164 Unidade II Unidade II 5 VACINAS E NANOTECNOLOGIA 5.1 Vacinas 5.1.1 Tecnologia da produção de soros e vacinas Além da fome, as doenças infecciosas sempre tiveram um impacto devastador sobre a humanidade. Uma das pandemias mais catastróficas da história foi a peste bubônica (auge entre 1347-1350 d.C.), também conhecida como “peste negra”, que provocou a morte de um terço de toda a população humana e, mais recentemente, a gripe espanhola em 1918, que causou entre 50 e 100 milhões de mortes em todo o mundo, reduzindo a população europeia pela metade. Apenas para efeito de comparação, durante a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, 40 milhões de pessoas foram mortas. Ou seja, em apenas dois anos, a gripe espanhola foi responsável por mais mortes do que a Primeira Guerra Mundial em seus 4 anos. Antes da introdução de estratégias preventivas e terapêuticas eficazes, a expectativa de vida era estimada em menos de 50 anos e as infecções bacterianas foram imperativas na definição desse limite. Esse cenário mudou com a introdução de três medidas que ajudaram a reduzir drasticamente a carga de morte causada por doenças infecciosas. As medidas incluem: higiene, antibióticos e vacinação. Milhares de anos atrás, percebeu-se que indivíduos que sobreviviam da infecção pela varíola eram imunes a infecções subsequentes. A partir destas observações, na China, no século X, originou-se a prática de inocular indivíduos com material infeccioso das pústulas de varíola de pessoas infectadas, uma prática que ficou conhecida como variolação. Esse material infeccioso era injetado na pele ou introduzido pela rota nasal. A infecção que se desenvolvia era geralmente mais branda, mas mesmo assim, a prática não era livre de riscos. Algumas vezes infecções fatais ocorriam, e como a varíola era contagiosa, as infecções induzidas pela variolação poderiam levar a epidemias. Mesmo assim, a prática da variolação para prevenção da varíola se disseminou para outras regiões, incluindo: Índia, África e Europa. 165 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Figura 109 – Ilustração da prática de variolação Apesar da variolação ter sido praticada por séculos, o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) é geralmente creditado pelo desenvolvimento do processo moderno de vacinação. Jenner observou que o gado leiteiro desenvolvia uma doença semelhante à varíola, mas muito mais branda. E ainda, as camponesas que faziam a ordenha desse gado não desenvolviam a forma severa da varíola. A partir disso, Jenner hipotetizou que a exposição a um patógeno menos virulento poderia proporcionar proteção imune contra uma forma mais virulenta, sendo, portanto, uma alternativa mais segura do que a variolação. Isto levou-o a testar sua hipótese obtendo amostras de uma lesão ativa de uma camponesa, que foi infectada pela varíola bovina, e injetar esse material em um menino de 8 anos (lembrando que nessa época ainda não se discutiam aspectos éticos de pesquisa). O menino desenvolveu uma infecção branda, com febre baixa, um desconforto na axila e perda de apetite. Quando o menino foi infectado posteriormente com material infeccioso da varíola humana, ele não desenvolveu a doença. Esta nova estratégia foi denominada vacinação, um nome derivado do uso da varíola bovina (da palavra “vacca”, em latim). Hoje nós sabemos que a vacina de Jenner funcionou porque o vírus da varíola bovina é genético e antigenicamente semelhante (ou seja, possui antígenos muito parecidos) ao vírus da varíola humana. E que essa exposição a um vírus menos infeccioso produziu uma resposta imunológica primária e produção de células de memória que identificaram epitopos idênticos ou relacionados no vírus da linhagem mais virulenta. O sucesso da vacinação de Jenner contra a varíola levou outros cientistas a desenvolverem vacinas para outras doenças. Talvez o mais notável tenha sido Louis Pasteur, que desenvolveu vacinas contra raiva, cólera e antraz. Nos séculos seguintes, diversas outras vacinas foram desenvolvidas contra doenças causadas por vírus (caxumba, hepatite, sarampo, pólio e febre amarela) e bactérias (difteria, pneumonia pneumocócica e tétano). 