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sérieOrincípios Domício Proença Filho Doutor em Letras e liwe-docente em Literatura Brasileira pela [)niversidade Federal de Santa Catarina Professor Litular e emérito da L]niversidade Federal Fluminense A linguagem literária Edição reì.ista e atualizada (e, Domício Proença Filho Diretor editorial Editor EdiloÌ assistente Preparedor de terto Coordenadora de revisão Revisão Estagiário ARTE EditoÍa Cape e projeto gráÍico Editorâção €leÍrônica EDr( Ào ANrEtuoR Diretores Prepsrador de terto Coordenador de erte IStìN 978 85 08 10943-2 (aluno) ISBN 978 85 08 10944-9 (professor) 2007 8i edição l1 impressão lmpressão e acabamenlo: YangrafGáfica e Editora Ltda- Todos os direitos resenados pela Edirora Atiça. 2007 Av Otaviano Aìves de Lima, 4400 - São Paulo, SP - CEP 02909-900 Tel.: ( I I ) 1990-2100 Fax: ( I I ) 3990-1784 lntem€t: ww atica.com br - w aticaeducacional com br ImFORÍAIÍIE: Ao compraÍ um livÍo, vxé remun€Ìa e ÍÊco- nhcce o tBbàlho do autoÌ e o de mult6 outros pEfis5lonàiJ envolúdo' na somÍElrllzação ds obrd: edttoË, , ílushadoÍq gÍáfic, díwlgadorer, cïtÍe outrG. AJude- n6 a @mbíteÌ a cópìa ilÉgall EIa 9m dffipEgo, Prciudlo a dl1Luào da qltun e enarR fi llw6 que wcê compÊ Sumário l. Introdução 5 Texto literário. texto nào-literário 5 Literatura: conceitos I 2. Literatura e linguâgem 12 Mais um texto no percurso 12 Literatura e conhecimento í5 3. A linguagem ía Conceitos la Sistema, comunicação e signo n Fatores do processo lingüístico da comunicação e funções da linguagem 21 Linguagem, língua e discurso 21t Discurso e estilo Zlt Dimensòes da linguagem rt 4. Arte literária, língua e cultura 30 Literatura, mimese e universalidade 30 Abeúura e conotação ai Cultura e arte literária 3a 5. Caracteristicas do discurso Iitenirio & Literatura e especificidade .lo Complexidade 4t Femmdo Paixãc Carlos S Mendes Rosa Frank de Oliveira Eliel Siìveúa Cunha lvany Pìcasso Batista Lumi Casa de Ediçào RobeÍo More gola Cntia Mara da Sih'a Homenr de Mello & Troìa Dcsign Studio l Benjanin Abdala Junior c Sanrira Youssef Cmpedelli Pedro Cunha Júnior Antônio do Amaral Rocha (.IP-BRASIL CATALOGAçAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ P95-ìL 8cd Proença Filho. Domicio, 193ó- A linguagem literária / Domicio Proença Filho - 8 ed, - São Paulo : Atica.2007 95p -(Principios:49) lnclui bibliografi a comentada ls BN 97 8-tJ5-08- I 094_l-2 l. Análise do discurso literário I Título. ll Scrie 07-0594 cDD40t 4t cDU 8 t'42 6. 7. Multissignificação .m Predomínio da conotação alt Liberdade na criação tB Ênfase no significante 17 Variabilidade 4e Modos de realização !o Manifestações em prosa rb As visões da narrativa, lt; Os personagens, 55; A ação, J6: O tra_ tamento do tempo, rz; O ambiente, !b; O estilo, :o Manifestações em verso 62 O metro, õ!; A rima, 6ir; As formas fixas, 69 Verso, prosa, gêneros literários 69 Questões em aberto 74 A questão do referente 74 Intertextualidade 7, Fechamento 76 Vocabulário crítico 80 BibliograÍiacomentada a5 I Introdução Texto literário, texto não-literário Imaginemos que, na comunicação cotidiana, alguém nos diga a seguinte frase: - Umaflor nqsceu no chão da minhq rua! , Conforme as circunstâncias em que é dita, isto é, de acor- do com a situação de fala, entendemos que se refere a algo que realmente ocorreu, corresponde a um fato anterior ao seu enun- ciado e de fácil comprovação. Mesmo diante de sua transcrição escrita, o que nela se comunica basicamente perïnanece. Num ou noutro caso, para veicular essa informação, o nos- so interlocutor selecionou urna série de palavras do idioma que nos é comum e, de acordo com as regras que presidem o seu funcionamento e que todos conhecemos, as dispôs numa se- qüência. A seleção feita e a sucessão estabelecida conferem à frase uma significação que pode ser submetida à prova da ver- dade em relação à realidade imediata. Como é fácil concluir, é isso que acontece ao nos comunicarmos no dia-a-dia do nosso convívio social. Retomemos a nossa frase inicial, agora ligeiramente mo- dificada e combinada com outros elementos: Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios. garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome náo está nos livros, E feia. Mas é realmente uma flor. Percebemos, desde logo, que estamos diante de uma utili- zação especial da língua que falamos. O ritmo que caracteriza o texto, a natureza do que se comunica e, ao chegar ate nós por es- crito, a distribuição das palavras no espaço do papel justificam essa conclusão. A nossa frase-exemplo depende também, como ato lingüistico que é, da gesticulação e da entoação que a acom- panharem ao ser enunciada; por força, entretanto, de sua situa- ção nesse conjunto e da associaçào com as demais afirmações que a ela se vinculam, abre-se para um sentido múltiplo, ganha marcas de ambigüidade: no contexto do fragmento transcrito e da totalidade do poema de que faz parte 'A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrader, podemos entender essa flor como esperança de mudança, por exemplo. Mas esse sentido que o texto a ela confere não reproduz nenhuma realidade ime- diata; nasce tão-somente do próprio texto. A flor dessa rua dei- xa de ser um elemento vegetal para alçar-se à condição de sím- bolo, ganha uma significação que vai além do real concreto e que passa a existir em função do conjunto em que a palawa se I Allrtr.,\.oE. Carlos Drummond de. A rosa do povo. In: _ Noya ratnião vros de poc.sio. Rio de Janeiro/Brasílìa: J OlympioiINL. 1983. v l, p. I l2-3 encontra. E claro que os veÍsos remetem a uma realidade dos ho- mens e do mundo, mas para além da realidade imediatamente perceptivel e traduzida no discurso comuln das pessoas. E o que acontece com essa modalidade de linguagem, a linguagem da li- terafura, tanto na prosa como nas manifestações em verso. Na prosa, por exemplo, podemos encontrar a palavra flor em outro contexto lingüistico e com ouho sentido, que lhe e con- ferido exatamente por essa nova circunstância: trata-se do ro- mance Memórias póstumas de Bras Cubas, em que o termo aparece numa afirmação vinculada a um famoso personagem criado pelo escritor: "Uma flor, o Quincas Rorba"2. Aí está um conteúdo inteiramente distinto do que se con- figura no poema drummondiano e que só pode ser percebido de maneira plena quando a frase é considerada na totalidade do ro- mance em que se insere. É possível perceber a estreita relação entre a dimensão lingüística e a dimensão literária que envolve a significação das palavras quando estas integram o sistema se- miótico que é o texto literário. Os três exemplos que acabamos de examinar permitem al- gumas conclusões. A fala ou discurso é, no uso cotidiano, um instrumento da informação e da ação. A significação das palavras, nesse caso, tem por base o jogo de relações configuradoras do idioma que falamos. Vincula-se a uma verdade de correspondência. O mesmo não acontece com o discurso literário. Este se encontra a serviço da criação artística. O texto da literatura é um o!jç!S de linguagem ao qual se associa uma representaçãq de realidades fisicas, sociais e emocionais mediatizadas pelas pala- vras da língua na configuração de um objeto estético. O texto repercute em nós na medida em que revele marcas profundas de 2 Macunoo m Assts, Joaquim Maria Memórias póstumas de Brás Cubas. In J. Aguilar. 1959. v. l. p.433. t9 li- Obra completa. fuo de Janeiro psiquismo, coilcidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais. O artista da palavra, co_partícipe da nãssa huma_ nidade, incorpora elementos dessa dimensão que nos são cultu_ ralmente comuns. Nosso entendimento do que nele se comunica passa a ser proporcional ao nosso repertório cultural, enquanto receptores e usuários de um saber comum. O discurso literário traz, emcerta medida, a marca da opa_ cidade: abre-se a um tipo específico de descodificaçãoligadt à capacidade e ao universo cultural do receptor. Já se percebe o alto índice de multissignificação dessa modalidade de linguagem que, de antemão, quando com ela tra_ vamos contato, sabemos ser especial e distinta da modalidade própria do uso cotidiano. euem se aproxima do texto literário sabe a prìori que está diante de manifestação da literatura. Literatura: conceitos A literatura é tradicionalmente entendida como uma arte verbal. A arte da palavra, segundo Aristóteles. Mas isso diz pou_ co. Mesmo porque, durante longo tempo, limitava_se às compo_ sições poéticas. Considerado o termo, em sentido restrito, a partir de uma perspectiva estética, isto é, como o equivalent e à criação estéri- ca, o conceito de literafura, como acontece com outros fatos culturais, não é matéria pacífica entre os estudiosos que a ela se dedicam. Resiste ao rigor de uma conceituação. Assim situado, tem vivido, ao longo da história, variações significativar. nog" ao propósito deste volume rastrear tal percurso; indicam_se, ei_ tretanto, na bibliografia do final do volume, algumas obras am_ pliadoras de esclarecimentos nessa direção. Tais circunstâncias nào impedem, porém, que sejam des_ tacadas concepções que a têm identificado, com maior relevo. no âmbito da cultura ocidental, em que pese a crise vivida, há algum tempo, pela teoria da literatura. Há os que entendem que a obra literária envolve amarepre- sentação e umavisão do mundo, alem de vffta tomada de posição diante dele. Tal posicionamento cenÍaliza, assim, suas atenções no criador de literatura e na imitação da natureza, compreendi- da como cópia ou reprodução. A linguagem e vista como mero veículo de comunicação, e, como assinala Maurice-Jean Lefebve, "a 'beleza' da obra resulta, então, de um lado, da originalidade da visão, e, de outro, da adequação de sua linguagem às coisas ex- pressas"r. E a chamada concepção classica da literatura. No século XIX, os românticos acrescentam algo a esse con- ceito: à luz da ideologia que os norteia, entendem que ao artista cabe a visão das coisas como ainda não foram vistas e como são profunda e autenticamente em si mesmas. Associa-se ao texto literário, desse modo, avalorização da subjetividade. O que não impede que teorizadores como Mme. de StaëI, no seu De la Lit- térature considerée dans ses rapports avec les institutions so- ciales,livro de 1800, ainda entendam que, em sentido amplo, como assinalaLuiz Costa Lima, a literatura englobe "todos os escritos filosóficos e as obras de imaginação, 'tudo o que, en- fim, concerne ao exercício do pensamento nos escritos, com ex- ceção das ciências fisicas"'4. A segunda metade da mesma cenúria assiste a uma mu- dança significativa: o núcleo da conceituação se desloca para o como a literatura se realiza. Sua especificidade, segundo essa nova visão, nasce do uso da linguagem que nela se configura. 