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A HUMANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE AULA 2 Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL A necessidade de humanizar os serviços de saúde surge da demanda da população por mais respeito dentro das ações de saúde, mas para que o país chegasse nesse momento houve um importante percurso percorrido, que implicou uma mudança de visão da prestação de serviços, mudança de gestão e dos processos de trabalho, inclusive no entendimento do significado de saúde e doença. Neste sentido, criar, divulgar e implantar uma Política Nacional de Humanização vem ao encontro dos processos históricos da luta pelo SUS e seus princípios norteadores. Porém, é bem importante que se reflita que atitudes humanizadoras nos serviços de saúde não dependem apenas de um conjunto de normas, mas da sensibilização dos gestores, profissionais de saúde, comunidades e famílias no intuito de mudar as práticas vigentes. Desse modo, vamos refletir sobre a construção do nosso sistema de saúde e por que precisamos de uma política pública de humanização dos serviços de saúde. TEMA 1 – POR QUE PRECISÁVAMOS DE UMA POLÍTICA DE HUMANIZAÇÃO NA SAÚDE? Para responder a essa pergunta é importante lembrarmos de um tempo em que a medicina não era uma ciência, a enfermagem não era uma profissão e os hospitais não eram lugar de cura, mas sim de morte. Naquele contexto, o objetivo principal dos cuidadores das pessoas doentes era dar conforto e apoio para o difícil momento da morte. Com o desenvolvimento da ciência, a descoberta da microbiologia e posteriormente dos antibióticos, aliada aos interesses econômicos e desenvolvimento da indústria farmacêutica e das diversas tecnologias em saúde, os hospitais deixam de ser lugares para se dar conforto na morte e passam a ser os locais onde se busca a cura, porque se tornam os centros de concentração da tecnologia. Ao mesmo tempo, a formação médica torna-se cada vez mais embasada na ciência, nas pesquisas. O corpo humano é estudado, decifrado e publicado através do surgimento da anatomia, histologia e fisiologia. Em 1901, o Dr. Flexner organizou a formação médica, influenciando até hoje os cursos de medicina e demais cursos de saúde. 3 O que deveria ser muito bom ganhou, porém, um viés negativo. O corpo humano e suas doenças tornaram-se muito mais importantes do que as pessoas que adoeciam. As pessoas passaram a ser traduzidas pelas doenças que tinham e esquecidas como pessoas sofredoras. Os hospitais, focos da formação dos profissionais e concentradores do poder de cura, ficaram cheios de regras, Procedimentos Operacionais Padrão (POP), horários rígidos para visita, tornando-se ambientes em que a dor era ampliada pela rigidez e solidão dos doentes, mas, afinal, todo o sacrifício vale a pena se a cura for a recompensa. Infelizmente, nem todo sofrimento seria seguido de cura, mas nem todos os pacientes eram informados disso, porque, ao entrar num hospital, sobretudo se o paciente era um “indigente”, nem sempre seria informado de todos os procedimentos a que seria submetido. Além dos processos e protocolos, os hospitais das décadas de 70 a 80 atendiam pelo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e havia uma iniquidade muito frequente com relação às internações de crianças. Estas não eram acompanhadas pelos seus pais durante a internação, teriam que ser deixadas aos cuidados da enfermagem. Se a mãe quisesse acompanhar a internação, havia a cobrança ilegal de um valor, como uma internação particular. Esse contexto na saúde brasileira acontecia sem questionamentos da população, porque, afinal, estávamos no regime militar, momento em que ser questionador não era muito seguro. Para mudar essa situação, haveria necessidade de uma nova visão do processo saúde e doença, como também das políticas públicas. Havia necessidade de mudar o sistema de saúde. TEMA 2 – A PROPOSTA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E O SENTIDO DA HUMANIZAÇÃO A criação do SUS, em 1988, resulta da luta por democracia. Havia um anseio pela mudança do sistema político e suas consequências, entre elas a negação dos direitos aos mais pobres da sociedade. É importante lembrarmos que o Inamps era um sistema restrito aos trabalhadores contribuintes do INSS e seus dependentes, não sendo acessível aos demais brasileiros. O movimento pela Reforma Sanitária exigia mudanças fundamentais, como o acesso total e irrestrito a todas as pessoas, sobretudo aqueles que eram 4 os mais necessitados, mudança no sistema de gestão e financiamento e o reconhecimento da saúde como um direito das pessoas e não um produto a ser vendido aos poucos que podem pagar. Havia um movimento semelhante no mundo que se manifestou através da I Conferência Internacional de Saúde, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no ano de 1978 na cidade de Alma Ata, no Cazaquistão, antiga União Soviética. O tema da conferência foi “Saúde para todos no ano 2000”. O tema tinha como objetivo desafiar o mundo a implantar sistemas de saúde mais acessíveis à população, sobretudo através da implementação dos “cuidados primários em saúde” ou “Atenção Primária à Saúde”. No Brasil essa ideia foi discutida amplamente na preparação para a mais mobilizadora das conferências que tivemos, a VIII Conferência Nacional de