Buscar

Técnica Medicina e Ética_092320

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 291 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 291 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 291 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Para Gertrud e Immanuel Kroeker
com amizade velha, mas que nunca envelhece.
H
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
á pelo menos três anos um grupo de pesquisadores
brasileiros assumiu a tarefa de falar a filosofia de Hans
Jonas em língua portuguesa e de fazer ecoar no cenário filosófico
nacional as ideias e as preocupações formuladas por este filósofo
judeu-alemão. A tradução coletiva da presente obra é, por isso,
mais do que um projeto editorial: é o testemunho da factibilidade
e da fertilidade dessa articulação e a prova do interesse conjunto
dos professores aqui envolvidos e de todos aqueles que, de norte
a sul do país, vêm publicando livros, capítulos de livros e artigos
em revistas especializadas, realizando os mais variados eventos,
bem como orientando trabalhos de iniciação científica,
monografias de conclusão de curso, dissertações de mestrado e
teses de doutorado não só a respeito da filosofia jonasiana, como
também dos fecundos diálogos possíveis com seus
interlocutores. Tal dinâmica evoca o êxito da iniciativa, que hoje é
articulada pelo Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF e pelo
grupo de pesquisa Hans Jonas do CNPq, nos quais
pesquisadores de nível nacional e internacional têm a
oportunidade de debater suas interpretações e enriquecer suas
pesquisas.
Hans Jonas é, sem dúvida, um dos nomes mais expressivos
entre os discípulos de Husserl e Heidegger (aos quais acorreu,
em Friburgo, no alto dos seus 18 anos), ao lado de Hannah
Arendt (de quem foi amigo íntimo durante toda a vida), Leo
Strauss, Gerson Scholem e tantos outros. Dos mestres ele
herdou o método filosófico denso dos estudos iniciais sobre o
gnosticismo e da fenomenologia – reinterpretada em suas
próprias mãos, a partir da pergunta concreta sobre a vida. Deles
também, como todo bom discípulo, recebeu a capacidade crítica
capaz de provocar as rupturas necessárias para que uma filosofia
própria seja formulada. No caso de Heidegger, tal ruptura fora
ainda mais decisiva, porque, somadas às diferenças teóricas,
estão as motivações político-ideológicas e as impossibilidades
nascidas do flerte antissemita do mestre, que o discípulo, por
motivos óbvios, nunca conseguiu entender ou desculpar. Sionista
militante, Jonas foi vítima do nazismo, que, além de retirar-lhe e
aos seus, a pátria e a dignidade, arrancou-lhe a mãe, morta num
campo de concentração. Fez-se soldado de uma brigada inglesa
contra o nazismo e na guerra viu o principal: que a morte é o
limite da vida e que o modo moderno de fazer guerra (com uso de
uma tecnologia inédita cujo auge é o assombroso evento da
bomba atômica lançada sobre as cidades japonesas) não só
ameaça a vida em termos individuais, mas também ameaça a
própria vida em seu conjunto. Do campo de batalha, com os livros
de Darwin nas mãos, escreve cartas formativas a sua esposa,
Lore Jonas, as quais seriam o embrião de sua obra O fenômeno
da vida.1 Se a preocupação inicial da primeira fase de seu
pensamento é com o marcante dualismo que passa a caracterizar
a cultura ocidental desde quando as seitas gnósticas vindas do
Oriente passaram a exercer forte e ambígua influência sobre o
cristianismo nascente, depois da guerra, Jonas volta seus
esforços para a formulação de uma filosofia que superasse tal
dualismo na interpretação do que é a vida. Segundo tais
intuições, a dualidade ontológica espírito-matéria interditou a
questão sobre a vida, velando-a sob os monismos materialista e
idealista que fracassaram na explicação do vivente. A
interpretação tradicional teria, segundo Jonas, adentrado em
equívocos de tal forma que a vida mesma teria permanecido
esquecida e incompreendida em ambas as visões.
Ao resgatar filosoficamente o tema da vida, em busca de uma
teoria unificada da unidade psicofísica, apoiado nos dados das
ciências biológicas, o autor passa a apontar os desafios e as
ameaças contemporâneas lançadas pela técnica, diante dos
quais seria preciso formular novos critérios éticos, dado que os
modelos tradicionais já não dariam conta da nova realidade. Ao
tentar romper o obstáculo do dualismo que impede uma
compreensão mais “adequada” do fenômeno da vida, para
estabelecer uma visão a partir da unidade, intersecção e
contiguidade entre espírito e matéria, Jonas parte do horizonte
filosófico da fenomenologia e do âmbito dos estudos biológicos e
suas implicações filosóficas. Com isso, ele abre
“incontestavelmente a via, original, de uma fenomenologia da
vida”, segundo Renaud Barbaras.2 Para Jonas a vida é,
fenomenologicamente falando, um ato relacional marcado pela
imediatez e não uma substância que se apresenta ao sujeito
consciente. Como experiência originária do vivente, a vida é
marcada pela relação com o meio, ou seja, por uma
intersubjetividade radical com o mundo. Tal é a porta aberta pela
fenomenologia até a vida que recusa a percepção objetivante
para afirmar-se como um ato evidente que se afirma a si mesmo.
Ora, na sua relação com a morte e como efetivação de uma
resistência contra a ameaça trazida pela finitude, a vida pertence
a um âmbito de riscos e passa a ser entendida de forma imediata
a partir da experiência da fragilidade: porque pode morrer é que o
vivo se mantém num frágil equilíbrio entre liberdade e
necessidade. Para Jonas, desde as formas mais primitivas, a vida
mantém com o meio uma relação de liberdade precária e de
dependência que é, no primeiro estágio, explicitada pela ideia do
metabolismo e, posteriormente, pela complexificação estrutural,
pela percepção (ou sensação), pela emoção (desejo, afetividade,
medo), pela ação e pela intelecção (imaginação, arte, espírito,
consciência, busca pela verdade e fé). Sendo assim, vivendo e se
abastecendo da matéria, que lhe fornece os nutrientes, a vida
forja a si mesma num gesto de liberdade que expressa tanto a
sua diferença em relação ao meio material, quanto a sua
pertença a ele do ponto de vista do corpo vivo. Assim, a vida não
seria marcada por nenhuma identidade estática, mas por uma
constante mudança na matéria que a constitui e na forma que a
materializa. Vida é sempre vida vivida ou ainda, vivente.
Em sua condição instável, a vida seria marcada pela
necessidade, mas também, e ao mesmo tempo, pela liberdade,
pois, sendo livre, a vida também é frágil, ou melhor, justamente
por ser frágil é que a vida é livre, de tal forma que, segundo Marie
Geneviève Pinsart,3 “a fenomenologia da vida é a história da
liberdade através da evolução dos seres vivos”. Porque ocorre
como fragilidade, precariedade e vulnerabilidade da vida (desde
suas formas mais primitivas até o ser humano), a liberdade pode
ser compreendida, tal como sugere esta autora, como o
fundamento ontológico da interpretação do fenômeno da vida,
sendo que, no exercício dessa liberdade e na instabilidade da
relação com o mundo exterior, o grande desafio da vida é manter
a identidade.
Essa atividade de intercâmbio e interação constitui a abertura do
ser ao mundo, uma abertura perigosa presente tanto no ser
humano quanto nos demais âmbitos do vivo, na forma de
inúmeras possibilidades de realização no mundo. Todas as
formas de vida, por realizarem o intercâmbio metabólico com o
meio, estão submetidas a essa abertura arriscada no espaço e no
tempo. Isso significa que a vida é também uma aventura de riscos
e perigos, porque, parafraseando Hölderlin, onde habita a
liberdade, também cresce o perigo.
Para Jonas, a própria técnica é, ao mesmo tempo, uma
expressão da abertura necessária da vida (especialmente
humana) para o mundo e um risco sem precedentes,
principalmente porque a ela se associa uma dimensão utópica
baseada na ideia de progresso. O diagnóstico de Jonas evidencia
o perigo dessa aposta, cuja magnitude e ambivalência passa a
exigir um “poder sobre o poder”,4 ou seja, uma ética capaz de
forjar uma reflexão sobre a técnica, com o fim de impor-lhe,
quando for o caso, limites voluntários. Porque a vida diz um sim
constante para si mesma, ela é a expressão – ontologicamente
falando – de um dever ser. Por meio do princípio
responsabilidade, Jonas dá contorno à sua propostade uma ética
para a civilização tecnológica, cujo mote central (que soa quase
como um delito, o autor mesmo reconhece) é o fato de que ela se
apoia sobre um diagnóstico do perigo trazido pela tecnologia e
sobre a evidência de que a vida, em si mesma, guarda uma
exigência ética. A vida (o ser) é o fundamento da ética jonasiana
(do dever ser, portanto) e é nela que se apoia o princípio
responsabilidade.
Jonas conta a história da tecnologia como a história de uma
ascensão do poder humano sobre a natureza e sobre si mesmo.
Seriam cinco os estágios dessa elevação da técnica a dado
existencial moderno: o estágio mecânico (tida pelo autor como o
primeiro estágio do desenvolvimento tecnológico); o químico (que
ofereceu a possibilidade de interferir, alterar e redesenhar os
próprios padrões naturais, gerando um novo âmbito de
artificialidade); o estágio da tecnologia elétrica (que ampliou o
âmbito da artificialidade, já que a eletricidade é uma força
manipulável criada pelo homem); da eletrônica (que descarta
definitivamente a ideia de uma imitação da natureza, para
inventar objetos, objetivos e necessidades próprias); e, por último,
o estágio biológico (tida como a última fase e a mais poderosa e
perigosa de todas).