3 LgppsvE, Maurice-Jean. Sln/clure du discours de lo poésie el du rècit Montreux: Editions de La Baconnière, 1971, p. 14. a Cf. Lw4 Luiz Costa. História Ficção. Lileraturo. São Paúo: Companhia das Leras, 200ó. p. 326-27.V. SrAËL-HoLsrEtN, L. G. de Necker. De lo littérature considercc dans ses ropporls avec les institulions sociaias. G. Cengembre e J. Goldzink (eds ). Paris: Flammarion, Ì991. ' Em texto de 1972, Algirdas-Julien Greimas acentua a re- latividade do conceito, ao vincular a interpretação da "literarie- dade", ou seja, das características que tornam "literário" um tex- to, "a uma conotação sociocultural e sua conseqüente variação no tempo e no espaço humanos"s. E, no ano seguinte, Michel Arrivé, reitera o posicionamen- to, ao afirmar que "a literatura e o conjunto dos textos recebidos como literários numa sincroniq sociocultural dada"6. Paralelamente, o caráter ficcional que, durante largo tem- po, foi considerado uma das características básicas do texto de literatura, entendida a ficção como fingimento, resultante do ato de fingir, tem sido posto em questão. Para alguns especialis- tas contemporâneos, o ficcional não se confunde com o falso: nele se abriga alguma coisa captada da realidade.T A conceituação da literatura, assim, perïnanece em aber- to, na medida em que acompanha o dinamismo da cultura em que se insere. A questão fundamental, e que continua desafiando os es- pecialistas, é a caracterização da natureza das propriedades es- téticas do texto literário e quais as ligações entre ambas. Se é dificil, entretanto, conceituar ou definir, por meio de palavras, certas realidades do mundo, isso não significa que deixem de existir os elementos que as singularizem. É consenso ainda, na atualidade, que os aspectos estéticos da obra liteniria podem ser alcançados por meio do texto e que todos eles têm uma base lingüística (sintatica, semântica ou estrutural). I9'Ì2. p.6. 6 AnnrvÉ, Michel. La semiotique littéraire. In: Pomen, Bernard (Dir ). Le langage (Les dictionnaires du savoir modeme). Paris: Bibliothèque du CEPL, 1973. p. 271. 1 Cf. pro domo nostro, Lttrrn, Luiz Costa, op. cit., texto de Sérgio Alcides na orelha da 41 capa e palawas do autor, na p. 2l . Observe-se que o liwo estabelece limites en- tre história. ficção e literatura, data de 2006 e foi escrito entre 2002 e 2005. tí Acredito que' se não podemos' até o momento' caracten- zar plenamente a especifitìdud" da literatura' temos possibili- dade, graças ao desenvolvimento do ârea, ãe indicar traços peculiares e literário enquanto tal' Sem a menor decifrar o misterio da esfinge' 2 Literatura e linguagem Mais um texto no percurso vejamos agora um breve poema de Manuer Bandeira: lrene no céu lrene preta lrene boa lrene sempre de bom humor. lmagino lrene entrando no Céu: - Licença, meu branco! E São pedro bonachão: - Entra, lrene. Você não precisa pedir tícença.r ÌÀilio"". Ìn, rtqo. p'iiil-"' Eshela da vido inteira Rio de Janeiro: J. orympio, ao negro, revelada na caractenzação de lrene, no comportamen- to a ela atribuído diante de São Pedro bonachão ena reação do santo porteiro do Ceu à sua atitude. O poema mobiliza elementos de nossa emoção relaciona- dos com a formação cristã e com certos comportamentos so- ciais que, como brasileiros, nos são peculiares. Observe-se que a humildade e a simplicidade depreendidas dos versos não se configuram apenas na parte de sentido de cada palavra que corresponde à representação do mundo, mas sobretu- do na parcela de significação que nelas corresponde à capacidade de manifestar estados de alma e exercer uma atuação sobre o pró- ximo. O sentido do texto emerge do ambiente lingüístico em que os termos se inserem. Estes, como ocorre com os citados versos drummondianos, também não reenviam necessariamente a uma realidade passivel de ser comprovada de forma imediata. A "ver- dade" que neles se consubstancia funda-se na coerência. O poema, ainda que capte algo da realidade, é o que é porque foi feito como foi feito. Irene, essc lrene, passa a "vi- ver" a partir de sua presença nesse texto, por força da lingua- gem de que este último se faz, onde alguns procedimentos se destacam em relação ao uso da língua portuguesa. O autor va- leu-se de termos do falar cotidiano; reproduziu formas da fala coloquial despreocupada: ao atribuir ao santo o emprego da forma entra, em lugar de entre, exigida pelo tratamento você, afastou-se da norma culta da língua, €m nome do efeito expres- sivo. Por norÍna, nesse sentido, entenda-se, como registra o Di- cionário de filologia e gramática de Joaquim Mattoso Câmara Jr., "o conjunto de hábitos lingüísticos vigentes no lugar ou na classe social mais prestigiosa do país". De forma mais ampla, a nonna pode ser caracterizada, de acordo com Eugenio Coseriu, como "um sistema de realizações obrigatórias consagradas do ponto de vista social e culturalmente: não corresponde ao que 14 se pode dizer, mas ao que já se disse e tradicionalmente se dizna comunidade considerada".l Em se tratando de Bandelra, o aparente ..erro,, ajuda a tra_duzir a naturalidade e a afetividaae que marcam as palavras deSão Pedro. O adjetivo ..bonachâo,,ea simplicidade da *pr.r_são "- Licença, meu b^ranco!,. _ popular, típica, coloquial _ como que autorizam a forma ..entra,,. por outro lado, para darmaror autenticidade ao que revela, o poeta recorreu ao diálogo;dividiu a composição em duas estrofes: a primeira centrada nacaracte e entoa rene; a ,"gTdl, feita de elipses ambos, ização de São pedro e à ação de rar o que no poema ," .o-uni"ï1Ë:*ï,flïJ i"1'Jf,1iffifi subjetiva, ftazem elementos narrativos e ate traços típicos dalinguagem dramática. Na sua feitura, no,u_r., alem disso, o apro_veltamento do falar simples.da gente simples do Brasil, qr;g; nha condição de linguagem literária. No texto de Bandeira, literário que é, inter_relacionam_se, interdependem-se elementos fônìcos, àpticos, sintáticos, morfo_lógicos, semânticos, formando urn .onlrnio de relações inter_nas, por meio das quais se revela uma ."ulidud" que não pr";i;_ te ao poema, a não ser como potencialidade. Caracteriza_se umaperspectiva existenciar reracionada com o comprexo curturar deque essa manifestação literária é representativa, a partir au, J_vências de um escritor brasileiro. Configura_se um posiciona_ mento ideológico na visão de mundo do ãutor. . -N1 abertura para a descodificação, essa matéria cultural,veiculada por meio das palavras da língua aproveitadas no códigoliterário, pode ser apreendida pelo le-itor ou ouvinte do poema, tõì*ìug" nío Sincroniu.,,tliut.ro.niu e hi.srória:o problema da mudança lin_güística' Traduçào de carlos Arberto da Fonseca " u,lriã'i.rr"i.u. Rìo de Janeiro:Presença: São paulo: Edusp. 1979. p.50. l5 com maior ou menor grau de informação estética, na dependên- cia, reitero, do seu universo cultural. No percurso dessa apreensão, situa-se a dimensão conotq- tiva, chave da plurissignificação do texto literário, como se ex- plicitará adiante. Literatura e conhecimento Longe estamos de penetrar totalmente no mistério do pro- cesso criador da poesia. As considerações feitas sobre o texto de Bandeira limitaram-se a alguns aspectos da manifestação literá- ria em verso. Elas permitem, entretanto, algumas deduções e conclusões. Para revelar o que se consubstancia no poema, o autor, como e óbvio, se valeu da língua portuguesa do Brasil e, a par- tir dela; buscou caracterizar uma realidade apoiada em vivên- cias humanas. O que depreendemos de suas palavras, porém, ul- trapassa os limites da mera reprodução ou referência, para nos atingir com um tipo de informação que não conseguimos men- surar ou traduzir plenamente, vai além dos limites individuais do codificador e atinge espaços totalizantes. A linguagem lite- râria - concretizaçào de uma arte, a literatura - é marcada por uma organização peculiar. A arte e um dos meios de que se vale o homem para co- nhecer a realidade. Esta última se efetiva na constante relaçào entre homem e mundo, vale dizer, entre sujeito e objeto, como costumam lem- brar os filósofos. Nesse jogo dialetico, o homem busca aceder à interioridade da sua essência, para melhor saber de si e situar-se. E, no seu per- curso existencial, tem procurado coúecer a si mesmo, o mundo, a sua relação com os outros, a sua relação com o mundo. Todo coúecimento se caracteriza como vma representq- ção, como Dm tornar de novo preseníe a realidade em que vive- mos, para que dela teúamos uma visão mais clara e profunda, que escapa à nossa percepção imediata. Toda representação, nesse sentido, configura uma interpretação. "O homem é a pre- sença de todas as determinações de uma interpretação. Rejeitrí-las seria negar a própria existência. Portanto, o homem é um arranjo existencial definido, articulado, situado. E uma circunstância, dizia Ortega y Gasset", e lembra Arcângelo Buzzi,na sua Intro- dução ao pensar.3 Esse interpretar se clarifica por meio de uma linguagem. A linguagem converte-se, desse modo, como destaca Eduardo Portella, na "fonte de toda e qualquer realidade; é pre- cisamente a realidade mais livre, a mais aberta".a Claro está que a naítreza do compromisso entre a literatura e a cidadania re- veste-se de traços ideológicos. Mas a reflexão que propicia abre-se ao necessário questionamento. O oxigênio da arte é a Ii- berdade. E isso vale tanto para o escritor como para o leitor. O texto literário repercute em nós, na condição de leitores ou ouvintes, na medida em que revele traços profundos do nos- so psiquismo, coincidentes com o que em nós se abrigue como seres sociais. O artista da palavra, co-partícipe de nossa huma- nidade, incorpora elementos dessa dimensão que nos são cultu- ralmente comuns. Nosso entendimento do que no texto se co- munica passa a ser proporcional ao nosso repertório cultural. O texto literário como tal pode ser lido, criticamente, no nível de superficie ou de profundidade, considerada a polisse- mia que o caracteriza. com base em três enfoques: em função de sua relação com aspectos existenciais, destacados processos t Buzzt, Arcângeìo R. Introtlução ao pcnsor.3. ed Petrópolis: Vozes. 