobre ela. Entreatos, de João Moreira Salles, é um documentário lançado em 2004 nos cinemas brasileiros, que narra os últimos 30 dias da campanha política do então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva. Vocação do poder, de Eduardo Escorel e José Joffily, é também um documentário que acompanha seis candidatos a vereador, durante o processo eleitoral, no município do Rio de Janeiro, em 2004. Utopia 28 e barbárie, de Silvio Tendler, recém-terminado, é um longa-metragem com lançamento previsto para 2009. Seu tema é uma viagem à segunda metade do século XX, focando episódios em que as utopias dos anos 1960 convivem com as barbáries das sociedades do período. Esses três documentários têm em comum a política na sua conceituação mais estrita, isto é, a conquista do poder. Poder e representação fílmica Michel Foucault fala do poder como algo que perpassa todos os meandros da vida humana. Significa dizer, pelo menos para Foucault, que a política faz parte do jogo da vida. Por outro lado, o discurso, aqui entendido em sua acepção ao mesmo tempo ampla e difusa, é a moeda central da dinâmica que sustenta o espaço onde se dão as negociações políticas. Portanto, quer falemos de política no seu sentido estrito como no amplo, uma gama enorme de possibilidades de abordagem desse tema se apresenta para quem se propõe refletir, de um modo minimamente sistemático, sobre esse campo da atividade humana. No caso presente, interessa apenas a representação da política mediada pelo cinema, e, em especial, pelo cinema documentário brasileiro recente. No entanto, antes de chegarmos aos documentários, merece um pequeno exame o conceito-chave de representação que aqui está referido. Como o de política, também a questão da representação se abre a inúmeras significações, a tal ponto que hoje já se fala da crise da representação. Na tradição do termo, representação significa imagem ou ideia. Portanto, intimamente ligada ao conhecimento, entendido com “semelhança do objeto”. Esta tradição vem da filosofia tomista, para a qual a representação deve “conter a semelhança da coisa”. Citando Guilherme de Ockham, Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de filosofia, faz uma espécie de minipercurso do conceito: 29 Guilherme de Ockham distinguia três significações fun- damentais: Representar – dizia – tem vários sentidos. Em primeiro lugar, entende-se por este termo aquilo por meio de que se conhece algo e nesse sentido o conhecimento é representativo, e representar significa ser aquilo por meio de que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar, entende-se por representar o fato de se conhecer alguma coisa, conhecida a qual conhece-se outra coisa; e neste sentido a imagem representa aquilo de que é imagem, no ato da lembrança. Em terceiro lugar, entende-se por representar causar o conhecimento, da maneira como o objeto causa o conhecimento. No primeirosentido, a representação é a ideia no sentido mais geral; no segundo sentido, é a imagem; no terceiro, é o próprio objeto. Estas são, na realidade, todas as significações possíveis do termo: o qual foi tornado novamente significativo pela noção car- tesiana da ideia como “quadro” ou “imagem” da coisa; e foi difundido sobretudo por Leibniz, que considerava toda mônada como uma representação do universo. Representar, portanto, não significa substituir ou igualar, mas de algum modo fazer inteligível o objeto cuja realidade precede a repre- sentação. Para Fernando Gil, “a representação testemunha uma eficácia daquilo que é representado sobre o representante. Mas ela é igualmente o produto da atividade construtiva do sujeito: mesmo a receptividade da sensibilidade se acha submetida a regras”. Isto nos leva à questão da objetividade do conhecimento, levantada por Kant, entre outros pen- sadores. Diz Fernando Gil: 30 Para haver objetividade requer-se uma homogeneidade entre o sujeito e o objeto, que apenas pode assentar sobre a organização da representação pelo sujeito. Mas essa mesma atividade construtiva ameaçará, por outra via, a objetivida- de e a verdade da representação: como pretender, então, que esta se refere ao objeto que supostamente descreve? Essa pergunta nos conduz a inúmeros impasses a respeito da representação. Portanto, não podemos pensar a imagem como um duplo igual do mundo. Assemelha-se a ele, mas não é ele. A representação tem assim um dado fundamental em sua natureza própria. Ela é do âmbito do sujeito e ao mesmo tempo guarda semelhança com o objeto. Se o que vemos na tela é uma representação, é óbvio que a sua construção é o lugar de um sujeito, aquele que se coloca como observador e criador dessas imagens. Temos assim uma operação complexa que começa com o sujeito-realizador, a mediação de uma técnica e de uma equipe, composta de outros sujeitos, em diferentes fases de elaboração, um objeto cons- truído ou não para a câmera, e um outro sujeito, este o espectador, que reconstrói todo o processo complexo com a sua capacidade intelectual e emotiva. Significa dizer que o documentário como representação só se realiza inteiramente ao nos colocarmos no ambiente de um processo que só acontece com a projeção ou exibição da obra. Portanto, dentro de uma fenomenologia ampla, complexa e sempre circunstanciada em relação às diferentes experiências envolvidas nesse processo construtivo. Bill Nichols caracteriza esses passos do mesmo fenômeno com algumas modalidades de representação que ele classifica em expositiva, de observação, interativa e reflexiva. Completa seu quadro estabelecendo o lugar de cada ator envolvido nesse processo do realizador ou espectador, passando pelos diversos sujeitos da representação. Assim, questões como a ética, a política e a ideologia são campos necessariamente presentes em qualquer forma de cinema documentário. 