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1 HISTÓRIA DA ÁFRICA LETÍCIA CRISTINA FONSECA DESTRO EDUCAÇÃO A DISTÂNCIAFACULDADE ÚNICA 1 HISTÓRIA DA ÁFRICA LETÍCIA CRISTINA FONSECA DESTRO 1 2 HISTÓRIA DA ÁFRICA 1° edição Ipatinga, MG Faculdade Única 2021 3 FACULDADE ÚNICA EDITORIAL Diretor Geral: Valdir Henrique Valério Diretor Executivo: William José Ferreira Ger. do Núcleo de Educação a Distância: Cristiane Lelis dos Santos Coord. Pedag. da Equipe Multidisciplinar: Gilvânia Barcelos Dias Teixeira Revisão Gramatical e Ortográfica: Izabel Cristina da Costa Revisão/Diagramação/Estruturação: Bruna Luiza Mendes Leite Carla Jordânia G. de Souza Guilherme Prado Salles Rubens Henrique L. de Oliveira Design: Aline de Paiva Alves Bárbara Carla Amorim O. Silva Élen Cristina Teixeira Oliveira Maria Luiza Filgueiras Taisser Gustavo Soares Duarte © 2021, Faculdade Única. Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem Autorização escrita do Editor NEaD – Núcleo de Educação a Distância FACULDADE ÚNICA Rua Salermo, 299 Anexo 03 – Bairro Bethânia – CEP: 35164-779 – Ipatinga/MG Tel (31) 2109 -2300 – 0800 724 2300 www.faculdadeunica.com.br 4 LEGENDA DE Ícones Trata-se dos conceitos, definições e informações importantes nas quais você precisa ficar atento. Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, você irá encontrar ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São opções de links de vídeos, artigos, sites ou livros da biblioteca virtual, relacionados ao conteúdo apresentado no livro. Espaço para reflexão sobre questões citadas em cada unidade, associando-os a suas ações. Atividades de multipla escolha para ajudar na fixação dos conteúdos abordados no livro. Apresentação dos significados de um determinado termo ou palavras mostradas no decorrer do livro. FIQUE ATENTO BUSQUE POR MAIS VAMOS PENSAR? FIXANDO O CONTEÚDO GLOSSÁRIO 5 SUMÁRIO UNIDADE 1 UNIDADE 2 UNIDADE 3 1.1 Introdução.........................................................................................................................................................................................9 1.2 Em breve panorama geográfico e a diversidade de povos e culturas ..................................................9 1.3 Imagem da África e dos africanos na antiguidade e entre os árabes ..................................................11 1.4 A África e os africanos descritos pelos ocidentais .............................................................................................13 FIXANDO CONTEÚDO ...................................................................................................................................................................16 2.1 Introdução .....................................................................................................................................................................................20 2.2 Continente A-Histórico?.......................................................................................................................................................20 2.3 Reinventando a sua própria história ...........................................................................................................................23 2.4Novos estudos africanos ......................................................................................................................................................25 FIXANDO O CONTEÚDO ............................................................................................................................................................28 3.1 Introdução .....................................................................................................................................................................................31 3.2 Estados antigos do Sudão: Egito, Kush , Axum ...................................................................................................31 3.2.1 Egito antigo ......................................................................................................................................................................31 3.2.2 Núbia ...................................................................................................................................................................................34 3.2.3 Axum ...................................................................................................................................................................................35 3.3 Estados do Antigo Sudão: Gana, Mali e Songai ...................................................................................................35 3.3.1 Gana ......................................................................................................................................................................................36 3.3.2 Mali ........................................................................................................................................................................................37 3.3.3 Songai .................................................................................................................................................................................38 3.4 Estados da África Austral: O monomotapa ...........................................................................................................38 FIXANDO O CONTEÚDO ...........................................................................................................................................................40 IMAGENS DA ÁFRICA ÁFRICA, UM CONTINENTE COM HISTÓRIA UM CONTINENTE EM MOVIMENTO UNIDADE 4 4.1 Introdução ....................................................................................................................................................................................43 4.2 As estruturas sociais africanas........................................................................................................................................43 4.2.1 Senegal e Golfo da Guiné .........................................................................................................................................43 4.2.2 Congo e Angola ..............................................................................................................................................................44 4.3 A escravidão na África e o contato com os europeus ...................................................................................46 4.4 O impacto do tráfico de ecravos e da escravidão atlântica........................................................................49 FIXANDO O CONTEÚDO .............................................................................................................................................................52 AS SOCIEDADES AFRICANAS E A ESCRAVIDÃOUNIDADE 5 5.1 Introdução ......................................................................................................................................................................................55 5.2 Partilha da África ( 1880-1914): Interpretações .......................................................................................................55 5.3 O caso emblemático do Congo ......................................................................................................................................57 5.4 A conquista na pespectiva africana..............................................................................................................................58 5.5 Descolonização e guerras coloniais ..............................................................................................................................59 FIXANDO O CONTEÚDO ...............................................................................................................................................................63 ÁFRICA CONTEMPORÂNEA 6 SUMÁRIO UNIDADE 6 6.1 Introdução ....................................................................................................................................................................................67 6.2 A importancia da África no Brasil ................................................................................................................................67 6.3 Caminhos até a implementação da Lei Nº 10.639/03 .....................................................................................70 6.4 Ensino de história da África: Desafios e possibilidades ...............................................................................72 FIXANDO O CONTEÚDO ............................................................................................................................................................76 A ÁFRICA NO BRASIL 7 UNIDADE 1 Ao longo da história, o continente africano foi diversamente representado. Estas representações, por sua vez, de uma forma ou de outra, contribuíram para construir as ideias sobre a África e o africano que circulam no imaginário contemporâneo. Nesta unidade conheceremos um pouco dessas imagens e sua história. UNIDADE 2 É perceptível o quanto uma visão eurocêntrica esteve presente nos textos acerca da história africana. Muitos clássicos viam a África como um continente, inclusive, sem história. Contrários a tal visão, um grupo de intelectuais mobilizou esforços para reescrever a história da África, valorizando-a e reconhecendo a sua diversidade e importância. Estudaremos sobre esses movimentos intelectuais nesta unidade. UNIDADE 3 A África, ao longo da sua história, abrigou diversos reinos, impérios e Estados. Nesta unidade conheceremos alguns deles compreendendo um pouco da sua organização política, cultural, econômica