É justamente nesse último estágio que se concentra a obra
Técnica, medicina e ética, apresentada como uma proposta de
aplicação prática do princípio responsabilidade. O tema central da
obra é o fato de que a técnica transformou o homem em seu
objeto. De sujeito da tecnologia, os avanços no campo geral da
medicina e da moderna biotecnologia, fizeram do homem um
objeto, ou seja, uma espécie de artefato. Quais as consequências
disso no campo ético e quais as novas exigências e obrigações
daí advindas? Até onde podem ir os experimentos com seres
humanos? O que restará ainda da imagem do homem caso a
técnica melhorativa realize seu projeto utópico? Em que consiste
o fato, ontológica e eticamente falando, de que o homem tenha se
habilitado a “refabricar inventivamente”5 a si mesmo? Eis alguns
dos problemas enfrentados por Jonas nessa obra que, em seu
conjunto, foi publicada em 1985, mas é formada por onze artigos
que foram escritos desde 1969 (alguns em inglês, outros em
alemão), além de duas “Conversas públicas”6 sobre O princípio
responsabilidade. Neles, o autor enfrenta problemas tão graves e
urgentes quanto polêmicos, tendo inspirado decididamente, com
suas reflexões, um amplo cenário de debates e legislações da
bioética, para a qual a proposta de Jonas apresenta-se
absolutamente fértil quanto ao fornecimento de fundamentos
teóricos e filosóficos.
O interesse de Jonas pela temática remonta a 1967. Segundo
suas Memórias,7 nessa época, por ocasião de um convite da
American Academy of Arts and Sciences, de Boston, para uma
conferência sobre o tema das Reflexões filosóficas sobre os
experimentos com sujeitos humanos. Sob indicação do famoso
jurista de Harvard, Paul Freund, a partir desse momento Jonas
teria se dado conta de que a sua reflexão ética “deveria estar em
conexão com o desenvolvimento da técnica moderna. Publicada
na revista Daedalus, essa conferência deu a Jonas, segundo as
suas palavras, uma “inesperada fama pública”. Alguns anos mais
tarde, a conferência foi pronunciada em Heidelberg, num
congresso médico que comprovou que Jonas precisava
ultrapassar as reflexões ontológicas genéricas de sua obra
anterior (O fenômeno da vida) para chegar a uma ética prática
concreta.
O texto, assim, é formado por vários ensaios, sendo que o mais
antigo data de 1969, justamente o supracitado artigo, no qual o
autor trata dos experimentos com seres humanos. Esse artigo foi
escrito cinco anos depois da Associação Médica Mundial ter
formulado a Declaração de Helsinque, considerado o primeiro
documento que visava estabelecer parâmetros para o uso de
seres humanos em pesquisas científicas. Jonas, como membro
do respeitado Hastings Center8, aborda esse tema no artigo
Reflexões filosóficas sobre experimentos com sujeitos humanos,
que forma o capítulo 6 do presente livro.
Os capítulos 1 e 2, por sua vez, datam de 1979 e de 1982,
respectivamente e, juntamente com o capítulo 3 (de 1983)
representam uma reflexão contundente sobre a técnica e os
desafios éticos que ela guarda. O capítulo 4 (de 1983) e 5
(primeira versão de 1976) formam, juntos, a base da reflexão
sobre a liberdade e a responsabilidade da investigação médica.
O capítulo 7, Arte médica e responsabilidade humana, teve sua
primeira versão publicada em 1983. O capítulo 8 é formado pelo
ensaio intitulado Façamos um clone humano: sobre a eugenia,
escrito originalmente em inglês no ano de 1974, sob o título de
Biological Engineering – A Preview, antes mesmo da publicação
d’O princípio responsabilidade. O capítulo 9 (Micróbios, gametas
e zigotos: ainda sobre o novo papel criador do ser humano), por
sua vez, foi escrito em 1984 como resultado da conferência
apresentada por Jonas em 29 de maio de 1984, em
Frankfurt/Main, no centenário da divisão “Tharma” de Hoechst A.
G. Esse texto recebeu ainda mais uma publicação em inglês, com
o título de Ethics and Biogenetic Art (Social Research, vol. 52,
1985, p. 491-504), sendo reeditado com o mesmo título num
volume posterior da mesma revista (cf. Social Research, vol. 71,
n° 3, Fall 2004, p. 569-582). O capítulo 10 (Morte cerebral e
banco de órgãos humanos) teve uma versão inicial em 1969 e
recupera um debate entre professores de Harvard em torno da
definição da morte, contra a qual Jonas se opôs, o que o levou a
ser convidado a acompanhar de perto os transplantes realizados
pelos médicos do Medical Center da Universidade da Califórnia.
O artigo teve outras duas versões (uma de 1974 e outra de 1980),
nas quais Jonas mantém seu receio quanto aos abusos que essa
nova definição sobre a morte poderia evocar. O último ensaio, de
número 11 (Direito de morrer) enfrenta o tema da eutanásia e foi
publicado originariamente em inglês no ano de 1978 e em
alemão, em 1984.
Por sua importância filosófica, ética, prática e política, o livro que
o leitor tem em mãos interessa aos filósofos, pesquisadores e
estudantes da filosofia, tanto quanto aos profissionais da área da
saúde, cujos desafios éticos crescem na mesma medida dos
avanços tecnológicos. Mas essa é uma obra ainda maior. Seu
interesse alcança todos aqueles cidadãos preocupados em
entender e sopesar os verdadeiros custos e os reais benefícios
que se escondem sob as promessas utópicas e ao mesmo tempo
apocalípticas do novo poder técnico. Se o entusiasmo dessas
promessas é equivalente à medida da crise na própria imagem do
homem que elas pretendem melhorar, alterar ou até mesmo
recriar, esse é um sinal evidente da necessidade (que é, no limite,
também uma obrigação) de que a nossa geração não somente
desconfie dos êxitos tecnológicos, mas reflita sobre os perigos
que os acompanham. No campo ético, não temos mais direito à
ignorância. Sob pena de que sacrifiquemos parte da humanidade
– justamente aquela que emite os mais fortes apelos à nossa
responsabilidade. Ali onde o homem sofre, no leito de um hospital
ou na hora mais sombria em que sua morte se aproxima, é onde
cresce a obrigação dos demais membros da sociedade humana,
principalmente dos profissionais responsáveis pelo seu cuidado.
Qualquer promessa, bem como qualquer dissentimento ou
negação de esperanças, nesse caso, são decisivos e devem ser
tratados com a maior das responsabilidades.
Ciente da vocação da filosofia em fornecer pistas para que os
problemas da vida humana sejam enfrentados, Jonas retoma com
fertilidade a relação, quase sempre conflituosa e sempre
promissora, entre filosofia e ciência. Os resultados estão
expressos já na ordem das palavras que dão título ao livro: uma
reflexão sobre a técnica (os dois primeiros capítulos são,
provavelmente, os textos mais diretos e objetivos de Jonas sobre
esse tema, vindo a constituir a base do seu programa para uma
filosofia da técnica), os seus impactos sobre a medicina e as suas
consequências éticas. Em cada um dos capítulos que formam
essa obra,o leitor encontrará um autor lúcido, sem afetações
literárias ou teóricas, humano, modesto e engajado com os
grandes desafios de sua época, que também é a nossa. Tudo
isso faz da obra de Jonas não só um documento atual, como
também atualizado em suas principais intuições.
Essa é a principal razão para que alguns colegas que formam o
GT Hans Jonas tenham reunido esforços para verter ao público
de língua portuguesa uma obra ao mesmo tempo tão rica e tão
aberta – detentora daquela espécie de inacabamento que soa
como um convite para que os seus leitores e interessados sejam
seus continuadores. Eis o nosso serviço.
J����� O�������, coordenação do GT Hans Jonas da ANPOF
Curitiba, primavera de 2013.
O
PREFÁCIO
princípio responsabilidade (1979) prometia uma parte apli 
cada na qual se ilustraria com exemplos selecionados o novo
tipo de questões e obrigações éticas que a caixa de Pandora da
tecnologia nos presenteia junto com seus dons e na qual, na
medida do possível, se facilitaria a forma de responder
corretamente a elas. Esse passo do geral para o particular e da
teoria para as proximidades da prática é o que se intenta dar nos
artigos reunidos aqui. Pretendem, portanto, começar com a
“casuística”, cujo inexplorado território da responsabilidade
tecnológica exige ainda mais do que a moral e o direito em geral
pedem no terreno já conhecido. Desde que extremo do amplo
espectro tecnológico se pode propor um começo assim? Sem
dúvida o melhor será fazê-lo a partir daquilo que é mais próximo a
nós, ali onde a técnica tem diretamente por objeto o próprio
homem e onde o conhecimento de nós mesmos, a ideia de nosso
bem e de nosso mal, tem uma responsabilidade direta, ou seja:
no âmbito da biologia humana e da medicina. Aqui, entre homens
a sós consigo mesmos, é onde a ética se encontra em seu
terreno e necessita pouco conhecimento do grande mundo, do
equilíbrio local e global da biosfera e do efeito remoto de suas
perturbações, para encontrar seu caminho. O que é desde já
visível aqui, inclusive imaginável, pode ser tratado desde já, à luz
da nossa imagem do homem, com alguma certeza tanto teórica
quanto prescritiva, e o achado pode ser seguido sem dificuldade,
porque nesse terreno nenhuma pressão externa (exceto no caso
do problema da população) empurra os conhecimentos à ação.
Nesse horizonte, pois, têm seu ponto de partida as seguintes
investigações.
Sem dúvida, dada a escala da ameaça coletiva à qual a
responsabilidade tem que fazer frente hoje em dia, podem existir
coisas de maior e mais global urgência que as afinadas questões,
em parte muito pessoais, da humanidade médica e genético-
técnica. Pensamos, antes de tudo, na dura ameaça do holocausto
atômico e, logo, na ameaça sutil da destruição ambiental. Mas
sobre elas – sobre o suicídio da humanidade – a ética não tem
nada a dizer, salvo um incondicional não em torno do qual todos
estão de acordo, inclusive sem recorrer à filosofia. A ética e a
metafísica fizeram sua entrada esotérica a respeito ao
demonstrar por que ele não tem que ser incondicional, com um
motivo válido na incondicional obrigação da humanidade em
manter sua própria existência (fizemos uma tentativa a respeito
disso n’O princípio responsabilidade). Como evitar a loucura – o
pecado literalmente mortal – é coisa da política, onde, como se
sabe, desaparece a unanimidade. A teoria ética tem tanto menos
que fazer aqui quanto em relação à forma radical de eliminar o
perigo, a total erradicação das armas nucleares – a diferença de
outras erradicações ponderáveis de formas de poder
tecnicamente perigosas –, não faz dano a ninguém, não impõe
sacrifício algum do desfrute das bênçãos e maldições da
tecnologia (à qual tais erradicações não afetam), cujo consumo e
produtividade a serviço do bem-estar aumenta ainda mais ao
poupar o gasto em potencial de aniquilação: de forma que não
surge a questão, sem dúvida ética, de qual sacrifício é exigível
conforme a uma justa partilha das cargas. Fora do fragor da
política, para a razão e os costumes, tudo está claro como a luz
do dia e não há lugar para sopesar direitos ou bens em conflito.
