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Autora: Profa. Simone de Almeida e Silva Colaboradoras: Profa. Maria Otilia Guimarães Ninin Profa. Lígia R. M. C. Menna Oficina Literária 1: do Romantismo à Contemporaneidade – Recortes Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Professora conteudista: Simone de Almeida e Silva Mestre em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é docente do curso de Letras da Universidade Paulista (UNIP). Atua em cursos nas modalidades presencial e a distância (EaD). Trabalha, principalmente, com os seguintes temas: Literaturas Brasileira e Portuguesa, Teoria da Literatura e Práticas de Ensino de Literatura. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Sumário Oficina Literária 1: do Romantismo à Contemporaneidade – Recortes INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 1 DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – MOMENTOS MARCANTES ...........................9 1.1 Considerações preliminares: “Literatura como Sistema” .........................................................9 1.2 Formação da vertente romântica no Brasil e seus desdobramentos .................................9 1.3 Romance e o conto como instrumentos de descoberta, interpretação e força ideológica no Brasil ......................................................................................................................... 14 1.3.1 A intervenção do conto na sociedade brasileira do século XIX ........................................... 23 1.4 Poesia: Modernismo e Pós-Modernismo .................................................................................... 25 Unidade II 2 O ENSINO DE LITERATURA: PERSPECTIVAS .......................................................................................... 29 2.1 Os documentos oficiais ...................................................................................................................... 29 2.2 Metodologias de ensino de Literatura ......................................................................................... 31 2.3 Estética da Recepção e suas possíveis aplicações ................................................................... 32 2.4 Professor Antonio Candido e a prática ....................................................................................... 37 7 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 INTRODUÇÃO Caro aluno, No ensino da Literatura Brasileira, tanto no Ensino Fundamental II quanto no Ensino Médio, há uma tendência, ainda em vigor, de abordar a Literatura a partir de uma visão histórica do fenômeno, trabalhando-se, assim, a obra literária inserida numa estética de época, marcada, para além das manifestações artísticas propriamente, pelos contextos histórico, social e cultural, numa sucessão cronológica dos fenômenos literários, que colocam o aprendizado das escolas literárias e seus respectivos contextos em primeiro plano, ficando o texto literário para momento posterior. Ao se trabalhar somente por esse viés, nega-se a autonomia do texto literário por si e inviabiliza-se a proposta de letramento literário, presente em todos os documentos oficiais do Ministério da Educação que orientam o ensino de Literatura e do texto literário, como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio1, das quais retiramos as considerações a seguir: [...] o discurso literário decorre, diferentemente dos outros, de um modo de construção que vai além das elaborações linguísticas usuais, porque de todos os modos discursivos é o menos pragmático, o que menos visa a aplicações práticas. Uma de suas marcas é sua condição limítrofe, que outros denominam transgressão, que garante ao participante do jogo da leitura literária o exercício da liberdade, e que pode levar a limites extremos as possibilidades da língua (BRASIL, 2006, p. 49). A partir do reconhecimento da especificidade do discurso literário, a garantia do exercício da liberdade no “jogo da leitura” (BRASIL, 2006, p. 49) nos é particularmente importante como justificativa introdutória para a disciplina Oficina Literária 1: do Romantismo à Contemporaneidade – Recortes, inserida no curso de graduação lato sensu em Língua Portuguesa e Literatura em Contextos Escolares. Assim, nos questionamos: como garantir ao aluno o exercício da liberdade na leitura do texto literário, sem uma “visão orientada pela práxis utilitária” (BRASIL, 2006, p. 51)? Como, na prática do enfrentamento diário de alunos reais, evitar a velha oposição trabalho e prazer? Como permitir aos nossos alunos o prazer da leitura de um texto literário e, simultaneamente, prepará-los para as avaliações externas e exames vestibulares? Essas são algumas das questões que nortearão nossas reflexões apresentadas neste livro-texto e compartilhadas com você, pós-graduando. A concepção orientadora deste livro-texto estará, assim, articulada às indicações dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCN. Contudo, não nos furtaremos ao diálogo com perspectivas diferentes às adotadas nesses documentos, desde que se mostrem produtivas na abordagem do texto literário. Inicialmente, traçaremos um panorama da Literatura Brasileira, do Romantismo à contemporaneidade, cujo foco serão recortes representativos de nosso sistema literário, tal como 1 Essas orientações se propõem a retomar a discussão dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. 