e social. UNIDADE 4 Nesta unidade estudaremos as organizações das sociedades africanas no alvorecer dos contatos com os europeus e do comércio atlântico de escravos que deles resultou. Analisaremos, além disso, a escravidão na África e a participação de Estados africanos no comércio moderno de escravizados que levaram milhões de africanos para a América. UNIDADE 5 No Brasil se verifica uma grande desigualdade social e racial. Além disso, apesar da efetiva influência cultural e histórica africana e afrodescendente na formação do país, estas foram, durante séculos, desvalorizadas e negligenciadas. Para reverter tal cenário, diversos movimentos têm se organizado de modo a exigir políticas antirraciais mais efetivas. A Lei 10.639/03 é um exemplo. Nesta unidade, portanto, conheceremos melhor a promulgação da Lei e o seu contexto. UNIDADE 6 Nesta unidade estudaremos o processo de partilha da África no contexto do imperialismo das potências europeias industriais em finais do século XIX, bem como a consequente descolonização que acarretou na formação dos países atuais. C O N FI R A N O L IV R O 8 IMAGENS DA ÁFRICA UNIDADE 01 9 1.1 INTRODUÇÃO África: “berço da humanidade”? Uma das teorias científicas mais aceitas sobre o surgimento da espécie humana remonta a este vasto continente. Foi nele que se encontraram os primeiros vestígios dos ancestrais mais longínquos, os Australopithecus, e, provavelmente, foi nele que a espécie de desenvolveu até chegar ao homem moderno, o Homo Sapiens. Foi da África que ele partiu em direção à Europa e Ásia chegando, posteriormente, à América e Oceania. Também foi lá que grandes civilizações se desenvolveram e deram suas contribuições para as sociedades posteriores. Foi desse continente também que saíram diversos homens, mulheres e crianças que tiveram sua força de trabalho explorada em diversos lugares do mundo. Foram dessas histórias e culturas que se formaram tantas outras histórias e culturas no Brasil e no mundo. Contudo, o interesse por toda essa diversidade é algo recente na historiografia mundial. Nesta unidade, portanto, vamos começar a conhecer essa(s) África(s), seus contornos geográficos e étnicos, para então, adentrarmos suas histórias e historiografia 1.2 UM BREVE PANORAMA GEOGRAFICO E A DIVERSIDADE DE POVOS E CULTURAS Alguns autores frequentemente dividem o continente africano tomando por base o deserto do Saara (segundo maior deserto do mundo) localizado ao norte do continente: África do Norte, também chamada de “África Branca” (países da África ao norte do Saara como Egito, Marrocos, Líbia, Argélia e outros, cuja religião principal é o Islã), e África Subsaariana, também conhecida como a “África Negra” (os 44 países ao sul do Saara como Sudão, Senegal, Etiópia, Angola, Namíbia, Uganda, Moçambique, República Democrática do Congo, Serra Leoa, África do Sul, Botsuana, e diversos outros). Contudo, esta divisão geopolítica muitas vezes é resultado de uma postura racista e ideológica sobre o continente, que busca fazer uma distinção entre uma África “civilizada” (a África do Norte ligada ao Mediterrâneo) e a África “bárbara” (África ao sul do Saara). Além disso, ela acaba por unificar regiões que possuem histórias, culturas, religiosidades diversas. Apesar dessas denominações serem questionadas por vários estudiosos, ainda é possível encontrá-las em estudos que buscam classificar os povos africanos. Assim sendo, para se compreender o continente africano de maneira geral é importante questionar estas classificações e repensar o continente dentro da sua diversidade histórico-cultural. A África é o terceiro maior continente com cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados, mas em termos de população, é o segundo maior (perdendo somente para a Ásia). Ela é cercada pelos oceanos Atlântico (oeste), Índico (leste), além dos mares Mediterrâneo (norte) e vermelho (nordeste). Quanto à vegetação, na sua porção equatorial, predomina-se a floresta. 10 Conforme vai se aproximando das regiões mais secas, a floresta vai dando lugar às savanas (tipo de vegetação mais abundante no continente) até chegar ao deserto do Saara, que é um dos maiores do mundo. Há ainda o Sahel, uma faixa de 5400 km de extensão, entre o deserto do Saara ao norte e a savana do Sudão ao sul que é de transição entre as terras áridas do Saara e as terras férteis da savana sudanesa. Em termos étnicos, o continente é extremamente heterogêneo, sendo muito difícil fazer uma contagem oficial da população desses grupos. No mapa a seguir, tem-se a divisão do território africano a partir das diferentes etnias, demonstrando suas complexidades e variedades. ETNIA: apesar de muitos utilizarem etnia como sinômino de raça, tal relação não é correta. Raça é um termo não científico que somente pode ter significado biológico quando o ser apresenta características homogêneas. Como o ser humano não se inclui nesse sentido, o termo etnia é melhor empregado e constrói uma identidade entre os indivíduos baseada em parentesco, línguas e outros. Vale ressaltar, contudo, que o termoé criticado por apresentar uma unidade social a realidades tão diversas quanto as africanas pré-coloniais. GLOSSÁRIO Em termos linguísticos, a África também impressiona com 54 países e atualmente possui mais de mil línguas faladas. Algumas dessas línguas, como o hauçá, são faladas por milhões de pessoas, outras por poucos milhares. Além disso, mesmo que em uma área grande predomine um determinado idioma, pode haver pequenas regiões com outros idiomas. Assim, povos vizinhos podem se expressar por línguas inteiramente diferentes. BUSQUE POR MAIS “As etnias procedem apenas da ação do colonizador que, em sua vontade de territorializar o continente africano, recortou entidades étnicas que acabaram sendo reapropriadas pelas populações” (AMSELLE; M’BOKOLO, 2017, p. 30). Para melhor entender tal crítica, leia o livro or- ganizado por Elikia M’Bokolo e Jean-Loup Amselle, No Centro da Etnia, disponível em: https:// bit.ly/39ezhJg https://bit.ly/39ezhJg https://bit.ly/39ezhJg 11 Como se pode perceber, não é fácil, portanto, fazer um agrupamento dos países africanos em conjuntos que apresentem alguma homogeneidade, mas é comum, para facilitar os estudos, a divisão do continente em cinco regiões principais: • Norte da África: é a maior em extensão territorial e compreende os países do Maghreb (região noroeste da África que inclui o Marrocos, a Argélia, a Tunísia e a Líbia), do Saara e do Vale do Rio Nilo. • África Ocidental: está localizada entre o deserto do Saara e o golfo da Guiné e abrange 17 países, entre eles: Nigéria, Costa do Marfim, Senegal, Serra Leoa, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Gana, Guiné, Libéria, Mali, Gabão, Gâmbia, Cabo Verde, Camarões, Benim, Togo, entre outros. • África Central: os países dessa região central são: República Centro-Africana, República do Congo, República Democrática do Congo e Chade. • África Oriental: região que vai da bacia hidrográfica do Congo até o Mar Vermelho e Oceano Índico. Os países incluídos nessa região são: Eritreia, Etiópia, Djibuti, Somália, Quênia, Tanzânia, Uganda, Ruanda, Burundi e Seicheles. • África Meridional: região mais austral do continente que inclui: Angola, Bostwana, Lesoto, Madagascar, Malawi, Zâmbia, África do Sul, Moçambique, entre outros. 1.3 IMAGEM DA ÁFRICA E DOS AFRICANOS NA ANTIGUIDADE E ENTRE OS ÁRABES Depois de estudarmos a variedade étnico-cultural africana e um pouco da sua divisão geográfica, analisaremos as imagens que se construíram sobre a África ao sul do Saara ao longo da história e que, muitas vezes, ignoraram toda esta diversidade. Lembrando que as representações acerca da África e seus habitantes não foram homogêneas e também não foram compartilhadas por todos de maneira igual. Tais imagens espelham apenas as diversas visões acerca do continente que surgiram ao longo dos séculos, e que, de uma forma ou de outra, construíram a ideia de África. Para analisar tais imagens podemos retornar até a Antiguidade Clássica. Gregos e romanos já revelavam a existência de territórios africanos fora do mare nostrum, compondo juntamente com a Ásia e a Europa o chamado ecúmeno (mundo conhecido). Vindos e/ou trazidos Nilo abaixo, não seria impossível encontrar um habitante da África subsaariana a andar pelas ruas do Império Romano. Contudo, nada ou quase nada se saberia sobre suas terras e suas culturas. De acordo com o filólogo congolês Valentin Mudimbe, a parte conhecida da África estaria dividia em: Lybia, Egito e Aethiopia. A Lybia seria a região a oeste do Egito e a Aethiopia corresponderia à região ao sul do Egito (MUDIMBE, 1998. p. 26). 