Por isso, esse livro não fala dela.
Não é tão claro o caso de outra ameaça apocalíptica da técnica
moderna, a lenta destruição do meio ambiente, que pode terminar
em uma não menor desolação e em sofrimentos quem sabe até
maiores que uma repentina catástrofe. Sem dúvida o não à ruína
final claramente visível será tão unânime como no caso da morte
atômica. Mas o processo que conduz a ela avança por muitos
caminhos e em mil pequenos passos, em toda parte cheio de
desconhecimento em relação aos valores críticos; isto é, há
questões abertas no que diz respeito até onde se pode chegar
aqui ou ali; é um processo que não depende de dramáticas
decisões, mas da banal cotidianidade e do uso de recursos em si
mesmos inocentes, que favorecem a vida, que se tornaram
necessários: toda a incansável tecnologia de nossa produção de
bens, que alimenta o consumo mundial. Aqui já não se pode falar
de prevenção indolor, como no caso dos arsenais de armas que
esperam em silêncio, e se perde a unanimidade do não com
respeito à ameaça abstrata para o futuro: a da ciência, porque é
defeituosa; a da vontade, porque o distante que talvez exige um
sacrifício não afeta as restrições da atual certeza. Inclusive o sim
ético à obrigação geral diverge de si mesmo, porque a divisão
desigual do sacrifício global exigido ofende a própria moral: quem
vai defender proteção ambiental a populações famintas?
Para o filósofo é muito cedo para penetrar nessa espessura,
para ensaiar a casuística. Ainda não existe a ciência ambiental
integral que seria o pressuposto para isso. Pelo menos as
ciências competentes (tanto a da natureza quanto a da economia)
devem começar por elaborar a partir da rede de causalidades as
opções práticas sobre as quais aplicar concretamente a análise
ética, e isso só está em seus começos. Ainda não podemos
confundir o telescópio com a lupa. Entretanto, até que se deem
as condições cognitivas prévias da concretização, o respeito e a
cautela das que falava n’O princípio responsabilidade e a
consciência do perigo, devem nos distanciar, em sentido mais
geral, da perniciosa rapidez e fazer crescer em nós um espírito de
nova abstenção. Por isso – pelo contrário da “supersimplicidade”
do apocalipse nuclear –, este livro também guarda silêncio acerca
da ética ambiental, onde se experimenta com paradigmas da
prática.
Esses paradigmas são também os que se inferem no terreno da
biologia humana. Por mais que também esta, através do caminho
que passa pelo problema da população, penetra na ecologia e,
nesse sentido, como fator no destino do meio ambiente e função
dele, é também assunto de cifras e magnitudes causais objetivas
– uma peça de ciência natural biosférica, pois –, representa,
contudo, em si mesma, uma dimensão da moralidade na qual
questões essencialmente qualitativas, não quantitativas, de tipo
puramente humano, exigem nossa resposta humana e valorativa.
Para isso devemos escutar o nosso interior. Mas as questões que
requerem aqui nossa resposta surgem da nova tecnologia,
própria desse âmbito que pode ser incluído no conceito amplo de
medicina. Sem dúvida, a medicina foi a mais antiga reunião de
ciência e arte, pensada essencialmente – diferentemente da
técnica saqueadora do domínio do meio ambiente – para o bem
de seu objeto. Com a meta inequívoca da luta contra a
enfermidade, a cura e o alívio, manteve-se até agora eticamente
inquestionável e exposta tão só à dúvida de sua capacidade em
cada momento. Mas hoje, com meios de poder inteiramente
novos – sua cota de ganância no progresso científico-técnico
geral – pode propor a si mesma objetivos que escapam a essa
inquestionável beneficência; inclusive pode perseguir seus fins
tradicionais com métodos que despertam a dúvida ética. As
“factibilidades” que oferecem, sobretudo os mais inovadores e
mais ambiciosos desses objetivos e caminhos, e que afetam
especialmente o princípio e o final de nossa existência, o nosso
nascimentoe a nossa morte, tocam questões últimas da nossa
existência humana: o conceito de bonum humanum, o sentido da
vida e da morte, a dignidade da pessoa, a integridade da imagem
do homem (em termos religiosos: a imago dei). Essas são
autênticas perguntas para o filósofo, que pode abordá-las
conforme os critérios do ser, livre, portanto, do hieroglífico das
cifras e das intrincadas causalidades mundiais que governam em
linhas gerais o efeito de nossa ação. Aqui, onde o paradigma
individual já deve dizer toda a sua verdade, o filósofo pode fazer
com que se produza experimentalmente o encontro da ética com
a técnica no exemplo que eleja e com seus próprios recursos, e
não precisa esperar pela ciência elaborada da enfermidade global
e sua possível cura. Aqui também, como já dissemos, o
seguimento do critério ético obtido não se torna, por sua vez, um
problema.
Até aqui nos referimos à especial temática que tratamos de
precisar nas aplicações do princípio responsabilidade a “casos”
concretos no campo tecnológico (capítulos 6-11). Considerações
mais gerais sobre o tema “ciência, técnica e ética”, que também
situem no quadro sistemático quem não leu a obra anterior,
demarcam as discussões específicas. Essas surgiram por
variados motivos ao longo de muitos anos: o artigo mais antigo é
do ano de 1968. Sem dúvida, em sua atual publicação, na maioria
dos casos sem modificações, incluem muitas coisas que,
entretanto, dado o rápido crescimento da bibliografia, foram ditas
também por outros. É um sinal alentador que a discussão pública
esteja em marcha em muitos idiomas. Nela, as diferenças de
opinião são tão importantes quanto as concordâncias. Será
compreendido, por minha idade, que tenha de falhar na hora de
fazer justiça ao estado atual dos conhecimentos mediante as
correspondentes indicações. O exposto reproduz, ainda hoje – de
forma experimental, como é adequado ao caso – minha opinião
acerca das coisas.
Hans Jonas
New Rochelle, New York, USA,
abril de 1985
1 Em português, uma versão da obra foi traduzida como O princípio vida, ensaios de uma filosofia da
biologia. A primeira versão, entretanto, que se encontra depositada nos arquivos da Universidade de
Constança, na Alemanha, dá conta de que Jonas tinha inicialmente intitulado a obra de Organism and
Freedom e muito provavelmente por sugestão de seu editor, acabou optando por Phenomenon of life.
Como se nota facilmente pela leitura de tais manuscritos, não apenas o título foi alterado, mas também a
própria organização do texto. A versão alemã foi publicada posteriormente, sob o título de Organismus und
Freiheit. No prefácio de 1972, Jonas explica que a versão em alemão foi traduzida por ele e por Dr.
Dockhorn (introdução e capítulos 3, 6, 7 e 8) e que os textos nos quais trabalhou sofreram algumas
atualizações e revisões estilísticas. Além disso, ele repara que a versão alemã tem duas exceções em
relação à inglesa: o capítulo 4 não figurava naquela; e o ensaio de número 10 (sobre Heidegger e a
teologia) não fora incluído na versão alemã, porque o texto já havia sido publicado na língua materna do
autor, em 1967.
2 Cf. Renaud BARBARAS, Vie et intentionnalité, Recherches phénomenologiques, Paris, Vrin, 2003, p.
43 (Col. Problèmes et controverses).
3 Cf. Marie-Geneviève PINSART, Jonas et la liberté, Dimensions théologiques, ontologiques, éthiques et
politiques, Paris, Libraire philosophique J. Vrin, 2002, p. 79.
4 Cf. Hans JONAS, Técnica, Medicina e ética, p. 48.
5 Cf. Hans JONAS, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p.
57.
6 A primeira refere-se a uma mesa-redonda realizada por ocasião de um simpósio realizado no Hotel
Schlöss Fuschl, na Áustria, entre 7 e 10 de maio de 1981, na qual Jonas debateu com eminentes
interlocutores de áreas tão diversas como a ciência e a filosofia política, a teologia, o direito penal e a
jurisprudência, a física, a bioquímica e a tecnologia de materiais. A segunda dessas “Conversas” é uma
entrevista concedida ao periódico Nachrichten aus Chemie, Technik und Laboratorium, em 1981.
7 Hans JONAS, Memorias, Madri, 2005, p. 341.
8 Jonas fora nomeado sócio-fundador desse importante centro de pesquisas médicas norte-americano
que criou, em 1969, o Instituto de Bioética, o qual desempenhou um importante papel na atividade pública
do autor a partir de então. A atuação de Jonas foi decisiva a partir de então no campo político e mesmo
legal e seu interesse pelos problemas éticos ligados à técnica moderna, principalmente no campo da
medicina. A fama do Hastings Center não tardou e sua influência alcançou comissões do Congresso de
Washington. Atualmente o Hastings Center continua atuante e apresenta-se como um instituto
independente, não partidário e sem fins lucrativos de pesquisa sobre bioética e tem como missão
desenvolver reflexões sobre fundamentos éticos na área de saúde, medicina e meio ambiente, estudando
como elas afetam indivíduos, comunidades e sociedades.
D
Capítulo 1
POR QUE A TÉCNICA MODERNA É OBJETO DA
FILOSOFIA
ado que hoje em dia a técnica avança sobre quase tudo o
que diz respeito aos homens – vida e morte, pensamento e
sentimento, ação e padecimento, ambiente e coisas, desejos e
destino, presente e futuro – em resumo, dado que ela se
converteu em um problema tanto central quanto premente de
toda a existência humana sobre a terra, já é um assunto de
filosofia e é preciso que exista alguma coisa como uma filosofia
da tecnologia. Esta é bastante incipiente e é preciso que se
trabalhe ainda sobre ela. Para isso, é preciso começar analisando
o fenômeno de forma descritiva e, a partir dele, obter
analiticamente os aspectos parciais de dignidade filosófica com
os que há de se continuar trabalhando na interpretação de
conjunto. O que se segue pretende começar a fazê-lo
perguntando pela especificidade desta nova tecnologia que, de
imediato, parece dotada de atributos tão extremos como a
promessa utópica e a promessa apocalíptica, com uma
qualidade, em todo caso, quase escatológica.