8 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 define Candido (2014, p. 25). A perspectiva adotada para esse primeiro momento será a cronológica. Optamos por tal perspectiva de modo a destacar das escolas literárias os pontos centrais, os quais possam orientá-lo e embasá-lo, em sala de aula, na seleção dos textos literários brasileiros mais representativos de nossa identidade literária, ainda que a perspectiva adotada para o enfrentamento deles seja outra. Veremos a formação e o desenvolvimento da vertente romântica no Brasil e seus desdobramentos. Também trataremos da prosa (romance e conto) como instrumento de descoberta, interpretação e força ideológica no Brasil e, na sequência, da poesia moderna e da prosa pós-modernista, destacando critérios de escolha de textos literários para o trabalho em sala de aula. Posteriormente, compartilharemos com você possíveis perspectivas para o ensino de Literatura, iniciando nossas reflexões com as indicações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Fundamental II e Ensino Médio), num primeiro momento e, a partir delas, privilegiando uma visão da Estética da Recepção. Ao final, apresentaremos uma possível análise de umtexto literário, cujo objetivo será a identificação da metodologia utilizada. Para este momento, nos apropriamos de uma análise do professor Antonio Candido, da obra Na Sala de Aula: Caderno de Análise Literária, referenciado ao final deste livro-texto. Quanto a seus objetivos gerais, o curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa e Literatura em Contextos Escolares procura: • prover elementos para o amadurecimento da relação do pós-graduando com sua atividade profissional de ensino, além de ampliar seus horizontes no sentido crítico em relação à cultura letrada e à cultura de massa do país, com destaque para as manifestações veiculadas nos meios eletrônicos e digitais; • propiciar ao pós-graduando um espaço para reflexões sobre a articulação teoria-prática no ensino de Língua Portuguesa e Literatura, considerando a interlocução entre os estudos realizados na graduação e na pós-graduação; • exigir, com esse amadurecimento, uma postura dialética diante das muitas manifestações da língua, da literatura e da cultura de massa que hoje intervém na cultura letrada e nas manifestações artísticas do país. Já a disciplina Oficina Literária 1: do Romantismo à Contemporaneidade – Recortes tem como objetivos específicos analisar momentos decisivos da Literatura Brasileira em prosa e em verso. Para um melhor aproveitamento desta disciplina, orientamos que leia, ou releia, as obras literárias apresentadas, romances, contos e poemas. Esperamos que aprecie a jornada! 9 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES Unidade I 1 1 DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – MOMENTOS MARCANTES [...] poder-se-ia dizer que o presente livro constitui “uma história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. É um critério válido para quem adota orientação histórica, sensível às articulações e à dinâmica das obras no tempo, mas de modo algum importa no exclusivismo de afirmar que só assim é possível estudá-las (CANDIDO, 2014, p. 27). 1.1 Considerações preliminares: “Literatura como Sistema” A epígrafe que acabamos de apresentar destaca nossa escolha para este primeiro momento de nossas reflexões: o critério histórico. Assim o fizemos para destacar das escolas literárias os elementos-cerne de sua gênese, cujo objetivo é orientá-lo e norteá-lo no processo de seleção dos textos representativos da Literatura Brasileira. Para começarmos nossa conversa, é importante esclarecer a escolha do Romantismo como o primeiro momento da Literatura Brasileira a ser trabalhado. Para tanto, nos utilizamos do texto “Literatura como Sistema”, da obra Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, de Antonio Candido (2014). A despeito de o estudioso incluir no panorama de seus estudos o Arcadismo, optamos por iniciar com o Romantismo pelo fato de, em nosso ponto de vista, este se configurar como um momento completo de um sistema literário, tal como define Candido. Para ele, assim como, daqui para frente, para nós, uma literatura nacional se configura como “[...] um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase” (CANDIDO, 2014, p. 25). Quais são os denominadores comuns para além das características internas de um conjunto de obras, tais como língua, temas e imagens? São os elementos que tornam tal conjunto um todo orgânico, como o conjunto de produtores literários mais ou menos conscientes de seu papel na sua sociedade contemporânea e o conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive (CANDIDO, 2014, p. 25). A Literatura, a partir desse ponto de vista, torna-se o elo entre os homens, como um sistema simbólico representativo das visões de mundo e dos projetos dos indivíduos que compõem o grupo, tanto escritores como leitores. Esses são os elementos que buscaremos destacar e entender no Romantismo Brasileiro. 1.2 Formação da vertente romântica no Brasil e seus desdobramentos Segundo afirma José Luiz Fiorin em seu artigo A construção da Identidade Nacional Brasileira (FIORIN, 2009), uma nação é forjada a partir de um abundante espólio de lembranças, como 10 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I uma herança, tanto em seus aspectos materiais quanto simbólicos. Dessa forma, um processo de formação da identidade de uma nação se respalda no estabelecimento do patrimônio comum e na sua divulgação. No caso do Brasil, um país de dimensões continentais, esse processo consistiu na busca de um legado comum de todas as diferentes regiões do país, as quais pudessem fundar uma história que estabelecesse uma continuidade com seus antepassados. Esses últimos seriam tratados como modelos das idiossincrasias nacionais, tais como heróis, inseridos na paisagem local. Além da consciência da própria identidade, é importante que se reconheça a diferença em relação à singularidade do outro. Em nosso caso, esse outro é Portugal. A Literatura Brasileira, inserida no contexto do processo da Independência do Brasil em relação a Portugal, teve papel fundamental no processo de construção da identidade brasileira, ainda que se leve em conta que a ruptura com a tradição anterior, da literatura informativa, catequética e barroca, não se tenha dado por completo, por conta dos referenciais que nos legou tal tradição, em especial a árcade, em termos de conhecimento de nosso passado. Poucos anos após o grito do Ipiranga, surge o Romantismo no Brasil. Os artistas românticos, sejam poetas ou prosadores, ocuparam as fileiras da linha de frente da construção da identidade nacional. O traço essencial dessa produção literária era o nacionalismo, que lhe abriu um vasto universo de possibilidades temáticas e linguísticas, entre as quais o indianismo. Lembrete O nacionalismo romântico se configurou como uma exaltação da pátria recém-independente, em aspectos como a língua, a raça, a cultura e os costumes da nação. Tal exaltação inclui o indianismo – a idealização do indígena, por vezes retratado como um mítico herói nacional. Foi uma das características mais marcantes do Romantismo no Brasil. Há muitos nomes de peso que representam esse período. Pelo conjunto da obra, inserido num projeto de construção da identidade nacional, daremos destaque a José de Alencar, revendo alguns aspectos importantes de sua produção. Observação Para maior aproveitamento desta disciplina, é importante que você leia, ou releia, as obras aqui citadas. Do conjunto da obra do romântico, abordaremos o que se convencionou chamar de trilogia indianista, composta pelos romances O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), o que não indica que os romances urbanos, regionalistas e históricos tenham menor importância no conjunto da obra do autor. 