31 No caso específico dos filmes que vamos analisar, a esses dife- rentes filtros acresce ainda o dos sujeitos-objetos dos filmes. São falas e expressões únicas, individuais, dramatizadas ou espontâneas, que também são construídas pelo poder das ideologias, tanto próprias de cada sujeito, quanto expressas por algum tipo de consenso. Não são, porém, coletivas. Este foi certamente um erro histórico de formas políticas que preten- deram ser totalizantes. Não se trata de projetos. Política aqui entendida é mesmo o poder. O que fazer com ele é exatamente o sentido dado ao espaço ocupado pela política, onde o conceito de representação não se reduz à imagem, mas assume a ideia da proporcionalidade, e, portanto, a forma institucional de se realizar o processo democrático da cidadania. Estamos assim diante de um emaranhado desafiador e de extrema complexidade e inteligibilidade. É, portanto, um desafio buscar nos do- cumentários o sentido da representação social que eles captam e jogar sobre ele outras leituras também condicionadas por sujeitos distantes do processo, isto é, aqueles, como eu, que se apropriam dessas repre- sentações e a elas dão um sentido particular. Vocação Quando Eduardo Escorel e José Joffily decidiram investigar o que motiva uma pessoa a optar pela carreira política, tinham saído de uma outra experiência em que a pergunta era mais ou menos a mesma. O chamado de Deus, filme anterior de ambos, focava jovens que decidiram ser padres. Investigavam, portanto, a formação dos futuros sacerdotes católicos, os chamados seminaristas. De certo modo, Vocação do poder também focaliza a formação do político, embora não do ponto de vista intelectual ou doutrinário. O que está em jogo neste filme é o processo eleitoral e, em especial, a campanha eleitoral. O mesmo acontece com Entreatos, filme de João Moreira Salles, que registra a fase final da cam- panha de Lula à presidência da República, onde a construção do político se expressa em sua maturidade e domínio da cena. Em pouquíssimos 32 momentos do filme a atitude do candidato é insegura ou titubeante. A sua imagem é a de um sujeito que domina o espaço de sua ação com extrema familiariedade, talvez por já ter vivido, como derrotado, outras jornadas. A parte relativa à formação política de Lula está em outro filme, Peões, de Eduardo Coutinho, onde as inseguranças pessoais são evidenciadas em certas imagens repetidas na montagem realizada pelo cineasta. Também Utopia e barbárie, de Silvio Tendler, fala da vocação política, neste caso, uma vocação estendida a uma geopolítica mundial. Assim, os três documentários têm a mesma questão como ponto de partida: a política como vocação. O filme de Eduardo Escorel e José Joffily selecionou seis candi- datos a vereador do município do Rio de Janeiro a partir de critérios que procuravam contemplar diversidade de representações partidárias, diferentes áreas geográficas e sociais da cidade e que fossem estreantes em eleições. A escolha recaiu sobre três na faixa etária dos 20 anos, dois na de 30 e uma na de 40, uma mulher e cinco homens. Segundo informações contidas no press release do filme, Antonio Pedro Figueira de Mello era um empresário de 30 anos. Foi coordenador de eventos da subprefeitura da Barra da Tijuca e diretor do Parque Na- cional da Tijuca. Suas propostas para a Câmara de Vereadores incluíam ações voltadas para a melhoria do turismo e da qualidade de vida dos cariocas. Já Carlo Caiado, de 24 anos, começou a atuar na política como assessor do deputado estadual Elder Dantas. De 2001 a 2004, atuou na Subprefeitura da Barra da Tijuca, foi administrador regional do Recreio dos Bandeirantes. Quando era candidato, Caiado estava concluindo o curso de Administração de Empresas na PUC-Rio. André Luiz Filho, de 21 anos, concorreu ao cargo de vereador pelo PMDB. Era o herdeiro político dos pais, a deputada estadual Eliana Ribeiro e o deputado federal André Luiz, que teve o seu mandato cassado depois de encerrada a edição final do filme. André Luiz Filho estudava Direito na PUC-Rio. Márcia Teixeira, de 45 anos, era pastora do projeto Nova Vida, fundado junto com o marido, 33 Ezequiel Teixeira. Realizava trabalhos em várias comunidades do Rio de Janeiro, especialmente, em Irajá. Na época da produção do filme, o projeto tinha mais de 50 igrejas no Brasil, Portugal, Argentina e Estados Unidos. MC Geléia, de 27 anos, compositor de rap e produtor musical. Fundou o Instituto Cidadão Funkeiro, que objetiva a integração social através da música. Morava em Anchieta e concorreu à vereança pelo Partido Verde. Por fim, Felipe Santa Cruz, advogado e mestre em direito pela UFF, era professor universitário. Na faculdade, foi presidente do Centro Acadêmico de Direito e do Diretório Central dos Estudantes. A descrição do material de imprensa traça