Nesse ponto, resulta útil para nosso objetivo a velha distinção
entre “forma” e “conteúdo”, que nos permite distinguir como
principais os dois temas seguintes:
1. A dinâmica formal da tecnologia como uma empresa coletiva
continuada que avança conforme “leis de movimento” próprias.
2. O conteúdo substancial da tecnologia, o qual consiste nas
coisas que aporta para o uso humano, o patrimônio e os
poderes que confere, os novos objetivos que abre ou dita e as
próprias novas formas de atuação e conduta humanas.
O primeiro tema, formal, contempla a tecnologia como o
conjunto abstrato de um movimento; o segundo, de conteúdo, seu
múltiplo uso concreto e seu efeito sobre o nosso mundo e nossa
vida. O acesso formal quer recolher as “condições do processo”,
permanentes, com as quais a moderna tecnologia abre passagem
para “si” – mediante nossa ação, naturalmente – até a novidade
seguinte e superadora de cada momento. O acesso material quer
examinar as formas da novidade mesma, tentar classificá-las
(situá-las, de certo modo, numa “taxonomia”) e obter uma
imagem do aspecto do mundo equipado com elas.
Um terceiro tema, que abarca a ambos os anteriores, seria a
face ética da tecnologia como exigência à responsabilidade
humana, que deve tomar a palavra posteriormente. Por
conseguinte, em uma ordem sistemática, os três temas indicados,
que podem servir como esquema básico da filosofia da tecnologia
à qual aspiramos, referem-se à “forma”, ao “conteúdo” e à “ética”
da tecnologia. Enquanto o terceiro (e mais importante) tema é
valorativo, os dois primeiros que aqui tratamos são analíticos e
descritivos.
A Dinâmica Formal da Tecnologia
Comecemos, pois, fazendo ainda completa abstração dos
resultados concretos da técnica, por algumas observações sobre
sua forma, como totalidade abstrata de movimento, que sem
dúvida pode-se chamar “tecnologia”. Dado que se trata das
características da técnica moderna, a primeira pergunta é em que
ela se distingue formalmente de todas as anteriores. Há uma
diferençaprincipal, aquela indicada no nome “tecnologia”, na qual
a técnica é uma empresa e um processo, enquanto a anterior era
uma posse e um estado.
Técnica Pré-moderna
Se o conceito de “técnica”, grosso modo, denomina o uso de
ferramentas e dispositivos artificiais para o negócio da vida, junto
com sua invenção originária, fabricação repetitiva, contínua
melhora e ocasionalmente também adição ao arsenal existente,
tão tranquila descrição serve para a maior parte da técnica ao
longo da história da humanidade (a qual tem a mesma idade que
ela), mas não para a moderna tecnologia. Porque no passado o
inventário existente de ferramentas e procedimentos costumava
ser bastante constante e tender a um equilíbrio reciprocamente
adequado, estático, entre fins reconhecidos e meios apropriados.
Uma vez estabelecida tal relação, mantinha-se durante longo
tempo como um optimum de competência técnica sem mais
exigências. É verdade que se produziram revoluções, mas mais
por casualidade do que por intenção. A revolução agrícola (a
partir da vida de caçador ou nômade), a metalúrgica (da Idade da
Pedra à Idade do Ferro), a ascensão das cidades e outros
desenvolvimentos similares “ocorreram”, por assim dizer, pois não
foram organizados conscientemente e seu ritmo foi tão lento que
só na contração temporal da retrospectiva histórica ganham o
aspecto de “revoluções” (com o desorientador sentido acessório
de que os contemporâneos os sentiram como tais). Inclusive lá
onde uma mudança foi repentina, como no caso da introdução do
primeiro carro de guerra e, mais tarde, da cavalaria armada, na
técnica bélica – uma forte revolução, de fato, ainda que de vida
curta –, a inovação não surgiu de dentro da arte bélica das
sociedades mais avançadas afetadas, mas lhes foi imposta de
fora pelas populações (muito menos civilizadas) da Ásia Central.
Outras “irrupções” técnicas, como a coloração vermelha na
Fenícia, o “fogo grego” em Bizâncio, a porcelana e a seda na
China, o endurecimento do aço no “damasquinado”1 foram – em
vez de estender-se pelo mundo tecnológico de sua época –
monopólios zelosamente guardados por suas sociedades
inventoras. No caso de outros, como os jogos hidráulicos, a
energia do vapor dos mecânicos alexandrinos ou a bússola e a
pólvora dos chineses, não se atentou para seu importante
potencial tecnológico.2 Em conjunto, as grandes culturas
clássicas haviam alcançado, de forma relativamente rápida, um
ponto de saturação tecnológica – o “optimum” que antes
mencionávamos, quanto ao equilíbrio de meios e habilidades com
necessidades e objetivos reconhecidos – e, posteriormente,
encontraram poucas razões para ir além disso. Da cerâmica às
construções monumentais, do cultivo do solo à construção naval,
dos têxteis às máquinas de guerra, da medição do tempo à
astronomia: ferramentas, técnicas e objetivos seguiram sendo
essencialmente os mesmos durante longos períodos de tempo,
as melhoras foram esporádicas e não planejadas e o progresso
portanto – se é que se produzia3 – consistia em acréscimos
insignificantes a um nível geralmente alto que ainda hoje desperta
nossa admiração e, segundo demonstra o fato histórico, tendia
mais a perdas por descenso do que a inovações superadoras por
novas criações. Ao menos o primeiro (quando ocorreu em grande
escala) foi o fenômeno mais observado e lamentado pelos
epígonos com uma nostálgica lembrança de um passado melhor
(como no decadente mundo romano). Entretanto, inclusive nos
tempos de forte florescimento, não houve uma ideia proclamada
de um futuro de progresso continuado nas artes; mais importante
ainda: nunca houve um método intencional para produzi-lo, como
a investigação, o experimento, a prova arriscada de caminhos
não ortodoxos, o amplo intercâmbio de informações a respeito
etc. Mas o que menos havia eram ciências naturais entendidas
como um corpus crescente de teoria que houvesse podido guiar
tais atividades semiteóricas, pré-práticas... para não falar de uma
institucionalização social de todas as coisas. Em poucas
palavras, tanto em métodos como em instrumentos, as “artes”
pareciam adequadas a seus fins e eram por eles tão firmes
quanto os próprios objetivos.4
Técnica Moderna
A técnica moderna oferece um quadro exatamente contrário ao
descrito acima e para nós este constitui seu primeiro aspecto
filosófico. Comecemos por algumas constatações óbvias.
1. Cada novo passo em qualquer direção, em qualquer terreno
novo da técnica não conduz a um ponto de equilíbrio ou de
“saturação” na adequação dos meios aos objetivos pré-fixados,
mas – ao contrário –, em caso de êxito, constitui o motivo para
dar outros passos em todas as direções possíveis, com os quais
os objetivos mesmos se “diluem” (como veremos mais adiante). O
mero “motivo” se converte em causa forçosa em cada passo
maior ou “importante”, e isto pode ser precisamente um critério de
que o era. O inovador espera isso mesmo da solução de sua
tarefa imediata, ainda que não possa dizer aonde lhe conduzirá
sua reprodução mais além dela.
2. Cada inovação técnica está segura de difundir-se com rapidez
pela comunidade tecnológica, como ocorre também com os
desdobramentos teóricos nas ciências. A difusão tecnológica se
produz, com escassa diferença temporal, tanto no plano do
conhecimento como no da apropriação prática: o primeiro (junto
com sua velocidade) vem garantido pela intercomunicação
universal, por sua vez uma conquista do complexo tecnológico; o
segundo, forçado pela pressão da concorrência.
3. A relação entre meios e fins neste campo não é linear em
sentido único, senão circular, em sentido dialético. Objetivos
conhecidos, perseguidos desde sempre, podem ter melhor
satisfação mediante novas técnicas cujo surgimento eles mesmos
inspiraram. Mas também – e de forma cada vez mais comum –,
vice-versa, novas técnicas podem inspirar, produzir, inclusive
forçar novos objetivos nos quais ninguém havia pensado antes,
simplesmente por meio da oferta de sua possibilidade. Quem
havia desejado ver grandes óperas, cirurgia em coração aberto
ou o resgate dos cadáveres de uma catástrofe aérea na sala de
sua casa (para não falar dos anúncios de sabão, frigoríficos e
compressas)? Ou beber café em copos de papel descartável? Ou
a inseminação artificial, os bebês de proveta ou a gravidez em
mães de aluguel? Ou ver andando por aí seres clonados de um
mesmo ou de outros de sua espécie?
A tecnologia acrescenta, pois, aos objetos de desejo e
necessidade humanos já existentes, outros novos e insólitos,
inclusive gêneros inteiros desses objetos... e com eles se
multiplica também suas próprias tarefas. O último ponto mostra o
quão dialético ou circular é o caso: objetivos que em princípio se
produzem sem serem solicitados e quiçá casualmente, por feitos
da invenção técnica, convertem-se em necessidades vitais
quando se assimilam à dieta socioeconômica utilizada e
apresentam à técnica a tarefa de seguir tornando-os seus e de
aperfeiçoar os meios para sua realização.
4. Por isso o “progresso” não é um adorno ideológico da
moderna tecnologia nem tampouco uma mera opção oferecida
por ela, como algo que podemos exercer se queremos, mas um
impulso incerto nela mesma, muito além de nossa vontade (ainda
que a maioria das vezes em aliança com ela), repercute no
automatismo formal de seu modus operandi e em sua oposição
com a sociedade que o desfruta. “Progresso” não é, nesse
sentido, um conceito valorativo, mas puramente descritivo.