11 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES Vale lembrar, por exemplo, que o romance Til, regionalista, tem sido leitura obrigatória nos vestibulares da USP e da Unicamp. Peri é o protagonista do romance O Guarani. A narrativa gira em torno do envolvimento do goitacá em uma luta entre indígenas e brancos, causada pela morte acidental de uma jovem aimoré por um jovem português. Peri luta para defender a família portuguesa, recém-estabelecida na terra, da vingança dos Aimorés. Totalmente devotado a Ceci, filha do fidalgo dom Antônio de Mariz, recebe deste a incumbência de garantir a sobrevivência da moça. Iracema, segundo romance indianista de Alencar, conta a história da jovem tabajara, que deveria permanecer virgem a fim de cumprir seu papel de sacerdotisa. Ao se apaixonar pelo colonizador português Martim, entrega-se a ele; por isso, passa a ser considerada traidora da tribo. Sua breve vida será marcada pela tristeza, e o nascimento de seu filho, Moacir, determinará sua morte, o que sugere seu sacrifíciopara tornar possível o nascimento do povo mestiço do Brasil. Saiba mais Escute a canção “Iracema voou”, de Chico Buarque de Holanda, do álbum As Cidades, de 1998, e perceba como o eu lírico dialoga com a heroína de José de Alencar. BUARQUE, C. Iracema voou. Intérprete: Chico Buarque. In: As cidades. São Paulo: RCA, 1998. CD. Faixa 2. Por último, temos Ubirajara, que narra as provas vividas pelo herói indígena para liderar a união dos povos inimigos em uma única nação fortalecida. É possível vislumbrarmos nessa trilogia de Alencar, ainda que em ordem inversa, as três etapas do relacionamento do índio com o colonizador português: a convivência entre as nações indígenas, quando os portugueses não haviam chegado, representada em Ubirajara; a miscigenação propiciada pela chegada dos primeiros grupos de brancos, representada em Iracema; e o processo de povoamento português, representado em O Guarani. O ponto-chave para compreender essa trilogia é o grande panorama de nossos heróis ancestrais inseridos na natureza local, também estabelecida como parte de nosso patrimônio, em papeis e momentos diferentes da formação de nosso povo. O perfil idealizado das personagens indígenas incorpora, de um lado, os traços positivos dos europeus e, de outro, a grandiosa natureza local, com a qual seu aspecto físico é comparado. Ao destacar a beleza delicada das personagens indígenas, o autor promove uma idealização que cumpre duas funções: alinhar o indianismo aos ideais românticos e minimizar a crença de que os indígenas constituíam uma raça inferior. A valorização do povo nativo não teria ocorrido por suas qualidades próprias, mas sim por aquilo que os fazia parecidos com o que o europeu considerava bom e belo. 12 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Como afirma Fiorin (2009, p. 119): Começa-se, no Romantismo, a construir a noção de que cultura brasileira se assenta na mistura. O romance O Guarani, de José de Alencar, concebe um mito de origem da nação brasílica. Peri e Cecília constituem seu casal inicial, formado por um índio que aceitara os valores cristãos e por uma portuguesa que acolhera os valores da natureza do Novo Mundo. Essa nação teria, portanto, um caráter cultural luso-tupi. O mito de origem de nosso país opera com a união da natureza com a cultura, ou seja, dos valores americanos com os europeus. O Brasil seria, assim, a síntese do velho e do novo mundo, construída depois da destruição do edifício colonial e dos elementos perversos da natureza. Os elementos lusitanos permanecem, mas modificados pelos valores da natureza americana. O comentário do crítico pode ser estendido às outras duas obras mencionadas, e, para além da fundação de uma nacionalidade, há que se considerar também a fundação da língua falada no Brasil. Ao nosso ver, esse é o ponto fundamental do indianismo no Romantismo Brasileiro, como ponto de partida para a fundação da identidade nacional em Literatura. Ainda, trata-se do nascimento do gênero romance, não somente no Brasil, mas em todo o mundo: uma linguagem nova para um mundo novo. Observação Segundo Massaud Moisés, em A Criação Literária (2006, p. 59), “O romance surge, como o entendemos hoje em dia, nos meados do século XVIII: aparece com o Romantismo. [...] Como decorrência, a epopeia, considerada, na linha da tradição aristotélica, a mais elevada expressão de arte, cede lugar a uma fôrma burguesa: o romance. [...] O romance passa a representar o papel antes destinado à epopeia, e objetiva o mesmo alvo: constituir-se no espelho de um povo, a imagem fiel duma sociedade”. Esse aspecto fundamental do Romantismo Brasileiro poderá servir como norte para a escolha de textos que apresentem essas características. É fundamental que, qualquer que seja a obra escolhida, o que inclui a poesia lírica épica da primeira fase romântica, marcadamente a de Gonçalves Dias, a leitura seja feita na íntegra, motivada pelo professor em sala de aula. Tomemos, a título de exemplo, um excerto do romance O Guarani, que pode ser utilizado pelo professor como mote condutor e orientação à leitura integral da obra: Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade. Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem. 13 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES [...] Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distância, e se agitava imperceptivelmente. Ali por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol. Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco. [...] Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado por um bramido da fera; a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda, açoitando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior. O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente. Era uma luta de morte a que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranquilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava satisfeito. Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas. O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio. [...] Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras. Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem. Fonte: Alencar (1999, p. 71-76). 14 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Nesse trecho, alguns elementos do nacionalismo e do indianismo podem ser destacados. Comecemos pela caracterização de Peri e de sua consequente imagem construída pelo narrador. Peri é jovem, alto, está em forma e é forte, corajoso e ágil. Ainda, o herói tem consciência dessas características e habilidades. Sua natureza livre e heroica permite ao narrador caracterizá-lo como um selvagem, assim como seu povo. A onça, ou um inverossímil tigre, é caracterizada como um inimigo à altura do heroísmo de Peri: enorme, mostrava-se ameaçadora e terrível ao confrontá-lo, quando o índio mantém sua tranquilidade. A caracterização de Peri procura construir para o leitor a imagem do índio como o herói do romance indianista. Para reforçar essa imagem, ele é colocado diante de um adversário poderoso, pois, quando o embate termina com a vitória do indígena, o leitor comprova a natureza heroica incomparável da personagem. Tanto o índio quanto a onça são exemplos vivos das belezas naturais inigualáveis de nosso país, às quais estão sendo comparados continuamente no trecho, através demetáforas. É possível considerar que os selvagens brasileiros representam o espírito livre da nação brasileira, assim como as características do índio herói da narrativa tornam-se extensivas ao próprio país. O Brasil seria, nessa perspectiva, uma nação tão forte e grandiosa quanto seu habitante original. Em nosso ponto de vista, esses elementos, que fazem parte do projeto romântico como um todo, devem ser levantados e utilizados como provocação à leitura desta ou de outras obras da mesma natureza indianista, seja em poesia ou em prosa. Duas observações se fazem importantes nesse momento: a primeira enfatiza que a autonomia desta ou de outras obras deve ser mantida, evitando-se, nos momentos de motivação à leitura, informações sobre a estética literária em questão. A segunda reforça que o trecho apresentado é um fragmento da obra. Nada substitui a leitura na íntegra de um texto literário e, nessa medida, a leitura de fragmentos, feita de forma significativa pelo professor, deve funcionar como elemento detonador da curiosidade do leitor, que se perguntará: O que acontece? Como termina essa história? Saiba mais Para rever as características do Romantismo no Brasil, consulte a obra a seguir: BOSI, A. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. 1.3 Romance e o conto como instrumentos de descoberta, interpretação e força ideológica no Brasil O romance surgiu em nossa literatura na época do Romantismo, assim como no resto do mundo. Segundo Antonio Candido, o elemento que pautou o romance, desde o seu surgimento no Romantismo, foi o nacionalismo literário. Como tendência, o romantismo-nacionalista foi, ao mesmo tempo, um recurso estético e também ideológico, e fez do “romance verdadeira forma de pesquisa do país” (CANDIDO, 15 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES 2014, p. 432). O ideal romântico-nacionalista de criar a expressão nova de um país novo encontra no romance a linguagem mais eficiente. Basta percorrer nossa literatura para sentir a importância dele, mais ainda como instrumento de interpretação social do que como realização artística de alto nível. Essa aplicabilidade essencial do romance – de instrumento de descoberta e interpretação – articula os fatores literários e sociais, demonstrando uma das características básicas do sistema literário brasileiro: o empenho, ou engajamento, fruto da consciência dos autores quanto a seu papel em sua sociedade contemporânea. Os últimos 25 anos do século XIX, no Brasil, presenciaram vários acontecimentos importantes, política e socialmente, como a abolição da escravatura, o fim da Monarquia e o início da República. Intelectualmente, também podemos considerar que esse período foi bastante fecundo, em especial pelas tendências científicas e filosóficas disseminadas principalmente pelos intelectuais e estudiosos franceses, passando a crítica literária e os estudos históricos a serem sistematizados. Ainda, há que se mencionar a influência do positivismo na visão de mundo do homem desse tempo. O Brasil acompanha as transformações que ocorreram na Europa e que desencadearam o declínio da estética romântica e a escalada do Realismo. Os escritores do Realismo Brasileiro souberam, por meio, especialmente, de sua prosa, representar na literatura, muitas vezes de modo crítico, as questões vivenciadas pelo povo. Saiba mais Para rever as características do Realismo no Brasil, consulte a obra a seguir: BOSI, A. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. Nesse contexto, encontramos Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos por grande parte da crítica e pelos seus apaixonados leitores. Vale recordarmos que Machado escreveu diferentes gêneros, como romances, peças de teatro, poemas, contos e crônicas, além de ter tido importante atuação como jornalista. Seus primeiros escritos ficcionais apresentavam características da estética romântica. O grande ponto de virada em sua obra se deu com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881. Além da narrativa do defunto Brás Cubas, ainda temos Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908) como representantes do romance na fase realista machadiana. Dom Casmurro, obra lida e admirada por muitos alunos no Ensino Médio e na graduação, é um exemplo da intervenção realista nos ideais mais caros à sociedade romântica, pelo fato de apresentar a mentira e a dissimulação minando a família burguesa. Vejamos um trecho do romance. 