um perfil sintético dos candidatos à maneira como se apresentam nos programas eleitorais gra- tuitos. À exceção da pastora Márcia, que já passava dos 40, todos eram ainda muito jovens, mas tinham algum tipode experiência com o espaço público. Mesmo o mais novo, André Luiz Filho, tinha uma atuação política compartilhada com os pais, profissionais da política, estando, portanto, habituado com os rituais desse tipo de processo. O filme, no entanto, foi construído a partir de um questionário online onde os candidatos interes- sados em dele participar poderiam responder a 16 perguntas referentes à sua orientação política, partidária e às condições da campanha. Este primeiro questionário, que obteve cerca de 70 respostas, permitiu a iden- tificação de possíveis personagens. Na etapa seguinte foram realizadas 30 entrevistas com câmera digital que, depois de analisadas, resultaram no acompanhamento de 12 candidatos no início da campanha, durante os meses de junho e julho de 2004. Desses 12, dois não quiseram continuar no filme e outros quatro foram eliminados antes da gravação final. As filmagens foram feitas durante 42 dias descontínuos. Como resultado, foram gravadas mais de 89 horas, das quais restaram 110 minutos. É óbvio que muitos filmes diferentes poderiam ser feitos. Proporção bem maior foi o material gravado por João Moreira Sal- les para Entreatos, mais de 240 horas. Diante desse monumental registro, João se interessou apenas pelo que ele chamou de “cenas não públicas 34 de Lula. Lula nos carros, nos hotéis, nos aviões, nos camarins”, isto é, “cenas mais reservadas”. João diz isso em off, logo no início do filme, mas não explica com mais detalhes o porquê da escolha. Simplesmente realiza o filme com este critério básico. Dos poucos discursos regis- trados na versão final do filme está o que poderíamos chamar de a sua “vocação da política”, logo no início do filme. É quando Lula fala para representantes de mais de 25 sindicatos de Osasco e diz: (...) tudo que eu sou não é fruto da minha inteligência, não. É fruto da consciência política da classe trabalhadora bra- sileira. Na medida em que vocês evoluíram politicamente, na medida em que ficaram mais exigentes, tive o privilégio, quem sabe a graça de Deus, de ter aparecido no sindicato e virei o porta-voz de uma ansiedade que existia na classe trabalhadora (Falas tiradas da banda de diálogos do filme). Essa, sem dúvida, foi a formação política de Lula. Suas palavras, no entanto, parecem revelar certa predestinação, certo messianismo. Uma consciência de si como uma pessoa imbuída de uma missão. Não falo da real intenção de Lula, pois só ele pode revelar esse desejo de forma mais explícita. Mas não parece restar dúvida que esse é o pensamento de João Moreira Salles quando seleciona esta fala de Lula logo no início do seu filme. Isto é, Lula fala em nome de... Tem, portanto, um projeto político que envolve o grupo que o fez, ou, em outras palavras, revela a intenção de satisfazer a ansiedade de sua classe. Certamente essa possi- bilidade passa pela chegada ao poder. Vocação política é indiscutivelmente a de Silvio Tendler. Utopia e barbárie é uma espécie de autobiografia espiritual do cineasta. Fala de suas crenças, de sua trajetória, como uma espécie de viagem às ilusões e desilusões experimentadas no decorrer do seu tempo existencial. Seu ponto de vista parte do fora de si, isto é, dos acontecimentos históricos 35 que o marcaram, para se indagar enquanto um ser político que atua no mundo para mudá-lo, ajudar a corrigir seus erros, para buscar soluções, para educar e se educar. Esta dimensão pedagógica é absolutamente intrínseca ao cinema de Silvio Tendler. Ele acredita no poder da política. Explicita em cada detalhe de seu trabalho essa ansiedade de que fala Lula em seu discurso para os sindicalistas de Osasco. Silvio atravessa as fron- teiras geográficas e se liga num mundo em que ainda existem ideias a ser elaboradas e processadas. Se o Vietnã de hoje está globalizado nas marcas de produtos ocidentais, como mostra o filme, não significa que existe uma capitulação ao sentido apenas hedonista da vida. As palavras finais de Apolônio de Carvalho conduzem a um pensamento mais generoso de um futuro que suplante a barbárie. Silvio Tendler é hoje o que sempre foi: um crente na política como modo de transformação do hoje pelo amanhã melhor, republicano. E nisso é didático em sua cinematografia poderosa. Mas é um didático que elabora o conhecimento, que constrói o saber, que articula os discursos dos outros para construir o seu, sempre fundado na esperança de um mundo em mudança para melhor. Espaço e tempo Construções diferenciadas que privilegiam espaços e tempos diversos. Se Entreatos focaliza um personagem que se desloca por inú- meros espaços na dimensão do nacional, Vocação do poder se concentra no município do Rio de Janeiro e registra a trajetória de seis persona- gens, enquanto Utopia e barbárie tem como palco o mundo e grandes personagens da história do século XX. Mas, os três filmes nos propõem aquilo que Tomás Gutiérrez Alea define como “o outro em nós”. Na verdade, os três buscam fora de si o sentido para o “acontecimento” ou os “acontecimentos” que também estão em nós, ou, melhor dizendo, que nos dizem respeito. Assim, da épica ao drama, a construção