Podemos lamentar seus feitos e detestar seus frutos e mesmo
assim temos que avançar com ele, porque salvo no caso (sem
dúvida possível) de que se autodestrua através de suas obras, o
monstro avança dando à luz constantemente seus variados
rebentos, respondendo cada vez às exigências e atrativos do
agora. Mas ainda que não expresse um valor, “progresso”
tampouco é aqui uma expressão neutra, que possamos
simplesmente substituir por “mudança”. Porque forma parte da
natureza do caso, como uma lei da série na qual cada estágio
posterior é superior ao precedente conforme os critérios da
própria técnica.5 Aqui se dá,pois, um caso de processo
antientrópico (a evolução biológica é outro) no qual o movimento
interior de um sistema, entregue a si mesmo e não perturbado
desde o exterior, conduz normalmente a estados sempre
“superiores” e não “inferiores” de si mesmos. Estes são, pelo
menos, os fatos até o momento.6
Se Napoleão dizia: “A política é o destino”, hoje bem se pode
dizer: “A técnica é o destino”.
Esses pontos foram suficientemente longe para explicar a
afirmação inicial de que a moderna tecnologia, diferentemente da
tradicional, é uma empresa e não uma posse, um processo e não
um estado, um impulso dinâmico e não um arsenal de
ferramentas e habilidades. E apontam já certas “leis do
movimento” deste incansável fenômeno. O que se descreveu –
recordemo-lo – eram traços formais, que ainda tinham pouco a
dizer sobre o conteúdo da “empresa”. Coloquemos duas
perguntas para essa descrição: por que é assim, quer dizer, o que
causa a infatigabilidade da moderna tecnologia, qual é a natureza
de seu impulso? E: qual é a importância filosófica dos fatos assim
explicados?
Explicação causal: coações e impulsos ao progresso técnico
Como é de se esperar num fenômeno tão complexo, as forças
motrizes são muitas; a anterior descrição contém já algumas
pistas causais.
Mencionamos a pressão da concorrência – pelo benefício, mas
também pelo poder, a segurança, o prestígio etc. – como um
perpetuum movens da universal apropriação das melhores
técnicas. Igualmente eficaz é, naturalmente, a hora de produzi-
las, quer dizer, o processo mesmo da invenção, que hoje em dia
depende da constante ajuda econômica e inclusive a fixação de
objetivos a partir de fora: poderosos interesses se encarregam de
ambas as coisas. A guerra ou sua ameaça demonstrou ser um
fator especialmente potente. Os fatores menos dramáticos são
inúmeros. “Manter a cabeça acima d’água” é um princípio
comum. (Algo paradoxal em meio de uma inundação que já
supera em muito aquilo com o que épocas anteriores foram
felizes para sempre.)
A concorrência não é a única forma de pressão que existe por
trás do progresso da tecnologia. O aumento da população, por
exemplo, e a ameaça de esgotamento das reservas naturais,
atuam como impulsos independentes em relação a ela. Dado que
a essas alturas ambos são em si mesmos produtos secundários
de uma técnica exitosa, podem servir como um bom exemplo
para a verdade geral de que, em um grau considerável, a técnica
mesma cria problemas que depois tem de resolver mediante um
novo salto adiante. (A “revolução verde” e o desenvolvimento de
sucedâneos sintéticos ou fontes de energia alternativas são
exemplos disso.) Estas pressões em direção ao progresso
seriam, por conseguinte, os mesmos no caso de uma tecnologia
em condições de livre concorrência como em condições, por
exemplo, socialistas.
Um impulso mais autônomo e mais espontâneo que estas
formas quase mecânicas, com seu imperativo de “nada ou
afunda”, seria a promoção da visão quase utópica de uma “vida
cada vez melhor”, entendida de maneira vulgar ou refinada, para
a qual a técnica demonstrou a aparente capacidade de criar
continua mente as condições: o apetite despertado pela
possibilidade (o “sonho americano”, a “revolução das expectativas
crescentes”). Este fator não tão apreensível, é mais difícil de
estimar, mas é inegável que representa um papel. Sua
intencionada excitação e manipulação por parte dos fabricantes
de sonhos do complexo industrial-mercantil é um tema em si
mesmo e reduz um pouco a espontaneidade do motivo... do
mesmo modo que degrada a qualidade do sonho. Terá que ficar
também pendente até que ponto a “visão” mesmo é mais post
hoc que ante hoc, ou seja, sugerida pelas deslumbrantes
conquistas do processo tecnológico já em marcha. Inclusive
nesse caso é ao menos uma influência reforçadora.
Há também explicações mais especulativas dessa incansável
dinâmica, como a da “alma fáustica” de nossa cultura ocidental,
proposta por Spengler, que a impulsionaria irracionalmente ao
infinitamente novo e a novas possibilidades sem indagar por sua
própria vontade; ou à visão de Heidegger, de uma decisão
igualmente própria do espírito ocidental da vontade de ilimitado
poder sobre o mundo das coisas, decisão que se converteu em
seu destino. Não quero entrar agora nisso. Para manter-se em
um terreno mais empírico, merece menção um fator, também ele
não econômico, de estímulo tecnológico: as necessidades de
domínio ou “controle” dos grandes e povoados estados de nosso
tempo, esses gigantescos superorganismos territoriais que
dependem, para sua mera coesão, de uma técnica avançada (por
exemplo, nos campos da informação, da comunicação, do
transporte) e têm, portanto, interesse em seu desenvolvimento;
tanto mais quanto mais centralistas forem. Naturalmente, isso
vale tanto para sistemas socialistas como para sociedades de
livre mercado. Podemos inferir dele que inclusive um Estado
comunista mundial, livre tanto de rivais exteriores como de
competência interior de mercado, teria de continuar
impulsionando a tecnologia ainda que seja só com a finalidade de
controle de tão colossais dimensões? É claro que, de qualquer
modo, o marxismo aponta para a técnica não apenas por razões
técnicas: mas pela liberação utópica do animal humano de toda
necessidade material. Mas inclusive se deixamos de lado todos
os dinamismos deste tipo subjetivo e elegível, até o caso mais
monolítico que podemos imaginar – um sistema mundial
comunista sem outro lastro ideológico e, especialmente, sem
obrigação ideal de buscar o progresso – seguiria exposto àquelas
pressões “naturais” independentes da concorrência, como o
aumento da população e o desaparecimento das reservas
naturais, com as quais a industrialização como tal tem de se
responsabilizar. Bem poderia ser, pois, que esse elemento coativo
do progresso tecnológico não esteja vinculado a seu solo
nutricional originário, o sistema capitalista. Quiçá as expectativas
de uma estabilização definitiva (e oportuna) foram um pouco
melhores sob o socialismo – sempre que este fora mundial e,
portanto, totalitário. Tal como estão as coisas, o pluralismo, ao
qual estamos agradecidos, assegura a continuidade do avanço
tecnológico enquanto haja espaço para ele.
As premissas ontológicas e gnoseológicas para a possibilidade do progresso
contínuo
Poderíamos seguir desatando o novelo causal e sem dúvida
encontraríamos outros fios. Mas nenhum deles, nem sequer
todos em seu conjunto, dariam conta – ainda que o expliquem –
de todo esse assunto. Porque todos partilham uma premissa sem
a qual não poderiam fazer seu trabalho a tão longo prazo: a
premissa de que pode haver um progresso ilimitado, porque
sempre há algo novo e melhor para ser encontrado. A presença
(de modo algum evidente) dessa condição objetiva é, de fato,
também a convicção dos autores do drama tecnológico, mas se
não fosse certa a convicção por si mesma, seria de tão pouca
utilidade quanto o sonho dos alquimistas. Sem dúvida, a
diferença destes pode apoiar-se em uma impressionante história
de êxitos, o que, para muitos, é motivo suficiente para sua fé.
(Talvez não importe muito se eles a têm ou não). O que se
converte em algo mais que uma fé sanguínea é uma visão teórica
subjacente e bem fundada da natureza das coisas e do
conhecimento delas, segundo a qual estas não põem limite algum
ao descobrimento e invenção, mas ao contrário, abrem em
qualquer ponto a partir de si mesmas um novo acesso a algo
ainda por conhecer e por fazer. A convicção complementar é,
então, a de que uma tecnologia adaptada a uma natureza e uma
ciência com tais horizontes ilimitados desfruta da mesma
abertura, sempre renovada, no momento de transformá-los em
conhecimento prático... de tal modo que cada um dos seus
passos inicia o seguinte e nunca se impõe um freio devido ao
esgotamento interno das possibilidades.
Só o costume embota nosso assombro diante dessa fé
inteiramente sem precedentes na “infinitude” virtual. O mais
assombroso é que esta fé, a julgar por nossa atual compreensão
da realidade, muito provavelmenteseja fundada... ou ao menos o
suficiente para manter por longo tempo aberta a via da tecnologia
inovadora na esteira do avanço da ciência. Enquanto não
entendermos essa premissa ontológico-epistemológica, não
entenderemos o impulso mais íntimo da dinâmica tecnológica, ao
longo da qual repousa a eficácia de todas as demais causas
adicionadas a esta.
É preciso recordar que a “infinitude” virtual do progresso que
aqui foi postulado e que deve ser explicado, é essencialmente
distinta da perfectibilidade (perfectibilitas), aceita desde sempre,
de todas as conquistas humanas. Nenhuma excelência do
produto excluiu a possibilidade de que ele pudesse ser melhorado
e nenhuma obra mestra da habilidade excluiu que ela pudesse
ser superada (tal como o corredor recordista de hoje deve saber
que sua marca será melhorada algum dia). Mas esses são
avanços dentro do mesmo gênero e se produzem
necessariamente em fragmentos aproximativos. Evidentemente o
fenômeno da inovação genérica que, ademais, longe de reduzir-
se em proporção, cresce de forma exponencial, é algo
qualitativamente distinto. Qual é seu segredo?
A inter-relação entre técnica e ciência
A resposta está na inter-relação entre ciência e técnica, que é a
característica do progresso moderno e, portanto, em última
instância, no tipo de natureza que a ciência moderna explora
progressivamente. Porque é aqui, no movimento do
conhecimento, onde primeiro e continuamente aparece a
novidade mais importante. Isso é em si mesmo algo novo. Na
física de Newton a natureza simplesmente se manifestava, quase
tosca, e representava sua obra com poucas formas de coisas e
em forças elementares, seguindo umas poucas leis universais:
sem dúvida sua aplicação a manifestações cada vez mais
complexas prometia uma constante ampliação do conhecimento
de nosso mundo, mas nenhuma grande surpresa.