Saúde. Nela praticamente escreveu-se a legislação do SUS, que foi incluída na íntegra na Constituição de 1988. No texto constitucional destaca-se o direito do cidadão aos serviços de saúde e o dever do estado no provimento desse direito. Em 1991, a regulamentação do SUS aconteceu através da Lei n. 8.080, que deixa claro como o SUS deve se operacionalizar e quais os seus princípios. Porém, havia a necessidade da implementação de um modelo que mudaria a perspectiva de cuidados em saúde no Brasil: A Atenção Primária. TEMA 3 – O MODELO QUE JÁ NASCE HUMANIZADO: A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (APS) O conceito de Atenção Primária diz que são cuidados essenciais baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente fundamentadas e socialmente aceitáveis, universalmente acessíveis na comunidade aos indivíduos e famílias, mediante a sua total participação e a um custo que os países possam suportar em cada etapa do seu desenvolvimento (OMS, 1979). A implantação da APS no Brasil, em 1994, com a Estratégia Saúde da Família, trouxe um novo olhar sobre cuidados humanizados em saúde. O modelo de trabalho foi desenhado para ser realizado dentro de um território definido, com visitas domiciliares aos acamados, ações de educação em saúde na comunidade e um processo de trabalho em equipe. As relações são horizontalizadas dentro da Unidade de Saúde e por isso permitem a discussão de casos e planejamentos de ações compartilhadas. O antigo postinho de saúde, onde se faziam algumas vacinas e alguns curativos, assume a função mais 5 importante dentro da rede de atenção, tornando-se o centro da rede de cuidados, pelo fato de ser o responsável pelo acompanhamento contínuo do paciente. Assim podemos dizer que a APS já nasceu dentro da proposta de humanização. Uma das principais características da APS é oportunidade de formação de vínculos entre a equipe de saúde e as famílias atendidas. Isso se dá devido à longitudinalidade da atenção. Significa que uma mesma equipe vai atender as famílias daquela área por longo tempo. A operacionalidade através do modelo de territorialização, com o cadastramento das famílias que moram naquele espaço, o conhecimento das áreas de risco e dos recursos disponíveis naquela comunidade, embasa e fortalece o trabalho das equipes de saúde. TEMA 4 – A PROPOSTA DA HUMANIZAÇÃO DOS HOSPITAIS Os hospitais eram o centro das reclamações dos pacientes. A tradição das regras herdadas, dos intensos controles, estava comprovadamente ligada ao formato autoritário e hierarquizadoherdado da cultura militar, em que o cidadão não tinha fala nem escuta. Esses processos foram questionados na 11a Conferência Nacional de Saúde no ano 2000, que tinha como tema “Acesso, Qualidade e humanização dos serviços de saúde, com controle social”. Não havia mais como ignorar as inúmeras queixas que passaram a se demonstrar desde a criação das ouvidorias municipais, estaduais e do Ministério da Saúde, por isso em 2001 foi lançado o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar, com o intuito de mudar a cultura dos hospitais, melhorar a relação entre os gestores e funcionários e implementar qualidade à prestação de serviços em saúde. Ao falar-se de qualidade, não há referência exclusiva à qualidade técnica, mas sobretudo à qualidade relacional, humana, com qualidade nas relações. Os principais objetivos dessa política são: Difundir uma nova cultura de humanização na rede hospitalar pública brasileira; Melhorar a qualidade e a eficácia da atenção dispensada aos usuários dos hospitais públicos no Brasil; Capacitar os profissionais dos hospitais para um novo conceito de assistência à saúde que valorize a vida humana e a cidadania; Conceber e implantar novas iniciativas de humanização dos hospitais que venham a beneficiar os usuários e os profissionais de saúde; Fortalecer e articular todas as iniciativas de humanização já existentes na rede hospitalar pública; Estimular a realização de parcerias e intercâmbio de conhecimentos e experiências nesta área; Desenvolver um conjunto de indicadores de resultados e sistema de incentivos ao tratamento humanizado; Modernizar as relações de trabalho no âmbito dos hospitais públicos, tornando as instituições mais harmônicas e solidárias, de modo a 6 recuperar a imagem pública dessas instituições junto à comunidade (Brasil, 2001). Uma das estratégias incluídas na humanização foi a organização de voluntariado dentro dos hospitais, com apoio institucional, dando espaço para que a sociedade participasse ativamente no suporte leigo dentro dos hospitais, acompanhando os pacientes, confortando-os. Outra mudança importante foi o reconhecimento do valor das crenças dos pacientes, permitindo a entrada de religiosos de diversas igrejas ou crenças com mais facilidade e flexibilidade. Programas especiais, como a inclusão da visita de cães, devidamente preparados para esse fim, é algo mais recente, mas certamente demonstra até que ponto essa visão tem se desenvolvido dentro das instituições hospitalares. Além disso, os hospitais têm constituído comissões para apoio das famílias na comunicação de más notícias, além do acompanhamento das ações relacionadas à política de humanização. TEMA 5 – A FORMAÇÃO DAS REDES DE ATENÇÃO A construção de um sistema de saúde em rede significa uma importante mudança na