16 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, – para dizer alguma cousa, – que era capaz de os pentear, se quisesse. Fonte: Assis (1992, p. 842). Bentinho, a personagem central do romance, narra, em primeira pessoa, sua história: órfão de pai, criado pela mãe superprotetora, tem como destino a vida sacerdotal, resultado de uma promessa da mãe. Capitu, uma vizinha por ele adorada, afasta-o desse porvir. Os anos passam, Bentinho livra-se do seminário, forma-se em Direito e se casa com Capitu. Escobar, seu amigo de seminário, casa-se com Sancha, amiga de Capitu. Nasce Ezequiel, filho de Bentinho e Capitu. A trama ganha contornos realistas quando Ezequiel morre e, no velório, Bentinho estranha o modo como Capitu contempla o falecido. Tomado pelo ciúme, desconfia de ter havido um relacionamento entre sua mulher e o amigo, desconfiança que move toda a trama. Temos, então, uma narrativa que gira em torno do ciúme de Bentinho, que destrói seu casamento, e não do amor, como nas narrativas românticas. Vários aspectos da construção do romance merecem destaque: a ambiguidade da personagem Capitu, especialmente quando em comparação com as heroínas tipicamente românticas; a postura pouco confiável do narrador, que também se choca com os narradores românticos autorizados;e a narrativa, que, ao unir a infância e a velhice amargurada da personagem, procura dar sentido à sua existência. 17 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES Em nosso ponto de vista, é possível destacar nessa e em todas as obras realistas de Machado de Assis a maturidade que o gênero romance assume ao se colocar como interventor na sociedade sua contemporânea, assumindo um caráter de interpretação dos mecanismos que regiam as relações entre as pessoas e as instituições tão caras ao homem do século XIX. Em todo o conjunto da obra de Machado de Assis, incluindo sua fase romântica, é possível vislumbramos o processo de maturação do romance como instrumento de interpretação social do país, numa postura empenhada. Outro ponto a ser destacado tem relação com a própria característica da forma romance, comparativamente mais objetiva e analítica em relação aos outros gêneros até então dominantes em nossa literatura. O romance dá conta de congregar dois tipos opostos de conhecimento: o da realidade por ele elaborada, num processo de verossimilhança externa, e o da representação ficcional, em verossimilhança interna. Nesse ponto de nossa reflexão, caro aluno, daremos um salto cronológico para a segunda fase do Modernismo Brasileiro, momento conhecido como Geração de 30. Tal salto se justifica pelo caráter ideológico que o romance assume durante o período. Não nos furtaremos de inserir um pouco de poesia em nossas reflexões. O Modernismo tem, a partir da Semana de Arte Moderna, em 1922, uma primeira fase, que alcança inovações estéticas e conceituais. Observação A Semana de Arte Moderna ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, tendo como objetivo mostrar as novas tendências artísticas que já vigoravam na Europa. Esta nova forma de expressão não foi compreendida pela elite paulista, que era influenciada pelas formas estéticas europeias mais conservadoras. O idealizador deste evento artístico e cultural foi o pintor Di Cavalcanti. Participaram da Semana nomes consagrados do Modernismo Brasileiro como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Heitor Villa-Lobos, entre outros. Sua segunda fase, a partir de 1930, é herdeira dessas mudanças. Sensíveis aos acontecimentos ao redor do mundo e no Brasil em todas as esferas da vida, muitos artistas dessa fase abraçam um papel mais combativo, direcionando seus olhares aos problemas sociais nacionais e questionando o lugar do ser humano no mundo. Um desses autores é Graciliano Ramos. O autor nos apresenta a paisagem nordestina em sua obra, que tem papel coadjuvante na representação de um indivíduo em conflito com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo. Os quatro primeiros romances publicados por Graciliano integram o conjunto mais importante de sua produção ficcional: Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1935) e Vidas Secas (1938). 18 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Nesta última publicação, é marcante o discurso ideológico da instância narrativa ao traçar a imagem do Nordeste como cenário de seca e fome, onde insere personagens marginalizados, vivendo nesse horizonte mórbido e condicionados a uma vivência desumana. Observação Vidas Secas é a obra de Graciliano Ramos mais trabalhada em sala de aula, além de ser leitura obrigatória para os exames vestibulares da USP e Unicamp. Inicialmente, Graciliano Ramos escreveu um conto, o qual, na obra, é o capítulo dedicado à cachorra Baleia. Por seu caráter desmontável, os capítulos podem ser lidos em sala de aula como contos, o que certamente facilita a motivação à leitura. Fabiano e sua família, Sinhá Vitória, os filhos, identificados apenas como Menino mais novo e Menino mais velho, e a cachorrinha Baleia, empreendem uma fuga circular e sem fim da seca durante toda a narrativa. Essa trama sem clímax ou surpresas representa a sociedade brasileira em seus níveis mais profundos: a dimensão social da exploração e da opressão política, que resulta no aspecto psicológico da repressão e se pode encontrar em personagens marcadas pela introspecção. O próprio título do romance mobiliza o leitor a alguns elementos do que está por vir: as vidas das pessoas cujas trajetórias serão representadas na narrativa são secas, sem perspectivas. Abunda no texto o monólogo interior, a partir do qual conhecemos o interior das personagens que não têm habilidade para articular seus pensamentos e expressá-los para o outro. Leiamos um fragmento da obra: Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera. Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao belga, pôs-se a fumar regalado. — Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se o ouvindo falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas uma cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. 19 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: — Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha – e ali estava forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. — Um bicho, Fabiano. Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de Mococa. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro. Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra. Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava- se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite. Fonte: Ramos (1970, p. 53-55). Nesse trecho é possível destacar um dos pontos mais importantes da obra de Graciliano: a animalização do ser humano em virtude das condições de vida a que é submetido. Outro ponto característico do romance de 30 são as inovações na técnica utilizada para sustentar a vida interior da personagem, numa análise psicológica, tais como a utilização do discurso indireto livre e do fluxo de consciência. Esses elementos devem ser destacados numa leitura em sala de aula como forma de instigar o aluno à leitura da obra na íntegra, munindo-o de ferramentasque possam levá-lo à compreensão dessa e de outras obras do período como obras com poder de intervenção na sociedade, característica cara aos romancistas da Geração de 30. 20 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Saiba mais Para relembrar ou se aprofundar nos recursos discurso indireto livre e fluxo de consciência, consulte a seguinte obra: LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1997. (Série Princípios). Outro expoente da Geração de 30 é Jorge Amado. Daremos algum destaque a seu romance Capitães de Areia, pelo fato deste representar a tendência sociológica de denúncia social do romance da Geração de 30 do Modernismo Brasileiro. Nele é possível encontrarmos uma combinação de elementos naturalistas e idealismo romântico. Jorge Amado publicou Capitães da Areia em 1937. Trata-se de uma narrativa que denuncia de maneira incisiva – romântica e, paradoxalmente, socialista e realista – o problema dos menores abandonados e infratores que povoavam as ruas de Salvador, incluindo ainda possíveis discussões em torno de movimentos grevistas de trabalhadores, dos conflitos e das diferenças de classes sociais, da prostituição, da homossexualidade da miscigenação de etnias e culturas, das questões de identidade nacional e da participação do negro na formação de tal identidade, entre outros aspectos. A história de Capitães da Areia é aberta por seis cartas, nas quais temos acesso a diferentes vozes da sociedade baiana do tempo, em torno da questão dos meninos de rua: pobres e carentes, órfãos ou abandonados, malandros, ladrões e contraventores por necessidades do estômago, que se multiplicavam pelas ruas da cidade. Suas façanhas eram conhecidas na cidade de Salvador: elas povoarão a narrativa de Jorge Amado ao longo de todo o romance. Os protagonistas da obra podem ser considerados como verdadeiros malandros. Os capitães da areia representam, inicialmente, uma condição coletiva, fruto de um determinismo social do qual eles não têm meios para fugir. Porém, há ainda uma linha paralela que nos apresenta trajetórias individualizadas e subjetivas: ao final da obra, alguns concretizam o destino determinado por sua condição; outros, porém, rompem com o que o destino lhes reserva e, consequentemente, surpreendem aqueles que deles esperavam um final trágico. A seguir, vejamos um trecho do capítulo “As Luzes do Carrossel”, de Capitães da Areia: O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também 21 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Nesse momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião nesse momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade. Fonte: Amado (2012, p. 68). Nesse trecho, os meninos conseguem que um carrossel mambembe que chegara à cidade funcione à noite somente para eles – isso no meio de uma narrativa de roubos, pequenas contravenções e malandragens, sendo que esse capítulo estabelece um contraste com os demais por nos apresentar uma visão humana e, até, romântica das personagens, o que pode levar o leitor a uma visão da verdadeira condição de cada um deles, isto é, toda a meninice que existia por detrás daquele embrutecimento causado pela miséria em que viviam. É possível afirmarmos que esse capítulo se trata de um contradiscurso lírico. Milton Hatoum, um dos grandes escritores contemporâneos do Brasil, escreveu o prefácio da edição de 2012 da Companhia das Letras para a obra Capitães da Areia, intitulado “O Carrossel das Crianças”. Vale a pena nos apropriarmos de um fragmento, para efeito de reflexão, de alguns trechos do texto. “Em 1937 Capitães da Areia foi censurado e depois queimado em Salvador”, disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio Amazonense Pedro II, em Manaus. A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes por este romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira. Por sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história dos meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o leitor de 1966 não é o mesmo de 2008. É surpreendente a atualidade dos temas de Capitães da Areia. O assunto e as questões sociais que o livro explora em profundidade são, em larga medida, os mesmos da “cidade da Bahia” e de muitas outras cidades, do Brasil e da América Latina. Lido hoje, este romance ainda comove e faz pensar nas crianças desvalidas, nas crianças de rua, nas crianças abandonadas, quase todas órfãs de pai e mãe, filhos da miséria e do abandono. Atiradas à marginalidade, elas roubam e cometem outros delitos para sobreviver. Detidas, são submetidas à humilhação, ao castigo, à tortura. A meu ver, este romance de Jorge Amado antecipou de um modo lúcido e incisivo a vida das crianças que esmolam nas ruas das cidades brasileiras. E essa é uma das mensagens mais poderosas de Capitães da Areia. Hoje, a violência urbana tem uma relação estreita com o tráfico de drogas, enquanto os meninos desta obra de ficção furtam para sobreviver. Mas até certo ponto, as raízes do problema são as mesmas: a ausência da família e da escola, agravada pela vida degradante nas favelas e cortiços de tantas cidades. 