Desde meados do século XIX essa imagem minimalista e, por
assim dizer, acabada, da natureza, modificou-se com assombrosa
aceleração. Em um dramático jogo de estímulos e respostas, com
a crescente sutileza da investigação, a natureza mesma mostrou-
se cada vez mais sutil. A sonda mais fina faz com que o objeto
apareça mais rico quanto a seus modos de funcionamento, não
mais limitado, como demonstrava a mecânica clássica. E ao invés
de reduzir a margem do que resta para ser descoberto, a ciência
surpreende-se a si mesma hoje com dimensão após dimensão de
novas profundidades. A própria essência da matéria passou de
um dado último e indissolúvel de material compacto ocupando um
lugar no espaço a um desafio aberto vez ou outra para dar
acesso a uma sempre mais profunda penetração. Ninguém pode
dizer se isso continuará para sempre, mas abre-se caminho para
a suspeita da interior “infinitude” no fundo de todas as coisas e
com ela a expectativa de uma investigação sem fim de tal forma
que os passos sucessivos não repitam cada vez a mesma velha
história (a “matéria em movimento” de Descartes), mas que
acrescentem giros sempre novos. Se a arte tecnológica segue os
passos da ciência natural, adquirirá também desta fonte aquele
potencial de infinitude para suas progressivas inovações.
Mas não é próprio dele que o progresso científico indefinido se
limite a oferecer a opção de semelhante progresso técnico, como
um subproduto externo, por assim dizer, e deixe em mãos de
quem o recebe exercê-lo ou não, tal como ocorre com outros
interesses. Além disso o processo científico mesmo se
desenvolve em inter-relação com o tecnológico, e isto no sentido
intimamente mais vital: para alcançar seus próprios objetivos
teóricos, a ciência necessita uma tecnologia cada vez mais
refinada e fisicamente forte como ferramenta que se produz a si
mesma, ou seja, que cabe à tecnologia. O que se encontrar com
essa ajuda será o ponto de partida de novos começos no terreno
prático e este, em seu conjunto, quer dizer, a tecnologia
trabalhando no mundo, proporciona, por sua vez, à ciência, com
suas experiências em um laboratório em grande escala, uma
incubadora para novas perguntas para ela e assim
sucessivamente em um circuito sem fim. Desse modo, o aparato
é comum ao reino teórico e prático; ou seja, tanto a tecnologia
infiltra-se na ciência quanto a ciência na tecnologia. Em resumo:
existe entre elas uma mútua relação de feedback que as mantém
em movimento; cada uma necessita e impulsiona a outra; e tal
como estão as coisas hoje, só podem viver juntas ou, do
contrário, morreriam juntas. Para a dinâmica da tecnologia que
aqui nos ocupa, isso significa que – à parte de todos os impulsos
externos – seu vínculo funcional integrador com a ciência é para
ela um agente de infatigabilidade. Enquanto a aspiração ao
conhecimento seguir impulsionando a atividade da ciência, é
seguro que também a técnica avançará com ela. Mas, se o
impulso em direção ao conhecimento, por seu turno, é em si
mesmo culturalmente débil, está em risco de abrandar-se ou de
converter-se em rígida ortodoxia – esse eros teórico já não vive
só do delicado apetite pela verdade, senão que é estimulado por
seu rebento mais robusto, a técnica, que lhe transfere impulsos
desde o campo de batalha, mais amplo, esforçado e vigoroso da
vida.
Estou consciente do caráter de presunção de alguns desses
pensamentos. As revoluções na ciência ao longo desse século
são um fato, tanto quanto o estilo revolucionário que
comunicaram à técnica, assim como a reciprocidade entre ambas
as correntes. Mas não é seguro que essas revoluções científicas
– o que é primário na síndrome – sejam típicas da marcha da
ciência desde agora, uma espécie de lei do movimento para seu
futuro, ou representem apenas uma fase singular em seu
desenvolvimento. Portanto, a nossa predição quanto à inovação
incessante para a técnica, a qual se baseia numa suposição a
respeito do futuro da ciência, inclusive sobre a natureza das
coisas, é hipotética, como costumam ser tais extrapolações. Mas
inclusive se o passado mais recente não saudou com grandes
ruídos nenhum estado de “revolução permanente” na ciência e a
vida da teoria regressa a vias mais tranquilas, a margem para a
inovação técnica não pode contrair-se tão logo; e o que talvez na
ciência já não seja uma revolução pode revolucionar nossa vida
em sua aplicação prática através da técnica. De qualquer forma,
“infinito” é uma palavra demasiado grande. Digamos, pois, que os
signos atuais – quanto a possibilidades e impulsos – apontam
para uma direção e fertilidade indefinidas do impulso tecnológico.
Aspectos Filosóficos
Concluímos aqui nosso relato sobre o aspecto formal da
tecnologia moderna. Antes de passarmos ao aspecto material,
duas breves observações sobre aspectos filosóficos da imagem
traçada. Uma se refere ao status modificado do saber na
hierarquia do espírito, a outra à ascensão da própria técnica à
posição de uma das principais tarefas da humanidade.
No que concerne ao saber, é óbvio que a velha e honorável
separação entre “teoria” e “prática” desapareceu por causa de
ambas as partes. Por pouco diminuída que esteja, ainda, a sede
de conhecimento puro, o entrelaçamento entre conhecimento nas
alturas e ação na planície da vida tornou-se insolúvel e a
aristocrática autossuficiência da busca pela verdade por si
mesma desapareceu. Trocou-se a nobreza pela utilidade. Em
poucas palavras: a síndrome tecnológica produziu uma profunda
socialização do campo teórico e colocou-o a serviço das
necessidades comuns. Ao mesmo tempo, com um paradoxal
êxito secundário, criou o novo problema do ócio para as massas.
Expulso de sua antiga pátria, o mundo da contemplação – desde
que este se transformou no ativo trabalho de exploração da
ciência –, o ócio volta a aparecer no extremo oposto do espectro,
entre os frutos de seu esforço: um bem de uso indeterminado, tão
dado quanto imposto, em forma de espaço vazio para o qual é
necessário encontrar um conteúdo. A ciência, em absoluto
ociosa, apropria-se também dele nas novas maneiras de passar o
tempo, com as quais se apresenta como parte da mesma colheita
tecnológica que produz sua própria necessidade.Tudo isso se
espera hoje da “teoria”, outrora ela mesma a forma máxima do
esforço transutilitário, hoje nova no serviço para qualquer desejo
do mundo exterior.
No que se refere à posição da própria tecnologia na ordem
hierárquica humana, só farei alusão aqui a seu prestígio
“prometeico”, que leva seus guardiões à tentação de revestir sua
infinita atividade com a dignidade dos mais altos objetivos, isto é,
de elevar a fim o que começou sendo meio, e ver nele o
verdadeiro destino da humanidade. Ao menos a sugestão está aí
(ainda que perturbada recentemente por vozes contrárias) e
exerce seu feitiço sobre o espírito moderno. O progresso do
homem estende-se como avanço de poder a poder.
O Conteúdo Material da Tecnologia
A descrição “formal” do movimento tecnológico como tal ainda
não nos disse nada sobre as coisas com as quais ele está
relacionado, sua “matéria”, por assim dizer. A isto nos voltamos
agora, ou seja, concretamente às novas formas de poder, coisas
e objetivos que o homem moderno recebe da técnica.
A sucessão de tecnologia reflete aquela presente também na
ciência: mecânica, química, eletrodinâmica, física nuclear,
biologia. Em geral, uma ciência está madura para sua aplicação à
tecnologia quando nela – para empregar os termos de Galileu – a
“via resolutiva” – a análise – está tão avançada quanto a “via
compositiva” – a síntese – pode empregar os elementos básicos
assim liberados e quantificados. Só agora a biologia chegou até
este ponto: com a biologia molecular vem a construtibilidade de
formações biológicas.
Mecânica
Lançaremos, pois, um olhar inicial a algumas das fases da (até
agora permanente) revolução tecnológica. Começou em finais do
século XVIII com a era das máquinas da chamada Revolução
Industrial, cuja intenção, a princípio, não era criar novos produtos,
mas substituir a força de trabalho humana (ou inclusive animal)
na fabricação, aquisição ou manejo dos bens existentes. Assim,
pois, em princípio, os objetos da técnica moderna eram os
mesmos que desde sempre haviam sido objeto da habilidade e
do trabalho humanos: alimentação, vestido, moradia e
comodidades da vida. Não mudou o produto, mas a produção,
quanto à rapidez, facilidade e quantidade. Os teares mecânicos
movidos por vapor de Lancashire fabricavam os velhos e
familiares tecidos. Mas um novo e significativo produto se
acrescentou em seguida à lista tradicional: as próprias máquinas,
que para sua fabricação puseram em marcha uma indústria
inteiramente nova, com suas conseguintes indústrias auxiliares;
desde o princípio, essas entidades de novo cunho tiveram sua
própria influência na simbiose entre homem e natureza, ao serem
consumidoras delas mesmas. Por exemplo: as bombas de água
movidas a vapor facilitavam a extração do carvão, mas exigiam
carvão extra para esquentar suas caldeiras, mais carvão para os
altos-fornos e fogões que fabricavam essas caldeiras, mais para
extrair o necessário mineral de ferro, mais para seu transporte
aos altos-fornos, mais de ambas as coisas – carvão e ferro – para
os necessários trilhos e locomotivas que eram fabricadas nos
mesmos altos-fornos etc., mais para o transporte do produto dos
altos-fornos aos poços mineiros e vice-versa e, finalmente, mais
para a distribuição do mais abundante carvão aos consumidores
situados fora deste circuito, que de forma crescente eram
máquinas que deviam sua existência precisamente à maior
disponibilidade de carvão e seguiam aumentando sua demanda e
a dos produtos da siderurgia... etc. Para que não nos
esqueçamos, perdido em algum ponto desta longa cadeia:
estamos falando da modesta máquina a vapor de James Watt,
inventada para bombear a água para fora das minas. Essa forma
de desenvolvimento – de modo algum uma série linear, senão
uma intrincada rede de reciprocidade – se fez desde então algo
próprio da técnica moderna, com um crescimento exponencial.