1973. p. 51. 4 PontELLe. Eduardo. Fundamento da investigação literáia. fuo de Janeiro: Tempo [ìrasileiro. 1 981. p. 74. cognitivos e éticos, e motivações nele configurados; podemos centrar a leitura nas dimensões sociais ou psicossociais que nele se fazem presentes, privilegiadas a relação entre a literatura e o social, a literatura e a história, a literatura e a cultura; podemos nuclearizá-la no diálogo intertextual, que privilegia influências. Alfredo Bosi, em livro de 2006 em que trata das Memórias pós- tumas de Bras Cubqs, aponta tais linhas de abordagem e assinala que destacam respectivamente aspectos expressivos, miméticos e construtivos.5 Uma leitura como a que o crítico propõe para a compreensão do olhar machadiano resiste à limitação da perspectiva centrada num determinado perfil do narrador, pautada numa autonomia compacta. Ela exige, como melhor resposta, "uma combinação peculiar de vetores formais, existenciais e miméticos, sem que uma instância monocausal tudo regule e sobredetermine".6 O crí- tico defende, desse modo, uma visão múltipla e integradora, que exige uma perspectiva hermenêutica, vale dizer, interpreta- tiva, perspectiva que tem se revelado das mais promissoras nos espaços da crítica literária, o que não invalida outras focalizações, desde que assumidas como setorizadas. O texto de literatura pode ainda ser considerado como pretexto paÍa a compreensão da língua, seu ponto de partida, procedimento bastante comum na realidade pedagógica brasi- leira. Costuma também ser associado ao estudo de outras mani- festações culturais. 5 Cl Bosr, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das Letras, 200ó 6 Bosr, Alfredo. Op. cit. p. 50-1. 3 A linguagem Gonceitos Apesar do ceticismo com que alguns estudiosos encaram a caracterização da linguagem, creio útil destacar, por pertinen- tes ao nosso objeto de estudo, alguns conceitos com que se tem tentado configurá-la: . A linguagem ë uma das.formas de apreensão do real.O ser humano vive em permanente e complexa interação com a reali- dade e a apreende de várias maneiras, por exemplo, através dos sentidos. Mas, como lembra o lingüista Iouri Lotman, as informa- ções que o envolvem, os sinais que a vida lhe envia exigem, para um melhor desempeúo na luta pela sobrevivência, que ele os de- cifre e os transforme em slgzos capazes de permitir-lhe comuni- car-se.r Vale dizer, ele precisa transformar essas informações e esses sinais em elementos de uma linguagem para assegurar-lhes a perfeita compreensão de que decorre o pleno aproveitamento de importantes oportunidades no seu percurso de vida. Para certos teóricos, acrescento, a linguagem, ao conver- ter a realidade em signos, ultrapassa as limitações da apreensão l Ct-. L,rrv.q:l. l,ouÍl. La stucture du texte ortìstiEte. p ais:Gallimard, 197 3. p. 29 sensorial para permitir um desvelamento (um "retirar de véus") do real em relação ao sujeito. É, por outro lado, uma forma de organizar o mundo que nos cerca. . A linguagem é a Jàculdade que o homem tem de expres-ser seus estados mentais atrqvés de um conjunto de sons vocais chqmado língua, que é ao mesmo tempo representalivo do mun- do inlerior e do mundo exterior, propõe a clássica lição de Ernst Cassirer que pode ser lida nas páginas 9l e 92 da sua obra lan- çada na tradução espanhola com o título Psicología del lengua- je, pela Paidós, em Buenos Aires. Sob essa visão, centrada de maneira óbvia no sujeito, a linguagem é entendida como uma atividade que apresenta um aspecto psíquico (linguagem virtual) e um aspecto propriamen- te lingüístico (linguagem realizada) que compreende, por sua vez, o ato Ìingüístico (realidade imediata) e o repertório dos atos lingüísticos (material lingüístico). No âmbito desse posiciona- mento, a língua é uma abstração, um conjunto organizado de as- pectos comuns aos atos lingüísticos, vale dizer, em termos téc- nicos, um sistema de isoglossas.2 Cabe esclarecer que a lingüística tem como objeto o estu- do da linguagem falada e articulada, ou seja, aquela que se con- cretíza nas línguas naturais. Os demais sistemas são objeto de interesse da semiótica ou semiologia, entre eles o sistema de co- municação usado pelos animais (zoossemiótica), as comunica- ções táteis, os sinais olfativos, os códigos do gosto, os códigos musicais, o soúo, a pintura, a literatura e outros. . A linguagem, como acentua Tatiana Slama-Casacu, na página 20 de seu Langage eí contexte (Haia, 1961), ê, um con- junto complexo de processos - resttltado de uma certa atívidqde psíquica profundamente determinada pela vida social - que 2 Cf Coser.tu. E. Teoria del lengnje.y lingüística general.2. ed. Madri: Gredos, 1969.p 9l-2 torna possível a aquisição e o emprego concrelo de uma língua qualquer. Eis-nos de novo ante um conceito restrito. Essa di- mensão se amplia, ainda na palavra de Lotman, quando afirma que "por linguagem entendemos todo sistema de comunicação que utiliza signos organizados de modo particulal".r Sistema, comunicação e signo Esse último conceito de linguagem nos conduz didatica- mente à explicitação de sistema, comunicação e signo. Sistema é um conjunto organizado. Dizer "organizado" pressupõe princípios organizatórios que conferem singularidade ao conjunto. Diante das múltiplas modalidades de linguagem, cumpre, pois, conhecer esses princípios, se desejarmos dela nos asseúorear e assegurar a eficácia da comunicação que por seu intermédio se processa. Por comunicação compreende-se, ainda em sentido restrito, a troca de mensagens ou informações enhe seres humanos. Se se pensa na etimologia da palawa, pode ser entendida como a facul- dade que o homem tem de tornar comum a outrem seus pensamen- tos, sentimentos e desejos e as coisas do mundo que o cercam. Em sentido amplo, envolve tambem a realidade técnica da relação en- tre o homem e as máquinas (por exemplo, os computadores) e das máquinas entre si, além de estender-se ao mundo animal e aos sis- temas próprios do interior do indivíduo, como, por exemplo, os si- nais transmitidos pelos feixes de neryos do organismo. Claro está que, quando alguém "fala consigo mesmo" está representando simultaneamente dois falantes. Signo é outro termo de conceituação ampla e complexa, nras, de maneira geral. e em sentido lato, pode ser entendido, se- Ì l-r r rN,1^N. louri Op cit Paris: Gal[mard. 1973. p.34-5 gundo Charles Sanders Peirce, como qualquer elemenlo que, sob cerlos aspeclos e em certa medida, representa outro. A luz das posições do mesmo estudioso, podemos identi- ficar três modalidades de signo. em relação àquilo que desig- nam: o signo índice ou índex, que mantém relação direta com o que representa (é o caso de uma impressão digital, por exem- plo); o signo ícone. que tem analogia ou semelhança com o que representa (uma fotografia, uma estátua, um esquema); o signo símbolo, que se baseia numa convenção (as palavras de uma lingua, as bandeirolas usadas na comunicação marinheira, os sinais de trânsito etc.). Essas modalidades admitem superposi- ções: a cruz, por exemplo, enquanto instrumento de flagelação, e um ícone; enquanto representação do cristianismo, é um sím- bolo; a impressão digital pode envolver dimensões de ícone e de índice, e ganha carâter simbólico quando, por exemplo, pas- sa a representar uma entidade ou uma empresa; as palavras onomatopaicas são símbolos-ícones: farfalhar (de sedas), caca- rejar (de galinhas) etc.a Fatores do processo lingüístico da comunicação e Íunções da linguagem O processo da comunicação implica fatores e firnções que têm sido objeto de preocupação de vários estudiosos, entre eles Roman Jakobson, para ficarmos apenas numa perspectiva lingüís- tica. Para esse especialista, cada ato de comunicação verbal envol- ve, na linguagem comum, vtrrremelente que envia umamensqgem por meio de um código a wn des tinataio, estabelecido entre os in- terlocutores uÍfl contqto que envolve um canal fisico e a necessária conexão psicológica. A mensagem enviada é compreendida por- 4 Cf Prcxernnt, Dëcio. Iníormação. Lingtagem Comunicação.4. ed São Paulo: Perspectiva. 1970 p. 28-9. que se refere a vm contexto extraverbal e a uma situação efetiva- mente existente anteriores e exteriores ao ato da fala. Remetente ou emissor, mensagem, código, destinatório ou receptor, contato e contexto são, portanto, os seis fotores do pro- cesso lingüístico da comunicação. A partir deles, o citado lingüista aponta as conhecidas seis -funções dtt linguagem: a).função referencial ou denotativa - pela linguagem nós nos referimos às coisas do mundo que nos cerca e às do nosso mundo interior; a linguagem denota, representa o mundo; b)função expressiva ou emotiva - a linguagem é um meio de exteriorização psiquica; as interjeições são um exemplo mar- cante dessa função; c) .função conativa (de conação, que significa tendência consciente para atuar) ou apelativa - quando falamos ou escre- vemos, exercemos maior ou menor influência sobre o nosso in- terlocutor. A linguagem funciona como atuação social ou como apelo. Os verbos no imperativo acentuam bem a presença dessa função, e, sob esse aspecto, é significativa a sua utilização tão freqüente nas mensagens da propaganda e da publicidade; dl função.fatica - caracteriza-se quando a mensagem bus- ca estabelecer ou interromper o que se está comunicando. São exemplos frases como'Alô!", "Estão me entendendo?", '.Cer- to?", "Está tudo claro?"; e) função metalingüística - ocorre quando o emissor e o destinatario verificam se estão usando o mesmo código, quando explicitamos termos da própria linguagem usada: Literatura é a arte da palavra; fl função poética ou fantástica - evidencia-se quando, atraves dos signos, se "cria" intencionalmente uma realidade, con- figurada sobretudo numa obra de arte liteníria.5 5 Cf. J.qrossoÌr, Roman. Essars tle língtìstique gènérale. paris: Miluit, 1966. V. tanìbem _. Lingüistica e comunicação 2 ed rev. São paulo: Cultrix. 