passa pela emoção e pela razão. Citando Gutiérrez Alea na comparação que faz entre Eisenstein e Brecht: 36 Se de um lado Eisenstein vai “da imagem ao sentimento e do sentimento à ideia”, Brecht dá um passo a mais e adverte-nos que embora o sentimento possa estimular a razão, esta, por outro lado, purifica nossos sentimentos. Pa- radoxalmente, Eisenstein, o mais apaixonado, conduz seu trabalho investigativo para a lógica das emoções, ao passo que Brecht, o mais frio aparentemente e em todo caso o mais rigoroso, deixa-se vencer pela emoção da lógica. Do mesmo modo que se pode dizer, ainda com Gutiérrez Alea, que os dois momentos da relação espetáculo-espectador são de um lado “o pathos, o êxtase, a alienação; e de outro lado o distanciamento, o reco- nhecimento da realidade, a desalienação”, a relação do sujeito-realizador com o seu objeto também passa por este mesmo processo. Isto é, espaço e tempo do pensar e do viver perpassam a experiência que se traduz na realização de um filme, em especial de um documentário em que as negociações são, frequentemente, atravessadas por acasos, imprevistos, descontroles, emoções, enfim, toda uma gama de experiências que hoje já se tornaram, em muitos casos, matéria das narrativas. Quando as imagens não conseguem explicar tudo, a voz em off entra para dar ao espectador um recado organizador. Isso acontece com João Moreira Salles e Silvio Tendler. Mas também os textos ajudam nessa forma de narrar, pois dão ordem, estabelecem conexões, ajudam no raciocínio do espectador. A lógica desse processo passa primeiro pelos realizadores. São de- cisões muitas vezes consensuais, outras casuais, outras ainda ditadas pela necessidade de um certo didatismo. Assim, os três filmes, de um modo ou de outro, se utilizam de estratégias semelhantes, embora busquem estilos próprios ao narrar e deixar-se narrar por seus personagens. O espaço fica diluído entre o lugar do narrador-primeiro que se utiliza dos procedimentos e estratégias inerentes ao aparato e o lugar do aprisionado pela representação de si que nada pode fazer, a não ser ver o resultado 37 final. É curiosa, por exemplo, a fala de João Moreira Salles quando afirma, em off, que Lula em nenhum momento pediu para exercer algum controle sobre o filme. A observação faz sentido, pois talvez não existisse filme caso o candidato fizesse essa exigência. Afinal, não se tratava de um filme publicitário. Lula não era o cliente de João Moreira Salles. Assim, os atores dessas representações estão em posições espa- ciais diferentes e se encontram ou desencontram em tempos iguais. A variável tempo não muda. Foi o que foi no primeiro tempo e é o que é nos tempos seguintes. Encurta apenas em função da narração. Mas é sempre presente, toda vez que a obra é exposta. Atravessa todos os es- paços mapeados pelas imagensdos fatos ou dos objetos e a imaginação, sentimento e razão dos sujeitos últimos, ou seja, dos espectadores. O documentário exerce um poder de ambiguidade talvez maior que a ficção, pois sua construção é reconstruída infinitas vezes. É quase sempre uma obra em aberto, mesmo que conduzida pela mão firme de seu autor. Entreatos, visto hoje, depois da crise vivida pelo governo Lula, da sua aparente superação e da sua significativa popularidade, adquire o sentido de uma história de fadas. Nem parece um filme político. É a história de uma vitória que impactou o país e o mundo, pois Lula teve uma estrondosa votação e vem construindo a figura de um lider mun- dial reconhecido. Um capital de grande poder simbólico que resiste a muitos estragos que ainda poderão aparecer. A opção de João Moreira Salles por se fixar nas cenas menos públicas do candidato revelou-se um instrumento eficaz de observação da atitude humana, dando ao documentário um sentido em que o político não se separa do pessoal, comprovando, portanto, o que Foucault chama de biopolítica. Além disso, seu filme atravessa as conjunturas e revela um personagem vi- torioso, determinado, condutor de sua cena, autônomo. Mesmo em conversas ao pé do ouvido, a imagem que o filme constrói de Lula é de uma pessoa que escolhe da gravata ao tipo de vida que deseja. Trata-se de um personagem que parece realizado. Concretizou o sonho. Fez 38 da política a sua realização pessoal legítima. Mas, diferentemente dos personagens do filme Vocação do poder, Lula ainda está embalado por um sonho utópico. Essa parece ser a crença do filme de João Moreira Salles. Lula torna-se o símbolo de uma nação “imaginada”, para usar a feliz expressão de Benedict Anderson. Neste particular, Entreatos tem mais pontos de contato com Utopia e barbárie do que com Vocação do poder. O que os aproxima é essa visão da possibilidade, ou da utopia, para usar o sentido que lhe dá Apolônio de Carvalho numa das suas eloquentes falas no filme de Silvio Tendler. Aliás, a expressão de feli- cidade estampada no rosto de Lula é muito assemelhada à do veterano militante que não perdeu o encanto pela vida, que já está bem perto do seu fim. Apolônio morreria pouco depois da entrevista que deu a Silvio Tendler. Já os personagens de Vocação do poder repetem uma tradição que teima em persistir na vida social brasileira. Do assistencialismo à imagem pública projetada pela mídia, a política é feita com os mais elementares princípios de um país ainda