22 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I [...] Em Jubiabá, seu romance anterior, Jorge Amado já revelara talento ao misturar poesia com documento, como assinalou Antonio Candido. Lirismo e crítica social também andam juntos em Capitães da Areia, onde não faltam peripécias romanescas, aventuras de toda sorte, e um pendor à idealização de tipos humanos humildes e desvalidos. O que mais me comoveu ao reler esse livro não foi sua explícita mensagem ideológica, sobretudo no desfecho, em que alguns meninos, agora jovens e quase adultos, empenham- se “a mudar o destino dos pobres”. O mais impressionante na vida dessas “cinquenta crianças sem pai, sem mãe, sem mestre” é a sede de amor e ternura, o desejo recorrente e desesperado de pertencer a uma família e conquistar um lugar digno na sociedade. [...] Uma cena em que mais de cem crianças brincam no carrossel de Nhozinho França é exemplar: [...] A brincadeira no carrossel é uma pausa na vida arriscada e marginal, uma entrega à magia e ao sonho da infância. A música – “uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade” – tem o poder de irmanar as crianças e de devolver a elas um pouco de alegria. Ao mesmo tempo é uma possibilidade de conquistar a liberdade, ainda que provisória. O narrador alterna esses momentos de lirismo com cenas dramáticas, deixando em suspense ou adiando o desfecho de várias aventuras que vão sendo tramadas ao longo da narrativa.Fonte: Hatoum (2012, p. 5). Observação Milton Hatoum é autor, dentre outras obras, do romance Dois Irmãos, publicado pela Companhia das Letras em 2000. Nessa obra, Hatoum demonstra grande domínio da técnica da ficção, num estilo mais enxuto que o da primeira obra e, ao mesmo tempo, repleto de nuanças e sutilezas. Mais de setenta anos depois da primeira edição, Capitães da Areia continua a ser lido não apenas como um registro social de uma época e de um lugar específico, mas também como uma obra literária que habilmente soube evocar um drama humano que ainda perdura. Adiante, ao privilegiarmos a Estética da Recepção como metodologia de ensino de Literatura, dentre outras obras, retomaremos a obra Capitães da Areia. 23 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES Saiba mais Assista ao filme Capitães da Areia, de 2011, com direção de Cecília Amado. No ano de lançamento do filme, fazia 10 anos da morte do autor do romance homônimo. O filme foi o marco inicial das comemorações pelo centenário de Jorge Amado, de quem Cecília Amado é neta. CAPITÃES da areia. Dir. Cecília Amado. Brasil: Telecine, 2011. 96 min. 1.3.1 A intervenção do conto na sociedade brasileira do século XIX Machado também é reconhecido pela crítica como um dos melhores contistas da literatura brasileira. Em seus contos, encontramos a combinação de um olhar cuidadoso e arguto para os costumes da sociedade do Segundo Reinado e dos primeiros anos da República, assim como uma habilidade única para explorar o caráter das pessoas e o modo como se posicionam no mundo. Observação Segundo Massaud Moisés (2006), em A Criação Literária, do ângulo dramático, o conto é unívoco, univalente. Constitui uma unidade ou célula dramática: um só conflito, um só drama, uma só ação. Tudo leva a um mesmo objetivo, a um mesmo ponto. Ao conto aborrece as divagações, digressões, excessos (MOISÉS, 2006, p. 124). É um drama que apresenta um fim em si próprio, com começo, meio e fim, e corresponde ao momento mais importante da vida da personagem, sem importar o antes ou o depois. Pode haver uma “síntese dramática”, mas o passado e o futuro possuem pouco ou nenhum significado. O conto O Caso da Vara é um exemplo da habilidade machadiana. A personagem Damião também, assim como Bentinho, quer se livrar do seminário, do qual foge. Procura ajuda na casa se Sinhá Rita, ao que toma contato com a forma pela qual a senhora trata a escrava Lucrécia. Compadece-se da escrava. Porém, quando seus interesses pessoais se chocam com os da negra, é obrigado a tomar uma decisão. Vejamos um trecho: — Onde está a vara? A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista. — Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor? 24 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho... — Dê-me a vara, Sr. Damião! Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor... — Me acuda, meu sinhô moço! Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita. Fonte: Assis (1992, p. 582). Nesse trecho, encontramos um Damião dividido entre a justiça e interesses pessoais, para a realização dos quais necessitava da ajuda de Sinhá Rita. Quanto à representação do universo social, podemos encontrar o autoritarismo escravocrata. A opção de Damião diante do impasse, entregar a vara a Sinhá Rita, revela a visão pessimista do narrador do conto. Há, aí, uma aproximação entre a crueldade do escravismo e o individualismo da sociedade burguesa do século XIX. Os contos de Machado transitam não somente pelo universo da classe de senhores de escravos. Encontram-se também personagens da classe média, movendo-se entre suas necessidades materiais e as ideias da sociedade vigente. No conto Pai contra Mãe, por exemplo, a luta entre um pai, cuja profissão é capturar escravos fugidos, e uma negra fugida grávida, resulta, do mesmo modo, na visão dos mecanismos sociais da escravidão que, ainda que cruéis, seriam utilizados pelas personagens por pura carestia de recursos mínimos à sobrevivência. Saiba mais Não deixe de assistir ao filme Quanto Vale ou É por Quilo?, de 2005, com a direção de Sérgio Bianchi. O filme estabelece uma analogia entre o comércio de escravos e a exploração da miséria pelo marketing social em nossos dias. QUANTO vale ou é por quilo? Dir. Sérgio Bianchi. Brasil: Agravo Produções, 2005. 104 min. Para uma motivação, em sala de aula, à leitura de Machado de Assis, os dois contos citados (Pai contra Mãe e O Caso da Vara) podem ser objeto de levantamento das características relativas ao 25 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES amadurecimento do romance como mecanismo de descoberta e interpretação da sociedade. Candido (2014, p. 436) afirma que o “senso do concreto” e a “transfiguração da realidade” tornam o romance um instrumento capaz de apresentar uma visão do país. 1.4 Poesia: Modernismo e Pós-Modernismo Ao elencarmos representantes tão significativos da Literatura Brasileira, não poderíamos deixar de lado os grandes e inspiradores poetas Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Vamos rever alguns pontos importantes de suas poéticas. Drummond iniciou sua carreira na década de 1920. Seu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), foi influenciado pelas inovações incorporadas ao gênero pelos primeiros poetas da primeira geração moderna. Nessa obra, já é possível perceber o tom de gravidade reflexiva que marcará a obra do poeta que, além dele, apresentará variedade temática e estilística, incluindo uma retomada crítica