1979. As três primeiras funções apontadas por Jakobson - a re- presentativa, a emotiva e a conativa - foram anteriormente carac- terizadas por Karl Btihler, à luz da psicologia. Para esse estudioso alemão. a linguagem é um meio precípuo de exteriorização de es- tados de alma (manifestação psiquica), exerce uma atuação sobre o próximo na vida comum (atuação social ou apelo) e estrutura a nossa experiência mentada (função representativa). Nos atos de linguagem, várias dessas funções se apresen- tam concomitantemente e estabelece-se entre elas uma certa hierarquia. Linguagçm, língua e discurso Linguagem nos faz voltar ao conceito de língua, tal a rela- ção que as vincula. A lingua ê, um sistema de signos, ou seja, é um conjunto organizado de elementos representativos. Como tal, é regida por principios organizatórios específicos e marcados por alto índice de complexidade: envolve dimensões fônicas, morfológicas, sinláticas e semânticas que, além das relações intrínsecas peculia- res a cada uma, são também caracteizadas por um significativo inter-relacionamento. A rigor, mais do que um sistema, a língua e um conjunto de subsistemasque se integram. Tomemos, por exemplo, a palavra rua: o seu significado tem a ver com o jogo de oposições que marca o sìstemafônico da língua portuguesa, o que se aclara quando a compzuamos com termos como lua, nua ou sua e lembramos que o fonema se ca- racteiza por marcar a distinção de significado entre as palavras de uma língua. A forma nasceu,no jogo morfológico dos verbos, termina por um fonema que nos indica pessoa, tempo, aspecto e modo da ação nela expressa; é a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo, diz a gramática: nasceu, por oposição a nasceram, nascemos, nascem, noscesse, indicadores de outras pessoas, outros tempos, modos, aspectos, no sistema morfológico da língua portuguesa; os aspectos sintáticos se fa- zem presentes na combinação de umas palavras com as outras na frase de que fazem parte. A significação global emerge, por- tanto, das relações fono-morfo-sintático-semânticas que estão na base da organização desse complexo sistema. Já que estamos tratando de significação, vale lembrar que, em termos de palavra, esta resulta fundamentalmente, na sua condição de signo, da relação entre o significante e o significado, dois aspectos que o identificam: o primeiro, perceptível, audí- vel; o segundo, produto dele, nele contido. E isso é ponto pací- fico, desde os estudos pioneiros de Ferdinand de Saussure. Não nos esqueçamos também de que a língua, além de ser um conjunto organizado de valores, é, simultaneamente, uma instituição social, é a linguagem de urna sociedade. E constìtuí- da de elementos que têm um valor em si e um valor em relação aos demais; o signo lingüístico, como explicita Barthes nos seus Elementos de semiologia, é como uma moeda: cada peça vale pelo seu poder aquisitivo, mas vale também em relação às ou- tras moedas de valor maior ou menor. A língua pode ser entendida ainda como a realização de uma linguagem, um sistema de signos que permite configurar e traduzir a multiplicidade de vivências caracterizadoras do ser de cada um no mundo. Em sentido restrito, alguns lingüistas a consideram um siste- ma de sons vocais peculiares ao uso da linguagem pelo ser humano. Outros, como Celso Cunha, por exemplo, em sua Gramá- tica do português contemporâneo, a definem como "um siste- ma gramatical pertencente a um grupo de indivíduos" e, como expressão da consciência de uma coletividade, como o meio pelo qual esta concebe o mundo que a cerca e age sobre ele.6 n ('uNrt,r, Celso. Gramatica do português contemporôneo Belo Horizonte: Bemardo Âlvares. 1970. p. l5 Podemos, ainda mais, entender saussurianamente com o citado Barthes que a língua (langue) é "a linguagem menos a fala Qtarole), é, ao mesmo tempo, uma instituição social e um sistema de valores. Como instituìção social, ela não é absoluta- mente um ato; escapa a qualquer premeditação: é a parte social da linguagem"T. Língua e fala, diz ainda o semiólogo francês, "retiram sua definição do processo dialético que as une: não exis- te lingua sem fala, não há fala fora da língua".t Criação social, a língua üve em peÍmanente mutação, acom- panha as mudanças da sociedade que a elege como instrumento primeiro de comunicação. Nesse processo, o exercício da linguagem produz uma espé- cie de depósito sedimentiírio que ganha valor de instituição e se impõe ao falar individual por meio do dicioniirio e da gramática. Discurso e estilo Se a língua envolve uma dimensão social e se caracteriza por ser sistemática, a utilização individual que dela fazemos, ou seja, a fala ou discurso, é um conglomerado de fatos assiste- máticos e, em relação a ela, "um ato individual de seleção e afialização", para ficarmos com as palawas do mesmo Barthes. Em outra perspectiva, entende-se o discurso como um enuncia- do ou um conjunto de enunciados ditos e escritos por alguém na direção de um destinatário. Enunciado, segundo alguns lin- güistas, é, em função da significação, a unidade elementar da comunicação verbal, uma palavra ou seqüência de palavras do- tadas de sentido.e 7 Bmrrms. Rolwrd. Le degré zéro de l'écriture suivi de éléments de sémiologie. ParJrs: Gonthier, 1964. p 85-6- 'rd., ibid 9 Os conceitos de discurso e enunciado variam em função do enfoque como representativos do Modernismo na literatura brasileira. o que não impede que se diferenciem por força dos caracteres própnos do estilo individual de cada um, entre outros aspectos. Vale ressaltar: ambos os textos se valem da língua portu- guesa do Brasil; a partir dela, criam-se realidades, num uso es- pecial da linguagem. a arte literária; ao fazê-[o, os autores evi- denciam atitudes individuais que singularizam os seus textos e, ao mesmo tempo, apresentam traços comuns que os aproximam como representativos de um determinado momento da cultura e da arte literária do Brasil. Dimensões da linguagem O texto literário, como se percebe, envolve dimensões universais, individuais, sociais e históricas, mas de forma pecu- liar. Já a propósito da linguagem em si, cabe a significativa afir- mação de Coseriu: '.A linguagem é uma atividade humana uni- versal, que se realiza individualmente, mas sempre segundo tecnicas historicamente determinadas (línguas)". r2 Exemplificando: se nos referimos à linguagem como uma atividade, quando, por exemplo, se diz de uma criança que ela ainda não fala, ou seja, não utiliza a linguagem como meio de comunicação, esÍamos no âmbito do nível universal; se sa- bemos que alguém, ao falar, está usando o português, o italia- no, o espaúol, o inglês etc., referimo-nos ao nível hislórico; se conseguimos identificar quem fala, estamos no âmbito do nível individual. Podemos também considerar a linguagem, em cada um desses níveis, como atividade criadora (ou simplesmente ativi- dade), como saber (ou fato de tecnica) ou como produto. t1 Liçõ"t de lingüístìc'a gerol. Rto de Janeiro: Ao Liwo Técnico, 1980 p. 91. lí'Apud Cournro. Afrâni Sào Jose. 1966. p.24. 3 ed' Rio de Janeiro: | | HnrzrtLo, Helrnut. ln: ccsso cultural, a diluiçào das fionteiras da A dinâmica do pro- go do século xX e do'atual, a configuração dos estilos "po.uiJo complex4 ao lon- Desses criterios, resulta a Ía estntÍura geral da linguagem. dor da lição de Coseriu: caractenzação de nove seções V'ejamo-las num quadro resumi- Pontos de \ vista Niveis Atividade Saber Produto Universal A linguagem é "o falarlem geral) não determinado historicamente". A linguagem é "o saber falar em geral". A linguagem é "o 'Íalado', a totalidade do que se disse ou ainda do que se pode dizer, sempre que se considere misa feita". lndividual A linguagem é o discurso, " o alo lingüístico (ou a série de atos lingüísticos conexos) de um determinado indivíduo numa dada situaçáo". A linguagem é "o saber relativo à elaboração dos 'discursos"'. A linguagem "é um texto {falado ou escrito)". Histórico A linguagem "é a língua concreta,lal qual se manifesta no Íalar, como determinaçáo histórica deste". A linguagem é o saber "idiomático", "a lingua enquanto sabeÍ tÍadicional de uma comunidade". A linguagem "não se apresenta nunca de modo concreto, uma vez que tudo o que nesse nível se 'produz' (se cria) 'ou redunda numa expressão dita uma única vez' ou se adota e se Íixa historicamente, passa a fazer parte do saber tradicional ". Aos três níveis citados coÍÏespondem três tipos de "con- teúdo" lingüístico que se apresentam simultaneamente nos tex- tos: a desilgnação, o sìgnificado e o sentido' A disignação e a referência à "realidade"' isto é' a relação cadavezdeËrminada entre o srgno e a "coisa" designada. O signiJìcado. nosso velho conhecido' ïiÏ.