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Para Gertrud e Immanuel Kroeker com amizade velha, mas que nunca envelhece. H INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA á pelo menos três anos um grupo de pesquisadores brasileiros assumiu a tarefa de falar a filosofia de Hans Jonas em língua portuguesa e de fazer ecoar no cenário filosófico nacional as ideias e as preocupações formuladas por este filósofo judeu-alemão. A tradução coletiva da presente obra é, por isso, mais do que um projeto editorial: é o testemunho da factibilidade e da fertilidade dessa articulação e a prova do interesse conjunto dos professores aqui envolvidos e de todos aqueles que, de norte a sul do país, vêm publicando livros, capítulos de livros e artigos em revistas especializadas, realizando os mais variados eventos, bem como orientando trabalhos de iniciação científica, monografias de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado não só a respeito da filosofia jonasiana, como também dos fecundos diálogos possíveis com seus interlocutores. Tal dinâmica evoca o êxito da iniciativa, que hoje é articulada pelo Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF e pelo grupo de pesquisa Hans Jonas do CNPq, nos quais pesquisadores de nível nacional e internacional têm a oportunidade de debater suas interpretações e enriquecer suas pesquisas. Hans Jonas é, sem dúvida, um dos nomes mais expressivos entre os discípulos de Husserl e Heidegger (aos quais acorreu, em Friburgo, no alto dos seus 18 anos), ao lado de Hannah Arendt (de quem foi amigo íntimo durante toda a vida), Leo Strauss, Gerson Scholem e tantos outros. Dos mestres ele herdou o método filosófico denso dos estudos iniciais sobre o gnosticismo e da fenomenologia – reinterpretada em suas próprias mãos, a partir da pergunta concreta sobre a vida. Deles também, como todo bom discípulo, recebeu a capacidade crítica capaz de provocar as rupturas necessárias para que uma filosofia própria seja formulada. No caso de Heidegger, tal ruptura fora ainda mais decisiva, porque, somadas às diferenças teóricas, estão as motivações político-ideológicas e as impossibilidades nascidas do flerte antissemita do mestre, que o discípulo, por motivos óbvios, nunca conseguiu entender ou desculpar. Sionista militante, Jonas foi vítima do nazismo, que, além de retirar-lhe e aos seus, a pátria e a dignidade, arrancou-lhe a mãe, morta num campo de concentração. Fez-se soldado de uma brigada inglesa contra o nazismo e na guerra viu o principal: que a morte é o limite da vida e que o modo moderno de fazer guerra (com uso de uma tecnologia inédita cujo auge é o assombroso evento da bomba atômica lançada sobre as cidades japonesas) não só ameaça a vida em termos individuais, mas também ameaça a própria vida em seu conjunto. Do campo de batalha, com os livros de Darwin nas mãos, escreve cartas formativas a sua esposa, Lore Jonas, as quais seriam o embrião de sua obra O fenômeno da vida.1 Se a preocupação inicial da primeira fase de seu pensamento é com o marcante dualismo que passa a caracterizar a cultura ocidental desde quando as seitas gnósticas vindas do Oriente passaram a exercer forte e ambígua influência sobre o cristianismo nascente, depois da guerra, Jonas volta seus esforços para a formulação de uma filosofia que superasse tal dualismo na interpretação do que é a vida. Segundo tais intuições, a dualidade ontológica espírito-matéria interditou a questão sobre a vida, velando-a sob os monismos materialista e idealista que fracassaram na explicação do vivente. A interpretação tradicional teria, segundo Jonas, adentrado em equívocos de tal forma que a vida mesma teria permanecido esquecida e incompreendida em ambas as visões. Ao resgatar filosoficamente o tema da vida, em busca de uma teoria unificada da unidade psicofísica, apoiado nos dados das ciências biológicas, o autor passa a apontar os desafios e as ameaças contemporâneas lançadas pela técnica, diante dos quais seria preciso formular novos critérios éticos, dado que os modelos tradicionais já não dariam conta da nova realidade. Ao tentar romper o obstáculo do dualismo que impede uma compreensão mais “adequada” do fenômeno da vida, para estabelecer uma visão a partir da unidade, intersecção e contiguidade entre espírito e matéria, Jonas parte do horizonte filosófico da fenomenologia e do âmbito dos estudos biológicos e suas implicações filosóficas. Com isso, ele abre “incontestavelmente a via, original, de uma fenomenologia da vida”, segundo Renaud Barbaras.2 Para Jonas a vida é, fenomenologicamente falando, um ato relacional marcado pela imediatez e não uma substância que se apresenta ao sujeito consciente. Como experiência originária do vivente, a vida é marcada pela relação com o meio, ou seja, por uma intersubjetividade radical com o mundo. Tal é a porta aberta pela fenomenologia até a vida que recusa a percepção objetivante para afirmar-se como um ato evidente que se afirma a si mesmo. Ora, na sua relação com a morte e como efetivação de uma resistência contra a ameaça trazida pela finitude, a vida pertence a um âmbito de riscos e passa a ser entendida de forma imediata a partir da experiência da fragilidade: porque pode morrer é que o vivo se mantém num frágil equilíbrio entre liberdade e necessidade. Para Jonas, desde as formas mais primitivas, a vida mantém com o meio uma relação de liberdade precária e de dependência que é, no primeiro estágio, explicitada pela ideia do metabolismo e, posteriormente, pela complexificação estrutural, pela percepção (ou sensação), pela emoção (desejo, afetividade, medo), pela ação e pela intelecção (imaginação, arte, espírito, consciência, busca pela verdade e fé). Sendo assim, vivendo e se abastecendo da matéria, que lhe fornece os nutrientes, a vida forja a si mesma num gesto de liberdade que expressa tanto a sua diferença em relação ao meio material, quanto a sua pertença a ele do ponto de vista do corpo vivo. Assim, a vida não seria marcada por nenhuma identidade estática, mas por uma constante mudança na matéria que a constitui e na forma que a materializa. Vida é sempre vida vivida ou ainda, vivente. Em sua condição instável, a vida seria marcada pela necessidade, mas também, e ao mesmo tempo, pela liberdade, pois, sendo livre, a vida também é frágil, ou melhor, justamente por ser frágil é que a vida é livre, de tal forma que, segundo Marie Geneviève Pinsart,3 “a fenomenologia da vida é a história da liberdade através da evolução dos seres vivos”. Porque ocorre como fragilidade, precariedade e vulnerabilidade da vida (desde suas formas mais primitivas até o ser humano), a liberdade pode ser compreendida, tal como sugere esta autora, como o fundamento ontológico da interpretação do fenômeno da vida, sendo que, no exercício dessa liberdade e na instabilidade da relação com o mundo exterior, o grande desafio da vida é manter a identidade. Essa atividade de intercâmbio e interação constitui a abertura do ser ao mundo, uma abertura perigosa presente tanto no ser humano quanto nos demais âmbitos do vivo, na forma de inúmeras possibilidades de realização no mundo. Todas as formas de vida, por realizarem o intercâmbio metabólico com o meio, estão submetidas a essa abertura arriscada no espaço e no tempo. Isso significa que a vida é também uma aventura de riscos e perigos, porque, parafraseando Hölderlin, onde habita a liberdade, também cresce o perigo. Para Jonas, a própria técnica é, ao mesmo tempo, uma expressão da abertura necessária da vida (especialmente humana) para o mundo e um risco sem precedentes, principalmente porque a ela se associa uma dimensão utópica baseada na ideia de progresso. O diagnóstico de Jonas evidencia o perigo dessa aposta, cuja magnitude e ambivalência passa a exigir um “poder sobre o poder”,4 ou seja, uma ética capaz de forjar uma reflexão sobre a técnica, com o fim de impor-lhe, quando for o caso, limites voluntários. Porque a vida diz um sim constante para si mesma, ela é a expressão – ontologicamente falando – de um dever ser. Por meio do princípio responsabilidade, Jonas dá contorno à sua propostade uma ética para a civilização tecnológica, cujo mote central (que soa quase como um delito, o autor mesmo reconhece) é o fato de que ela se apoia sobre um diagnóstico do perigo trazido pela tecnologia e sobre a evidência de que a vida, em si mesma, guarda uma exigência ética. A vida (o ser) é o fundamento da ética jonasiana (do dever ser, portanto) e é nela que se apoia o princípio responsabilidade. Jonas conta a história da tecnologia como a história de uma ascensão do poder humano sobre a natureza e sobre si mesmo. Seriam cinco os estágios dessa elevação da técnica a dado existencial moderno: o estágio mecânico (tida pelo autor como o primeiro estágio do desenvolvimento tecnológico); o químico (que ofereceu a possibilidade de interferir, alterar e redesenhar os próprios padrões naturais, gerando um novo âmbito de artificialidade); o estágio da tecnologia elétrica (que ampliou o âmbito da artificialidade, já que a eletricidade é uma força manipulável criada pelo homem); da eletrônica (que descarta definitivamente a ideia de uma imitação da natureza, para inventar objetos, objetivos e necessidades próprias); e, por último, o estágio biológico (tida como a última fase e a mais poderosa e perigosa de todas). É justamente nesse último estágio que se concentra a obra Técnica, medicina e ética, apresentada como uma proposta de aplicação prática do princípio responsabilidade. O tema central da obra é o fato de que a técnica transformou o homem em seu objeto. De sujeito da tecnologia, os avanços no campo geral da medicina e da moderna biotecnologia, fizeram do homem um objeto, ou seja, uma espécie de artefato. Quais as consequências disso no campo ético e quais as novas exigências e obrigações daí advindas? Até onde podem ir os experimentos com seres humanos? O que restará ainda da imagem do homem caso a técnica melhorativa realize seu projeto utópico? Em que consiste o fato, ontológica e eticamente falando, de