Generalizando, pode-se dizer que a moderna tecnologia aumenta
em progressão exponencial o consumo humano de reservas
naturais (substâncias e energia), não só mediante a reprodução
do produto final, os próprios bens de consumo, mas também – e
talvez ainda mais – mediante a fabricação e manejo dos recursos
mecânicos auxiliadores, ou seja, como autoconsumidora. E com
esses recursos – as máquinas – introduziu-se uma nova
categoria de bens nos equipamentos de nosso mundo. Isso quer
dizer que, entre os objetos da tecnologia, um gênero destacado é
o do próprio equipamento técnico.
Logo também os produtos finais que chegam ao consumidor
deixaram de ser os mesmos, ainda que servissem às mesmas
velhas necessidades. Tomemos o exemplo das viagens: o trem e
o navio oceânico são qualitativamente distintos da carroça e do
barco a vela, não só em sua construção e capacidade, mas
também na experiência da própria viagem, que neles se “sente”
de forma completamente distinta e, por exemplo, pode chegar a
ser um prazer, ao invés de um esforço. Os aviões deixam para
trás qualquer semelhança com os antigos meios de transporte,
exceto a finalidade de ir e vir, mas sem experiência do que há no
meio (algo que é substituído por comidas e projeções de filmes).
Acrescente-se a isso que a duração da vida desses grandes e
custosos aparatos não vem determinada em muitos casos por
seu desgaste real, mas por seu “envelhecimento” comparativo.
Similares comparações podem ser estabelecidas entre o edifício
de escritórios em aço, cimento e vidro e as antigas construções
em madeira, tijolo e pedra. Com todos os seus subsistemas
mecânicos de iluminação, calefação, ventilação, elevadores etc.,
o primeiro deles se parece com uma máquina que trabalha de
forma permanente e de múltiplas maneiras; e as substâncias
naturais com as quais são feitos o edifício e seu equipamento já
não são reconhecíveis na extrema transformação do produto
artificial que rodeia o habitante.
Química
Este último ponto – a transformação de substâncias – nos
servirá como um termo-chave para mencionar um gênero de
tecnologia ainda mais jovem que o mecânico (que tinha por fim a
construção de máquinas), com o qual começou a Revolução
Industrial: o gênero químico, o primeiro que é inteiramente fruto
da ciência. Seu ponto de partida industrial foram os corantes
sintéticos, substitutivos de substâncias naturais escassas ou
caras, cujas propriedades de uso deveria reproduzir de forma
mais aproximada possível. O mesmo pode ser dito das fibras
têxteis sintéticas, pertencentes a uma fase superior da tecnologia
química, que hoje substituem tão amplamente em todas as partes
a lã e o algodão dos acima mencionados teares de Lancashire.
Aqui ainda se pode, pois, manter a antiga ideia de que a arte
“imita” a natureza. Mas com os materiais petroquímicos em geral,
em cujo terreno entramos ao falar das fibras sintéticas, a arte
avançou em realidade desde os sucedâneos até a criação de
novas substâncias, com propriedades que nessa forma não se
dão em nenhuma substância natural (ou em sua elaboração
tradicional) e assinalam, portanto, o caminho até formas de
emprego nunca pensadas até então, mas cuja possibilidade traz
à tona novas classes de objetos para sua utilização. Na
construção química, ou seja, molecular, a engenharia humana faz
mais do que na mecânica, que compõe suas formações a partir
de corpos naturais de nosso tamanho: sua intervenção é mais
profunda, até as infraestruturas da matéria, cujas novas
substâncias se obtêm “por especificação”, isto é, com as
propriedades de uso previstas, mediante a reordenação arbitrária
de suas moléculas. E é preciso levar em conta que isso se faz de
maneira dedutivo-combinatória desde a camada mais ínfima, o
último elemento totalmente analisado, em uma autêntica via
compositiva uma vez esgotada a via resolutiva, de forma muito
distinta das práticas empíricas largamente empregadas,
encontradas por acaso ou como resultado da experimentação
(como a liga dos metais desde a Idade de Bronze, inclusive a
cerâmica, o cozimento do pão e a fermentação do vinho), com o
que desde sempre se haviam modificado as substâncias naturais
para uso humano.A artificialidade ou construção criativa de
acordo com um desenho abstrato (plano) penetra no mais íntimo
da matéria. Isso aponta, na biologia molecular, a novas e terríveis
possibilidades, das quais falaremos mais adiante.
As máquinas como bens de uso
Entretanto as próprias máquinas que, como gênero, eram
originariamente puros “bens de capital”, encontraram seu
caminho até a esfera do consumidor e se converteram em artigos
de uso pessoal, doméstico, ainda que também diretamente
econômico.7 Essa inovação sem precedentes na história da vida
individual cresceu até ser uma manifestação massiva que abarca
tudo no mundo ocidental. Naturalmente o principal exemplo é o
automóvel, mas temos que acrescentar todo o arsenal de
aparatos domésticos (na maioria dos casos elétricos) que hoje se
tor naram mais habituais para o estilo de vida de toda a população
do que a calefação central e a água corrente há cem anos.
Estamos cada vez mais “mecanizados” em nossas atividades e
entretenimentos cotidianos, e cada vez se acrescentam mais
coisas novas, enquanto a escassez de energia não imponha
freios ao processo.
Por seu gênero, esses aparatos, grandes ou pequenos, desde o
carro até o barbeador elétrico, são “máquinas” no sentido exato
de fazerem um trabalho transformando energia em movimento
mecânico e por suas partes móveis pertencerem à magnitude
familiar de nosso mundo sensorial. Mas há outros aparatos
técnicos, de um gênero radicalmente distinto, que ganharam um
lugar em nossa vida privada e se expandem por ela: aparatos que
não nos poupam força muscular nem nos aliviam do trabalho,
aparatos que, na realidade, não fazem para nós nenhum
“trabalho” em sentido físico e, em parte, nem sequer têm uma
utilidade como fim, mas que (com um gasto mínimo de energia),
servem aos sentidos e ao espírito: telefone, rádio, televisão,
gravador, calculadora... todos os ramais domésticos da indústria
eletrônica, aquilo que chegou por último à cena tecnológica. Tanto
por sua produção imaterial, dirigida à consciência, como pela
física invisível, não propriamente “mecânica”, de seu trabalho,
esses aparatos distinguem-se de toda a maquinaria
macroscópica, fisicamente móvel, do tipo clássico.
Antes de nos ocuparmos dessa transição, de grandes
consequências, desde a técnica energética da primeira
Revolução Industrial até a técnica da transmissão de notícias e
de informação, equiparável quase a uma segunda revolução
tecnológico-industrial, teremos que lançar um olhar a seu
fundamento natural: a eletricidade.
Eletricidade
No avanço da técnica até uma artificialidade, abstração e
sutileza cada vez maiores, o descobrimento da eletricidade
representa um passo decisivo. Estamos diante de uma força
universal da natureza que não se “manifesta”, entretanto, aos
homens de forma natural. Por si mesma, sem intervenção do ser
humano, não é um dado da experiência normal (exceto no raio).
Sua mera “manifestação” como tal teve de esperar pela ciência,
que procurou tal experiência mediante engenhosos dispositivos.
Aqui, pois, uma possível tecnologia se devia à ciência já para a
mera apresentação do “objeto”, da entidade mesma com a qual
tinha de trabalhar: o primeiro caso no qual só a teoria, não a
experiência habitual, precedia inteiramente a toda prática (o que
se repetiria mais adiante no caso da energia nuclear). E que
entidade! Calor e vapor são objetos familiares à experiência
sensorial, sua energia pode ser observada trabalhando
“fisicamente” no mundo que nos rodeia; a matéria da química
segue sendo a matéria concreta, física, que a humanidade
conhecia desde sempre. Mas a eletricidade é um objeto abstrato,
incorpóreo, imaterial, invisível; em sua forma utilizável, como
“corrente”, é inteiramente um artefato, produzido por uma sutil
transformação desde formas mais brutas de energia (a maioria
das vezes a partir do calor, através do movimento). De fato sua
teoria teve de ser completa no essencial antes que se pudesse
dar início a sua utilização prática em definitivo.
Técnica de transmissão elétrica de energia
A primeira utilização da eletricidade veio com a telegrafia, que
ainda não formava parte do reino da técnica energética aplicada
ao trabalho. Mas também em sua exploração, que começou
pouco depois, para o fim já convencional de impulsionar as
máquinas (assim como para a produção térmica de luz), a
natureza da nova energia era em si mesma revolucionária. Sua
distinção consistia em sua mobilidade única, a facilidade de sua
transmissão, transformação e distribuição: uma realidade
imaterial, sem volume nem peso, transladada instantaneamente
através de qualquer distância até o ponto de consumo. Até então
não havia existido nada similar no trato dos homens com a
matéria, o espaço e o tempo. Tal tecnologia permitiu, entre outras
coisas, a mencionada expansão da mecanização em cada casa.
Ao mesmo tempo, a conexão a uma rede centralizada fez a vida
privada dependente, como nunca, do contínuo funcionamento de
um sistema público (literalmente continuado: a eletricidade não se
pode armazenar como o carvão e o petróleo ou como o açúcar e
a farinha). Mas estava por vir algo muito menos ortodoxo ainda: o
passo da técnica elétrica para a “eletrônica”, da qual a telegrafia
só era uma precursora e cuja formação em nosso século
representa um novo nível de abstração em termos de meios e
fins. É a diferença entre a técnica da energia e a transmissão de
notícias. O objeto desta última é o mais inacessível de tudo: a
informação.
Técnica de transmissão elétrica de notícias e de informação
De forma tanto teórica quanto prática, a eletrônica representa
um nível em geral novo na revolução científico-técnica.