12 A falta de conhecimento, por sua vez, cedeu lugar ao fantástico. Nas obras de autores antigos não havia dúvidas, por exemplo, da veracidade da informação acerca de homens que se transformavam em leões e homens com rabo e cabeça de cachorro habitando as quentes terras ao sul do Saara. Plínio (23-79), o Velho, um naturalista romano, escreveu: O imperador romano Nero (37-68) enviou uma expedição à Núbia, em busca das fontes do Nilo. No regresso, os ex- ploradores contaram que a relva na vizinhança de Meroé se apresentava mais verde e mais fresca, que ali havia pequenas matas e sinais de rinocerontes e elefantes […]. Não é de estranhar que, na extremidade meridional da região, os homens e animais assumam formas monstru- osas, dado o poder transformador do fogo, cujo calor é o que molda os corpos (PLÍNIO, 2012. p. 26-27). A ideia do calor intenso da região, enfatizada pelo romano, está expressa, inclusive, no próprio termo África, que de acordo com o historiador burquinene Joseph Ki-Zerbo teria o sentido de “ensolarada”, do latim Aprica, e “isento de frio”, do grego Apriké (KI-ZERBO, 1982. p. 21). Obras de pensadores da Antiguidade e mesmo no medievo europeu vão, dessa forma, enfatizar o calor intenso e insuportável, cujas influências do clima poderiam ser observadas nas características físicas, como se observa na escrita de Plínio. Vale ressaltar ainda, que havia na Grécia e na Roma antigas quem tivesse uma visão positiva dos homens da zona tórrida, e que já afirmam que a humanidade teria lá surgido, vide a descrição do grego Deodoro da Sícila (Diodorus Siculus, 80-20 a.C.): Os etíopes, como afirmam os historiadores, foram os pri- meiros de todos os homens, e as provas disso são eviden- tes. Praticamente todos concordam em que eles não che- garam como imigrantes às terras que ocupam, mas delas eram nativos e, por essa razão, ostentam com justiça o título de “autóctones”. Além disso, é claro para todos que aqueles que vivem sob o sol do meio-dia foram, com toda a probabilidade, os primeiros a serem gerados pela terra, uma vez que se deve ao calor do sol, no surgimento do universo, o tê-la enxugado, quando ainda estava úmida, e a impregnado de vida (Cf. SILVA., 2012. p. 20). Contudo, somente com os árabes é que a África subsaariana passou a ser descrita por pessoas que a haviam visitado. Ibn Battuta (1304-1357) é um importante viajante árabe. Natural do Tânger, chegou a visitar o Oriente Médio, a África Índica e Ocidental, o Ceilão, a Índia e, possivelmente, a China. A respeito do Malineses, ele teria escrito: 13 Na citação acima de Ibn Battuta é possível observar uma descrição que buscava dar conta do observado por eles próprios, sobressaindo, de alguma forma, juízos de valor ao comparar elementos da cultura do povo observado com a própria cultura – como se observa no caso da utilização da vestimenta. Como para a cultura de Battuta a utilização de vestimenta era importante e desejável, o fato do outro povo não a utilizar seria reprovável. Vale ressaltar, contudo, que apesar das descrições se basearem no observado, não cessaria a tentação do fantástico. Ibn Kaldhun (1332-1406), por exemplo, um historiador muçulmano teria escrito: “Mais para o sul não há civilização propriamente dita. Os homens que ali vivem assemelham-se mais aos animais do que aos seres pensantes. Vivem na mata e em cavernas e se alimentam de ervas e grãos crus.” (SILVA, 2012. p. 59). 1.4 A ÁFRICA E OS AFRICANOS DESCRITOS PELOS OCIDENTAIS No período medieval, a explicação cristã do mundo dominava as esferas do conhecimento. A Bíblia era, portanto, a principal fonte para o conhecimento do mundo real. Este, por sua vez, estava dividido em apenas três partes: África, Europa e Ásia. Lembrando que a América e Oceania só fariam parte do imaginário europeu posteriormente, no século XV, quando se inicia a expansão ultramarina. Tendo em vista a divisão bíblica do mundo pós-dilúvio aos três filhos de Noé, os medievais estabelecem a seguinte ordem: Sem teria povoado a Ásia, Jafet teria ido para a Europa e Cam ficaria com a África. Ora, de acordo com a Bíblia, Cam teria sido o filho amaldiçoado de Noé à eterna servidão. Vejamos melhor sobre isso. De acordo com o Gênesis, Cam, o filho mais novo de Noé, teria flagrado e profanado a nudez e embriaguez de seu pai. Como punição, seus irmãos, Sem e Jafet, teriam amaldiçoado osdescendentes de Cam à servidão eterna. Apesar de nenhuma relação estabelecida à cor da pele dos descendentes camitas no texto bíblico, no imaginário medieval, os responsáveis para o povoamento da África teriam sido, no período pós-dilúvio, os descendentes de Cam. Os efeitos interpretativos da sentença foram elementos importantes na percepção europeia acerca do africano associando-o a imagens nocivas e negativas. • Entre as boas qualidades destaca-se que, entre eles, é rara a injustiça. Trata-se da gente que menos a pra- tica; e o sultão não perdoa o menor deslize nessa di- reção. É total a segurança no território do Mali, de tal modo que nem os locais nem os viajantes têm o que temer de ladrões e salteadores. [...] • Entre os atos reprováveis, destaco o andarem nuas em público, com as vergonhas descobertas, as servas, as escravas e as mocinhas (SILVA, 2012. p.55-56). 14 No século XV, os portugueses ultrapassaram o Cabo Bojador em direção às terras africanas ao sul do deserto do Saara, chegando à região denominada pelos europeus Guiné. Você já parou para refletir acerca desses preconceitos relativos ao continente africano e como eles circulam também no imaginário da sociedade brasileira? O que você conhece acerca da África e dos seus habitantes? VAMOS PENSAR? Guiné era um termo genérico utilizado para denominar toda a região ao sul do deserto do Saara que se ia conhecendo. Guinéus (homens de cor negra) era a forma que os europeus se referiam aos diversos grupos étnicos existentes na costa ocidental africana. A mesma região era chamada pelos árabes de Bilad es-Sudam (País dos Negros). FIQUE ATENTO No processo de expansão, muitos relataram e descreveram o que viram com o intuito, muitas vezes, de informar acerca das marés, dos ventos, do abastecimento e diversos outras informações técnicas. Entretanto, os europeus não descuidavam de descrever os habitantes locais: como eram suas vestimentas, suas comidas, bebidas, casas, aldeias. Na maior parte das narrativas, conforme ressalta o historiador e diplomata africanista Alberto da Costa e Silva, não se observa qualquer esforço para compreender os habitantes locais. Muitas vezes, eles eram descritos como preguiçosos, volúveis, estúpidos, supersticiosos, mentirosos, luxuriosos ladrões e violentos. Além disso, observa-se também tentativas de tradução do desconhecido utilizando-se de elementos que dizem mais sobre a cultura europeia do que da cultura observada de maneira a inferiorizar a outra cultura. Os africanos foram considerados preguiçosos baseado em qual noção de trabalho e ócio, por exemplo? Nesse sentido, a África vai aparecendo cada vez mais como um continente imperfeito e perverso, que a Europa tinha o dever de levar a civilização. Veja-se na seguinte citação do cronista real português Gomes Eanes Zurara: “ca eles não sabiam o que era pão e vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa e o que pior era, a grande ignorância que em eles havia, pela qual não havia algum conhecimento de bem, somente viver em uma ociosidade bestial” (ZURARA, 1989 p. 99). Ou ainda nas palavras do viajante português Duarte Pacheco Pereira: 15 • Jean-Batist Debret (1768-1848) foi um importante artista francês que integrou a Missão Artística Francesa em 1818, que fundou no Rio de Janeiro uma academia de Artes e Ofícios (mais tarde se tornaria Academia Imperial de Belas Artes) onde lecionou. Acerca do cotidiano da sociedade escravocrata carioca, deixou-nos diversas pinturas. Para conhecer mais, leia o artigo: https://bit.ly/2Bm5CBu • Para conhecer mais sobre a diversidade linguística africana (que, inclusive, influenciou o português falado no Brasil) acesse: https://bit.ly/2OFlz8W • No artigo “A África Antiga sob a ótica dos clássicos gregos e o viés africanistas”, Maria Regina Cândia faz uma análise comparativa entre a cultura helênica e a dos negros africa- nos cotejando informações acerca do continente no período: https://bit.ly/30DNko2 • Análise sobre a representação das colônias portuguesas na África a partir do cinema português: https://bit.ly/32LXyoG BUSQUE POR MAIS Esta gente é viciosa, de pouca paz uns com os outros, e são muito grandes ladrões e mentirosos, que nunca falam a verda- de, e são muito grandes ladrões e mentirosos, e grandes bêba- dos e muito ingratos, que bem que lhe façam não agradem, e muito desavergonhados que não deixam de pedir. (PEREIRA, 1954. p. 74). Com a expansão do tráfico de escravos, por sua vez, aumentou-se o número de europeus que visitavam as cortes africanas deixando relatos. Tais obras acabavam reforçando os que defendiam a manutenção do tráfico ou mesmo justificando-o a partir dos estereótipos que sobre a África e os africanos se acumularam ao longo dos séculos. Novamente retornamos ao mito camítico, lembra-se qual era a maldição rogada aos descendentes de Cam? Com a escravidão moderna que se verificou a partir do século XV, os grupos africanos passaram a ser transformados em mercadorias. As representações iconográficas acerca da escravidão evidenciam o tratamento desumano sofrido pelos africanos ao serem transportados até o litoral e nos navios negreiros, onde eram amontoados para irem até a América serem explorados, o que ficou conhecido como diáspora africana. Nas Américas, as imagens que circulavam (seja no cotidiano entre as pessoas ou mesmo na iconografia da época como nos trabalhos de Jean Baptista Debret) buscaram reforçar a ideia de que os escravizados se reduziam, conforme ressalta Anderson Oliva, ao binômio trabalho braçal/castigo corporal. Também, relacionado ao tráfico de escravos, ocorria um processo de redefinição das identidades africanas pensadas a partir da América. Consequência disso: passava-se a ideia de que escravizados faziam parte de um grupo relativamente homogêneo (Cf. Oliva, Anderson, 2019. p.19). Enfim, a África e os africanos, ao longo da história receberam diversas representações em contextos distintos. O esforço de síntese aqui estabelecido é apenas uma parte de toda uma variedade muito mais espelhada e imprecisa. Contudo, nos ajuda a compreender um pouco das relações estabelecidas entre as sociedades e como essas relações contribuíram de alguma forma para as ideias de África. https://bit.ly/2Bm5CBu https://bit.ly/2OFlz8W https://bit.ly/30DNko2 https://bit.ly/32LXyoG 16 1. (IFB 2017- professor - adaptada) Os conceitos de grupo étnico e de etnicidade têm sido utilizados, conforme Antônio Lima e Sérgio Castilho (2010), como chaves conceituais para ultrapassar a visão simplista do senso comum que considera manipulação, e