que o homem tenha se habilitado a “refabricar inventivamente”5 a si mesmo? Eis alguns dos problemas enfrentados por Jonas nessa obra que, em seu conjunto, foi publicada em 1985, mas é formada por onze artigos que foram escritos desde 1969 (alguns em inglês, outros em alemão), além de duas “Conversas públicas”6 sobre O princípio responsabilidade. Neles, o autor enfrenta problemas tão graves e urgentes quanto polêmicos, tendo inspirado decididamente, com suas reflexões, um amplo cenário de debates e legislações da bioética, para a qual a proposta de Jonas apresenta-se absolutamente fértil quanto ao fornecimento de fundamentos teóricos e filosóficos. O interesse de Jonas pela temática remonta a 1967. Segundo suas Memórias,7 nessa época, por ocasião de um convite da American Academy of Arts and Sciences, de Boston, para uma conferência sobre o tema das Reflexões filosóficas sobre os experimentos com sujeitos humanos. Sob indicação do famoso jurista de Harvard, Paul Freund, a partir desse momento Jonas teria se dado conta de que a sua reflexão ética “deveria estar em conexão com o desenvolvimento da técnica moderna. Publicada na revista Daedalus, essa conferência deu a Jonas, segundo as suas palavras, uma “inesperada fama pública”. Alguns anos mais tarde, a conferência foi pronunciada em Heidelberg, num congresso médico que comprovou que Jonas precisava ultrapassar as reflexões ontológicas genéricas de sua obra anterior (O fenômeno da vida) para chegar a uma ética prática concreta. O texto, assim, é formado por vários ensaios, sendo que o mais antigo data de 1969, justamente o supracitado artigo, no qual o autor trata dos experimentos com seres humanos. Esse artigo foi escrito cinco anos depois da Associação Médica Mundial ter formulado a Declaração de Helsinque, considerado o primeiro documento que visava estabelecer parâmetros para o uso de seres humanos em pesquisas científicas. Jonas, como membro do respeitado Hastings Center8, aborda esse tema no artigo Reflexões filosóficas sobre experimentos com sujeitos humanos, que forma o capítulo 6 do presente livro. Os capítulos 1 e 2, por sua vez, datam de 1979 e de 1982, respectivamente e, juntamente com o capítulo 3 (de 1983) representam uma reflexão contundente sobre a técnica e os desafios éticos que ela guarda. O capítulo 4 (de 1983) e 5 (primeira versão de 1976) formam, juntos, a base da reflexão sobre a liberdade e a responsabilidade da investigação médica. O capítulo 7, Arte médica e responsabilidade humana, teve sua primeira versão publicada em 1983. O capítulo 8 é formado pelo ensaio intitulado Façamos um clone humano: sobre a eugenia, escrito originalmente em inglês no ano de 1974, sob o título de Biological Engineering – A Preview, antes mesmo da publicação d’O princípio responsabilidade. O capítulo 9 (Micróbios, gametas e zigotos: ainda sobre o novo papel criador do ser humano), por sua vez, foi escrito em 1984 como resultado da conferência apresentada por Jonas em 29 de maio de 1984, em Frankfurt/Main, no centenário da divisão “Tharma” de Hoechst A. G. Esse texto recebeu ainda mais uma publicação em inglês, com o título de Ethics and Biogenetic Art (Social Research, vol. 52, 1985, p. 491-504), sendo reeditado com o mesmo título num volume posterior da mesma revista (cf. Social Research, vol. 71, n° 3, Fall 2004, p. 569-582). O capítulo 10 (Morte cerebral e banco de órgãos humanos) teve uma versão inicial em 1969 e recupera um debate entre professores de Harvard em torno da definição da morte, contra a qual Jonas se opôs, o que o levou a ser convidado a acompanhar de perto os transplantes realizados pelos médicos do Medical Center da Universidade da Califórnia. O artigo teve outras duas versões (uma de 1974 e outra de 1980), nas quais Jonas mantém seu receio quanto aos abusos que essa nova definição sobre a morte poderia evocar. O último ensaio, de número 11 (Direito de morrer) enfrenta o tema da eutanásia e foi publicado originariamente em inglês no ano de 1978 e em alemão, em 1984. Por sua importância filosófica, ética, prática e política, o livro que o leitor tem em mãos interessa aos filósofos, pesquisadores e estudantes da filosofia, tanto quanto aos profissionais da área da saúde, cujos desafios éticos crescem na mesma medida dos avanços tecnológicos. Mas essa é uma obra ainda maior. Seu interesse alcança todos aqueles cidadãos preocupados em entender e sopesar os verdadeiros custos e os reais benefícios que se escondem sob as promessas utópicas e ao mesmo tempo apocalípticas do novo poder técnico. Se o entusiasmo dessas promessas é equivalente à medida da crise na própria imagem do homem que elas pretendem melhorar, alterar ou até mesmo recriar, esse é um sinal evidente da necessidade (que é, no limite, também uma obrigação) de que a nossa geração não somente desconfie dos êxitos tecnológicos, mas reflita sobre os perigos que os acompanham. No campo ético, não temos mais direito à ignorância. Sob pena de que sacrifiquemos parte da humanidade – justamente aquela que emite os mais fortes apelos à nossa responsabilidade. Ali onde o homem sofre, no leito de um hospital ou na hora mais sombria em que sua morte se aproxima, é onde cresce a obrigação dos demais membros da sociedade humana, principalmente dos profissionais responsáveis pelo seu cuidado. Qualquer promessa, bem como qualquer dissentimento ou negação de esperanças, nesse caso, são decisivos e devem ser tratados com a maior das responsabilidades. Ciente da vocação da filosofia em fornecer pistas para que os problemas da vida humana sejam enfrentados, Jonas retoma com fertilidade a relação, quase sempre conflituosa e sempre promissora, entre filosofia e ciência. Os resultados estão expressos já na ordem das palavras que dão título ao livro: uma reflexão sobre a técnica (os dois primeiros capítulos são, provavelmente, os textos mais diretos e objetivos de Jonas sobre esse tema, vindo a constituir a base do seu programa para uma filosofia da técnica), os seus impactos sobre a medicina e as suas consequências éticas. Em cada um dos capítulos que formam essa obra,o leitor encontrará um autor lúcido, sem afetações literárias ou teóricas, humano, modesto e engajado com os grandes desafios de sua época, que também é a nossa. Tudo isso faz da obra de Jonas não só um documento atual, como também atualizado em suas principais intuições. Essa é a principal razão para que alguns colegas que formam o GT Hans Jonas tenham reunido esforços para verter ao público de língua portuguesa uma obra ao mesmo tempo tão rica e tão aberta – detentora daquela espécie de inacabamento que soa como um convite para que os seus leitores e interessados sejam seus continuadores. Eis o nosso serviço. J����� O�������, coordenação do GT Hans Jonas da ANPOF Curitiba, primavera de 2013. O PREFÁCIO princípio responsabilidade (1979) prometia uma parte apli cada na qual se ilustraria com exemplos selecionados o novo tipo de questões e obrigações éticas que a caixa de Pandora da tecnologia nos presenteia junto com seus dons e na qual, na medida do possível, se facilitaria a forma de responder corretamente a elas. Esse passo do geral para o particular e da teoria para as proximidades da prática é o que se intenta dar nos artigos reunidos aqui. Pretendem, portanto, começar com a “casuística”, cujo inexplorado território da responsabilidade tecnológica exige ainda mais do que a moral e o direito em geral pedem no terreno já conhecido. Desde que extremo do amplo espectro tecnológico se pode propor um começo assim? Sem dúvida o melhor será fazê-lo a partir daquilo que é mais próximo a nós, ali onde a técnica tem diretamente por objeto o próprio homem e onde o conhecimento de nós mesmos, a ideia de nosso bem e de nosso mal, tem uma responsabilidade direta, ou seja: no âmbito da biologia humana e da medicina. Aqui, entre homens a sós consigo mesmos, é onde a ética se encontra em seu terreno e necessita pouco conhecimento do grande mundo, do equilíbrio local e global da biosfera e do efeito remoto de suas perturbações, para encontrar seu caminho. O que é desde já visível aqui, inclusive imaginável, pode ser tratado desde já, à luz da nossa imagem do homem, com alguma certeza tanto teórica quanto prescritiva, e o achado pode ser seguido sem dificuldade, porque nesse terreno nenhuma pressão externa (exceto no caso do problema da população) empurra os conhecimentos à ação. Nesse horizonte, pois, têm seu ponto de partida as seguintes investigações. Sem dúvida, dada a escala da ameaça coletiva à qual a responsabilidade tem que fazer frente hoje em dia, podem existir coisas de maior e mais global urgência que as afinadas questões, em parte muito pessoais, da humanidade médica e genético- técnica. Pensamos, antes de tudo, na dura ameaça do holocausto atômico e, logo, na ameaça sutil da destruição ambiental. Mas sobre elas – sobre o suicídio da humanidade – a ética não tem nada a dizer, salvo um incondicional não em torno do qual todos estão de acordo, inclusive sem recorrer à filosofia. A ética e a metafísica fizeram sua entrada esotérica a respeito ao demonstrar por que ele não tem que ser incondicional, com um motivo válido na incondicional obrigação da humanidade em manter sua própria existência (fizemos uma tentativa a respeito disso n’O princípio responsabilidade). Como evitar a loucura – o pecado literalmente mortal – é coisa da política, onde, como se sabe, desaparece a unanimidade. A teoria ética tem tanto menos que fazer aqui quanto em relação à forma radical de eliminar o perigo, a total erradicação das armas nucleares – a diferença de outras erradicações ponderáveis de formas de poder tecnicamente perigosas –, não faz dano a ninguém, não impõe sacrifício algum do desfrute das bênçãos e maldições da tecnologia (à qual tais erradicações não afetam), cujo consumo e produtividade a serviço do bem-estar aumenta ainda mais ao poupar o gasto em potencial de aniquilação: de forma que não surge a questão, sem dúvida ética, de qual sacrifício é exigível conforme a uma justa partilha das