atado pelo obscurantismo de suas elites. Acrescenta-se a isso o pragmatismo de uma ação voltada para essa ima- gem construída pela expressão de um processo de esquecimento histó- rico. Não existem propostas além da carreira de cada um. Há uma certa dose de aventura inconsistente. Os dois vitoriosos estão articulados com máquinas muito expressivas. Uma religiosa e outra assistencialista. Um terceiro cuja votação foi bem superior à candidata da facção religiosa era também assistencialista. A pastora Márcia ganhou a eleição pela legenda. Mas, de qualquer modo, surge aí um novo fenômeno na política brasileira. O fundamentalismo religioso assumindo uma proposta de poder que não tem limites. A própria candidata fala da presidência da República como uma aspiração, segundo a vontade de Deus. Ora, esse novo político nada tem de novo. Apenas a idade, pois repete as mesmas práticas que há séculos são de uso corrente na política brasileira. Do clientelismo ao patrimonialismo, passando pelo populismo e o assistencialismo, agora 39 associados ao fundamentalismo religioso, Vocação do poder nos dá certo desalento em relação ao que se espera da política em nosso país. Ao mesmo tempo, as expectativas de mudança real parecem desencantar a muitos com os problemas que surgiram a partir de sucessivas crises do governo. Por outro lado, a barbárie está em todos os cantos do mundo. Do Iraque ao Rio de Janeiro, passando por Paris, Londres, Moscou e Nova York, o mundo “civilizado” está longe da civilização. Será que valeria a pena um retorno ao tempo dos projetos e dos sonhos coletivos? Há ainda alguma esperança na vida política do planeta? Esse parece ser o mote do filme de Silvio Tendler. Se de um lado mostra as frustrações dos sonhos acalentados por gerações formadas pelo desastre da Segunda Guerra Mundial e pela Revolução Russa de 1917, por outro se abre para a busca de alternativas que suplantem os conflitos mais próximos de cada sujeito e ator da vida social. Um exemplo de possíveis alternativas está no teatro de integração racial e religiosa testemunhado em Israel e Palestina por personagens do filme de Silvio Tendler. Tempos e espaços vividos por jovens que buscam saídas para a convivência entre os diferentes. Ao contrário do início do filme, que mostra o cinismo com que o presidente Truman anuncia a vitória americana depois de lançar a bomba atômica sobre Hiroshi- ma e Nagasaki, o seu final nos dá um certo alento por registrar ações concretas de solidariedade e sociabilidade positiva entre israelenses e palestinos. Não estamos mais diante das dualidades simplistas e re- dutoras de um mundo polarizado, mas em complexos emaranhados de redes que subsistem aos controles finos ou agressivos do selvagem mundo capitalista. Ao argumento de Truman, que diz que “usamos a bomba para aliviar a agonia da guerra. Para salvar milhares de jovens americanos. Gastamos mais de dois bilhões de dólares na maior aposta científica da história. E vencemos!”, Silvio contrapõe a fala de Eduardo Galeano, que diz: 40 Por mais feitos que estejamos, não estamos terminados. E se não estamos terminados, podemos nos refazer, fazer-nos de novo, nos fazermos de outra maneira para que o mundo seja uma casa de todos, e não um campo de concentração para a maioria de seus habitantes. E para que sejamos capazes de recuperar a visão do outro, do próximo, deste que passa pela rua. Deste homem ou mulher que não conhecemos e que anda por aí. E deixarmos de vê-lo como ameaça e passarmos a vê-lo como uma promessa. A distância entre as duas falas, uma no início e outra no final do filme, abrem e fecham um ciclo da nossa história que Edgar Morin sintetiza com precisão: “Vivemos a incerteza do futuro”, depois de passarmos pelas crises da modernidade com suas crenças na ciência, no progresso, na razão, na democracia. De certo modo, vivemos um tempo caracterizado pelo provisório, pela contínua mutação da ciência, da técnica, dos vírus, dos afetos e dos próprios seres humanos que se imaginam num espaço de fantasia ilimitada e potente. Estaria, então, o poder na natureza de cada um de nós e nos caberia, pois, civilizarmo- nos? Tendo ou não essa crença, como tantas outras que existem por aí, o filme de Silvio Tendler afirma o poder como algo que saiu do âmbito dos poderosos que faliram em suas ambições para o espaço dos indivíduos e suas capacidades de sobrevivência. Voltando ao início do filme, esse lugar é ocupado pela descrição da senhora Matsugawa, uma japonesa sobrevivente de Hiroshima que presenciou a cena de uma jovem mãe carregando o bebê nos braços e pedindo água para ele sem perceber que tinha no colo apenas o seu corpo sem a cabeça. Esse desespero cego é o outro lado da mesma moeda. Sabemos que a barbárie está também em nós. Silvio nos convida a nos percebermos como humanos e não como os seres descartáveis que a violência é capaz de produzir em nós. Os horrores continuam em múltiplas instâncias do cotidiano de todos 41 os lugares. Assim, o discurso de Silvio Tendler, proferido em seu nome próprio, mesmo que apropriando-se do dos outros, assume o espaço intervalar que Dziga Vertov teorizou em seus escritos sobre o cinema mi- litante da Revolução Russa. É uma visão do global e não apenas do local. Essa intuição que percebe o pequeno no grande e o grande no pequeno