fruto de interesses espúrios, tudo o que não caia nos lugares comuns sobre índios, negros e ciganos, por exemplo. Sobre estes conceitos, julgue os itens abaixo. I) A noção de etnicidade é a chave explicativa que nos sinaliza para os complexos processos de diferenciação biológ`icos, pelos quais uma coletividade se diferencia de outras coletividades. II) Etnicidade designa o sentimento de ser portador de atributos distintivos face aos integrantes de outros grupos, sendo estes atributos considerados os mais importantes pelos indivíduos que pertencem a um dado grupo. III) A etnicidade, como marcador de diferença, é um fenômeno de ordem essencialmente biológica IV) A etnicidade é especialmente atrelada a componentes de ordem cultural. a) I e II. b) II e IV. c) I, III, IV. d) III e IV. e) I, II, III e IV. 2. “Em função do pressuposto de que os grupos étnicos chegados às Américas em condição de cativeiro têm à sua frente uma infinidade de possibilidades de reorganização, e não aquelas previamente definidas em suas sociedades tribais […]. Nos grupos de procedência são valorizados critérios como portos de embarque, ao lado de alguns componentes culturais como, por exemplo, a língua. Mas mesmo os componentes culturais adotados não são, necessariamente, étnicos”. (Soares,s/d p. 116). A respeito da identidade étnica dos escravizados, a historiadora Mariza Soares ressalta que,ao desembarcarem na América: a) as etnias africanas eram redefinidas, ignorando as identidades de origem. b) garantia-se a fidelidade da região de origem dos africanos. c) as etnias africanas se readaptavam facilmente na América. d) não era negado às etnias africanas sua própria identidade. e) era respeitado as religiões e culturas de origem africana. FIXANDO O CONTEÚDO 17 3. Também há aqui homens selvagens, a que os Antigos chamaram Sátiros, e são todos cobertos de um cabelo ou seda quase tão ásperas como de porco; e estes parecem criatura humana e usam o coito com suas mulheres como nós usamos com as nossas; e em vez de falarem, gritam quando lhe fazem mal [...] Tôdolos negros desta terra andam nus [...] Nesta serra não já edifícios, e moram em casas palhaças”. (Pereira, D. P., Esmeraldo de Situ Orbis, p. 118.). A respeito da descrição do português Duarte Pacheco Pereira de uma região da África Ocidental, no século XVI, pode-se afirmar que: a) o português reproduziu informações observadas pela sua própria experiência. b) não se tem como questionar a veracidade da informação. c) o português era um grande conhecedor da cultura da antiguidade clássica. d) provavelmente, o português contou o que ouviu e não o que observou. e) a descrição constrói uma imagem que diz muito sobre a própria cultura e crença do observador. 4. De acordo com o estudado na unidade acerca das divisões geográficas do continente africano, marque (V)erdadeiro ou (F) para as seguintes afirmações: ( ) A África subsaariana é comporta por países como Marrocos, Líbia, Tunísia e Egito. ( ) A África do Norte possui boa parte de seus países banhados pelo Mediterrâneo e são muçulmanos na grande maioria. ( ) O Saara, o mais extenso deserto do planeta extende-se do Oceano Atlântico ao Índico e compõe a maior região da África Central. ( ) A distinção estabelecida entre África Branca e África Negra é resultado de uma postura racista que divide o continente em uma África “civilizada” (a África do Norte ligada ao Mediterrâneo) e a África “bárbara” (África ao sul do Saara). a) F V F F b) V V F V c) F V F V d) F F V V e) V F V F 5. (FURB/professor-adaptada) O continente africano é composto por uma grande quantidade de países, no entanto, a divisão da África não ocorre somente entre nações. A África está dividida ou regionalizada conforme a cultura, ou melhor, com a religião praticada em diferentes pontos do continente. Dividiu-se regionalmente o continente em duas áfricas. Essas regiões foram chamadas de “África Branca” e “África Negra”. Acerca dessa divisão é possível afirmar que: a) Busca aproximar países com uma mesma geo-política. b) Leva em consideração apenas a diversidade linguística dos países africanos. c) Unifica regiões que possuem uma grande diversidade étnica em torno de uma visão racista da África. 18 d) É sensível à realidade cultural e regional africana. e) Seleciona diversos critérios para sua elaboração, tais como etnia, política e economia. 19 ÁFRICA, UM CONTINENTE COM HISTÓRIA UNIDADE 02 20 2.1 INTRODUÇÃO Nesta unidade vamos concentrar os estudos na historiografia acerca da África e na africana propriamente dita. Nesse sentido, estudaremos a trajetória dos estudos acerca da história desse continente iniciando pelas visões eurocêntricas, que divulgavam a África como um continente cuja história se resumia à presença europeia. Passaremos pelas primeiras iniciativas africanas que se esforçaram para construir uma história para África feita pelos próprios africanos, ressaltando a importância da coletânea História Geral da África organizada por importantes nomes como Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop. Por fim, conheceremos os esforços mais contemporâneos de análise da história da África pela ótica africana e estrangeira. EUROCENTRISMO: é uma visão de mundo que tende a colocar a Europa (cultura, política, língua e outras características) como o centro do mundo. Ou seja, os elementos culturais eu- ropeus são tidos como referência no contexto de composição de toda a sociedade moderna. ETNOCENTRISMO: conceito muito utilizado nos estudos antropológicos, é a tendência de ob- servar o mundo pela ótica particular de um povo, uma cultura considerando-a superior às demais. GLOSSÁRIO 2.2 CONTINENTE A-HISTÓRICO? A costa da Guiné, como visto na unidade 1, foi a primeira região da África tropical acessada pelos portugueses. Ela foi tema de toda uma série de obras a partir do século XV, como de Luís de Cadamosto, Duarte Pacheco Pereira, Gomes Eanes Zurara, entre diversos outros autores de narrativas de viagens. Esse material é de grande importância uma vez que nos fornece testemunhos dessas diversas realidades. Contudo, há de se ressaltar que o objetivo principal de grande parte desse material era descrever a experiência de um ponto de vista. Muitos não se preocupavam, por exemplo, em entender a realidade que observavam como já estudamos no capítulo anterior. As outras regiões despertaram o interesse dos europeus na sequência. Obras históricas sobre a Etiópia foram elaboradas por missionários como Manoel Almeida (1569- 1646). Angola, por sua vez, foi tema do grande Guerras Angolanas de Antônio de Oliveira Cadornega (1623-1690). 21 No século XVIII, por sua vez, começam a aparecer ensaios monográficos sobre a África e não mais apenas descrições de viagens e de experiências. Contudo, foi também nessa época que as histórias não-europeias foram cada vez mais discriminadas nos meios acadêmicos. Baseando-se, tal como analisa o africanista John Fage, no que era considerado uma herança greco-romana única, os acadêmicos da Europa consideraram que os europeus formavam a civilização que deveria prevalecer sobre as demais. Consequentemente, a história europeia seria a chave de todo conhecimento enquanto as outras civilizações eram consideradas a-históricas (ou seja, sem história). O filósofo Friedrich Hegel (1770-1831), como porta-voz do pensamento hegemônico de sua época, na Filosofia da História Universal escrevera: A África propriamente dita é a parte característica deste continente. Começamos pela consideração deste continente, porque em seguida podemos deixá-lo de lado, por assim dizer. Não tem interesse históri- co próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e na sel- vageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. Por mais que retrocedamos na história, acharemos que a África está sempre fecha- da no contato com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo, é o país criança, envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história consciente […]. Nesta parte principal da África, não pode haver história (HEGEL, 1928, p. 187). No seu livro, Hegel faz uma distinção entre três Áfricas, a setentrional ligada ao Mediterrâneo que mais pertenceria à Espanha do que à própria África; a Meridional, que contém o Egito e a África propriamente dita que fica ao sul do Saara e sobre a qual faz as considerações acima. À luz dessa exposição geral de Hegel é possível perceber que o filósofo confere à África um estado de selvageria, no qual não se produz cultura e nem história. Aos africanos, ele confere um estado bestial , ou seja, não possuiria os critérios “racionais” de civilização e, portanto, não teriam história e nem cultura. Posição semelhante podemos ver também no seguinte trecho do professor da Universidade de Oxford Hugh Trevor-Hoper: Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No presente, porém, ela não existe; o que existe é a história dos euro- peus na África. O resto são trevas [...], e as trevas não constituem tema de história [...] divertirmo-nos com o movimento sem interesse de tri- bos bárbaras nos confins pitorescos do mundo, mas que não exer- cem nenhuma influência em outras regiões (TREVO-HOPER apud FAGE,1980. p. 49). 