cargas. Fora do fragor da política, para a razão e os costumes, tudo está claro como a luz do dia e não há lugar para sopesar direitos ou bens em conflito. Por isso, esse livro não fala dela. Não é tão claro o caso de outra ameaça apocalíptica da técnica moderna, a lenta destruição do meio ambiente, que pode terminar em uma não menor desolação e em sofrimentos quem sabe até maiores que uma repentina catástrofe. Sem dúvida o não à ruína final claramente visível será tão unânime como no caso da morte atômica. Mas o processo que conduz a ela avança por muitos caminhos e em mil pequenos passos, em toda parte cheio de desconhecimento em relação aos valores críticos; isto é, há questões abertas no que diz respeito até onde se pode chegar aqui ou ali; é um processo que não depende de dramáticas decisões, mas da banal cotidianidade e do uso de recursos em si mesmos inocentes, que favorecem a vida, que se tornaram necessários: toda a incansável tecnologia de nossa produção de bens, que alimenta o consumo mundial. Aqui já não se pode falar de prevenção indolor, como no caso dos arsenais de armas que esperam em silêncio, e se perde a unanimidade do não com respeito à ameaça abstrata para o futuro: a da ciência, porque é defeituosa; a da vontade, porque o distante que talvez exige um sacrifício não afeta as restrições da atual certeza. Inclusive o sim ético à obrigação geral diverge de si mesmo, porque a divisão desigual do sacrifício global exigido ofende a própria moral: quem vai defender proteção ambiental a populações famintas? Para o filósofo é muito cedo para penetrar nessa espessura, para ensaiar a casuística. Ainda não existe a ciência ambiental integral que seria o pressuposto para isso. Pelo menos as ciências competentes (tanto a da natureza quanto a da economia) devem começar por elaborar a partir da rede de causalidades as opções práticas sobre as quais aplicar concretamente a análise ética, e isso só está em seus começos. Ainda não podemos confundir o telescópio com a lupa. Entretanto, até que se deem as condições cognitivas prévias da concretização, o respeito e a cautela das que falava n’O princípio responsabilidade e a consciência do perigo, devem nos distanciar, em sentido mais geral, da perniciosa rapidez e fazer crescer em nós um espírito de nova abstenção. Por isso – pelo contrário da “supersimplicidade” do apocalipse nuclear –, este livro também guarda silêncio acerca da ética ambiental, onde se experimenta com paradigmas da prática. Esses paradigmas são também os que se inferem no terreno da biologia humana. Por mais que também esta, através do caminho que passa pelo problema da população, penetra na ecologia e, nesse sentido, como fator no destino do meio ambiente e função dele, é também assunto de cifras e magnitudes causais objetivas – uma peça de ciência natural biosférica, pois –, representa, contudo, em si mesma, uma dimensão da moralidade na qual questões essencialmente qualitativas, não quantitativas, de tipo puramente humano, exigem nossa resposta humana e valorativa. Para isso devemos escutar o nosso interior. Mas as questões que requerem aqui nossa resposta surgem da nova tecnologia, própria desse âmbito que pode ser incluído no conceito amplo de medicina. Sem dúvida, a medicina foi a mais antiga reunião de ciência e arte, pensada essencialmente – diferentemente da técnica saqueadora do domínio do meio ambiente – para o bem de seu objeto. Com a meta inequívoca da luta contra a enfermidade, a cura e o alívio, manteve-se até agora eticamente inquestionável e exposta tão só à dúvida de sua capacidade em cada momento. Mas hoje, com meios de poder inteiramente novos – sua cota de ganância no progresso científico-técnico geral – pode propor a si mesma objetivos que escapam a essa inquestionável beneficência; inclusive pode perseguir seus fins tradicionais com métodos que despertam a dúvida ética. As “factibilidades” que oferecem, sobretudo os mais inovadores e mais ambiciosos desses objetivos e caminhos, e que afetam especialmente o princípio e o final de nossa existência, o nosso nascimentoe a nossa morte, tocam questões últimas da nossa existência humana: o conceito de bonum humanum, o sentido da vida e da morte, a dignidade da pessoa, a integridade da imagem do homem (em termos religiosos: a imago dei). Essas são autênticas perguntas para o filósofo, que pode abordá-las conforme os critérios do ser, livre, portanto, do hieroglífico das cifras e das intrincadas causalidades mundiais que governam em linhas gerais o efeito de nossa ação. Aqui, onde o paradigma individual já deve dizer toda a sua verdade, o filósofo pode fazer com que se produza experimentalmente o encontro da ética com a técnica no exemplo que eleja e com seus próprios recursos, e não precisa esperar pela ciência elaborada da enfermidade global e sua possível cura. Aqui também, como já dissemos, o seguimento do critério ético obtido não se torna, por sua vez, um problema. Até aqui nos referimos à especial temática que tratamos de precisar nas aplicações do princípio responsabilidade a “casos” concretos no campo tecnológico (capítulos 6-11). Considerações mais gerais sobre o tema “ciência, técnica e ética”, que também situem no quadro sistemático quem não leu a obra anterior, demarcam as discussões específicas. Essas surgiram por variados motivos ao longo de muitos anos: o artigo mais antigo é do ano de 1968. Sem dúvida, em sua atual publicação, na maioria dos casos sem modificações, incluem muitas coisas que, entretanto, dado o rápido crescimento da bibliografia, foram ditas também por outros. É um sinal alentador que a discussão pública esteja em marcha em muitos idiomas. Nela, as diferenças de opinião são tão importantes quanto as concordâncias. Será compreendido, por minha idade, que tenha de falhar na hora de fazer justiça ao estado atual dos conhecimentos mediante as correspondentes indicações. O exposto reproduz, ainda hoje – de forma experimental, como é adequado ao caso – minha opinião acerca das coisas. Hans Jonas New Rochelle, New York, USA, abril de 1985 1 Em português, uma versão da obra foi traduzida como O princípio vida, ensaios de uma filosofia da biologia. A primeira versão, entretanto, que se encontra depositada nos arquivos da Universidade de Constança, na Alemanha, dá conta de que Jonas tinha inicialmente intitulado a obra de Organism and Freedom e muito provavelmente por sugestão de seu editor, acabou optando por Phenomenon of life. Como se nota facilmente pela leitura de tais manuscritos, não apenas o título foi alterado, mas também a própria organização do texto. A versão alemã foi publicada posteriormente, sob o título de Organismus und Freiheit. No prefácio de 1972, Jonas explica que a versão em alemão foi traduzida por ele e por Dr. Dockhorn (introdução e capítulos 3, 6, 7 e 8) e que os textos nos quais trabalhou sofreram algumas atualizações e revisões estilísticas. Além disso, ele repara que a versão alemã tem duas exceções em relação à inglesa: o capítulo 4 não figurava naquela; e o ensaio de número 10 (sobre Heidegger e a teologia) não fora incluído na versão alemã, porque o texto já havia sido publicado na língua materna do autor, em 1967. 2 Cf. Renaud BARBARAS, Vie et intentionnalité, Recherches phénomenologiques, Paris, Vrin, 2003, p. 43 (Col. Problèmes et controverses). 3 Cf. Marie-Geneviève PINSART, Jonas et la liberté, Dimensions théologiques, ontologiques, éthiques et politiques, Paris, Libraire philosophique J. Vrin, 2002, p. 79. 4 Cf. Hans JONAS, Técnica, Medicina e ética, p. 48. 5 Cf. Hans JONAS, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. 57. 6 A primeira refere-se a uma mesa-redonda realizada por ocasião de um simpósio realizado no Hotel Schlöss Fuschl, na Áustria, entre 7 e 10 de maio de 1981, na qual Jonas debateu com eminentes interlocutores de áreas tão diversas como a ciência e a filosofia política, a teologia, o direito penal e a jurisprudência, a física, a bioquímica e a tecnologia de materiais. A segunda dessas “Conversas” é uma entrevista concedida ao periódico Nachrichten aus Chemie, Technik und Laboratorium, em 1981. 7 Hans JONAS, Memorias, Madri, 2005, p. 341. 8 Jonas fora nomeado sócio-fundador desse importante centro de pesquisas médicas norte-americano que criou, em 1969, o Instituto de Bioética, o qual desempenhou um importante papel na atividade pública do autor a partir de então. A atuação de Jonas foi decisiva a partir de então no campo político e mesmo legal e seu interesse pelos problemas éticos ligados à técnica moderna, principalmente no campo da medicina. A fama do Hastings Center não tardou e sua influência alcançou comissões do Congresso de Washington. Atualmente o Hastings Center continua atuante e apresenta-se como um instituto independente, não partidário e sem fins lucrativos de pesquisa sobre bioética e tem como missão desenvolver reflexões sobre fundamentos éticos na área de saúde, medicina e meio ambiente, estudando como elas afetam indivíduos, comunidades e sociedades. D Capítulo 1 POR QUE A TÉCNICA MODERNA É OBJETO DA FILOSOFIA ado que hoje em dia a técnica avança sobre quase tudo o que diz respeito aos homens – vida e morte, pensamento e sentimento, ação e padecimento, ambiente e coisas, desejos e destino, presente e futuro – em resumo, dado que ela se converteu em um problema tanto central quanto premente de toda a existência humana sobre a terra, já é um assunto de filosofia e é preciso que exista alguma coisa como uma filosofia da tecnologia. Esta é bastante incipiente e é preciso que se trabalhe ainda sobre ela. Para isso, é preciso começar analisando o fenômeno de forma descritiva e, a partir dele, obter analiticamente os aspectos parciais de dignidade filosófica com os que há de se continuar trabalhando na interpretação de conjunto. O que se segue pretende começar a fazê-lo perguntando pela especificidade desta nova tecnologia que, de imediato, parece dotada de atributos tão extremos como a promessa utópica e a promessa apocalíptica, com uma qualidade, em todo caso, quase escatológica. Nesse ponto, resulta útil para nosso objetivo a velha distinção entre “forma” e “conteúdo”, que nos permite distinguir como principais os dois temas seguintes: 1. A dinâmica formal da tecnologia como uma empresa coletiva continuada que avança conforme “leis de movimento” próprias. 