^",Ïïr:;:ïl e exclusivamente Por in- Pot sentido'Coseriu ente conteúdo próprio de um texto, o que o texto expri significado". Um exemPl do ludismo, as Palavras a O Plano de sentido e o P/ tanto o significado pode coincidir com a designação como o ,"*iao pode coinciãir com o significado; esta última coinci- dência sè dá na linguagem comum informativa' o que não acon- tece com o sentìdono texto literário' 4 Arte lrterâna língua e culfura Literatura, mímese e universalidade Toda criação artística exige um suporte material. Como, entre outros, a tinta e a tela, na pintura; deira, o metal, na escultura. Trata-se, no A literatura tem como suporte uma lín A realidade imediata não se diz em plenitude. A língua, na sua condição d linguagem da comunidade, restringe-se à sim de fatos ou situações particulares, observados iteratura se configura, tradicionalmente, quando, ao tratar desses fatos ou situações, dimensiona-lhes elementos universais. Se a linguagem ver real idade ao transformá-l ca leva ainda mais longe fingimento do particular, O texto literário veicula uma forma específica de comuni_ cação que evidencia um uso especial do discurso, colocado a serviço da criação artistica reveladora. Por revelação compreenda-se a configuração mimética do rcal. Tal afirmação leva a um dos mais importantes conceitos li- gados à arte literária: mímese. O conceito, impoíante paÍa a compreensão do fato literário' também nào é pacifico, e tem sido objeto da preocupaçào e do questionamento de inúmeros estudiosos, desde a sua caracteri- zação pelos gregos. Notadamente por Platão e Aristóteles' En- tendido como "imitação", levou, nesse sentido, a várias inter- pretações. s, por exemplo, correspondia à expressão estados de alma, e o produto dela resultante tica, pois possibilitarìa ao artista ou ao consumidor a liberação de suas proprias emoções' Para Pla- tão, a arte envolveria a representação do mundo das aparências e das opiniões; a mimese, na concepção platônica, corresponde à imitação da aparência da realidade. Para ele, a realidade é "ima- gem" ("fantasma") de imagem", simul cimento do real. J imitação das "essências"; imitar não e duplicar o referente; im- plica coúecimento da natureza profunda do ser humano e do mundo. O produto artistico que se concretiza a partir dela con- duz ao efeito de "purgação" liberadora (catarse)' Inicialmente mal descodificado com o sentido de "fotogra- fia" ou "espelho" da realidade, o conceito atravessa os séculos e, com essa acepção, domina, não sem alguma controvérsia, a li- teratura clássica ocidental. A verdadeira natureza da teoria aristo- telica sobre a arte em geral e a literatura em particular só come- ça a ser compreendida depois de Kant, de Hegel e de Croce, nos fins do século XIX, e, sobretudo, após os estudos de Holderlin e a tradução e interpretação que da Arte poética de Aristóteles fez o escritor britânico S. H. Butcher. A partir de então, a mímese passou a ser entendida como revelação da plenitude do real' Se a linguagem verbal caracteizauma "desrealízação" da realidade ao transformá-la em símbolos que a essencializam, a arte literá'ria amplia radicalmente essa "desrealízação". A míme- se poética, acentua Merquior, atinge, por meio da representação de particulares, os espaços do universal.r Como lembra Eduardo Portella, "devemos ao poeta Hôlderlin a moderna revitalização do conceito de mimesis. Ele faz ver que imitar não e copiar; é des- cer ao plano de articulação das possibilidades subjacentes na coisa. A arte supre a natureza e, desse modo, se relacionam sem se confundirem".2 Em síntese, mímese implica imitação da natureza (physis para os gregos), no que esta tem de capacidade criadora. Ao conceito de mímese vincula-se imediatamente a no- ção de catarse. Aristóteles não deixou muito claro o sentido do termo. Como esclarece a "Introdução" da Arte poética na edi- ção de que me valho, emprega-o "na Política ( l34l , livro VIII, cap. VII, 4) anteriormente à composição da Arte poética" e o entende como "purificação", "purgação"; "uma expulsão pro- vocada de um humor incômodo por sua superabundância. Do mesmo modo que a música apaixonada, a tragédia bem conce- bida deve determinar no auditório, que se deixou empolgar pe- las paixões expressas, um gozo que, no final do espetáculo, dá impressão de libertação e de calma, de apaziguamento, como se a obra tivesse dado ocasião para o escoamento do excesso de emoções".3 Ao lado da tradição como imitação das essências, a mímese envolve ainda, na estética do Ocidente, conforme assinala Stefan Morawski, uma tradição platônica (imitação das aparências) e uma tradição democritica (imitação das ações da natureza).a I Cf. Meneuton, J. Guilherme. A astticia da mímese. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. p. 8. 2 Ponrrrr-n, Eduardo. Teoria da comunicação lireraria. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1973 p.34. I Antsrórrlrs Árte reíórica e arte poética [Art rhetorique et art poetique]. São Paulo: Difel, 19ó4. p. 258-59. Cf., para o conceito de mímese. PRoENçA FlLHo, Do- micio.Esrilosdeepocanaliteratura l5.ed.5lreimpressão.SãoPaulo:Ática,2002, p 23.1.. a Cf Líirnesis. Semiótica, Neuchâtel,2 (Ì);36, 1970. Como quer que seja, é consenso, entretanto, que' no texto literá,rio, se configura uma situação que passa a "existir" a par- tir dele como tal e que caracteriza uma apreensão profunda do ser humano e do mundo, a partf de tensões de caráter individual, como ocorïe, por exempl o, em A paixão segundo G' /L, romance de Clarice Lispector, ou coletivo, como em O cortiço' de Alui- sio Azevedo, e que podem ainda configurar-se juntamente num mesmo texto, com prevalência de uma ou de outra, ou de equilí- brio entre ambas. Isso se dá num processo de constante diferenciamento, que permite perceber dimensões de visões de mundo e a presença de ideologias. o fenômeno literário se efetiva na inter-relação au- tor/texto/leitor. Já se percebe por que a obra literiíria sempre ad- mite diferentes interpretações. A linguagem que a caractenza ê' necessÍÌriuÌmente ambígua e em peÍmanente atualização e aberftÌra' vinculadas estreitamente ao caráter conotativo que a singulariza' Abertura e conotação A conotação, à luz do processo lingüístico da comunicação e das funções da linguagem, é, como registra Mattoso Câmara Assim entendida, ainda de acordo com o mesmo lingüista' a conotação depende de fatores vários: a) de aspectos fônicos do vocábulo, que podem "impres- sionar pela harmonia ou pela cacofonia"; c^"*"1'.J.Mattoso.Dicioruíriodefrlologiaegramáticareferenteàlínguapor. tuguesa- 2 ed. Rio de Janeiro: J' Ozon. 1964 p' 88 b) "da associação com outras palawas, num dado campo semântico ou em frases usuais e freqüentes"; c) da própria denotação, que evoca sensações agradáveis ou desagradáveis; d) "de pertencer a palawa a uma dada língua especial, co- mo urna língua profissional, a língua liteníria ou a gíria"; e) "de se situar entre os arcaísmos ou os regionalismos"; f) "de impressões emocionais coletivas ou mesmo indivi- duais, caracterizando o estilo individual, como as coletivas ca- racterizam o estilo coletivo de uma dada época".ó Numa forma lingüística, a conotação se distingue da de- notação, com a qual se combina para dar a significação integral da referida forma. Por denotação compreende-se a parte da significação lin- güística ligada à firnção representativa ou referencial da linguagem. Esclarecedoras, a propósito, são as palavras de Georges Kassai: Uma importante distinçáo do ponto de vista do sentido é a feita entre a função referencial e a função emocional dos signos. Ela está na base das pesquisas estilísticas recentes e se vincula à oposição denotação/conotação já empre- gada pela lógica escolástica, mas admitida desde algum tempo na terminologia da Lingüística moderna. Designada como "valor suplementar", a conotação seria "a definição em compreensão" ou "definição intensiva", enquanto a denotação é uma definição em extensão.7 Se considerarÍnos, em termos de estrutura, que, em todo sistema de significação, esta resulta da relação entre urrr plano de expressão e urr plano de conteúdo, teremos, nesse nível, a ó td., iuid 7 Le sens. ln: MÁÌTD.rEr, André (DiÍ). La linguìstique. Paris: DencËI, 1969. p.342. denotação. Já na conotação, o plano de expressão é constituído de um srs/ez a de significação ia dado. Explicito melhor, à luz de Hjelmslev e Roland Barthes,que' a partir dessa terminologia, ampliam as noções saussurianas de significante e significado' Para tanto, volto ao nosso exemplo inicial: "Uma flor nasceu no chão da minha rua". Observe-se, ainda uma vez, que o que se informa nesse enunciado se centraliza basicamente no rcfe- rente,numa orientação para a representação mental ligada aos signos que o constituem, ou seja, para a denotação' Não nos es- queçamos de que consideramos o exemplo no espaço da comu- nicação cotidiana. Se nessa mesma frase a palawa "flor" deixasse, por força da situação de fala e do contexto verbal, de corresponder a um elemento vegetal, para indicar, por exemplo' um estabelecimen- to de ensino, uma sede de sindicato, já algo se acrescentaria à relação plano de expressão/plqno de conteúdo. O novo sentido da palawa flor corresponderia, então, à relação significaçõo I (nascida da relação plano de expressão/plano de conteúdo no discurso comum) / plano de conteúdo (que já não conduz sim- plesmente à idéia de elemento vegetal)' O algo mais que se acrescentou ao signo situa-se, como já observamos, no âmbito da conotação. No caso, esta se vincula à criação de uma metáfo- ra, uÍna figura de linguagem que, como tal, torna mais expressi- vo o uso da língua, mesmo no discurso cotidiano. As figuras as- sim utilizadas se aproximam da linguagem literária, mas, se não integram um texto literário, não ganham a especificidade de re- presentantes plenas desse tipo de linguagem que marca, poÍ exemplo, a frase quando no texto drummondiano ou no romance de Machado de Assis. A conotação implica um universo cultural. A propósito, Jose Guilherme Merquior lembra que "Martinet considera co- notativos os elementos do sentido que não pertencem a toda a comunidade utilizadora de determinada língua", e acrescenta: "a conotação das palavras, mais do que a sua denotação, varia entre os grupos etariais, as classes sociais etc.; ela é