nos joga nas fendas da vida e nos aproxima com uma nova potência do poder, aquele que se expressa pelo organismo vivoque todos somos. Intervalo Como dizia Dziga Vertov, o intervalo não é apenas um espaço entre uma coisa e outra. Na imagem do cineasta russo, é uma casa de doze paredes, tomadas em diferentes partes do mundo, formando uma “sala de intervalos” que não tem existência real, senão através do filme e de sua montagem. Isto é, tudo se toca, num movimento contínuo. Dizia ele: A matéria prima da arte do movimento não é de maneira alguma o movimento em si mesmo, mas os intervalos, a passagem de um movimento para outro. São eles (os intervalos) que levam a ação até a solução cinética. A orga- nização do movimento é a organização desses elementos, quer dizer, dos intervalos em frases. Em cada frase há um ponto de partida, um apogeu e uma queda (que se manifestam em um grau mais ou menos elevado). A obra se constrói com frases da mesma maneira que cada frase se constrói com intervalos de movimento. Ao conhecer com precisão o cine-poema ou o fragmento, o kinok deve saber inscrevê-lo de maneira exata para poder dar-lhe vida na tela, em condições técnicas favoráveis. Não importa se estes três filmes fazem parte de um só movimen- to ou não. Certamente, são poemas diferentes que têm em comum o 42 desejo da política ou, melhor dizendo, o desejo do poder. Mas, acima de tudo, esses três filmes são construídos também por seus intervalos. Não se trata simplesmente de uma interrupção do movimento, mas, de fato, de sua continuidade. Um discurso entra no outro como se fizessem parte de um único filme. Embora os estilos e formas cinematográficas sejam diversos, o ritmo sociopolítico aparece nesses pontos de ligação ocupados pelas montagens que tematizam as diferenças. Assim, do pragmatismo contemporâneo às relações com um mundo ainda sonhado do abrandamento das diferenças sociais, os três filmes encontram esse lugar construído pelos intervalos da reflexão sobre a política como vo- cação e como ação da mudança possível. De qualquer modo, cabe-nos perguntar se o movimento é uma dessas paredes, para usar a imagem de Vertov, que são construídas nos intervalos da globalização, fazendo- nos crer que o mundo ainda pode ser reconstruído de um modo mais humano e fraterno. 43 44 45 Deslocamentos subjetivos e reservas de mundo Ivana Bentes Morrinho. Uma maquete de 300m2 na favela do Pereirão, no Rio de Janeiro, reproduz, a céu aberto, numa construção impressionante feita de barro, tijolos pintados, material reciclado, fiação, um duplo miniatu- rizado da própria favela. Caos-construção de casas, ruas, miniaturas de carros, postes, objetos, num conjunto impressionante. Uma maquete- miniatura-gigante, e mais: “vivendo” nela, uma população de moradores e visitantes, bonecos feitos de blocos de Lego que se movimentam pela mão de seus criadores. Além da arquitetura impressionante, a vida da favela é recriada, resignificada pelos brinquedos em miniatura, carrinhos, caveirão-Lego, moto-táxi-Lego, contador-de-história Lego (mestre Renato), moleque- Lego, dona-de-casa-Lego, uma escola de samba inteira em Lego, traficante-Lego, policial-Lego, e ainda Lego-artista, Lego-Saci-Pererê, miniaturas de dinossauros de banca de jornal, enfim: um mundo-am- biente que não reproduz simplesmente o estado das coisas, mas é pleno de virtualidades, saído da mais pura e primeira brincadeira de crianças, brincada por Nelcirlan Souza de Oliveira desde 1998, quando tinha 14 anos, no quintal de casa. A brincadeira juntou mais sete garotos que passaram a dar vida à micro-comunidade que nascia no quintal da casa de Nelcirlan, uma brincadeira tão intensa que se tornou a vida mesmo dos meninos, cada um assumindo diferentes personagens/bonecos Legos, com vozes, estilos, atitudes singulares, numa deriva sem fim. A maquete do Morrinho virou atração turística no Pereirão (apareceu no Faustão, viajou para Alemanha, Áustria etc.), e talvez se 46 tornasse só mais uma curiosidade turística (ao lado das esculturas de areia na praia, ou turismo de “experiência” na Rocinha) se o projeto não tivesse evoluído para a TV Morrinho, produção de micro-filmes em que os próprios garotos passaram a documentar as histórias, brin- cadeiras e dramas dos seus bonecos Lego na comunidade.1 Depois da TV Morrinho, veio a Ong Morrinho e dentro dela o projeto Morrinho Exposição, Morrinho Social etc. O fascínio pela maquete/cenário, brincadeira-arte, documentário das vidas/ficções dos bonecos Lego e seus criadores levaram o projeto, em 2006, a participar da 52a. Bienal de Veneza. A favela-maquete trans- plantada e remontada nos jardins da Bienal, na Itália. Tudo isso impressiona quem conhece o projeto, mas a questão que interessa aqui e que queremos pontuar passa pela transmutação ou fusão da vida em linguagem. Como a brincadeira dos meninos da favela, aquilo que era o não-valor, o tempo ocioso, o entre-escola, o intervalo entre os pequenos trabalhos e ocupações, se tornou valor, estética, trabalho-vivo, mobilizando a vida de cada um como um todo. Essa transmutação da vida em linguagem, um ponto de reviravolta nas suas trajetórias, se dá a partir do momento em que as fabulações experimentadas no quintal de casa, em que cada um assume um per- sonagem Lego e lhe injeta tempo, subjetividade, vozes, gestos, passam a ser registradas/ficcionadas pelos próprios meninos, resultando em micro-filmes surpreendentes,2 ficções-documentais ou documentários das fabulações. 