2. O conteúdo substancial da tecnologia, o qual consiste nas coisas que aporta para o uso humano, o patrimônio e os poderes que confere, os novos objetivos que abre ou dita e as próprias novas formas de atuação e conduta humanas. O primeiro tema, formal, contempla a tecnologia como o conjunto abstrato de um movimento; o segundo, de conteúdo, seu múltiplo uso concreto e seu efeito sobre o nosso mundo e nossa vida. O acesso formal quer recolher as “condições do processo”, permanentes, com as quais a moderna tecnologia abre passagem para “si” – mediante nossa ação, naturalmente – até a novidade seguinte e superadora de cada momento. O acesso material quer examinar as formas da novidade mesma, tentar classificá-las (situá-las, de certo modo, numa “taxonomia”) e obter uma imagem do aspecto do mundo equipado com elas. Um terceiro tema, que abarca a ambos os anteriores, seria a face ética da tecnologia como exigência à responsabilidade humana, que deve tomar a palavra posteriormente. Por conseguinte, em uma ordem sistemática, os três temas indicados, que podem servir como esquema básico da filosofia da tecnologia à qual aspiramos, referem-se à “forma”, ao “conteúdo” e à “ética” da tecnologia. Enquanto o terceiro (e mais importante) tema é valorativo, os dois primeiros que aqui tratamos são analíticos e descritivos. A Dinâmica Formal da Tecnologia Comecemos, pois, fazendo ainda completa abstração dos resultados concretos da técnica, por algumas observações sobre sua forma, como totalidade abstrata de movimento, que sem dúvida pode-se chamar “tecnologia”. Dado que se trata das características da técnica moderna, a primeira pergunta é em que ela se distingue formalmente de todas as anteriores. Há uma diferençaprincipal, aquela indicada no nome “tecnologia”, na qual a técnica é uma empresa e um processo, enquanto a anterior era uma posse e um estado. Técnica Pré-moderna Se o conceito de “técnica”, grosso modo, denomina o uso de ferramentas e dispositivos artificiais para o negócio da vida, junto com sua invenção originária, fabricação repetitiva, contínua melhora e ocasionalmente também adição ao arsenal existente, tão tranquila descrição serve para a maior parte da técnica ao longo da história da humanidade (a qual tem a mesma idade que ela), mas não para a moderna tecnologia. Porque no passado o inventário existente de ferramentas e procedimentos costumava ser bastante constante e tender a um equilíbrio reciprocamente adequado, estático, entre fins reconhecidos e meios apropriados. Uma vez estabelecida tal relação, mantinha-se durante longo tempo como um optimum de competência técnica sem mais exigências. É verdade que se produziram revoluções, mas mais por casualidade do que por intenção. A revolução agrícola (a partir da vida de caçador ou nômade), a metalúrgica (da Idade da Pedra à Idade do Ferro), a ascensão das cidades e outros desenvolvimentos similares “ocorreram”, por assim dizer, pois não foram organizados conscientemente e seu ritmo foi tão lento que só na contração temporal da retrospectiva histórica ganham o aspecto de “revoluções” (com o desorientador sentido acessório de que os contemporâneos os sentiram como tais). Inclusive lá onde uma mudança foi repentina, como no caso da introdução do primeiro carro de guerra e, mais tarde, da cavalaria armada, na técnica bélica – uma forte revolução, de fato, ainda que de vida curta –, a inovação não surgiu de dentro da arte bélica das sociedades mais avançadas afetadas, mas lhes foi imposta de fora pelas populações (muito menos civilizadas) da Ásia Central. Outras “irrupções” técnicas, como a coloração vermelha na Fenícia, o “fogo grego” em Bizâncio, a porcelana e a seda na China, o endurecimento do aço no “damasquinado”1 foram – em vez de estender-se pelo mundo tecnológico de sua época – monopólios zelosamente guardados por suas sociedades inventoras. No caso de outros, como os jogos hidráulicos, a energia do vapor dos mecânicos alexandrinos ou a bússola e a pólvora dos chineses, não se atentou para seu importante potencial tecnológico.2 Em conjunto, as grandes culturas clássicas haviam alcançado, de forma relativamente rápida, um ponto de saturação tecnológica – o “optimum” que antes mencionávamos, quanto ao equilíbrio de meios e habilidades com necessidades e objetivos reconhecidos – e, posteriormente, encontraram poucas razões para ir além disso. Da cerâmica às construções monumentais, do cultivo do solo à construção naval, dos têxteis às máquinas de guerra, da medição do tempo à astronomia: ferramentas, técnicas e objetivos seguiram sendo essencialmente os mesmos durante longos períodos de tempo, as melhoras foram esporádicas e não planejadas e o progresso portanto – se é que se produzia3 – consistia em acréscimos insignificantes a um nível geralmente alto que ainda hoje desperta nossa admiração e, segundo demonstra o fato histórico, tendia mais a perdas por descenso do que a inovações superadoras por novas criações. Ao menos o primeiro (quando ocorreu em grande escala) foi o fenômeno mais observado e lamentado pelos epígonos com uma nostálgica lembrança de um passado melhor (como no decadente mundo romano). Entretanto, inclusive nos tempos de forte florescimento, não houve uma ideia proclamada de um futuro de progresso continuado nas artes; mais importante ainda: nunca houve um método intencional para produzi-lo, como a investigação, o experimento, a prova arriscada de caminhos não ortodoxos, o amplo intercâmbio de informações a respeito etc. Mas o que menos havia eram ciências naturais entendidas como um corpus crescente de teoria que houvesse podido guiar tais atividades semiteóricas, pré-práticas... para não falar de uma institucionalização social de todas as coisas. Em poucas palavras, tanto em métodos como em instrumentos, as “artes” pareciam adequadas a seus fins e eram por eles tão firmes quanto os próprios objetivos.4 Técnica Moderna A técnica moderna oferece um quadro exatamente contrário ao descrito acima e para nós este constitui seu primeiro aspecto filosófico. Comecemos por algumas constatações óbvias. 1. Cada novo passo em qualquer direção, em qualquer terreno novo da técnica não conduz a um ponto de equilíbrio ou de “saturação” na adequação dos meios aos objetivos pré-fixados, mas – ao contrário –, em caso de êxito, constitui o motivo para dar outros passos em todas as direções possíveis, com os quais os objetivos mesmos se “diluem” (como veremos mais adiante). O mero “motivo” se converte em causa forçosa em cada passo maior ou “importante”, e isto pode ser precisamente um critério de que o era. O inovador espera isso mesmo da solução de sua tarefa imediata, ainda que não possa dizer aonde lhe conduzirá sua reprodução mais além dela. 2. Cada inovação técnica está segura de difundir-se com rapidez pela comunidade tecnológica, como ocorre também com os desdobramentos teóricos nas ciências. A difusão tecnológica se produz, com escassa diferença temporal, tanto no plano do conhecimento como no da apropriação prática: o primeiro (junto com sua velocidade) vem garantido pela intercomunicação universal, por sua vez uma conquista do complexo tecnológico; o segundo, forçado pela pressão da concorrência. 3. A relação entre meios e fins neste campo não é linear em sentido único, senão circular, em sentido dialético. Objetivos conhecidos, perseguidos desde sempre, podem ter melhor satisfação mediante novas técnicas cujo surgimento eles mesmos inspiraram. Mas também – e de forma cada vez mais comum –, vice-versa, novas técnicas podem inspirar, produzir, inclusive forçar novos objetivos nos quais ninguém havia pensado antes, simplesmente por meio da oferta de sua possibilidade. Quem havia desejado ver grandes óperas, cirurgia em coração aberto ou o resgate dos cadáveres de uma catástrofe aérea na sala de sua casa (para não falar dos anúncios de sabão, frigoríficos e compressas)? Ou beber café em copos de papel descartável? Ou a inseminação artificial, os bebês de proveta ou a gravidez em mães de aluguel? Ou ver andando por aí seres clonados de um mesmo ou de outros de sua espécie? A tecnologia acrescenta, pois, aos objetos de desejo e necessidade humanos já existentes, outros novos e insólitos, inclusive gêneros inteiros desses objetos... e com eles se multiplica também suas próprias tarefas. O último ponto mostra o quão dialético ou circular é o caso: objetivos que em princípio se produzem sem serem solicitados e quiçá casualmente, por feitos da invenção técnica, convertem-se em necessidades vitais quando se assimilam à dieta socioeconômica utilizada e apresentam à técnica a tarefa de seguir tornando-os seus e de aperfeiçoar os meios para sua realização. 