Comparado com a sutileza de sua teoria e a finura de seu
equipamento, tudo o que veio antes parece quase bruto e, por
assim dizer, “natural”. À maneira de ilustração, pense-se nos
satélites artificiais que circundam a terra nesse momento. De um
lado, eles são uma imitação da mecânica celeste: as leis de
Newton, as mais conhecidas, são com isso demonstradas
finalmente mediante a experimentação cósmica. A astronomia,
durante milênios a mais puramente contemplativa das ciências
naturais, convertida em arte prática! Trata-se de um grande
avanço, mas com tudo o que é impressionante nas energias e a
finura dos cálculos que combina em si, esse ainda é um aspecto
menos interessante desse novo corpo celeste. De qualquer
forma, ele segue dentro do campo conceitual e de atuação da
mecânica clássica. Seu verdadeiro interesse está nos
instrumentos que o levam através do espaço e o que eles fazem:
medições, registros, análises, cálculos; em seu receber, elaborar
e transmitir dados abstratos, inclusive imagens completas,
através de distâncias cósmicas... e não há nada em toda a
natureza que apontaria, nem de longe, ao tipo de coisas que
agora sulcam as esferas. A “astronomia prática”, com a qual o
homem imita a natureza, fornece tão só o veículo para algo
distinto, com o que ela é superada soberanamente.8 Sua
instrumentalização deixa para trás, sem comparação possível,
todos os modelos e usos da natureza conhecida. Assim, a técnica
eletrônica cria de fato um reino de objetos que não imitam nada e
cuja pura invenção agrega outro. E não menos inventados são os
objetos aos quais servem. A técnica energética e a química
respondiam ainda em sua maior parte às necessidades naturais
do ser humano: alimentação, vestimenta, moradia, transporte etc.
A tecnologia da comunicação responde a necessidades de
informação e controle criadas unicamente pela própria civilização
que tornou possível semelhante tecnologia para a qual se fez de
fato imprescindível. A novidade dos meios produz continuamente
fins não menos inovadores e ambos se tornam tão necessários
para o funcionamento da civilização que os produziu tal como
seriam inúteis para qualquer civilização anterior. Mas com esse
paradoxo intrínseco: que precisamente esta civilização ameaça
seu criador com sua “superioridade”, ou seja, por exemplo, a
crescente automatização (um triunfo da eletrônica) o afasta dos
postos detrabalho nos quais antigamente demonstrava sua
condição humana. E com a ameaça de que sua superexploração
da natureza terrestre possa alcançar um ponto de catástrofe.
Biotecnologia
A frase acima seria um bom e dramático ponto final. Mas ainda
não chegamos ao fim de nosso resumo. Outra escala, quiçá a
última, da revolução tecnológica, poderia estar esperando o
momento de entrar em cena. As escalas anteriores (percorridas
aqui apenas parcialmente) se baseavam na física e tinham a ver
com aquilo que o homem pode colocar a seu serviço dentre as
existências da natureza inanimada. O que ocorre com a biologia?
E com o próprio usuário? Estamos, quem sabe, no umbral de
uma tecnologia que se apoia nos conhecimentos biológicos e nos
brinda com uma capacidade de manipulação que tem o próprio
homem por objeto? Com a aparição da biologia molecular e sua
compreensão da programação genética, isto se converteu em
uma possibilidade teórica... e em uma possibilidade moral,
mediante a neutralização metafísica do ser humano. Mas essa
neutralização que, sem dúvida, nos permite fazer o que
quisermos, nos nega ao mesmo tempo o guia para saber o que
querer. Dado que a mesma teoria da evolução da qual a genética
é uma pedra fundamental nos privou de uma imagem válida do
ser humano (porque tudo surgiu de forma indiferente, por acaso e
por necessidade), as técnicas fáticas, uma vez que estiverem
prontas, nos encontrarão extremamente carentes de preparação
para seu uso responsável. O antiessencialismo da teoria
dominante, que só conhece resultados de facto do acaso
evolutivo e não essencialidades válidas que lhe outorguem sua
sanção, dá a nosso ser uma liberdade carente de norma. Desse
modo, o convite tecnológico da nova microbiologia duplica sua
realizabilidade física e sua admissibilidade metafísica. Supondo
que o mecanismo genético tenha sido plenamente analisado e
sua estrutura definitivamente decifrada, podemos então
transcrever o texto. Os biólogos diferem em suas apreciações do
quão perto estamos dessa capacidade; poucos parecem duvidar,
entretanto, do direito a seu exercício. Se julgarmos pela retórica
de seus profetas, a ideia de “tomar as rédeas de nossa própria
evolução” é embriagadora até para os homens da ciência.
A metafísica desafiada
Em qualquer caso, a ideia de reelaborar a constituição humana
ou “desenhar nossos descendentes” já não é uma mera fantasia;
mas ainda está vetada por um tabu inviolável. Caso se produza
essa revolução, se o poder tecnológico começar a confeccionar
as teclas elementares sobre as quais a vida terá de tocar a sua
melodia – quiçá a única melodia assim no universo – durante
gerações: então pensar no humanamente desejável e no que
deve determinar a escolha – em poucas palavras, pensar na
“imagem do homem” – será mais imperioso e mais urgente que
qualquer pensamento que possa ser exigido da razão dos
mortais. A filosofia, confessemo-lo, está lamentavelmente
despreparada para essa tarefa, sua primeira tarefa cósmica.
1 Técnica de artesanato na qual se utiliza fios de ouro ou prata aplicados sobre aço e ferro e cujo nome
faz referência à cidade síria de Damasco. (N. T.)
2 Em contrapartida, uma atualidade tão grave como o arado chinês “emigrou” lentamente e sem chamar
a atenção até o Oeste, deixando pouco rastro ao largo de seu caminho, até que no outro extremo do
mundo, na Europa da Baixa Idade Média, produziu uma grande e altamente benéfica revolução na
agricultura... que, de resto, seus contemporâneos apenas consideraram digna de menção escrita (cf. Paul
Leser, Enststehung und Verbreitung des Pfluges, Münster, Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1931;
reimpressão em 1971 pelo International Secretariate for Research on the History of Agricultural
Implements, Museu Nacional, Brede-Lingby, Dinamarca. Esse importante livro não conseguiu exercer, por
motivos desconhecidos, a influência que merecia; tampouco o autor encontrou, nas circunstâncias
desfavoráveis do exílio, a devida carreira acadêmica).
3 De fato também houve progresso técnico no ponto culminante das culturas clássicas. O arco romano e
a cúpula, por exemplo, foram um decisivo avanço na engenharia perante a arquitrave sobre colunas e o
teto plano da arquitetura grega (e da egípcia) e permitiu vãos e objetivos construtivos que antes não
podiam sequer ser pensados (pontes, aquedutos, os grandes banhos e outros edifícios públicos da Roma
imperial). No entanto, os materiais, as ferramentas e as técnicas seguiam sendo as mesmas, o papel da
força de trabalho e a habilidade humana se manteve inalterado... os pedreiros e ladrilheiros seguiam
fazendo seu trabalho como antes. Uma tecnologia já existente ampliava seu desempenho, mas nenhum
dos seus meios e inclusive nenhum dos seus objetivos convencionais tornavam-se antiquados por isso.
4 Um significado defensável de “clássico” é o de que aquelas culturas históricas elevadas haviam se
“definido” implicitamente de algum modo e não favoreciam e nem sequer permitiam ir além das normas
fixadas e do cânone da prática adequada a elas. Este “equilíbrio” – mais ou menos – alcançado era seu
verdadeiro orgulho.
5 Isso soa como um juízo de valor, mas não é outra coisa que uma lisa e plana constatação de fatos
semelhante a dizer que uma bala de fuzil tem maior força de penetração que uma flecha. Pode-se lamentar
o invento de uma bomba atômica ainda mais destrutiva e considera-la imoral, mas o lamento se produz
precisamente porque é tecnicamente “melhor” e, neste sentido, desgraçadamente, um progresso.
6 Não se deve descartar que há fatores internos degenerativos – como, por exemplo, a sobrecarga das
capacidades finais de tratamento da informação – que possam levar esse movimento (exponencial) a
deter-se ou inclusive quebrar o sistema. Ainda não o sabemos.
7 O papel direto na esfera do consumo pessoal encobre um pouco o fato de que também os aparatos
mecânico-automáticos, em aparência, puramente domésticos, tem funções econômicas além da
comodidade privada. As lavadoras, por exemplo, substituem os empregados domésticos de antigamente,
que em troca aparecem como forças de trabalho na economia geral; permitem à esposa uma vida laboral
própria etc.
8 Tenha-se em conta também que na radio-tecnologia o meio da ação não é material, como fios que
conduzem a corrente, mas o “campo” eletromagnético inteiramente imaterial, quer dizer, o espaço mesmo.
A imagem simbólica de “ondas” é o único vínculo que resta com as formas do mundo da percepção.
Q
Capítulo 2
POR QUE A TÉCNICA MODERNA É OBJETO DA
ÉTICA
ue a ética, falando de modo mais geral, tenha algo a dizer
sobre o tema da técnica, ou que a técnica esteja submetida
a considerações éticas, eis algo que se segue do simples fato de
que a técnica é um exercício do poder humano, isto é, uma forma
de ação [Handelns], e toda forma de ação humana está sujeita a
uma avaliação moral. É também uma obviedade que um mesmo
poder pode ser utilizado para o bem e para o mal, e que em seu
exercício se pode cumprir ou infringir normas éticas. A técnica,
enquanto poder humano enormemente aumentado, claramente
se enquadra nessa verdade geral. Mas constitui ela um caso
especial que exige um esforço do pensamento ético, diferente
daquele que condiz com toda ação humana e que foi o suficiente
para todos os seus tipos no passado? Minha tese é que, de fato,
a técnica moderna constitui um caso novo e especial, e, como
razões para isso, gostaria de apresentar aquelas cinco que mais
especialmente me impressionam.
I. Ambivalência dos Efeitos
Em geral, toda capacidade “como tal” ou “em si” é boa, e só se
torna má pelo seu mau uso. Por exemplo, é inegavelmente bom
possuir o poder da fala, mas é mau empregá-lo para enganar ou
seduzir a outros, levando-os à ruína. Daí que seja totalmente
sensato exigir: utilize esse poder, aumente-o, mas não faça mau
uso dele. A esse respeito se pressupõe que a ética pode
distinguir claramente entre ambos, entre o uso correto e o errado
de uma mesma capacidade. Mas como ficam as coisas se nos
movemos em um contexto de ação no qual todo

Continue navegando