uma função das múltiplas estratificações da comunidade lin güística". t Por via da conotação, pode-se, pois, partir do texto para o social, uma vez que a literatura é, antes de tudo, um objeto de linguagem. E não nos esqueçamos de que o texto literário en- volve dimensões históricas e ideológicas. E, portanto, sobretu- do por força de sua dimensão conotativa que a obra literária se abre às mais variadas interpretações. Cultura e arte literária A literatura é, pois, um sistema semântico em que se des- taca a conotação, e esta é estreitamente vinculada às diferenças soclats. E preciso considerar ainda que só há literahrra onde existe um povo e, conseqüentemente, o desenvolvimento de uma cultura. A matéria literária é cultural. O artista da palavra retira do mundo elementos que, convenientemente organizados, po- dem representar totalidades e constituir uma afirmação cuja força e coesão não se encontram ao alcance dos profanos. Em outros termos, de acordo com Edward T. Hall, uma das mais relevantes funções do artista é ajudar o leigo a estruturar o seu universo cultural.e Cultura é outro vocábulo multissignificativo; envolve cerca de duzentos e cinqüenta conceitos ditados pelas diferentes posi- ções dos estudiosos; destaco três deles: Gf. tAraõ,o", J. Guilherme Do signo ao sintoma. In: -. Formalismo e fra- dìçdo moderna: o problema da orte na crise da cultura.No de Janeiro/São paulo: Forense/Edusp, 1974. p. 129. e Cf. Helr, Edward. La dimension cachëe.Paris: Seü|, l9óó. p. 105. Uma cultura constitui um corpo complexo de normas, sím- bolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimi- dade, estruturam os instintos, orientam as emoções.r0 A luz do pensamento católico, pela palavra "cultura" em sentido geral, indicam-se todas as coisas com as quais o homem aperÍeiçoa e desenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo; procura submeter a seu poder pelo conhecimento e pelo trabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social mais humana, tanto na família como na comunidade civil, pelo progresso dos cos- tumes e das instituiçóes; enfim, exprime, comunica e con- serva, em suas obras, no decurso dos tempos, as grandes experiências espiritqais e as aspiraçoes, para que sirvam ao proveito de muitos e ainda de todo o gênero humano.rl Finalmente, à luz da anhopologia, podemos também en- tender cultura como o conjunto e a integraçáo dos modos de pensar, sentir e fazer adotados por uma comunidade, na busca de solu- çóes para os problemas da vida humana associativa. Cultura, como se depreende dessas acepções, implica so- ciedade. Em função dessa circunstância, cabe considerar, em senti- do restrito, a cultura 'Já feita", isto e, as maneiras de pensar, de sentir e de fazet que o consenso comunitário referendou como r'l MoRtN, Edgat Cultura de mossa no século XX: o espírito do tempo. 4. ed. Rio de .laneiro: Forense; São Paulo: Universitária, 1971. p. 15. I 1 A lgreja no mundo de hoje. ln: Concilio Vaticano Il' Gaudium et spes 3. ed- Pe- trópoÌis: Vozes, 1966. tal e como representativas do modo de ser da comunidade; em sentido amplo e aberto, há que se ter em conta a cultura que se está fazendo, a cada momento, no cotidiano do homem, sobre- tudo na atualidade, quando o mundo se constitui numa imensa aldeia global e os meios de comunicação de massa se convertem em eficientíssimos agentes culturais. A caracterização cultural, em termos sociais, admite am- pliações e setorizações que permitem tratar, entre outras, de cul- tura ocidental, cultura européia, cultura grega, cultura romana, cultura brasileira etc. Conseqüentemente, de literatura ocidental, literatura européia, literatura grega, literatura romana, literatura brasileira etc. Obviamente, como fato cultural que é, a literatura acom- panha o desenvolvimento da cultura de que é parte integrante. Cada ser humano encontra, desde que nasce, um mundo de coúecimentos que lhe vão sendo transmitidos pela socieda- de, por sua vez herdeira de coúecimentos anteriores e aberta e novas interpretações. 'A vida é um constante fluir. Ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas do rio", disse Heráclito, fi- lósofo grego. Ao que podemos acrescentar: sai impregnado das águas em que se vai molhando. Tais coúecimentos veiculam-se por meio de linguagens, entre a língua que falamos e que pode ser entendida como urn conjunto organizado de valores e que é, simultaneamente, uma instituição social e linguagem de uma sociedade. A literatura se vale da língua e revela dimensões cultu- rais. Cultura, língua e literatura es&Ío, portanto, estreitamente vinculadas. Reiterando noções e ampliando a explicitação: a lingua- gem literária é eminentemente conotativa. A conotação se plu- raliza em função do 'niverso cultural dos falantes; prende-se, portanto, às diferenças de camadas socioculturais e ao processo de desenvolvimento da cultura. Fácil é concluir que a literatura, apoiada num sistema de signos lingüisticos que representam o mundo e revelam dimensões profundas do ser humano, traduz o grau de cultura de uma sociedade. E mais: por força de sua natu- reza criadora e fundadora, pode configurar-se como espelho ou como denúncia, como conservadora ou como transformadora' Essas dimensões têm marcado a história da arte literária ocidental, em que se desenvolvem movimentos ora assinalados por atitudes regressivas, ora por procedimentos de vanguarda. Sendo a obra de arte literária matéria ficcional, claro está que a realidade nela revelada não se confunde com a realidade socialmente dada. A linguagem literária, lembra Lefebwe, abre- se sobre o mundo e coloca diante dele "uma questão que não é daquelas que podem ser respondidas pela ciência, pela moral ou pela sociologia [...] Ela interroga o mundo sobre sua realidade e a linguagem sobre sua obsessão de uma adequação perfeita ao ser do mundo. Não é uma solução, uma fuga para fora da lin- guagem e do humano: ela encarna uma nostalgia".r2 r2 Lerpnw, Maurice-Jean. Stnrcnre du discours de Ia poésíe el du récit. Neuchâtel La Baconnière, l97l p 28-9 5 Características do discurso literário Literaturae especif icidade Se a literatura é uma arte, nessa condição ela é um meio de comunicação de tipo especial e envolve uma linguagem tam_ bém especial. Esta última, como já foi visto, apóia_se numa lín_ gua e se configura em textos em que se caracteriza uma deter- minada modalidade de discurso O código em que se pauta o discurso literiário guarda íntima relação com o código do discurso comum, mas apresenta, em relação a este, diferenças singularizadoras. Diante do mistério do fenômeno literário, o grande desafio dos estudiosos e pesquisadores tem sido caracterizar plenamente essa especificidade. Identificar, entretanto, certos fiaços peculiares do discurso literrírio tem sido possível; o que ainda nãó se conseguiu definir, mesmo à luz desses traços, é o índice da chamada liierariedade, busca mobilizadorasobretudo da crítica formalista e estruturarista. Essas limitações não impedem que assinalemos uma série de caracteres distintivos do discurso liìerrírio em relação ao dis- curso comum. Vamos a eles. Complexidade O discurso da literatura se caracteriza por sua complexida- de. No discurso nãeliterário, há um relacionamento imediato com o referente; caracteriza-se, na rÌaioria dos casos, a significa- ção singular dos signos, como vimos na frase-exemplo "Uma flor nasceu no chão da minha rua". Já o que depreendemos do texto literário ulhapassa, como já foi assinalado, os limites da simples reprodução. A natureza das informações que, por seu intermédio, são transmitidas, vai além do nível meramente semântico para se converter em algo tal que sua comunicação se toma impossível por meio das estruturas elementares do discurso cotidiano. No dispositivo verbal configurador da obra de arte literária, revelam-se realidades que, mesmo únculadas a elementos de na- tureza individual ou de época, atingem espaços de universalidade. O texto literrírio realmente significativo ultrapassa os li- mites do codificador para nos atingir, por força ainda do misté- rio da criação em literatura, com mensagens capazes de revelar muito da condição humana. Caracteíua um mergulho na direção do ser individual, do ser social, do ser humano. Dom Casmurro, paÍa destacar um exemplo, romance de Machado de Assis, é, sob tais aspectos, obra exemplar. Diante do que nela se revela e do modo de realização que nela se confi- gura, reveste-se de atualidade e abre-se, na sua polissemia, a inúmeras e variadas leituras. Que nos permitem depreender, en- tre outros, aspectos individuais metonimizados nos persona- gens; multiplicidade de temas, como o ciúme; o adultério; a dú- vida; o ressentimento; a fratura do resgate; o fazer do romance; a dissirnulação do erotismo feminino; o desvendamento da prá- tica jurídica; projeções do social, também metonimizados no microcosmo familiar dos Santiago e dos Pádua; visões de mun- do; visões da vida no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, con- figurações da complexidade da vida humana. A condição de habitante de uma cidade apresenta-se exem- plarmente nas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, que nos leva "ao tempo do rei", e o rei era Dom João VI. Pode ainda ser lida em Felìz Ano Novo, liwo de contos de Rubem Fonseca, feito de metonímias hiperreais da violência urbana na Cidade Maravilhosa. A cidadania associa-se à nacionalidade na síntese que é Macunaíma, de Mário de Andrade, centrada nas aventuras e desventuras de um anti-herói feito da fusão de caracteristicas do brasileiro, seus defeitos, suas virtudes, suas aspirações. Um texto- paródia da história do Brasil. Dimensões psicológicas, geográficas, sociais, históricas, religiosas, míticas, metafisicas integram-se na linguagem singu- laríssima do Grande sertão: veredas. Em certo sentido, a linguagem literária produz; a não-lite- rária reproduz. O fato literiirio caracteriza-se, entre inúmeras outras mar- cas, por