lógica da atenção. No Brasil antes do SUS, além de os hospitais serem os únicos pontos de atenção, eles eram os centralizadores da tecnologia e da formação, portanto atuavam de forma isolada e, desse modo, o paciente também era isolado na rede. Após a alta, nada mais se saberia sobre ele. O modelo aplicado naquele momento tinha um formato fragmentado, sem a previsão da continuidade de cuidados. O advento do SUS e da APS, associando-se à mudança do perfil epidemiológico com o predomínio das doenças crônicas, provocou a necessidade de alteração no modelo de atendimento, não sendo suficiente a atuação isolada do hospital. O paciente crônico precisa de suporte contínuo, necessitando eventualmente de internação, mas sua condução será sobretudo na APS, portanto a formação da rede de atenção traz suporte e segurança a esse paciente, sobretudo para as populações mais vulneráveis porque o paciente portador de doença crônica será o que vai transitar na rede, entre os seus diversos pontos, como a internação hospitalar, centro de especialidade, centros de imagens, ou dentro das outras redes específicas, como a Rede de Urgência e Emergência, Rede de Atenção Psicossocial, Rede Cegonha, entre outras. 7 A Rede significa atenção humanizada no que se relaciona ao planejamento dos serviços de saúde, visão que não fazia parte das práticas de gestão em épocas anteriores. Leva-se em consideração inclusive a capacidade de deslocamento do paciente, ficando o setor público responsável pelo transporte do cidadão se a distância for fora do município ou em casos especiais, como é o caso da terapia renal substitutiva. NA PRÁTICA Certa vez, estava de plantão num Pronto Atendimento de um hospital. No período da tarde atendi e internei uma criancinha, uma menininha de três anos de idade. Eu me lembro quando a mãe disse, preocupada, que tinha que avisar ao marido, mas, disse suspirando: “...a essa hora, ele já deve estar longe, porque saiu de casa de madrugada para carregar o caminhão”. O marido era caminhoneiro e saiu para a sua viagem preocupado porque sabia que no dia anterior a filhinha já não estava bem. A esposa mandou uma mensagem ao marido avisando que no início da tarde a filha havia sido internada. Às 21 horas, eu ouvi um ruído de vozes discutindo na recepção do hospital. Saí do meu consultório e fui ver do que se tratava. Ali estava um homem discutindo já sem paciência com a atendente da recepção, insistindo para entrar no hospital. Eu perguntei para a atendente qual a razão da discussão. O homem interferiu e disse: “Doutora, eu sou caminhoneiro e voltei da minha viagem para ver a minha filhinha que está internada e ELA NÃO QUER DEIXAR EU ENTRAR!!”. A atendente, muito indignada, responde: “NÃO É MAIS O HORÁRIO DE VISITA!!”. Então eu disse para ela: “Você tem razão, não é mais horário de visita, porém ele não é visita. Ele é PAI, e pai não é visita. Pai é simplesmente pai, por isso ele vai entrar e fique tranquila que eu mesma o levo até a filha e assino a autorização para que você se sinta tranquila”. As regras do hospital, por mais que tenham sentido em alguns contextos em razão da necessidade de rotinas técnicas, não podem ser desculpas para afastar as pessoas daqueles a quem amam e não podem desrespeitar os direitos dos pacientes, por esse motivo a humanização tornou-se uma política pública transversal, envolvendo todos os serviços públicos de saúde, destacando as pessoas na sua inteireza, como o maior alvo de todas as ações. 8 FINALIZANDO A tradição de poder e controle dentro dos serviços de saúde, com o olhar voltado para as regras dos serviços, não considerava a singularidade humana, tampouco as necessidades emocionais e afetivas dos pacientes. O modelo de saúde empregado no Brasil até a década de 80 não considerava a equidade, não era voltado para as maiores necessidades das pessoas e não considerava o direito ao acesso da população. Em razão disso, movimentos populares se organizaram para fazer mudanças. O SUS nasce da insatisfação da população com a falta de um modelo de sistema que fosse acessível a todos e nesse aspecto a mudança constitucional sustenta que o SUS deve pautar-se pelo princípio da universalidade, integralidade e equidade. Uma das maiores mudanças no sistema foi a implementação da Atenção Primária à Saúde, através da Estratégia Saúde da Família. A formatação de uma rede de atenção foi o outro grande passo para a estruturação da atenção em saúde, mas nada disso teria sentido se não fosse para atender as pessoas segundo os princípios da humanização. Começando pelos hospitais, que sempre concentraram o maior número de queixas quanto a esse aspecto, foi implantado um programa nacional de humanização da atenção hospitalar, que se demonstrou uma ação muito bem-sucedida e pode ser replicada em todo o país. 9 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Série C. Projetos, Programas e Relatórios, n. 20, Brasília, 2001._____. Portaria n. 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, 2010. DUNCAN, B. B. e col. Medicina Ambulatorial. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. MCWHINNEY, I. R.; FREEMAN, T. Manual de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2010. MENDES, E. V. A construção social da Atenção Primária à Saúde. Brasília: Conass, 2015.
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