4. Por isso o “progresso” não é um adorno ideológico da moderna tecnologia nem tampouco uma mera opção oferecida por ela, como algo que podemos exercer se queremos, mas um impulso incerto nela mesma, muito além de nossa vontade (ainda que a maioria das vezes em aliança com ela), repercute no automatismo formal de seu modus operandi e em sua oposição com a sociedade que o desfruta. “Progresso” não é, nesse sentido, um conceito valorativo, mas puramente descritivo. Podemos lamentar seus feitos e detestar seus frutos e mesmo assim temos que avançar com ele, porque salvo no caso (sem dúvida possível) de que se autodestrua através de suas obras, o monstro avança dando à luz constantemente seus variados rebentos, respondendo cada vez às exigências e atrativos do agora. Mas ainda que não expresse um valor, “progresso” tampouco é aqui uma expressão neutra, que possamos simplesmente substituir por “mudança”. Porque forma parte da natureza do caso, como uma lei da série na qual cada estágio posterior é superior ao precedente conforme os critérios da própria técnica.5 Aqui se dá,pois, um caso de processo antientrópico (a evolução biológica é outro) no qual o movimento interior de um sistema, entregue a si mesmo e não perturbado desde o exterior, conduz normalmente a estados sempre “superiores” e não “inferiores” de si mesmos. Estes são, pelo menos, os fatos até o momento.6 Se Napoleão dizia: “A política é o destino”, hoje bem se pode dizer: “A técnica é o destino”. Esses pontos foram suficientemente longe para explicar a afirmação inicial de que a moderna tecnologia, diferentemente da tradicional, é uma empresa e não uma posse, um processo e não um estado, um impulso dinâmico e não um arsenal de ferramentas e habilidades. E apontam já certas “leis do movimento” deste incansável fenômeno. O que se descreveu – recordemo-lo – eram traços formais, que ainda tinham pouco a dizer sobre o conteúdo da “empresa”. Coloquemos duas perguntas para essa descrição: por que é assim, quer dizer, o que causa a infatigabilidade da moderna tecnologia, qual é a natureza de seu impulso? E: qual é a importância filosófica dos fatos assim explicados? Explicação causal: coações e impulsos ao progresso técnico Como é de se esperar num fenômeno tão complexo, as forças motrizes são muitas; a anterior descrição contém já algumas pistas causais. Mencionamos a pressão da concorrência – pelo benefício, mas também pelo poder, a segurança, o prestígio etc. – como um perpetuum movens da universal apropriação das melhores técnicas. Igualmente eficaz é, naturalmente, a hora de produzi- las, quer dizer, o processo mesmo da invenção, que hoje em dia depende da constante ajuda econômica e inclusive a fixação de objetivos a partir de fora: poderosos interesses se encarregam de ambas as coisas. A guerra ou sua ameaça demonstrou ser um fator especialmente potente. Os fatores menos dramáticos são inúmeros. “Manter a cabeça acima d’água” é um princípio comum. (Algo paradoxal em meio de uma inundação que já supera em muito aquilo com o que épocas anteriores foram felizes para sempre.) A concorrência não é a única forma de pressão que existe por trás do progresso da tecnologia. O aumento da população, por exemplo, e a ameaça de esgotamento das reservas naturais, atuam como impulsos independentes em relação a ela. Dado que a essas alturas ambos são em si mesmos produtos secundários de uma técnica exitosa, podem servir como um bom exemplo para a verdade geral de que, em um grau considerável, a técnica mesma cria problemas que depois tem de resolver mediante um novo salto adiante. (A “revolução verde” e o desenvolvimento de sucedâneos sintéticos ou fontes de energia alternativas são exemplos disso.) Estas pressões em direção ao progresso seriam, por conseguinte, os mesmos no caso de uma tecnologia em condições de livre concorrência como em condições, por exemplo, socialistas. Um impulso mais autônomo e mais espontâneo que estas formas quase mecânicas, com seu imperativo de “nada ou afunda”, seria a promoção da visão quase utópica de uma “vida cada vez melhor”, entendida de maneira vulgar ou refinada, para a qual a técnica demonstrou a aparente capacidade de criar continua mente as condições: o apetite despertado pela possibilidade (o “sonho americano”, a “revolução das expectativas crescentes”). Este fator não tão apreensível, é mais difícil de estimar, mas é inegável que representa um papel. Sua intencionada excitação e manipulação por parte dos fabricantes de sonhos do complexo industrial-mercantil é um tema em si mesmo e reduz um pouco a espontaneidade do motivo... do mesmo modo que degrada a qualidade do sonho. Terá que ficar também pendente até que ponto a “visão” mesmo é mais post hoc que ante hoc, ou seja, sugerida pelas deslumbrantes conquistas do processo tecnológico já em marcha. Inclusive nesse caso é ao menos uma influência reforçadora. Há também explicações mais especulativas dessa incansável dinâmica, como a da “alma fáustica” de nossa cultura ocidental, proposta por Spengler, que a impulsionaria irracionalmente ao infinitamente novo e a novas possibilidades sem indagar por sua própria vontade; ou à visão de Heidegger, de uma decisão igualmente própria do espírito ocidental da vontade de ilimitado poder sobre o mundo das coisas, decisão que se converteu em seu destino. Não quero entrar agora nisso. Para manter-se em um terreno mais empírico, merece menção um fator, também ele não econômico, de estímulo tecnológico: as necessidades de domínio ou “controle” dos grandes e povoados estados de nosso tempo, esses gigantescos superorganismos territoriais que dependem, para sua mera coesão, de uma técnica avançada (por exemplo, nos campos da informação, da comunicação, do transporte) e têm, portanto, interesse em seu desenvolvimento; tanto mais quanto mais centralistas forem. Naturalmente, isso vale tanto para sistemas socialistas como para sociedades de livre mercado. Podemos inferir dele que inclusive um Estado comunista mundial, livre tanto de rivais exteriores como de competência interior de mercado, teria de continuar impulsionando a tecnologia ainda que seja só com a finalidade de controle de tão colossais dimensões? É claro que, de qualquer modo, o marxismo aponta para a técnica não apenas por razões técnicas: mas pela liberação utópica do animal humano de toda necessidade material. Mas inclusive se deixamos de lado todos os dinamismos deste tipo subjetivo e elegível, até o caso mais monolítico que podemos imaginar – um sistema mundial comunista sem outro lastro ideológico e, especialmente, sem obrigação ideal de buscar o progresso – seguiria exposto àquelas pressões “naturais” independentes da concorrência, como o aumento da população e o desaparecimento das reservas naturais, com as quais a industrialização como tal tem de se responsabilizar. Bem poderia ser, pois, que esse elemento coativo do progresso tecnológico não esteja vinculado a seu solo nutricional originário, o sistema capitalista. Quiçá as expectativas de uma estabilização definitiva (e oportuna) foram um pouco melhores sob o socialismo – sempre que este fora mundial e, portanto, totalitário. Tal como estão as coisas, o pluralismo, ao qual estamos agradecidos, assegura a continuidade do avanço tecnológico enquanto haja espaço para ele. As premissas ontológicas e gnoseológicas para a possibilidade do progresso contínuo Poderíamos seguir desatando o novelo causal e sem dúvida encontraríamos outros fios. Mas nenhum deles, nem sequer todos em seu conjunto, dariam conta – ainda que o expliquem – de todo esse assunto. Porque todos partilham uma premissa sem a qual não poderiam fazer seu trabalho a tão longo prazo: a premissa de que pode haver um progresso ilimitado, porque sempre há algo novo e melhor para ser encontrado. A presença (de modo algum evidente) dessa condição objetiva é, de fato, também a convicção dos autores do drama tecnológico, mas se não fosse certa a convicção por si mesma, seria de tão pouca utilidade quanto o sonho dos alquimistas. Sem dúvida, a diferença destes pode apoiar-se em uma impressionante história de êxitos, o que, para muitos, é motivo suficiente para sua fé. (Talvez não importe muito se eles a têm ou não). O que se converte em algo mais que uma fé sanguínea é uma visão teórica subjacente e bem fundada da natureza das coisas e do conhecimento delas, segundo a qual estas não põem limite algum ao descobrimento e invenção, mas ao contrário, abrem em qualquer ponto a partir de si mesmas um novo acesso a algo ainda por conhecer e por fazer. A convicção complementar é, então, a de que uma tecnologia adaptada a uma natureza e uma ciência com tais horizontes ilimitados desfruta da mesma abertura, sempre renovada, no momento de transformá-los em conhecimento prático... de tal modo que cada um dos seus passos inicia o seguinte e nunca se impõe um freio devido ao esgotamento interno das possibilidades. Só o costume embota nosso assombro diante dessa fé inteiramente sem precedentes na “infinitude” virtual. O mais assombroso é que esta fé, a julgar por nossa atual compreensão da realidade, muito provavelmenteseja fundada... ou ao menos o suficiente para manter por longo tempo aberta a via da tecnologia inovadora na esteira do avanço da ciência. Enquanto não entendermos essa premissa ontológico-epistemológica, não entenderemos o impulso mais íntimo da dinâmica tecnológica, ao longo da qual repousa a eficácia de todas as demais causas adicionadas a esta. É preciso recordar que a “infinitude” virtual do progresso que aqui foi postulado e que deve ser explicado, é essencialmente distinta da perfectibilidade (perfectibilitas), aceita desde sempre, de todas as conquistas humanas. Nenhuma excelência do produto excluiu a possibilidade de que ele pudesse ser melhorado e nenhuma obra mestra da habilidade excluiu que ela pudesse ser superada (tal como o corredor recordista de hoje deve saber que sua marca será melhorada algum dia). Mas esses são avanços dentro do mesmo gênero e se produzem necessariamente em fragmentos aproximativos. Evidentemente o fenômeno da inovação genérica que, ademais, longe de reduzir- se em proporção, cresce de forma exponencial, é algo qualitativamente distinto. Qual é seu segredo? A inter-relação entre técnica e ciência A resposta está na inter-relação entre ciência e técnica, que é a característica do progresso moderno e, portanto, em última instância, no tipo de natureza que a ciência moderna explora progressivamente. Porque é aqui, no movimento do conhecimento, onde primeiro e continuamente aparece a novidade mais importante. Isso é em si mesmo algo novo. Na física de Newton a natureza simplesmente se manifestava, quase tosca, e representava sua obra com poucas formas de coisas e em forças elementares, seguindo umas poucas leis universais: sem dúvida sua aplicação a manifestações cada vez mais complexas prometia uma constante ampliação do conhecimento de nosso mundo, mas nenhuma grande surpresa. Desde meados do século XIX essa imagem minimalista e, por assim dizer, acabada, da natureza, modificou-se com assombrosa aceleração. Em um dramático jogo de estímulos e respostas, com a