uma dupla dimensão articulada: a dimensão semiótica, ligada aos signos de que se faz o texto, e a dimensão transfigu- radora do real. Uma e outra, integradas, estão, por seu turno, na base da dimensão estética que o caracteiza. O texto literário é, ao mesmo tempo, um objeto lingüístico e um objeto estético. Nessa situação, configura-se um sistema de signos secun- dário em relação à língua de que se vale, esta funcionando, no caso, como o sistema l. Entenda-se o adjetivo secundario vincula- do sobretudo à natureza complexa que está sendo assinalada e não somente ao fato de que o sistema I é uma língua natural. A obra de arte literiiria, valho-me ainda uma vez de Lefeb- ve, é sempre "O lugar e como a intersecção de dois movimentos de sentidos opostos que envolvem, por um lado, um dobrar-se da literatura sobre si mesma num puro objeto de linguagem e, por outro lado, um abrir-se "ao mundo interrogado na sua reali- dade e na sua presença essencial [...] movimentos contraditórios e entretânto soliüários, pólos ao mesmo tempo complemencares e antagonistas, criadores à",'t'n tu-po dinâmico que só ele permite "o-!.""od"r os diversos aspectos do fenômeno literário"r' MultissigniÍicação Ao caracteriziÌr-se no texto literário run uso específico e complexo da língua, os signos lingüsticos' as. frases' as seqüências ^rurn"-, em úção do context t em que se integram' significado variado e múltiplo. Assim, afastam-se, por exemplo' da monossig- nificação típica do discurso científico, para só citar um caso' E nesse sentido que alguns estudiosos situam o distancia- mento que a linguagem literária assume em relação ao que cha- mam grau zerc da escritura' Entenda-se, a princípio, grau zero como o discurso preo- cupado sobretudo "* u pi"nu ólzreza dacomunicação nele vei- .uiudu e com a obediência às normas usuais da lingua' (Para uma visão mais minuciosa do conceito' pode-se ver o liwo de Roland Barthes Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura,edição da Cultrix de 1974') A multissignificação ou polissemia não é marca exclusiva rrente prende-se necessariÍÌmen- te "a uma preocupação de imediata e utilitária funcionalidade"'2 O texto de literatura' em função do contexto que o caracteÍvqÍe- úf. q"ufq*t imposição coercitiva' Esse preocupar-se nele não se i- pi"r"nt". O que o leva a possibilitar ao destinatário' leitor ou Ì LerEsvr. Maúce-Jear. Op. cit' p- 29' : R-Ers, Carlos. O conhecimento àa fiteratura'. introdução aos estudos literários Coimbra: Almedrna, 1995'P' 126 ouvinte, a depreensão de uma multiplicidade de sentidos. Tal depreensão vincula-se ao seu universo cultural e ao seu saber lingüístico, na medida em que, como assinala Umberto Eco, "o estimula a interrogar a flexibilidade e a potencialidade do texto que interpreta, tal como a do código a que se refere".l A literatura, na verdade, cria significantes e funda signifi- cados. Apresenta seus próprios meios de expressão, ainda que se valendo da língua, ponto de partida. Superposto ao da língua, o código literário, em certa medida, caÍactenza alterações e mesmo oposições em relação àquele. E um desvio mais ou me- nos acentuado em relação ao uso lingüistico comum. Em ter- mos literários, por exemplo, assegurada a coerência do conjunto em que inseríssemos a afirmação, teriam sentido frases como "a flor de nossa rua comeu todos os medos" ou "a flor expulsou to- dos os monstros" e, fora desse âmbito sintático-vocabular, lem- bro versos como "Um supremíssimo cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/cansaço", de Fernando Pessoa, em que, como se vê, se fere, em nome da expressividade poetica, a norÍna morfológica do idioma no seu uso cotidiano. E mais: paÍa a plurissignificação do texto contribuem, como acentua Paul Ricoeur, fatores de ordem sincrônica e de ordem diacrônica. Vale dizer, os primeiros se vinculam à carga significativa ligada às relações entre as palawas no conjunto do texto de que fazem parte; já o plano da diacronia envolve tudo o que de significação e evocação o tempo agregou aos vocábulos, no decurso de sua história, incluídas nessa totalidade as dimen- sões resultantes do uso das palavras na tradiçãoliterária. Num ou noutro caso, a plurissignificação pode associar-se ao âmbito sociocultural, como quer, por exemplo, Della Volpe, I Eco, Umberto. Trattoto di semiotica generale. ó. ed. Milão: Bompiani, 1978 p. 380. V., a propósito, Rrrs. Carlos. Op. cit. p. 126 e Ewsor.r, W . Seven types of anbiguity Nova York: New Directions, l9óó. ou a espaços miticos e arquetípicos, como pretende Norúrop Frye; situo-me, no caso, entre os que acreditam que tais dimensões não se excluem, antes se complementam' A multissignificação é, pois, uma das marcas do texto li- teráno como tallE o traço que permite, entre outras' as múlti- plas teituras existentes da obra de João Cabral de Melo Neto' de Carlos Drummond de Andrade' de Guimarães Rosa; que possl- bilita a Roland Barthes a sua apreciaçào da obra de Racine e que nos autoriza ler, em lracema, de Jose de Alencar' uma sín- tlse simbólica do processo civilizatório da América' entre ou- tras interpretações. A permanência de determinadas obras se prende uo ,a., alto índice de polissemia' que as abre às mais va- riadas incursões e possibilita a sua atemporalidade' Predomínio da conotação A linguagem literária é eminentemente conotativa' O tex- to literário resulta de uma criação, feita de palavras' É do arran- jo especial das palavras nessa modalidade de discurso que emerge o sentido múltiplo que a caractenza' Os signos verbais, no texto de literatura' por força do pro- cesso criadãr a que são submetidos, à luz da arte do escritor' re- velam-se ..r.gãdot de traços significativos que a eles se agre- gam a partir do processo sociocultural complexo a que a língua ãe vincula. O teito literário pode abrigar a presença de elemen- tos identificadores de um real concreto, quase sempre garantidor de verossimilhança, como costuma também' nessa mesma di- mensão, apresentaÍ uma imagem desse real ligada estreitamente a outros elementos que fazem o texto. Essa presença, que pode trair uma dimensão denotativa, não é, entretanto' seu traço do- minante. Este reside na conotação, conceito fundamental para os estudos de literatura, e de tal maneira que especialistas como André Martinet, Georges Mounin e, entre nós' José Guilherme Merquior chegam a admitir que nas conotações reside ..o segredo do valor poético de um texto',.a Liberdade na criação As manifestações literárias podem envolver adesão, trans_ formação ou ruptura em relação à tradição lingüística, à tradi_ ção retórico-estilistica, à tradição técnico-literária ou à tradição temático-lite.iria às quais necessariamente está vinculado o tra- balho do escritor. A literatura se abre, então, plenamente, à cria_ tividade do artista. Em seu percurso, ela envolve a constante in_ venção de novos meios de expressão ou uma nova utilização dos recursos vigentes em determinada época. Mesmo nos momen_ tos em que a obediência a determinados principios pareceu re_ gular os procedimentos literários, a literatura, por sua própria nafureza, levou à abertura de camiúos renovadores. Não existe uma "gramática normativa" para o texto literá_ rio. Seu único espaço de criação é o da liberdade. Se a norma, em alguns instantes, regulou a ,,arte',, o .,en_ geúo" sempre foi além, com maior ou menor evidência. E os movimentos de vanguarda, a constante exigência e busca do novo continuam sendo suas marcas mais patentes, nurn curso lhe a criação progressora. Gf. t4a*q,o*, J. Guilherme. Do signo ao sint oma In: Fornalismo e tradição mo- derna; o problema da arte na crise da cuÌtura. R.ro de Janeiro/São paulo: iorense/ Edusp, 1974. p. 129. Na maioria dos casos, é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra de arte literária se faz, fazendo-se. Observe-se que as norÍnírs reguladoras do texto não-litenário, aquelas que se impõem ao indivíduo por corresponderem àquilo que habitualmente se diz, precisam ser obedecidas, sob pena de sérios ruídos na comunicação e, em certas circunstâncias, até de total obliteração do que se pretende comunicar. No texto literá- no a criação estética autoriza qualquer transgressão nesse senti- do. E em termos de história literária, múltiplos e vários têm sido os percursos nessa direção, seja em termos individuais, seja em termos de movimentos de época. Ênfase no signiÍicante Enquanto o texto não-literií,rio confere destaque ao signi- ficado, ou seja, ao plano de conteúdo, o texto literário tem o seu sentido apoiado no significado e no significante, com especial relevo concedido a este último. A questão, entretanto, não e pa- cifica. Sobretudo quando pensÍìmos que, ao situar significante e significado no âmbito da semiótica, estes ganham dimensões que, embora relacionadas com a visão da lingüistica, adquirem matizes diferentes e contribuem efetivamente para o sentido do texto, principalmente em termos da informação estética que nele se configura. Num poema como o "Soneto de separação", de Vinicius de Moraes, por exemplo, os fonemas bilabiais de certos vocábulos parecem contribuir para o sentido dominante no texto, centrado na separação entre dois seres: Soneto de separação De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Oue dos olhos desfez a última chama E da paixáo fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente.s Têxtos há em que o significante sobressai de maneira ain- da mais acentuada, como neste poema concreto de Ronaldo Azeredoó: VVVVVVVVVV VVVVVVVVVE VVVVVVVVEL VVVVVVVELO VVVVVVELOC VVVVVELOCI VVVVELOCID VVVELOCIDA VVELOCIDAD VELOCIDADE 5 ln: -. Livro de sonetos. 3. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967. p 30-1. 6 Apud Cnrnmos, Auguso de; PtcNArARi, Decio; C.