22 Trevor-Hoper, assim como Hegel, enfatiza a aistoricidade do continente africano ressaltando que a única parte histórica da África existiria a partirda chegada dos europeus. Tudo envolvendo os povos nativos seria, dessa forma, trevas e não constituiria tema de história. Muitos explicavam, dessa forma, que as origens de importantes arquiteturas e técnicas estatutárias africanas seriam frutos de interferências de outras civilizações e não criação africana (OLIVA, 2004). O “racismo científico” do século XIX tornou-se também uma ideologia estratégica para dominação do continente africano. A pigmentação da pele passou a ser utilizada como algo determinante nas relações de dominação, nos quais caberia aos arianos (os considerados “verdadeiros brancos”), o papel de senhores dos demais continentes. A pigmentação da pele, nesse sentido, passou a ser utilizada como algo determinante nas relações de dominação. Assim, interesses políticos e econômicos nas terras africanas justificavam-se por teorias racistas pretensamente científicas. Sobre o assunto, escreveu Antônio Olimpio Sant’Ana: RACISMO CIENTÍFICO: No século XIX, as teorias raciais ganharam status científico e, por meio do conceito de raça, os europeus passaram a classificar a humanidade, fazendo uso de ta- xionomias. O racismo científico propagava a ideia de que a humanidade estava dividida em raças com hierarquias biológicas, na qual os brancos ocupariam a posição superior. Nesse sentido, passou-se a estudar as ditas raças humanas medindo o formato da caixa craniana, por exemplo, e depois baseou-se no estudo dos genes e da hereditariedade GLOSSÁRIO Em 1835, Arthur de Gobineau produziu um conhecido tratado denominado Ensaios sobre a Desigualdade das Raças Huma- nas: Raças Branca, Amarela e Negra. O que caracterizava o seu ensaio era a divisão que fazia da raça branca. Esta, se- gundo Gobineau, tinha três subgrupos: os arianos, que são os verdadeiros brancos criadores da civilização, os albinos, de origem mongólica, e os mediterrâneos, de origem africa- na. Sustentava que se o poder permanecesse nas mãos dos albinos e mediterrâneos, a humanidade voltaria à barbárie. Gobineau desejava provar com o seu ensaio que a nobreza europeia era ariana, descendente dos nórdicos (SANT’ANA, 2005. p. 47). 23 2.3 REINVENTANDO A SUA PRÓPRIA HITÓRIA Além disso, no período em questão, a fragmentação política resultado dos processos de independência dos países africanos, forçou a construção de histórias e identidades nacionais. Nesse contexto, entre os primeiros pensares da África pós- independência, estariam ideologias que defendiam e estabeleciam uma nova identidade africana: o pan- africanismo e a negritude. Dessa forma, Gobineau, grande representante do racismo científico, defenderia que aos arianos caberia o papel de civilizar aqueles que estavam em estado de inferioridade, justificando assim, as ações imperialistas europeias em solo africano, por exemplo. Já parou para refletir nas consequências de pensar numa única história da África? Qual foi o papel do discurso preconceituoso e simplista para a construção do imaginário acerca da África e dos africanos? Assista o vídeo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie para o TEDtalks e reflita sobre: https://bit.ly/2BjmNn7 VAMOS PENSAR? Na contra-mão do eurocentrismo ocorreram mudanças significativas nos estudos acerca da África. Entre os anos de 1940 e 1980, influenciada pela criação de centros de estudos e universidades em países africanos, a historiografia africana inverte o papel concedido à África na história da humanidade. As investigações deveriam, assim, enfatizar a África em sua própria trajetória: As histórias dos reinos e civilizações africanas foram utilizadas como exemplo da capacidade de organização, transformação e produção africanas, que em nada ficavam a dever para os padrões europeus. Além disso, os vestígios materiais deixados do passado – técnicas de cultivo, padrões de estética da arte estatuária, ruínas dos mais diversos matizes – foram usados para evidenciar as qua- lidades do continente (OLIVA, 2004. p. 24). PAN-AFRICANISMO O pan-africanismo originou-se em oposição aos tráficos escravistas nas Américas, Ásia e Eu- ropa. No seu início, o pan-africanismo (ainda não tinha esta denominação) era apenas uma reduzida manifestação de solidariedade, restrita às populações de ascendência africana. FIQUE ATENTO https://bit.ly/2BjmNn7 24 Para saber mais, busque no link e leia : https://bit.ly/3jqtPYr NEGRITUDE A palavra négritude, em francês, deriva nègre, termo que, no início do século XX, tinha um caráter pejorativo, utilizado para desqualificar o negro. A intenção do movimento, nesse sen- tido, foi inverter o sentido da palavra dando-lhe uma conotação positiva. O termo apareceu com esse nome em 1939, no poema do antilhano Aimé Césaire. Assim, na sua forma inicial, o movimento tinha um caráter cultural e negava a política de assimilação à cultural (que tinha como padrão a cultura branca). Passou-se a enaltecer e resgatar valores e símbolos culturais de matriz africana. Negritude é, enfim, um termo com vários significados, podendo significar: . o fato de pertencer à raça negra; . à própria raça como coletividade; . à consciência e à reivindicação do homem negro civilizado; . à característica de um estilo literário; . ao conjunto de valores da civilização africana. BUSQUE POR MAIS Para compreender melhor esse conceito e sua história, leia o livro de Kabengele Munanga disponível em: https://bit.ly/30BcJPb Dois grandes expoentes desta geração foram Jospeh Ki-Zerbo, de Burkina Faso, e o literato senegalês Cheikh Anta Diop. Para o movimento iniciado por eles, a África deveria focar-se em sua própria trajetória. Ki-Zerbo, no contexto, escreveu um dos primeiros trabalhos individuais contemporâneos sobre a África subsaariana – História da África Negra – e ambos foram responsáveis por organizar e publicar a grande coleção História Geral da África, editada pela Unesco a partir de trabalhos discutidos em seminários, na década de 1960. A coletânea possui oito volumes escritos por mais de trezentos estudiosos. Cheik Anta Diop, por sua vez, ficou conhecido por ter sido o criador do afrocentrismo, movimento que se concentrava no objetivo de defender a africanidade do Egito Faraônico, contrariando a argumentação comum de que a civilização egípcia afigurava-se componente da cultura branca. Ele apoiava essa tese para demonstrar que a grande civilização sobre a qual os gregos e outros se apoiaram era uma civilização negra, portanto, a origem de indo- europeus era africana. Vale ressaltar, entretanto, que apesar desses esforços, muitos autores afirmaram que esta vertente acabou revelando erros anteriormente cometidos, o principal: enaltecer desproporcionalmente as características histórico-culturais da África utilizando-se, agora, do afrocentrismo como contraposição do eurocentrismo. Dessa forma, os trabalhos pioneiros dos nacionalistas foram importantes na medida em que iniciaram esforços para a construção de uma história para a África que se expandiu, inclusive, para outras partes do mundo, mas contavam com muitas críticas. https://bit.ly/3jqtPYr https://bit.ly/30BcJPb 25 Levando em consideração os esforços em se conhecer a África pela África, os anos de 1960 e 1970 viu surgir também uma busca pelo entendimento dos complexos quadros socioculturais, econômicos, e políticos que se desenvolveram nos países africanos no pós- independência: Percebe-se, portanto, que foi preciso chegar às décadas de 1960 e 1970 para que ocorresse significativa expansão dos estudos e pes- quisas realizadas no continente africano e fora dele. Na África, tal fato esteve relacionado à expansão das universidades, à maciça presença de professores africanos e europeus lecionando em suas salas de aula, à busca de identidades e à tentativa de encontrar so- luções para os problemas que assolavam suas regiões. No mundo, possíveis causas explicativas para esse interesse seriam as aten- ções que o continente despertava, fruto de suas especificidades, ou ainda de sua problemática históriarecente. Mais do que isso, os pressupostos e metodologias utilizadas nas investigações históri- cas passaram a ser mais bem elaborados, chegando a um nível de sofisticação que, em alguns sentidos, superava ao resto da histo- riografia mundial (OLIVA, 2004. p. 26). É nesse momento que surge também o primeiro jornal internacional especializado nos estudos da história africana, o Jounal of African History (Jornal da História Africana), o livro History of East African (História do Leste Africano), e os primeiros congressos sobre o estudo da história africana. De maneira geral, um tema recorrente do debate desse período foi a falta de fontes escritas para se realizar uma pesquisa histórica acerca do continente, que ficava restrita à utilização das fontes de tradição oral dos povos africanos e mesmo arqueológicas. Lembrando que boa parte das fontes escritas acerca da África foi feita por estrangeiros (conforme analisado na unidade I), já que a maioria dos grupos étnicos africanos eram ágrafos. Para contornar, a história da África passou a ser cada vez mais associada a outras disciplinas e ciências: arqueologia, cartografia, antropologia, linguística. Nos anos de 1980, por sua vez, passada a euforia das histórias nacionalistas da África pós-independência, uma nova “escola” de historiadores africanos e africanistas se forma. Apesar de também envolvidos com as preocupações de seus colegas anteriores, procuraram integrar os estudos sobre o continente à historiografia mundial. Vejamos mais sobre isso. 2.4 NOVOS ESTUDOS AFRICANOS Já no despontar da década de 1970, novas fontes escritas ressurgiram nos estudos acerca da África. Arquivos da presença europeia na África e fontes árabes facilitavam a pesquisa sobre determinados sistemas vigentes na história africana. Houve, vale ressaltar, a sofisticação das metodologias aplicadas ao uso da história oral como fonte para a pesquisa em história, bem como uma maior aproximação com outras áreas de pesquisa como antropologia, arqueologia e linguística. Em decorrência disso, verificou-se uma diversificação das temáticas de pesquisa: epidemias, imaginário, cotidiano e outros: O fato é que as pesquisas realizadas por africanos e africanistas têm procurado desvendar e explicar o continente pelas óticas sempre diversificadas