crescente sutileza da investigação, a natureza mesma mostrou- se cada vez mais sutil. A sonda mais fina faz com que o objeto apareça mais rico quanto a seus modos de funcionamento, não mais limitado, como demonstrava a mecânica clássica. E ao invés de reduzir a margem do que resta para ser descoberto, a ciência surpreende-se a si mesma hoje com dimensão após dimensão de novas profundidades. A própria essência da matéria passou de um dado último e indissolúvel de material compacto ocupando um lugar no espaço a um desafio aberto vez ou outra para dar acesso a uma sempre mais profunda penetração. Ninguém pode dizer se isso continuará para sempre, mas abre-se caminho para a suspeita da interior “infinitude” no fundo de todas as coisas e com ela a expectativa de uma investigação sem fim de tal forma que os passos sucessivos não repitam cada vez a mesma velha história (a “matéria em movimento” de Descartes), mas que acrescentem giros sempre novos. Se a arte tecnológica segue os passos da ciência natural, adquirirá também desta fonte aquele potencial de infinitude para suas progressivas inovações. Mas não é próprio dele que o progresso científico indefinido se limite a oferecer a opção de semelhante progresso técnico, como um subproduto externo, por assim dizer, e deixe em mãos de quem o recebe exercê-lo ou não, tal como ocorre com outros interesses. Além disso o processo científico mesmo se desenvolve em inter-relação com o tecnológico, e isto no sentido intimamente mais vital: para alcançar seus próprios objetivos teóricos, a ciência necessita uma tecnologia cada vez mais refinada e fisicamente forte como ferramenta que se produz a si mesma, ou seja, que cabe à tecnologia. O que se encontrar com essa ajuda será o ponto de partida de novos começos no terreno prático e este, em seu conjunto, quer dizer, a tecnologia trabalhando no mundo, proporciona, por sua vez, à ciência, com suas experiências em um laboratório em grande escala, uma incubadora para novas perguntas para ela e assim sucessivamente em um circuito sem fim. Desse modo, o aparato é comum ao reino teórico e prático; ou seja, tanto a tecnologia infiltra-se na ciência quanto a ciência na tecnologia. Em resumo: existe entre elas uma mútua relação de feedback que as mantém em movimento; cada uma necessita e impulsiona a outra; e tal como estão as coisas hoje, só podem viver juntas ou, do contrário, morreriam juntas. Para a dinâmica da tecnologia que aqui nos ocupa, isso significa que – à parte de todos os impulsos externos – seu vínculo funcional integrador com a ciência é para ela um agente de infatigabilidade. Enquanto a aspiração ao conhecimento seguir impulsionando a atividade da ciência, é seguro que também a técnica avançará com ela. Mas, se o impulso em direção ao conhecimento, por seu turno, é em si mesmo culturalmente débil, está em risco de abrandar-se ou de converter-se em rígida ortodoxia – esse eros teórico já não vive só do delicado apetite pela verdade, senão que é estimulado por seu rebento mais robusto, a técnica, que lhe transfere impulsos desde o campo de batalha, mais amplo, esforçado e vigoroso da vida. Estou consciente do caráter de presunção de alguns desses pensamentos. As revoluções na ciência ao longo desse século são um fato, tanto quanto o estilo revolucionário que comunicaram à técnica, assim como a reciprocidade entre ambas as correntes. Mas não é seguro que essas revoluções científicas – o que é primário na síndrome – sejam típicas da marcha da ciência desde agora, uma espécie de lei do movimento para seu futuro, ou representem apenas uma fase singular em seu desenvolvimento. Portanto, a nossa predição quanto à inovação incessante para a técnica, a qual se baseia numa suposição a respeito do futuro da ciência, inclusive sobre a natureza das coisas, é hipotética, como costumam ser tais extrapolações. Mas inclusive se o passado mais recente não saudou com grandes ruídos nenhum estado de “revolução permanente” na ciência e a vida da teoria regressa a vias mais tranquilas, a margem para a inovação técnica não pode contrair-se tão logo; e o que talvez na ciência já não seja uma revolução pode revolucionar nossa vida em sua aplicação prática através da técnica. De qualquer forma, “infinito” é uma palavra demasiado grande. Digamos, pois, que os signos atuais – quanto a possibilidades e impulsos – apontam para uma direção e fertilidade indefinidas do impulso tecnológico. Aspectos Filosóficos Concluímos aqui nosso relato sobre o aspecto formal da tecnologia moderna. Antes de passarmos ao aspecto material, duas breves observações sobre aspectos filosóficos da imagem traçada. Uma se refere ao status modificado do saber na hierarquia do espírito, a outra à ascensão da própria técnica à posição de uma das principais tarefas da humanidade. No que concerne ao saber, é óbvio que a velha e honorável separação entre “teoria” e “prática” desapareceu por causa de ambas as partes. Por pouco diminuída que esteja, ainda, a sede de conhecimento puro, o entrelaçamento entre conhecimento nas alturas e ação na planície da vida tornou-se insolúvel e a aristocrática autossuficiência da busca pela verdade por si mesma desapareceu. Trocou-se a nobreza pela utilidade. Em poucas palavras: a síndrome tecnológica produziu uma profunda socialização do campo teórico e colocou-o a serviço das necessidades comuns. Ao mesmo tempo, com um paradoxal êxito secundário, criou o novo problema do ócio para as massas. Expulso de sua antiga pátria, o mundo da contemplação – desde que este se transformou no ativo trabalho de exploração da ciência –, o ócio volta a aparecer no extremo oposto do espectro, entre os frutos de seu esforço: um bem de uso indeterminado, tão dado quanto imposto, em forma de espaço vazio para o qual é necessário encontrar um conteúdo. A ciência, em absoluto ociosa, apropria-se também dele nas novas maneiras de passar o tempo, com as quais se apresenta como parte da mesma colheita tecnológica que produz sua própria necessidade.Tudo isso se espera hoje da “teoria”, outrora ela mesma a forma máxima do esforço transutilitário, hoje nova no serviço para qualquer desejo do mundo exterior. No que se refere à posição da própria tecnologia na ordem hierárquica humana, só farei alusão aqui a seu prestígio “prometeico”, que leva seus guardiões à tentação de revestir sua infinita atividade com a dignidade dos mais altos objetivos, isto é, de elevar a fim o que começou sendo meio, e ver nele o verdadeiro destino da humanidade. Ao menos a sugestão está aí (ainda que perturbada recentemente por vozes contrárias) e exerce seu feitiço sobre o espírito moderno. O progresso do homem estende-se como avanço de poder a poder. O Conteúdo Material da Tecnologia A descrição “formal” do movimento tecnológico como tal ainda não nos disse nada sobre as coisas com as quais ele está relacionado, sua “matéria”, por assim dizer. A isto nos voltamos agora, ou seja, concretamente às novas formas de poder, coisas e objetivos que o homem moderno recebe da técnica. A sucessão de tecnologia reflete aquela presente também na ciência: mecânica, química, eletrodinâmica, física nuclear, biologia. Em geral, uma ciência está madura para sua aplicação à tecnologia quando nela – para empregar os termos de Galileu – a “via resolutiva” – a análise – está tão avançada quanto a “via compositiva” – a síntese – pode empregar os elementos básicos assim liberados e quantificados. Só agora a biologia chegou até este ponto: com a biologia molecular vem a construtibilidade de formações biológicas. Mecânica Lançaremos, pois, um olhar inicial a algumas das fases da (até agora permanente) revolução tecnológica. Começou em finais do século XVIII com a era das máquinas da chamada Revolução Industrial, cuja intenção, a princípio, não era criar novos produtos, mas substituir a força de trabalho humana (ou inclusive animal) na fabricação, aquisição ou manejo dos bens existentes. Assim, pois, em princípio, os objetos da técnica moderna eram os mesmos que desde sempre haviam sido objeto da habilidade e do trabalho humanos: alimentação, vestido, moradia e comodidades da vida. Não mudou o produto, mas a produção, quanto à rapidez, facilidade e quantidade. Os teares mecânicos movidos por vapor de Lancashire fabricavam os velhos e familiares tecidos. Mas um novo e significativo produto se acrescentou em seguida à lista tradicional: as próprias máquinas, que para sua fabricação puseram em marcha uma indústria inteiramente nova, com suas conseguintes indústrias auxiliares; desde o princípio, essas entidades de novo cunho tiveram sua própria influência na simbiose entre homem e natureza, ao serem consumidoras delas mesmas. Por exemplo: as bombas de água movidas a vapor facilitavam a extração do carvão, mas exigiam carvão extra para esquentar suas caldeiras, mais carvão para os altos-fornos e fogões que fabricavam essas caldeiras, mais para extrair o necessário mineral de ferro, mais para seu transporte aos altos-fornos, mais de ambas as coisas – carvão e ferro – para os necessários trilhos e locomotivas que eram fabricadas nos mesmos altos-fornos etc., mais para o transporte do produto dos altos-fornos aos poços mineiros e vice-versa e, finalmente, mais para a distribuição do mais abundante carvão aos consumidores situados fora deste circuito, que de forma crescente eram máquinas que deviam sua existência precisamente à maior disponibilidade de carvão e seguiam aumentando sua demanda e a dos produtos da siderurgia... etc. Para que não nos esqueçamos, perdido em algum ponto desta longa cadeia: estamos falando da modesta máquina a vapor de James Watt, inventada para bombear a água para fora das minas. Essa forma de desenvolvimento – de modo algum uma série linear, senão uma intrincada rede de reciprocidade – se fez desde então algo próprio da técnica moderna, com um crescimento exponencial. Generalizando, pode-se dizer que a moderna tecnologia aumenta em progressão exponencial o consumo humano de reservas naturais (substâncias e energia), não só mediante a reprodução do produto