*mos. Haroldo de. Teoria da Inesia concreta'. textos e manifestos críticos - 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975, p.92 A questão é facilmente compreensível: basta substituir os vocábulos de um texto por sinônimos, para aquilatar a relevân- cia do significante. Pensemos na fala famosa do Hamlet, de Shakespeare: To be or not to be: that is the question (Ser ou não ser: eis a questãof Veja-se o efeito de substituições: Am I or am I not: that is the question (Sou ou não sou: eis a questão) To be or not to be: that is what worries me (Ser ou não ser: é isso que me preocupa) Evidentemente, perde-se muito do efeito estético com as expressões substitutas, levando-se em conta, obviamente, o con- texto em que as palavras do teatrólogo se inserem' No "Soneto de separação", de Vinicius de Moraes, é bas- tante trocar algumas palawas para verificar a força do signifi- cante, colocando, por exemplo, "repentinamente" em lugar de "de repente"; 'Juntas", onde está "unidas", ou "tranqüilidade" onde se encontra "calma". Variabilidade O texto literário se vincul4 como foi assinalado, a um uni- verso sociocultural e a dimensões ideológicas; sua nahrreza en- volve mutações no tempo e no espaço; ele tem uma língua como ponto de partida e de chegada; as línguas acompanham as mudan_ ças culhrais; mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mu_ dam as p€ssoiìs, os povos, a linguagem: a literatura, manifestação culh.ral, acompanha as mudanças da cultura de que é parte, inte_ grante e altamente representativa. A literahrra traz amarcade uma variabilidade específica, seja em relação aos discursos indiüduais, seja em termos de representatividade cultural. E não nos esqueça_ mos de que, na base da literatura, está a permanente invenção. Modos de realização O texto literiírio - eis um taço óbvio e imediatamente com_ provável - se faz de manifestações em prosa e de manifestações em verso. ManiÍestações em prosa As manifestações em prosa envolvem as modalidades da narrativa de ficção. Ficção - do latimy'ctionem, cognato doverbofingere,,,dar forma a qualquersubstância plástica e, por extensão, representar, imaginar, inventar", que em português deu ,.fingir" - significa invenção, construção da imaginação, fingirnento, simulação, imaginação. A narrativa de ficção se caracteriza por fazer-se de histórias fictícias ou simuladas, nascidas da imaginação. As principais modalidades desse tipo de narrativa são o conto, o romance e a novela. Tarefa das mais complexas tem sido determinar os limites de tais formas. As definições mais usuais as caracterizÍrm como a segurr: O conto oferece uma amostra da vida, por meio de um episódio, um flagrante ou instantâneo, uln momento singular e representativo. Constitui-se de uma história cuÍa, simples, com economia de meios, concentração da ação, do tempo e do espaço. Ex.: "Noite de almirante", de Machado de Assis. O romance prende-se a uma vasta área de vivência, faz-se geralmente de uma história longa e apresenta uma estrutura complexa. Ex.: Dom Casmurro, do mesmo Machado de Assis; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, A repúblìca dos sonhos, de Nélida Pifron. A novela se situa como forma intermediária entre o ro- mance e o conto. Ex.: Lëguas da promissão, de Adonias Filho. Essas variedades envolvem certa visão do mundo e uma determinada maneira de captar as questões que nos textos se apresentam, caracterizando um sistema que se faz de vários ele- mentos integrados: uma narração vinculada a personagens em ação (ou não) num tempo e num espaço em torno de um ou mais temas,.traduzindo-se num estilo e por meio de determina- dos ângulos de visão. As visões da narrativa Segundo os moldes consagrados pela tradição, a narração pode ser conduzida por um narrador não participante ou por um personagem que convive com os outros na história narrada. Isso nos leva ao modo como esta última se apresenta e se constrói: o ângulo de visão, ponto de vista, foco ou enfoque narrativo, tam- bém conhecidos como visão da narrativa. Em princípio admitem-se, entre outras possibilidades, a his- tória contada em primeira pessoa por um dos personagens que toma parte nos acontecimentos ou a história contada em terceira pessoa por um narrador que se situa fora dos acontecimentos e pode: a) saber tudo a respeito de tudo (visão totalizadora); b) co- úecer plenamente apeÍÌas um dos peÍsonagens (visão limitada); c) coúecer superficialmente os personagens (visão resnita). Essas modalidades de visão são bastante encontradiças na literatura ocidental. Acrescente-se a elas o monólogo interior, tec- 52 nica inventada pelo escritor fiancês Edouard Dujardin (1g61_ u romance I difere do mo os como vão te sem nenhuma preocupação com urn encadeamento lógico: dei_ xando fluir liwemente as ideias e sentimentos em frases diretas, com a sintaxe reduzida a um mínimo de recursos. Um excelente exemplo se encontra num dos mais famosos textos da moderna li_ teratura do Ocidente, o citado (Jlisses, de James Joyce; transcrevo uma passagem, na primorosa tradução de Antônio Houaiss: Sim porque ele nunca fez uma coisa como essa antes como pedir pra ter seu desjejum na cama com um par de ovos desde o hotel CiÇ Arms quando ele costumava fingir que estava de cama com voz doente fazendo fita para se fazer interessante para aquela velha bisca da senhora Rior_ dan que ele pensava que tinha ela no bolso e que nunca deixou pra nós nem um vintém tudo pra missas para ela e para alma dela grande miserável que era com medo até de soltar 4x. para seu espírito metilado me contando todos os achaques dela com aquela velha de falação dela sobre po_ lítica e tremores de terra e o fim do mundo que a gente tenha um pouco de distração pelo menos antes Deus ajude o mundo se todas as mulheres fossem como ela contra rou_ pa de banho e decotes é claro que ninguém queria ver ela com isso eu creio que ela era piedosa porque nenhum ho_ mem havia de olhar para ela duas vezes eu espero que não vou ser nunca como ela não admirava se ela quisesse que a gente escondesse a cara mas ela era uma mulher bem edu_ cada e sua fala tagarela sobre o senhor Riordan praqui e o senhor Riordan pralá eu penso que ele ficou contente de se ver livre dela e do cachorro dela que cheirava meu casaco de pele e se metia sempre debaixo de minhas saias.? t l*.r' lu,n.r. Lïssar. Trad. de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: ciúlização Brasi- Ieira. l9ó6. p.792-3. Ouho bom exempÌo está no conto "Monólogo de Tuquiúa Batista", de Aníbal Machado: Não Mundinha pra Zona Sul eu não vou já disse que não vou pra lá não Betsy que não quero me perder e cá no meu subúrbio eu sou Tuquinha Tuquinha Batista T.B. meu nome em toda parte que eu quase choro agradecida T.B. nos muros T.B. no tronco das árvores no mamoeiro na porta da igreja como largar minha gente ficar longe das letras de meu nome não não Mundinha não me ten- tes mais estou quase noiva isto é não estou mas meu noi- vo vem vindo já apareceu na bola de cristal a cartomante disse que por enquanto ele aparece só pra ela todo dou- rado nadando num fundo azul e que é parecido com Clark Gable. mas eu queria que ele parecesse com aquele que viajou no pingente uma vez na véspera do Ano-Bom ele me olhava de fora pela vidraça e o trem dava cada sola- vanco e ele se equilíbrava a cara bonita atrás rindo ten- tando a gente rindo e cantando parecia até um demônio eu de repente fiquei apaixonada e até hoje quando vejo vi- draça olha aquele findo me tentando querendo se apos- sar da gente nunca mais apareceu só a lembrança do ros- to dele sorrindo sempre vai ver é um pilantra feito aquele "fala-macio" que levou Raimunda pra Copacabana dizen- do que lá sabíam apreciar uma morena feito ela que ela ia virar girl e arranjava um bom contrato que o subúrbio era triste...8 A diferença entre o monólogo interior e o monólogo tradi- cional é flagrante: este último admite a participação do narrador e até comenlários sobre o que o personagem está pensando, sen- tindo ou fazendo, o que não acontece com o pnmeiro. t Macnnoo, Anibal I morte da pona-eslandarte e outas histórias José Olympio, Ì965. p. 106. Rio de Janeiro O critico francês Jean PouiÌÌon, no seu O tempo no romance, ao tatar dos "modos de compreensão" em relação ao romance, ad- mite três modalidades básicas de visão: a visão "com" (vision "avec"), a visão "por trás" (vision "par derrière ') e a visão "de fora" (vision "du dehors"). Na visão "com", tudo se centraliza num personagem e é a partir dele que nós vemos e "vivemos" os acontecimentos nar- rados e percebemos também o que com ele se passa no âmbito da ação do romance. Memórias póslumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, estão nesse caso. Na visão "por trás", o autor não se situa no interior de um personagem, mas procura afastar-se dele para considerar objeti- va e diretamente sua vida psíquica. A diferença entre a visão "com" e a visão "por trás" é a que se verifica enfe a pura e simples consciência e o coúecimento à luz da reflexão. Num romance de visão "com", esta tem por centro, do qual se irradia, wnfoyer quefazparte do proprio romance; é na obra que enconframos a fonte de luz que a ilumina. No romance de visão "por trás", a fonte não eslá no romance, mas no romancista, melhor dito, no narrador não nomeado, na medida em que ele sustenta a sua obra sem coincidir com um de seus personagens. Observe-se que, nesse caso, o leitor faz sua a visão do narrador. A visão "de fora" envolve a observação material da con- duta do personagem, seu aspecto fïsico e o meio em que vive. Claro está que a exterioridade assim caracterizada é situada pelo autor e captada pelo leitor como reveladora de interioridade. O "dehors" dos personagens nos é apresentado de tal modo que ele nos revela progressivamente seu caráter. Essas divisões e classificações não esgotam a matéria, e as visões admitem os mais variados arranjos e combinações. Nem se pense na exclusividade necessária desse ou daquele enfoque. Há narrativas em que convivem harmonicamente várias visões, como. por exemplo, em Corpo uivo, romance de Adonias Filho, caracterizado por
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