1 “No ano de 2001, em uma visita à comunidade para a realização de um documentário sobre a maquete, os diretores Fábio Gavião, Marco Oliveira e Francisco Franca convidaram os garotos para participar do trabalho de captação de imagens.” Fonte: www.tvmorrinho.com 2 A Piscina do Peri. O que acontece quando Peri constrói uma piscina e tem Dicró como vizinho?; Fico assim sem você. Videoclipe da versão remix da música “Fico assim sem você”, com interpretação de Adriana Calcanhotto, inspirado em Romeu e Julieta, de Shakespeare. Baile Funk. Baile funk na maquete do morrinho e na vida área. Acadêmicos do Morrinho parte 1 e 2 MC. Maiquinho, convicto cantor de funk, tem um grande desafio: cantar na escola de samba Acadêmicos do Morrinho; “A Revolta dos Bonecos”. Bonecos-Lego iniciam uma revolta no Morrinho, na tentativa de viajar para a Bienal de Veneza acompanhados de seus autores. Fonte: www.morrinho.com 47 Os vídeos de poucos minutos da TV Morrinho, todos realizados dentro da favela-maquete (Saci no Morrinho, A piscina do Perri, Acadêmicos do Morrinho I e II; A revolta dos bonecos) dissolvem a fronteira entre do- cumentário/ficção, funcionando como autoetnografia, fabulação do cotidiano, ficcionalização do real, jogo/existência. A estética desses microfilmes nos interessa como ponto de partida de um mapeamento e análise, apenas esboçado e inicial, dos documen- tários produzidos fora do ambiente corporativo (dos “profissionais”) vindos das periferias, produzidos por amadores, por não-profissionais, por jovens das escolas livres de cinema e audiovisual, por todo um pre- cariado urbano, em oficinas que se multiplicam em todo o país. Questões que não são exatamente novas, basta olhar para a história do cinema, o fascínio diante da banalidade/singularidade cotidiana no chamado cinema das origens: a vida nas ruas, os transeuntes e curiosos e suas reações diante da câmera, multidões entretidas pelas vitrines, flanando, ou absortas pelo trabalho como nas descrições de Benjamin e Baudelaire. Ou ainda a cidade “fábrica de fatos” de Vertov, e a massa/ sujeito da história de Eisenstein, o cinema verdade e cinema direto, as inquietações de Jean Rouch diante do outro, os personagens sem qua- lidades de Godard, até chegar a algumas questões do moderno cinema brasileiro e ao contexto contemporâneo. Momentos e problemas distintos nos quais não iremos nos deter aqui invocando apenas algumas inquietações recorrentes: a fragilidade conceitual da busca e afirmação das “identidades sociais” e a insuficiência das teorias dasrepresentações sociais para dar conta das singularidades das vidas-linguagens. Não se trata aqui, pois, de fetichizar a produção desses outros sujeitos do discurso, relacionados aos territórios da pobreza, nichos e guetos (e que muitas vezes reproduzem os mesmos clichês e estéticas dominantes). Não se trata também de carimbar essas produções com qualquer tipo de selo de “autenticidade” ou de autoridade, discurso 48 de afirmação de identidades e legitimação de grupos que incorrem no mesmo erro “essencialista” da busca de identidades prontas, mais ou menos valorizadas nas bolsas da cultura e que podem simplesmente produzir novos “clichês” e discursos de verdade. O que surpreende nesses microfilmes da TV Morrinho é uma restituição e transfiguração do “comum”, não simplesmente o “estado das coisas” e a banalidade cotidiana, no seu lirismo e/ou brutalidade, ou a encenação dos discursos midiáticos que contaminam o cinema brasileiro contemporâneo com filmes que muitas vezes são réplicas- maquetes do “senso comum”, duplicações de matrizes sociais gastas e despotencializadas. Se os filmes da TV Morrinho também trazem alguns discursos prontos (e certa infantilidade desconcertante), são de tal forma atraves- sados pelas vidas-linguagens que se expressam ali que vemos emergir qualidades novas, singularidades capazes de potencializar a pobreza dos discursos, a pobreza dos cenários e da realidade, tornados exuberantes na sua fantástica miniaturização, capazes de fazer aparecer a riqueza da pobreza, uma bios tornada estética e linguagem, que transborda e fere de morte os próprios clichês que porventura se instalem ali. A questão interessa para tentarmos abordar e pensar essa produ- ção audiovisual “fora do lugar”, vinda de outros territórios e sujeitos que traz consigo um potencial político-estético ou, poderíamos arriscar, capazes de constituir uma bioestética, que poderíamos tentar definir por uma pergunta: Quais as possibilidades estéticas que essas vidas encerram? Ou, simplesmente, quais as potências e devires dessas existências? Pois o que surpreende nesses vídeos e filmes vindos de um “fora”, não simplesmente das favelas e de seus personagens, mas da favela- maquete que documenta e ficciona a vida, é a capacidade de produção de valores estéticos, estilos, modulações subjetivas, produção do sensível, de espaços nos quais se desenvolvem relações, lutas e produções de poder (biopolíticas). 