final, os próprios bens de consumo, mas também – e talvez ainda mais – mediante a fabricação e manejo dos recursos mecânicos auxiliadores, ou seja, como autoconsumidora. E com esses recursos – as máquinas – introduziu-se uma nova categoria de bens nos equipamentos de nosso mundo. Isso quer dizer que, entre os objetos da tecnologia, um gênero destacado é o do próprio equipamento técnico. Logo também os produtos finais que chegam ao consumidor deixaram de ser os mesmos, ainda que servissem às mesmas velhas necessidades. Tomemos o exemplo das viagens: o trem e o navio oceânico são qualitativamente distintos da carroça e do barco a vela, não só em sua construção e capacidade, mas também na experiência da própria viagem, que neles se “sente” de forma completamente distinta e, por exemplo, pode chegar a ser um prazer, ao invés de um esforço. Os aviões deixam para trás qualquer semelhança com os antigos meios de transporte, exceto a finalidade de ir e vir, mas sem experiência do que há no meio (algo que é substituído por comidas e projeções de filmes). Acrescente-se a isso que a duração da vida desses grandes e custosos aparatos não vem determinada em muitos casos por seu desgaste real, mas por seu “envelhecimento” comparativo. Similares comparações podem ser estabelecidas entre o edifício de escritórios em aço, cimento e vidro e as antigas construções em madeira, tijolo e pedra. Com todos os seus subsistemas mecânicos de iluminação, calefação, ventilação, elevadores etc., o primeiro deles se parece com uma máquina que trabalha de forma permanente e de múltiplas maneiras; e as substâncias naturais com as quais são feitos o edifício e seu equipamento já não são reconhecíveis na extrema transformação do produto artificial que rodeia o habitante. Química Este último ponto – a transformação de substâncias – nos servirá como um termo-chave para mencionar um gênero de tecnologia ainda mais jovem que o mecânico (que tinha por fim a construção de máquinas), com o qual começou a Revolução Industrial: o gênero químico, o primeiro que é inteiramente fruto da ciência. Seu ponto de partida industrial foram os corantes sintéticos, substitutivos de substâncias naturais escassas ou caras, cujas propriedades de uso deveria reproduzir de forma mais aproximada possível. O mesmo pode ser dito das fibras têxteis sintéticas, pertencentes a uma fase superior da tecnologia química, que hoje substituem tão amplamente em todas as partes a lã e o algodão dos acima mencionados teares de Lancashire. Aqui ainda se pode, pois, manter a antiga ideia de que a arte “imita” a natureza. Mas com os materiais petroquímicos em geral, em cujo terreno entramos ao falar das fibras sintéticas, a arte avançou em realidade desde os sucedâneos até a criação de novas substâncias, com propriedades que nessa forma não se dão em nenhuma substância natural (ou em sua elaboração tradicional) e assinalam, portanto, o caminho até formas de emprego nunca pensadas até então, mas cuja possibilidade traz à tona novas classes de objetos para sua utilização. Na construção química, ou seja, molecular, a engenharia humana faz mais do que na mecânica, que compõe suas formações a partir de corpos naturais de nosso tamanho: sua intervenção é mais profunda, até as infraestruturas da matéria, cujas novas substâncias se obtêm “por especificação”, isto é, com as propriedades de uso previstas, mediante a reordenação arbitrária de suas moléculas. E é preciso levar em conta que isso se faz de maneira dedutivo-combinatória desde a camada mais ínfima, o último elemento totalmente analisado, em uma autêntica via compositiva uma vez esgotada a via resolutiva, de forma muito distinta das práticas empíricas largamente empregadas, encontradas por acaso ou como resultado da experimentação (como a liga dos metais desde a Idade de Bronze, inclusive a cerâmica, o cozimento do pão e a fermentação do vinho), com o que desde sempre se haviam modificado as substâncias naturais para uso humano.A artificialidade ou construção criativa de acordo com um desenho abstrato (plano) penetra no mais íntimo da matéria. Isso aponta, na biologia molecular, a novas e terríveis possibilidades, das quais falaremos mais adiante. As máquinas como bens de uso Entretanto as próprias máquinas que, como gênero, eram originariamente puros “bens de capital”, encontraram seu caminho até a esfera do consumidor e se converteram em artigos de uso pessoal, doméstico, ainda que também diretamente econômico.7 Essa inovação sem precedentes na história da vida individual cresceu até ser uma manifestação massiva que abarca tudo no mundo ocidental. Naturalmente o principal exemplo é o automóvel, mas temos que acrescentar todo o arsenal de aparatos domésticos (na maioria dos casos elétricos) que hoje se tor naram mais habituais para o estilo de vida de toda a população do que a calefação central e a água corrente há cem anos. Estamos cada vez mais “mecanizados” em nossas atividades e entretenimentos cotidianos, e cada vez se acrescentam mais coisas novas, enquanto a escassez de energia não imponha freios ao processo. Por seu gênero, esses aparatos, grandes ou pequenos, desde o carro até o barbeador elétrico, são “máquinas” no sentido exato de fazerem um trabalho transformando energia em movimento mecânico e por suas partes móveis pertencerem à magnitude familiar de nosso mundo sensorial. Mas há outros aparatos técnicos, de um gênero radicalmente distinto, que ganharam um lugar em nossa vida privada e se expandem por ela: aparatos que não nos poupam força muscular nem nos aliviam do trabalho, aparatos que, na realidade, não fazem para nós nenhum “trabalho” em sentido físico e, em parte, nem sequer têm uma utilidade como fim, mas que (com um gasto mínimo de energia), servem aos sentidos e ao espírito: telefone, rádio, televisão, gravador, calculadora... todos os ramais domésticos da indústria eletrônica, aquilo que chegou por último à cena tecnológica. Tanto por sua produção imaterial, dirigida à consciência, como pela física invisível, não propriamente “mecânica”, de seu trabalho, esses aparatos distinguem-se de toda a maquinaria macroscópica, fisicamente móvel, do tipo clássico. Antes de nos ocuparmos dessa transição, de grandes consequências, desde a técnica energética da primeira Revolução Industrial até a técnica da transmissão de notícias e de informação, equiparável quase a uma segunda revolução tecnológico-industrial, teremos que lançar um olhar a seu fundamento natural: a eletricidade. Eletricidade No avanço da técnica até uma artificialidade, abstração e sutileza cada vez maiores, o descobrimento da eletricidade representa um passo decisivo. Estamos diante de uma força universal da natureza que não se “manifesta”, entretanto, aos homens de forma natural. Por si mesma, sem intervenção do ser humano, não é um dado da experiência normal (exceto no raio). Sua mera “manifestação” como tal teve de esperar pela ciência, que procurou tal experiência mediante engenhosos dispositivos. Aqui, pois, uma possível tecnologia se devia à ciência já para a mera apresentação do “objeto”, da entidade mesma com a qual tinha de trabalhar: o primeiro caso no qual só a teoria, não a experiência habitual, precedia inteiramente a toda prática (o que se repetiria mais adiante no caso da energia nuclear). E que entidade! Calor e vapor são objetos familiares à experiência sensorial, sua energia pode ser observada trabalhando “fisicamente” no mundo que nos rodeia; a matéria da química segue sendo a matéria concreta, física, que a humanidade conhecia desde sempre. Mas a eletricidade é um objeto abstrato, incorpóreo, imaterial, invisível; em sua forma utilizável, como “corrente”, é inteiramente um artefato, produzido por uma sutil transformação desde formas mais brutas de energia (a maioria das vezes a partir do calor, através do movimento). De fato sua teoria teve de ser completa no essencial antes que se pudesse dar início a sua utilização prática em definitivo. Técnica de transmissão elétrica de energia A primeira utilização da eletricidade veio com a telegrafia, que ainda não formava parte do reino da técnica energética aplicada ao trabalho. Mas também em sua exploração, que começou pouco depois, para o fim já convencional de impulsionar as máquinas (assim como para a produção térmica de luz), a natureza da nova energia era em si mesma revolucionária. Sua distinção consistia em sua mobilidade única, a facilidade de sua transmissão, transformação e distribuição: uma realidade imaterial, sem volume nem peso, transladada instantaneamente através de qualquer distância até o ponto de consumo. Até então não havia existido nada similar no trato dos homens com a matéria, o espaço e o tempo. Tal tecnologia permitiu, entre outras coisas, a mencionada expansão da mecanização em cada casa. Ao mesmo tempo, a conexão a uma rede centralizada fez a vida privada dependente, como nunca, do contínuo funcionamento de um sistema público (literalmente continuado: a eletricidade não se pode armazenar como o carvão e o petróleo ou como o açúcar e a farinha). Mas estava por vir algo muito menos ortodoxo ainda: o passo da técnica elétrica para a “eletrônica”, da qual a telegrafia só era uma precursora e cuja formação em nosso século representa um novo nível de abstração em termos de meios e fins. É a diferença entre a técnica da energia e a transmissão de notícias. O objeto desta última é o mais inacessível de tudo: a informação. Técnica de transmissão elétrica de notícias e de informação De forma tanto teórica quanto prática, a eletrônica representa um nível em geral novo na revolução científico-técnica. Comparado com a sutileza de sua teoria e a finura de seu equipamento, tudo o que veio antes parece quase bruto e, por assim dizer, “natural”. À maneira de ilustração, pense-se nos satélites artificiais que circundam a terra nesse momento. De um lado, eles são uma imitação da mecânica celeste: as leis de Newton, as mais conhecidas, são com isso demonstradas finalmente mediante a experimentação cósmica. A astronomia, durante