das reflexões históricas. Estudos sobre o passado re- moto ou recente das regiões e do processo de formação da África atual, o entendimento da diversidade de suas culturas e povos, as 26 Outra novidade dessa geração de investigadores foi a iniciativa de inserir a África em um contexto maior do que a própria África, o chamado: “mundo atlântico”. A partir dessa ótica, os povos e culturas africanas são analisados em uma perspectiva que os vincula a diversos outros mundos. Ou seja, os povos africanos saíram do isolamento cultural ao qual estiveram renegados até então. Além disso, tal como aconteceu nos estudos acerca da América, os países que certa vez foram colônias deixaram de ser analisados a partir de um ponto de vista periférico em relação à sua metrópole. Assim, África e América começaram a ser analisadas por elas mesmas e com histórias que antecedem, inclusive, a chegada dos europeus. A partir dessa perspectiva, os africanos são inseridos na história como agentes ativos e possuindo poder de negociação e imposição. Tratando-se, assim, desses avanços da historiografia acerca da África muitos especialistas se destacaram dentro do próprio continente como o congolês Valentin Mudimbe, o nigeriano Toyin Falola, entre diversos outros. Fora da África muitos estudos também avançaram, destacando nomes como Jan Vansina, John Thornton, Catherine Coquery-Vidrovitch, Paul Lovejoy entre outros. No Brasil, por sua vez, apesar das influências africanas na história e cultura brasileira, os estudos acerca da África, com algumas exceções, tornaram-se mais frequentes a partir da década de 1980. Antes, estudos pioneiros acerca da África enfocavam a experiência africana no Brasil como o caso do livro Os Africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, por uma ótica negativa da miscigenação racial verificada no país. Na contramão, Gilberto Freyre foi crucial para uma valorização da herança africana na cultura brasileira dando início a um debate acalorado acerca da polêmica ideia de “democracia racial”. Depois de uma geração de historiadores engajados em desmontar a ideia de democracia racial, a escravidão se abre com pesquisas intensivas utilizando-se de fontes e perspectivas diversificadas inserindo, inclusive, os africanos como agentes ativos no comércio de escravizados. Entretanto, como se pode observar, o foco das abordagens centravam-se na presença africana no Brasil e nas pesquisas acerca do sistema escravista. Na década de 1960, criou-se o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), da Universidade Federal da Bahia, com a Revista Afro-Ásia. Nesse centro de estudos, as reflexões sobre o afrodescendente intensificaram a ideia de sua importância para o entendimento do processo de construção da cultura brasileira. Em 1973, surgiu o Centro de Estudos Afro- Asiáticos da Universidade Cândido Mendes e, em 1978, o centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, que foram responsáveis pelas revistas Estudos Afro-Asiáticos e África, respectivamente. Todos estes centros foram e são de grande importância para a divulgação dos trabalhos acerca da África e da presença africana no Brasil. releituras sobre a colonização e os anseios sobre o desvendar das origens de tantos e complexos problemas a que submerge hoje o continente foram alvo de uma quantidade avassaladora de investi- gações. Soma-se a isso a utilização das novas metodologias de pes- quisa que tornaram a África, conjunta- mente aos outros elementos apontados, um fruto cobiçado por muitos (OLIVA, 2004. p. 28). 27 Com a promulgação, em 2002, da Lei Federal 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira na Educação Básica, a demanda foi ainda maior. Nas universidades, disciplinas, cursos de capacitação e pós-graduações passaram a ser ofertados diversificando e multiplicando os estudos acerca desse continente que histórica e culturalmente é tão importante para o Brasil. Na mesma demanda, diversos livros acerca do tema têm sido produzidos e traduzidos para o português, aumentando a abrangência de público. Além disso, os encontros anuais da Associação Nacional de História (ANPUH) já contam com um Grupo de Trabalho em História da África, que tem a participação de vários acadêmicos e pesquisadores africanistas como José Rivair Macedo, Thiago Mota, Regiane Augusto de Mattos, Vanicléia Santos, Cristina Wissenbach, Waldemir Zamparoni e diversos outros nomes importantes dos estudos de História da África no Brasil. BUSQUE POR MAIS • Para entender um pouco acerca da questão da democracia racial, assista ao vídeo da socióloga Lilia Schwarcz, A Ladainha da Democracia Racial: https://bit.ly/32EWeEf • Para saber mais acerca da importante coleção História Geral da África leia o artigo da historiadora brasileira Mônica Lima, em que ela analisa os volumes da obra e o seu conteúdo: https://bit.ly/2CoMmUA • Vídeo de encontro promovido pela Irmandade Azhari Bantú, que reuniu africanos que moram no Espírito Santo, discutindo o Pan-Africanismo: https://bit.ly/3g0XAND • Vídeo sobre a importante liderança política e militante do movimento negro no Brasil: Abdias do Nascimento https://bit.ly/32BuQah https://bit.ly/32EWeEf https://bit.ly/2CoMmUA https://bit.ly/3g0XAND https://bit.ly/32BuQah 28 FIXANDO O CONTEÚDO 1. Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No presente, porém, ela não existe; o que existe é a história dos europeus na África. O resto são trevas [...]”. (Hugh Trevor-Hoper – renomado professor da Universidade de Oxford do século XX ). No trecho acima, fica evidente a/o: a) Americanização da África. b) Africanidade do autor. c) Etnicidade dos países africanos.d) Eurocentrismo do autor. e) Identidade dos grupos étnicos africanos. 2. (ENADE) Gilberto Freire, no livro Casa-grande & Senzala, analisa aspectos das relações inter-raciais no Brasil. Considerando a maneira como esse autor desenvolve em sua análise o mito da harmonia entre as três raças que constituíram a nação brasileira, assinale a opção correta. a) Segundo esse autor, a miscigenação produziu uma sociedade singular nos trópicos, caracterizada principalmente pela convivência pacífica entre as raças. b) A análise de Gilberto Freire está focada na ideia de dissidência entre as três raças, o que constitui o principal ponto de conflito da nação brasileira. c) No mito da harmonia racial, Gilberto Freire sugere a preponderância absoluta do elemento branco sobre os negros e índios. d) O preconceito racial é, segundo esse autor, um elemento fundador do mito da nação brasileira. e) Para o autor, o fenômeno da miscigenização indica um desequilíbrio entre as três raças constitutivas da nação brasileira. 3. [...] surgiu de um sentimento de solidariedade e consciência de uma origem comum entre os negros do Caribe e dos Estados Unidos. Ambos estavam envolvidos numa luta semelhante contra a violenta segregação racial. Essa solidariedade que marcou a segunda metade do séc. 19 propôs a união de todos os povos da África como forma de potencializar a voz do continente no contexto internacional O texto acima discorre sobre: a) Eurocentrismo. b) Afrocentrismo. c) Negritude. d) Pan-africanismo. e) Etnocentrismo 29 4. Cheik Anta Diop foi um importante intelectual africanista que, assim como Joseph Ki-Zerbo, organizou a importante coletânea História Geral da África. Ele foi um dos pioneiros nos estudos acerca desse continente valorizando-o e ressaltando as suas particularidades. Nesse sentido, Diop defendeu que as bases nas quais a cultura ocidental estava alicerçada era negra e africana. Essa corrente filosófica defendida por Diop e outros intelectuais africanistas é conhecida como: a) Afrocentrismo. b) Etnocentrismo. c) Eurocentrismo. d) Racismo. e) Democracia Racial. 5. No trecho abaixo o historiador Cheik Anta Diop ressalta que: […] a despeito das discrepâncias que apresentam o seu grau de con- vergência prova que a base da população egípcia no período pré-di- nástico era negra. Assim, todas elas são incompatíveis com a teoria de que o elemento se infiltrou no Egito em período tardio. Pelo contrário, os fatos provam que o elemento negro era preponderante do princípio ao fim da história egípcia. […] Nos manuais de maior divulgação, entre- tanto, a questão é suprimida: na maioria dos casos, afirma-se simples e claramente que os egípcios eram brancos [...]. (DIOP, C. A. 1983, p.41-42). a) A civilização egípcia era negra africana desde o princípio, apesar de muitos manuais afirmarem o contrário. b) A base da civilização egípcia era negra no período tardio, o que contribuiu para as visões de um Egito branco. c) A civilização egípcia era branca e, por isso, foi a base de formação da cultura indo- europeia. d) Não há demonstração científica que determine a africanidade do Egito Antigo. e) Muitas são as discrepâncias que provam que a base da civilização egípcia é realmente negra. 30 UM CONTINENTE EM MOVIMENTO UNIDADE 03 31 3.1 INTRODUÇÃO Conforme visto anteriormente, a África possui uma rica e diversificada história prévia à intensificação dos contatos com os europeus. Esta história, por sua vez, diferente da “História” tradicional que recorre a documentos escritos, utiliza-se muito da tradição oral das sociedade africanas – lembrando que a maior parte delas eram ágrafas. Os guardiões da memória, os chamados Griôts, eram e ainda são os indivíduos responsáveis por repassar o conhecimento adquirido de geração para geração, por meio da contação de história. Para os griôts, manter a integridade da história é sagrado. Além das tradições orais, para os estudos acerca das sociedades africanas ainda é utilizado documentos escritos produzidos por diversos povos que entraram em contato com os africanos, como os vistos na unidade 1, e os achados arqueológicos. Dessa forma, nesta unidade, vamos nos voltar para a história de alguns Estados africanos. Lembrando que a África é um continente grande e diverso, portanto, fizemos uma seleção dessa diversidade a ser apresentada aqui, tendo em vista as demandas das propostas curriculares da Educação Básica. Ao longo da unidade, entretanto, serão oferecidos diversos livros para que se possa aprofundar o conteúdo. 