166 Unidade II Além disso, é importante enfatizar que muitas vacinas podem prevenir certos cânceres. Por exemplo, as vacinas contra o papilomavírus humano (HPV) protegem contra carcinoma cervical e a vacina contra hepatite B tem um enorme impacto na redução do câncer de fígado induzido por este patógeno. A primeira vacina contra o HPV se tornou disponível em 2006, e atualmente diversos países incluem-na em sua rotina de vacinações, pelo menos para as meninas. O HPV é praticamente o único agente etiológico do carcinoma cervical. Obviamente, reduzindo o número de infecções por HPV através da vacinação; também haverá impacto sobre o número de mulheres que desenvolvem esse câncer. Diferentemente de remédios, vacinas são usadas com a proposta de prevenirem doenças. As vacinas são ótimas ferramentas, porque não previnem apenas infecções nas pessoas vacinadas, mas as complicações que poderiam ser resultantes da doença. Além disso, se uma pessoa não contrai uma doença, ela não transmitirá a outros indivíduos. Dessa forma, as vacinas são capazes de eliminar a transmissão da doença em uma população que desenvolveu imunidade de rebanho. Para algumas doenças, como a varíola, a imunidade de rebanho é atingida quando pelo menos 90% a 95% da população é vacinada e a transmissão da doença é parada em toda a população. Essa porcentagem pode variar dependendo da patogenicidade e infectividade de um determinado agente etiológico. Saiba mais Com o propósito de conhecer com mais detalhes acerca da imunidade de rebanho, acesse: INSTITUTO BUTANTAN. Imunidade de rebanho. São Paulo: [s.d.]. Disponível em: https://coronavirus.butantan.gov.br/temp/Imunidade-de- rebanho. Acesso em: 9 dez. 2020. Portanto, desde que a cobertura vacinal permaneça alta, a incidência das doenças que elas previnem será baixa. Infelizmente, um número cada vez maior de pais fica hesitante sobre vacinas e o número de pessoas não vacinadas tem aumentado nos últimos anos, a exemplo do crescimento de casos de sarampo em diferentes países. Agora que já sabemos a importância das vacinas, vamos falar mais especificamente sobre as suas bases biológicas. O seu mecanismo de funcionamento está diretamente atrelado à biologia do sistema imune. O sistema imune é um sistema complexo que precisa ser muito bem regulado. É composto de diferentes moléculas, macromoléculas, células e órgãos. 167 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Ele permite aos organismos se protegerem contra diferentes ameaças, como patógenos infecciosos, bem como contra outras situações prejudiciais que podem causar doenças. Os diferentes órgãos do sistema imune são categorizados como órgãos linfoides primários (como o timo e a medula óssea) e secundários (como o baço, os linfonodos, as placas de Peyer e os tecidos linfoides associados às mucosas). Na medula óssea, as células do sistema imune são geradas e diferenciadas em subpopulações a partir de uma população comum de células-tronco hematopoiéticas. Este processo é independente do contato com o antígeno. Figura 110 – Hematopoese. O processo de hematopoese envolve a diferenciação de células-tronco hematopoiéticas em células do sangue e do sistema imune 168 Unidade II Nos órgãos linfoides secundários, a diferenciação é dependente de antígeno. Além disso, nesses órgãos algumas subpopulações vão se diferenciar em células antígeno-específicas que irão combater os patógenos. As células do sistema imune são chamadas de células brancas ou leucócitos. Existem muitos diferentes tipos de leucócitos. Nas primeiras etapas da diferenciação, progenitores mieloides e progenitores linfoides são gerados. Macrófagos, neutrófilos, eosinófilos e basófilos são gerados a partir dos precursores mieloides. Células natural killer (NK), linfócitos T e linfócitos B originam-se