milênios a mais puramente contemplativa das ciências naturais, convertida em arte prática! Trata-se de um grande avanço, mas com tudo o que é impressionante nas energias e a finura dos cálculos que combina em si, esse ainda é um aspecto menos interessante desse novo corpo celeste. De qualquer forma, ele segue dentro do campo conceitual e de atuação da mecânica clássica. Seu verdadeiro interesse está nos instrumentos que o levam através do espaço e o que eles fazem: medições, registros, análises, cálculos; em seu receber, elaborar e transmitir dados abstratos, inclusive imagens completas, através de distâncias cósmicas... e não há nada em toda a natureza que apontaria, nem de longe, ao tipo de coisas que agora sulcam as esferas. A “astronomia prática”, com a qual o homem imita a natureza, fornece tão só o veículo para algo distinto, com o que ela é superada soberanamente.8 Sua instrumentalização deixa para trás, sem comparação possível, todos os modelos e usos da natureza conhecida. Assim, a técnica eletrônica cria de fato um reino de objetos que não imitam nada e cuja pura invenção agrega outro. E não menos inventados são os objetos aos quais servem. A técnica energética e a química respondiam ainda em sua maior parte às necessidades naturais do ser humano: alimentação, vestimenta, moradia, transporte etc. A tecnologia da comunicação responde a necessidades de informação e controle criadas unicamente pela própria civilização que tornou possível semelhante tecnologia para a qual se fez de fato imprescindível. A novidade dos meios produz continuamente fins não menos inovadores e ambos se tornam tão necessários para o funcionamento da civilização que os produziu tal como seriam inúteis para qualquer civilização anterior. Mas com esse paradoxo intrínseco: que precisamente esta civilização ameaça seu criador com sua “superioridade”, ou seja, por exemplo, a crescente automatização (um triunfo da eletrônica) o afasta dos postos detrabalho nos quais antigamente demonstrava sua condição humana. E com a ameaça de que sua superexploração da natureza terrestre possa alcançar um ponto de catástrofe. Biotecnologia A frase acima seria um bom e dramático ponto final. Mas ainda não chegamos ao fim de nosso resumo. Outra escala, quiçá a última, da revolução tecnológica, poderia estar esperando o momento de entrar em cena. As escalas anteriores (percorridas aqui apenas parcialmente) se baseavam na física e tinham a ver com aquilo que o homem pode colocar a seu serviço dentre as existências da natureza inanimada. O que ocorre com a biologia? E com o próprio usuário? Estamos, quem sabe, no umbral de uma tecnologia que se apoia nos conhecimentos biológicos e nos brinda com uma capacidade de manipulação que tem o próprio homem por objeto? Com a aparição da biologia molecular e sua compreensão da programação genética, isto se converteu em uma possibilidade teórica... e em uma possibilidade moral, mediante a neutralização metafísica do ser humano. Mas essa neutralização que, sem dúvida, nos permite fazer o que quisermos, nos nega ao mesmo tempo o guia para saber o que querer. Dado que a mesma teoria da evolução da qual a genética é uma pedra fundamental nos privou de uma imagem válida do ser humano (porque tudo surgiu de forma indiferente, por acaso e por necessidade), as técnicas fáticas, uma vez que estiverem prontas, nos encontrarão extremamente carentes de preparação para seu uso responsável. O antiessencialismo da teoria dominante, que só conhece resultados de facto do acaso evolutivo e não essencialidades válidas que lhe outorguem sua sanção, dá a nosso ser uma liberdade carente de norma. Desse modo, o convite tecnológico da nova microbiologia duplica sua realizabilidade física e sua admissibilidade metafísica. Supondo que o mecanismo genético tenha sido plenamente analisado e sua estrutura definitivamente decifrada, podemos então transcrever o texto. Os biólogos diferem em suas apreciações do quão perto estamos dessa capacidade; poucos parecem duvidar, entretanto, do direito a seu exercício. Se julgarmos pela retórica de seus profetas, a ideia de “tomar as rédeas de nossa própria evolução” é embriagadora até para os homens da ciência. A metafísica desafiada Em qualquer caso, a ideia de reelaborar a constituição humana ou “desenhar nossos descendentes” já não é uma mera fantasia; mas ainda está vetada por um tabu inviolável. Caso se produza essa revolução, se o poder tecnológico começar a confeccionar as teclas elementares sobre as quais a vida terá de tocar a sua melodia – quiçá a única melodia assim no universo – durante gerações: então pensar no humanamente desejável e no que deve determinar a escolha – em poucas palavras, pensar na “imagem do homem” – será mais imperioso e mais urgente que qualquer pensamento que possa ser exigido da razão dos mortais. A filosofia, confessemo-lo, está lamentavelmente despreparada para essa tarefa, sua primeira tarefa cósmica. 1 Técnica de artesanato na qual se utiliza fios de ouro ou prata aplicados sobre aço e ferro e cujo nome faz referência à cidade síria de Damasco. (N. T.) 2 Em contrapartida, uma atualidade tão grave como o arado chinês “emigrou” lentamente e sem chamar a atenção até o Oeste, deixando pouco rastro ao largo de seu caminho, até que no outro extremo do mundo, na Europa da Baixa Idade Média, produziu uma grande e altamente benéfica revolução na agricultura... que, de resto, seus contemporâneos apenas consideraram digna de menção escrita (cf. Paul Leser, Enststehung und Verbreitung des Pfluges, Münster, Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1931; reimpressão em 1971 pelo International Secretariate for Research on the History of Agricultural Implements, Museu Nacional, Brede-Lingby, Dinamarca. Esse importante livro não conseguiu exercer, por motivos desconhecidos, a influência que merecia; tampouco o autor encontrou, nas circunstâncias desfavoráveis do exílio, a devida carreira acadêmica). 3 De fato também houve progresso técnico no ponto culminante das culturas clássicas. O arco romano e a cúpula, por exemplo, foram um decisivo avanço na engenharia perante a arquitrave sobre colunas e o teto plano da arquitetura grega (e da egípcia) e permitiu vãos e objetivos construtivos que antes não podiam sequer ser pensados (pontes, aquedutos, os grandes banhos e outros edifícios públicos da Roma imperial). No entanto, os materiais, as ferramentas e as técnicas seguiam sendo as mesmas, o papel da força de trabalho e a habilidade humana se manteve inalterado... os pedreiros e ladrilheiros seguiam fazendo seu trabalho como antes. Uma tecnologia já existente ampliava seu desempenho, mas nenhum dos seus meios e inclusive nenhum dos seus objetivos convencionais tornavam-se antiquados por isso. 4 Um significado defensável de “clássico” é o de que aquelas culturas históricas elevadas haviam se “definido” implicitamente de algum modo e não favoreciam e nem sequer permitiam ir além das normas fixadas e do cânone da prática adequada a elas. Este “equilíbrio” – mais ou menos – alcançado era seu verdadeiro orgulho. 5 Isso soa como um juízo de valor, mas não é outra coisa que uma lisa e plana constatação de fatos semelhante a dizer que uma bala de fuzil tem maior força de penetração que uma flecha. Pode-se lamentar o invento de uma bomba atômica ainda mais destrutiva e considera-la imoral, mas o lamento se produz precisamente porque é tecnicamente “melhor” e, neste sentido, desgraçadamente, um progresso. 6 Não se deve descartar que há fatores internos degenerativos – como, por exemplo, a sobrecarga das capacidades finais de tratamento da informação – que possam levar esse movimento (exponencial) a deter-se ou inclusive quebrar o sistema. Ainda não o sabemos. 7 O papel direto na esfera do consumo pessoal encobre um pouco o fato de que também os aparatos mecânico-automáticos, em aparência, puramente domésticos, tem funções econômicas além da comodidade privada. As lavadoras, por exemplo, substituem os empregados domésticos de antigamente, que em troca aparecem como forças de trabalho na economia geral; permitem à esposa uma vida laboral própria etc. 8 Tenha-se em conta também que na radio-tecnologia o meio da ação não é material, como fios que conduzem a corrente, mas o “campo” eletromagnético inteiramente imaterial, quer dizer, o espaço mesmo. A imagem simbólica de “ondas” é o único vínculo que resta com as formas do mundo da percepção. Q Capítulo 2 POR QUE A TÉCNICA MODERNA É OBJETO DA ÉTICA ue a ética, falando de modo mais geral, tenha algo a dizer sobre o tema da técnica, ou que a técnica esteja submetida a considerações éticas, eis algo que se segue do simples fato de que a técnica é um exercício do poder humano, isto é, uma forma de ação [Handelns], e toda forma de ação humana está sujeita a uma avaliação moral. É também uma obviedade que um mesmo poder pode ser utilizado para o bem e para o mal, e que em seu exercício se pode cumprir ou infringir normas éticas. A técnica, enquanto poder humano enormemente aumentado, claramente se enquadra nessa verdade geral. Mas constitui ela um caso especial que exige um esforço do pensamento ético, diferente daquele que condiz com toda ação humana e que foi o suficiente para todos os seus tipos no passado? Minha tese é que, de fato, a técnica moderna constitui um caso novo e especial, e, como razões para isso, gostaria de apresentar aquelas cinco que mais especialmente me impressionam. I. Ambivalência dos Efeitos Em geral, toda capacidade “como tal” ou “em si” é boa, e só se torna má pelo seu mau uso. Por exemplo, é inegavelmente bom possuir o poder da fala, mas é mau empregá-lo para enganar ou seduzir a outros, levando-os à ruína. Daí que seja totalmente sensato exigir: utilize esse poder, aumente-o, mas não faça mau uso dele. A esse respeito se pressupõe que a ética pode distinguir claramente entre ambos, entre o uso correto e o errado de uma mesma capacidade. Mas como ficam as coisas se nos movemos em um contexto de ação no qual todo
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