3.2 ESTADOS DO ANTIGO SUDÃO: EGITO, KUSH, AXUM No período da Pré-história, quando verifica-se grandes modificações climáticas no mundo, a África se transformava. Foi nesse período que o deserto do Saara, um dos maiores desertos atualmente, expandiu-se e forçou diversos povos a emigrarem para outras regiões, apesar de alguns grupos que permaneceram e aprenderam a conviver com o clima desértico e a pouca oferta de água (seus descendentes são hoje conhecidos como Tuaregues e berberes). Estes foram responsáveis por trocas comerciais internas e externas por entre o deserto do Saara. Nesse processo, o rio Nilo era um oásis em meio ao árido deserto. Nas suas férteis margens em função dos períodos de cheias floresceram grandiosas civilizações. 3.2.1 Egito Antigo Conforme mencionado anteriormente, o Egito Antigo foi tema de debates acalorados na historiografia pan-africana. Situada no noroeste africano, essa antiga civilização é reconhecida e valorizada mundialmente. Apresentaremos aqui brevemente suas características, uma vez que será novamente tema de estudos na disciplina História Antiga. 32 Para começar, o Egito Antigo representa o primeiro reino unificado conhecido da história e também a mais longa experiência humana documentada de continuidade política e cultural. Foram cerca de 3000 anos de dinastias faraônicas – não descartando, vale ressaltar, os períodos de descentralização e domínio estrangeiro. A história do vale do Nilo começa ainda no período pré-histórico, quando grupos sedentários encontraram às margens do rio terreno fértil para a agricultura. Ali se estabeleceram formando comunidades (nomos) que só seriam unificadas entre 3300 e 3100 a.C. Como se deu tal unificação? Algumas teorias foram elaboradas por egiptólogos para explicar os fatores que teriam levado à unificação. Uma delas é a teoria que vê nos trabalhos hidráulicos (construção de diques, represas e canais) a principal causa. Assim, a unificação seria uma resposta à necessidade de uma administração centralizada dessas obras. Contudo, tal explicação, apesar de amplamente aceita durante tempos, acabou sendo questionada e diversos historiadores, como o maior especialista brasileiro em estudos sobre Antiguidade Oriental, Ciro Flamarion Cardoso: A que atribuir, então, a unificação do Egito? Existem muitas te- orias a respeito, difíceis de avaliar em virtude da escassez de da- dos e fontes. Muitas das tentativas contemporâneas de explica- ção (L. Kraeder, B.Trigger, R. Carneiro) enfatizam fatores ligados à guerra, à conquista, ao militarismo. Seja como for, tudo indica que o processo de formação do Egito como reino centralizado dependeu de numerosos fatores – demográficos, ecológicos, políticos, etc. – entre os quais a irrigação, pelo menos indireta- mente, foi elemento de peso (CARDOSO, 1982, p. 25). Apesar das divergências e das diversas teorias que se apresentam para tentar explicar o processo, é importante salientar que foi por meio da unificação que se marcou o início da época histórica dos faraós. A história do Egito, a partir da unificação, é comumente dividida em em sete grandes períodos, para facilitar os estudos. O quadro a seguir resume esta divisão baseado no texto do professor Arnoldo Walter Doberstein. Vale ressaltar que para simplificação, muitos dividem somente em Reino Antigo, Reino Médio e Reino Novo. 33 ANOS (a.C) DENOMINAÇÃO PRINCIPAIS OCORRÊNCIAS 3100-2695 Dinástico PrimitivoUnificação com o faraó Menés. Utilização de barro e pedra nas construções e nos artefatos. 2695-2160 Reino Antigo Construção das pirâmides, cuja principal função era abrigar as múmias, as estátuas e os pertences dos mortos, mas também pesquisadores que res- saltem sua função militar e astronômica. 2160-1991 1° Período Intermediário Nesse período, o Estado se encontrava mais frag- mentado que poderia ser explicado pelo exces- so de autonomia dado aos sacerdotes, pelo des- preparo dos governantes e mesmo por crises na agricultura decorrente de períodos de seca mais prolongado. 1991-1785 Reino Médio No Reino Médio, o Egito voltou a ser um Estado unificado. 1785-1540 2° Período Intermediário Invasão dos hicsos – povos de diversas e contro- versas origens étnicas. 1540-1070 Reino Novo Expansão militar. Expulsão dos hicsos. Considera- do por muitos como o momento mais glorioso da civilização egípcia. É nesse período também que as mulheres governantes são mais lembradas: Hatseptsut, Nefertite e Nefertari. 1070-712 3° Período Intermediário Dinastia dos faraós negros – período do domínio núbio. Fonte : (DOBERSTEIN, 2010) Ao longo de todos esses séculos, o Egito teve cerca de 30 dinastias. A sociedade, de maneira geral, era hierarquicamente organizada, com um rei, considerado um deus, a família real, os sacerdotes e funcionários de alta hierarquia. Na parte intermediária tinha-se diversos escribas, outros funcionários e sacerdotes de menor hierarquia, além dos artesãos e artistas especializados. Por fim, na larga base da pirâmide social, formando a maior parte da população, estavam os trabalhadores braçais. Em termos econômicos, a base da sociedade era a agricultura que dependia inteiramente das cheias do rio Nilo. As tumbas mostram um pequeno comércio local e o pagamento de serviços. No período faraônico, conforme ressalta Ciro Flamarion Cardoso, a quase totalidade da vida econômica passava pelo rei e seus funcionários (CARDOSO, 1982, p. 38). O pensamento egípcio, por sua vez, aparece marcado por um esforço de preservar a estrutura vigente e ordem cósmica. O mito explicava o mundo descrevendo o fato como se deu pela primeira vez. Para eles, o tempo tinha uma conotação cíclica, ou seja, o tempo e o universo faziam com que uma dada ocorrência continuasse a ter vigência e atualidade. O universo era visto como o domínio de forças que podiam se manifestar de maneiras diversas (CARDOSO, Ciro, 1982, p. 85). Vale ressaltar, contudo, que as informações do pensamento egípcio foram obtidas a partir dos escritos de uma minoria de letrados, uma vez que grande parte da população era analfabeta. Dessa forma, qualquer generalização 34 para todos os âmbitos da sociedade pode incorrer em erros. O pensamento egípcio, por sua vez, aparece marcado por um esforço de preservar a estrutura vigente e ordem cósmica. O mito explicava o mundo descrevendo o fato como se deu pela primeira vez. Para eles, o tempo tinha uma conotação cíclica, ou seja, o tempo e o universo faziam com que uma dada ocorrência continuasse a ter vigência e atualidade. O universo era visto como o domínio de forças que podiam se manifestar de maneiras diversas (CARDOSO, Ciro, 1982, p. 85). Vale ressaltar, contudo, que as informações do pensamento egípcio foram obtidas a partir dos escritos de uma minoria de letrados, uma vez que grande parte da população era analfabeta. Dessa forma, qualquer generalização para todos os âmbitos da sociedade pode incorrer em erros. 3.2.2 Núbia Na região Núbia (ao sul do antigo Egito que fazia fronteira com o Mar Vermelho e o deserto, ao sul se estendiam até o atual Cartum, no Sudão) também floresceram importantes civilizações que guardavam muitas similaridades geográficas e culturais com os egípcios especialmente em função dos contatos arqueologicamente comprovados entre ambos. Diferentemente dos antigos egípcios, pouco se sabe acerca dessas civilizações em função das dificuldades em decifrar as escritas e por muito de seus monumentos, esculturas e inscrições terem sido destruídos pelos invasores. Os egípcios sempre demonstraram seu interesse pela região e suas riquezas minerais e buscaram dominá-la em algumas ocasiões, mas perderam esse domínio com a invasão do Egito pelos hicsos (povos semitas asiáticos). Neste período, o reino Querma na Núbia viveu o seu auge. A autoridade do rei de Querma foi sentida na Núbia Superior e Inferior, e parte, inclusive, do Antigo Egito. Quando os egípcios restabeleceram o poder sob este território, novamente iniciaram um processo de expansão territorial sob os núbios. No século XV a.C., o faraó Tutmés I dividiu a Núbia em duas partes. A parte do norte tornou-se Wawat, e a parte sul, Kush (ou Cuxe) – com mais influência egípcia que o antigo Querma, porém dele provavelmente derivado. Muitas riquezas do reino de Kush foram levadas ao Egito como ébano, marfim, incenso, gado, ouro e escravizados (MOKHTAR, 1980. p.247) O reino Kush era governado por chefes políticos e militares, que em dada época acreditavam ser herdeiros legítimos dos faraós de tempos antigos e como eles vestiam-se e atuavam. Hábeis guerreiros, os kushitas controlaram as principais rotas comerciais às margens meridionais do rio Nilo e impuseram seus domínios sobre povos da vizinhança, chegando, inclusive, a dominar os próprios egípcios. Este domínio durou cerca de 50 anos, e os “faraós negros” governaram de maneira unificada a Núbia e o Egito, e foi interrompido em função da invasão assíria (civilização da Mesopotâmia) no Egito, que fez com os kushitas retornassem para a Núbia. As duas principais cidades, Napata e Meroé, revesaram-se como capital. A principal Napata, escolhida talvez por fatores climáticos e econômicos, foi transferida mais ao sul para Meroé. Após a mudança, não foramm abandonados os valores egípcios, mas as formas culturais núbias voltaram a se impor. O soberano ainda se chamava faraó, mas novos deuses apareciam e as tradições matrilineares (com o prestígio das rainhas-mães, as candaces) voltaram ser mais