49 A força desses microfilmes está na tensão que instituem entre esse cenário/maquete, colorido, vital, brutal e as vidas-Lego (bonecos que se movimentam pelas mãos dos meninos, com as suas mãos visíveis e vozes que vem do extracampo. O que surpreende é essa vida-estética, essa bios-linguagem que nasce daí, no confronto entre diferentes dispo- sitivos: a favela-maquete, os personagens-Lego e as vozes, mãos, gestos dos meninos que fabulam a própria vida. A primeira vez que vi esses doc.fábulas, sua singularidade e ambi- guidade me mobilizaram. Por encontrar uma certa falta de medidas, um incomensurável dessa vida-linguagem expressa pelos micro-documen- tários fabulados. Em Saci no Morrinho, de 2007 (realizado para o canal Nickelodeon)3, o Lego de Mestre Renato conta a história de um descon- certante Saci Pererê, deslocado para a favela do Morrinho. Um saci sinistro, com voz cavernosa e cheio de gírias e malandragens, capaz de assustar e dar uma surra completa em um morador do Morrinho que rouba doce de crianças. A infância e a infantilidade dos contos e histórias vão sendo coladas, fundidas com os personagens cotidianos do morro/morrinho. O vídeo começa com uma criança cantarolando pela favela quan- do é abordada por um garoto mais velho (“Aí menor, me dá teu doce, perdeu! Me dá teu doce se não vai levar uns cascudos”) e acaba com uma surra do saci-justiceiro, que ajusta condutas. Folclore brasileiro e folclore urbano se contaminam, fundem, em fábulas amorais e histórias atravessadas pelas imagens do mundo, do cinema e da mídia, como a história da invasão do Morrinho por dinossauros, ao som de vozes estridentes, urros, gritos e confusão. Esse misto de jogos infantis e brincadeiras naïfs atravessadas de crueldade e violência nos gestos, vozes que animam os cenários, objetos, personagens, faz surgir nesses vídeos uma vida que transborda o “estado das coisas”, os clichês sobre a favela, a violência, o tráfico. 3 Saci no Morrinho, de Nelcirlan Souza, José Carlos (Junior), Rodrigo de Maceda. Animação. Livre. Rio de Janeiro/RJ, 2006. 4m. 50 Não se informa nada ali. O registro da fabulação dos narradores (os donos das vozes dos bonecos), em filmagens feitas pelos próprios garotos da TV Morrinho incorporadas na brincadeira (a câmera faz parte do jogo), colocam uma série de tensões em cena. Em A revolta dos bonecos, de 2008, da TV Morrinho e Ong Morri- nho, essas tensões entre real e ficção chegam a um nível sofisticado de metalinguagem, quando os bonecos-Lego descobrem que os meninos que lhe dão voz vão viajar para a Bienal de Veneza sem levá-los. Iniciam uma revolta no Morrinho/maquete, na tentativa de viajar para a Itália acompanhando seus criadores. No meio da encenação de um tiroteio na maquete, com caveirão, BOPE, tiroteios, confusão, ameaças, os bonecos se revoltam e param a cena ao saber que os meninos vão viajar para o exterior sem eles. Param a cena para questionar os estatuto deles de “bonecos/trabalhadores” versus o mundo dos artistas/criadores, o trabalho vivo dos autores das histórias e o trabalho morto dos bonecos que “ficam aqui comendo farinha” en- quanto os meninos viajam. Os bonecos ameaçam com protesto e greve, esvaziam o cenário, criando uma vazio de vida, êxodo e deserção (evadir- se, estratégia biopolítica, esvaziar os lugares de poder): “Se eu não for pra Veneza nós vamos parar, o morrinho vai falir, vai dar caô, colocar na internet e no You Tube, a porrada vai comer adoidada se a gente não for”. Os meninos aparecem inteiros na imagem, entram na história dos Legos e resolvem reconsiderar. Os bonecos Lego “originais” vão para Veneza, e não apenas as suas réplicas novinhas e sem “história”. A cena final: a alegria dos bonecos com malas nas mãos e nas costas, atravessando uma ruela de maquete. No meio de todo os artifícios e brincadeiras cruzam um caminho de formigas reais, saúvas e Legos se cruzam, signos dessas vidas alheias/alheadas, a vida dos objetos, a vida das imagens, que se tornam pulsativas e pulsantes, se tornam verdadei- ramente documentários de uma outra categoria, justamente quando atravessadas pela ficção. 51 A produção da TV Morrinho (bruta, direta) coloca em cena as questões que vamos encontrar em muitos documentários e produções realizadas fora dos ambientes profissionais. São os jogos de linguagem, paixões, afetos, formas de conceber e experimentar fabulações coletivas, outras organizações do sensível e do espaço-tempo. Muitos dessas pro- duções trazem uma ausência de explicações, ausência de referências que nos coloca diante de uma outra forma de pensar o político. Mais do que conhecer as razões que produzem tal ou tal vida, “o confronto direto entre uma vida e o que ela pode” (como coloca Jacques Rancière a propósito dos filmes de Pedro Costa e em especial na sua análise de O quarto de Vanda). Nesses filmes de “quintal”, realizados no território real (o quintal de casa, literalmente), ou nessas “reservas de mundo”, que se tornaram os territórios da pobreza, nichos e guetos, esses lugares, pelas mais diversas razões, não podem ser pensados apenas como o signo mais visível do colapso social, da crise do Estado e da crise da própria racionalidade e planejamento urbanos. Muito menos podem ser reduzidos à doxa dos “espaços partidos”, com “ilhas” de riqueza e funcionalidade de um lado e territórios “apar- tados”, como se fosse possível isolar partes do tecido urbano em guetos incomunicáveis. Essas reservas de mundo, esses territórios heterogêneos,