fortes. Os meroítas conseguiram fazer frente aos avanços romanos, mas acabaram sendo dominados pelo Reino Axum. 35 3.2.3 Axum O Reino de Axum foi um antigo e importante reino localizado na atual Etiópia e Eritreia. De acordo com a mitologia etíope contida no livro Kebra Negast, acredita-se que nesta região teria vivido a Rainha de Sabá (Makeda) e que a família imperial do país Etiópia seria descendente de seu filho com o rei Salomão. Esta dinastia governou o país durante aproximadamente 3000 anos, tendo seu fim no século XX, com o imperador Haile Selassie. A ocupação da região é muito antiga, mas pouco se sabe a esse respeito, as informações que se têm datam do reino Axum em diante, quando se unificaram os povos da região em torno do Cristianismo, no século I d.C. A expansão Axum teve início já no início da Era Cristã e eles passaram a controlar importantes rotas comerciais marítimas especialmente pela sua proximidade com o Mar Vermelho. O seu prestígio e poderio foram atestados pela cunhagem de moedas, seguindo os modelos romanos. A introdução do Cristianismo foi obra de Frumêncio, mercador cristão que foi tutor de um rei e o influenciou a adotar oficialmente o Cristianismo e o Antigo Testamento foi traduzido para o ge’ez, (língua semita utilizada até hoje). A Etiópia é, portanto, um dos primeiros países cristãos do mundo e sua Igreja é a Igreja Ortodoxa Etíope (BRANCO, 2015, p. 66). Axum teve muitas dificuldades frente ao avanço árabe nos séculos VII e VIII d.C., mas continuou até o século XI isolado frente ao avanço muçulmano pela Etiópia. Axum entrou em decadência, mas sua importância manteve-se pelas dinastias imperiais etíopes que se seguiram. 3.3 ESTADOS DO ANTIGO SUDÃO: GANA, MALI E SONGAI Outra região que recebeu diversos povos foi a região do antigoSudão (não confundir com o país Sudão). Nele estabeleceram-se diversos grupos que formaram importantes Estados. Apresentaremos aqui os casos de Gana, Mali e Songai, que, embora sejam os mais conhecidos, não foram os únicos, vale ressaltar. É muito comum conceituar e definir as bases da organização política dos africanos da Áfri- ca Ocidental como “reinos” ou “impérios”. Esses termos são frequentemente utilizados como forma de aproximar essas organizações ao que é familiar. Assim o fizeram os primeiros euro- peus que despontaram na África. Como não compreendiam muito bem o sistema de organi- zação, mas como viam que tinham uma autoridade disseram que era um império. Mas eles ainda são termos tomados de empréstimos que não dão conta da realidade dessas regiões. Por isso, optamos aqui por utilizar um termo mais neutro que é “Estado” - no sentido que ha- via grupos que exerciam domínio sobre outros. FIQUE ATENTO 36 3.3.1 Gana Gana foi um importante Estado que floresceu por volta do século IV d.C., localizado no Sudão Ocidental, entre os atuais países Mali e Mauritânia. Região onde o deserto do Saara começa a se encontrar com as savanas do Sahel. Como surgiu esse importante império? A sua origem esteve ligada a uma rede comercial que unia o norte do deserto ao sul. Sua posição geográfica, entre o Saara e os rios Níger e o Senegal, provavelmente foi decisivo para que os ganenses dominassem as principais rotas desse comércio, controlando o fluxo de ouro que vinha do sul e as fontes de sal. Por essa característica comercial, rapidamente o islã expandiu-se por essas terras a partir dos comerciantes árabes que trocavam mercadorias. SUDANESES: termo que generaliza uma diversidade de povos que habitam a região entre o deserto do Saara e o Atlântico compreendendo o Chade, o Níger, o Sudão, as regiões da Costa do Golfo (Nigéria e Benin), Togo, Gana, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, Guiné, Senegal. Ou seja, principalmente a região da África Ocidental, porém não só. GLOSSÁRIO Para se ter uma ideia das rotas comerciais que ligavam os Estados sudaneses, acesse: http:// brasilafrica.fflch.usp.br/node/282. Observe como o deserto do Saara era cruzado por diferen- tes rotas. FIQUE ATENTO A sua riqueza e importância possibilitou aos seus governantes a anexação de territórios vizinhos, transformando o reino em um grande Estado que dominou o oeste da África por séculos, alcançando seu auge por volta do século XI d.C. Importantes cidades que estavam no cruzamento de rotas tinham certa autonomia e privilégios. No entanto, possuíam um governante, o Gana, que dependia do comércio para sustentar as estruturas de poder. Gana, portanto, era o título atribuído ao governante cujo poder provinha do fato de ser o representante maior dos costumes ancestrais e o protetor dos ritos (MACEDO, 2008, p. 52). A base econômica de seu poder era a tributação imposta aos povos e aos tributos que circulavam em seus domínios. Apesar de todo esse poder, contudo, Gana não conseguiu conter as invasões muçulmanas na segunda metade do século XI d.C. Os muçulmanos sob os Almorávidas, que já dominavam muitas rotas comerciais do Saara, atacam Gana e este opulente Estado é absorvido e, em seu lugar, surge o Mali, que vai também se tornar um importante Estado. Vejamos mais sobre ele. http://brasilafrica.fflch.usp.br/node/282 http://brasilafrica.fflch.usp.br/node/282 37 3.3.2 Mali O enfraquecimento de Gana abriu caminho para Estados menores buscarem hegemonia e independência. Os povos mandingas, sob a chefia de Sundjata Keita, se impuseram na região e formaram o Estado unificado do Mali. Ele durou por quase dois séculos (meados do século XIII d.C. ao século XV d.C.) anexando territórios e se tornando um “império” conhecido internacionalmente, abrangendo não somente os mandingas, mas também os dogons, soninkês, fulas, sossos e bozos. Seus territórios possuíam maior dimensão que o antigo Gana. Sua hegemonia se estendia por toda a África Ocidental e se devia, conforme ressalta José Rivair Macedo, ao poderoso exército formado, ao controle de áreas de extração de ouro e uma estrutura administrativa eficiente (MACEDO, 2013, p. 56). Semelhantemente a Gana, a organização política do Mali se baseava na imposição de autoridade sobre outros estados menores formando um Estado heterogêneo com poderes locais subordinados a um representante direto, o Mansa. Este era tido como líder supremo, executor das decisões coletivas e aplicador da justiça. Era também o representante dos costumes ancestrais da comunidade. O Islã já estava presente nessas terras muito antes, desde o século XI, e muitos governantes e comerciantes se converteram. Notícias da importância do Islã nesse império podem ser analisadas a partir da peregrinação do Mansa Mussa à Meca, em 1325. Buscando dar maior visibilidade a seu império e integrá-lo ao mundo islâmico, Mussa trouxe sábios, poetas, conhecedores da lei muçulmana para ensinar nas madrassas (escolas canônicas). Mandou construir edifícios religiosos e palácios feitos de argila com portas e decorações em estilo árabe. Um dos mais belos templos construídos, a Mesquita de Djenné, foi classificada pela Unesco como patrimônio da humanidade (MACEDO, 2013, p. 57). O declínio do Mali começou a ocorrer no século XIV, em função de conflitos internos que enfraqueceram os poderes locais e o aparecimento de novos poderes no cenário político da África Ocidental. Nos séculos XVI e XVII, o Mali possuía alguma autonomia e ascendência simbólica sobre outros Estados de origem mandinga, mas sua supremacia já havia passado. AlLMORÁVIDAS: dinastia muçulmana proveniente de grupos nômades do Saara que unificou sob seu domínio grandes extensões de terras compreendendo os territórios da atual Mauritâ- nia, Saara Ocidental, Marrocos e Península Ibérica (atuais Portugal e Espanha). GLOSSÁRIO 38 3.4 ESTADOS DA ÁFRICA AUSTRAL: O MONOMOTAPA 3.3.3 Songai Nas proximidades do rio Níger, uma cidade destacou-se pela sua importância comercial, política e econômica: Gao. Esta cidade, desde o século XIV, estava sob o controle dos songais que a partir desse centro iniciaram incursões militares. A expansão militar dos songai aconteceu durante o reinado de Sonni Ali (1464-1493), que chegou a dominar, inclusive, Tombuctu e Djenné (cidades do Mali). O império, que contava com uma estrutura administrativa mais centralizada, passou, então, a dominar importantes centros comerciais. Vale ressaltar que, assim como o Mali, o Songai também se baseava em princípios islâmicos. Com um comércio bem organizado e um sistema de governo mais coeso do que os impérios que o antecederam, o império Songai alcançou uma extensão territorial que abrangia o sul do Saara, o Sahel, as savanas do litoral atlântico em direção ao leste. No século XVI, os sultões marroquinos disputaram o controle das fontes de sal e assumiram o controle das fontes de ouro – principais mercadores que sustentavam o império Songai. Os marroquinos acabaram invadindo e destruindo o império no final do século XVI (MARQUES, 2008. p. 53). Assim como os três grandes Estados acima mencionados, existiram vários outros, como o de Kanem-Bornu, as várias cidades dos povos Haussás e os Mossi. No geral, assim como os demais, também eram dependentes das rotas comerciais, apesar de apresentar atividades econômicas e políticas diversificadas. Importantes rotas de comércio ligavam a África Oriental ao Oceano Índico, ganhando ainda mais importância com a chegada do Islã, no século VII d.C. Os africanos da região falavam banto e eram chamados pelos árabes de Swahali (“moradores da costa”). Hoje, o swahili é uma das línguas mais faladas na África Oriental e é uma mistura de árabe com línguas de origem banta. GLOSSÁRIO BANTO: os bantos são centenas de povos bem diferentes, ligados por questões etnolinguísti- ca. Os povos bantos teriam se dispersado por todo o continente africano há 2000 a.C. Os Swahalis adotaram o Islã e
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