dos elementos da tradição rechaçados por seus colegas da primeira geração. Sua segunda fase abrange os livros produzidos na década de 1940, iniciando-se por Sentimento do Mundo (1940). Na sequência, temos José (1944) e A Rosa do Povo (1945). Nessa fase, o poeta abre os olhos para uma crise que transcende a individualidade poética, mostrando consciência do mundo e de seus problemas. Assim, encontraremos nessas obras uma poesia de caráter social. Os 28 poemas da obra Sentimento do Mundo foram escritos entre 1935 e 1940 e se voltam para o mundo com um olhar crítico e político. Representam um tempo pessimista em relação ao poder de destruição do homem num tempo de guerras. Encontramos neles a luta e a contestação, pela palavra, das atrocidades e crueldades que o mundo vivia numa experiência coletiva. Saiba mais Uma excelente ferramenta de apoio ao entendimento da história do Brasil – nesse caso específico, do período que se convencionou chamar de Getulismo – é a seguinte obra: FAUSTO, B. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Leiamos o poema “Mãos Dadas”, que compõe a obra Sentimento do Mundo (ANDRADE, 2012): Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. 26 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Abdicando de temas mais individuais e subjetivos, até pessoais – mulher, história e paisagem – o eu lírico desses versos toma consciência da existência do outro, com quem se sente de mãos dadas. Interessa-lhe sobremaneira o tempo presente, no qual ele e seus companheiros, em solidariedade, estão inseridos. Nega a influência do passado e a inovação do futuro, situando-se no presente que tanto atormenta a ele e seus companheiros. Trata-se de um afastamento do lirismo contemplativo e do escapismo romântico. Trabalhar poemas em sala de aula oferece raras oportunidades de se ler com os alunos textos completos, não fragmentados. Esses poemas de Drummond, além de oferecerem esse espaço, podem privilegiar momentos de leitura propriamente dita, em que o prazer do texto poético seja recuperado e dê início a processos de aprofundamento da compreensão da leitura. Mais adiante, faremos sugestões de como conduzir esse processo. Para finalizar, longe de esgotar as infinitas possibilidades que a Literatura Brasileira oferece, falemos, ainda que brevemente, de João Cabral de Melo Neto, poeta da chamada Geração de 45 da poesia brasileira, considerado por muitos críticos como um pós-modernista. Com o propósito de compreender a realização do fenômeno artístico, muitos poetas dessa fase retomam os modelos clássicos de composição. João Cabral está por trás de um processo de produção calculadamente arquitetado, sem partir de uma emoção pessoal, apreendendo, assim, a emotividade das coisas do mundo. Nos anos de 1954 e 1955, Maria Clara Machado, diretora do grupo de teatro O Tablado, encomenda a João Cabral de Melo Neto o poema narrativo Morte e Vida Severina. Somente em 1966 o texto pode ser montado pelo grupo do Tuca – Teatro da Universidade Católica de São Paulo. Com música de Chico Buarque, direção de Roberto Freire e Silnei Siqueira, alcançou sucesso em suas representações. Foi publicado nos livros Duas Águas, em 1956, e, posteriormente, Poemas em Voz Alta, em 1966. Morte e Vida Severina é, sem dúvida, a obra mais conhecida do autor. O poema se situa num manguezal do Recife e representa a cena do nascimento de Cristo a partir do nascimento do filho de um carpinteiro pernambucano. O protagonista, Severino, é um retirante nordestino que representa, metonimicamente, todos os retirantes nordestinos em suas trajetórias ao Sul do país em busca de melhores condições de vida – daí o título da obra. As reflexões da personagem do poema narrativo indicam um homem incapaz de encontrar em si características pessoais ou sociais que o individualizem, diferenciando-o 27 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 OFICINA LITERÁRIA 1: DO ROMANTISMO À CONTEMPORANEIDADE – RECORTES de tantos outros retirantes. Torna-se, então, o símbolo do drama vivido nas regiões assoladas pela seca. Vejamos um fragmento (MELO NETO, 1956): O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com o nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra, magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual mesma morte severina: que é morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Como afirmamos anteriormente, neste trecho, Severino busca uma identidade para si, mas se descobre no coletivo: ele é apenas um igual a tantos outros Severinos e, desse modo, difícil é individualizar-se de maneira a distanciar-se deles, os seus iguais em sofrimento, dor, busca, no mesmo espaço geográfico da secura, fome, miséria e ignorância. O poema narrativo está, estruturalmente, dividido em 18 partes. Porém, há outra divisão possível, entre a morte e a vida. Além disso, como um auto de Natal, o texto possui uma estrutura dramática. 28 Pó s - L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1- 05 -1 5 Unidade I Saiba mais Para rever as características das obras de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, consulte: BOSI, A. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. Exemplo de aplicação Felizmente, muitos outros grandes poetas compõem nosso sistema literário. A partir dos recortes que fizemos, busque alternativas não só em nossa literatura, mas também em nossa música. Leve-as para a sala de aula para mobilizar a sensibilidade de nossos alunos, ampliando seus horizontes não só culturalmente, mas socialmente, desenvolvendo neles a habilidade de apreciar esteticamente textos diferentes. A seguir, caro aluno, abordaremos algumas perspectivas para o ensino de Literatura. Esperamos que esse breve e recortado apontamento de nossos autores mais significativos nos sirva de suporte para as reflexões sobre sua atividade em sala de aula. Resumo A partir da noção de Literatura como sistema, de Antonio Candido, levantamos nesta unidade momentos marcantes da Literatura Brasileira. Por meio de obras indianistas de José de Alencar, analisamos a formação da vertente romântica no Brasil em seu intuito de buscar e divulgar a identidade brasileira, tendo como elemento principal o nacionalismo, marcado pelo indianismo e pela exaltação da natureza, num projeto coeso e que apresenta desdobramentos até os dias de hoje. O amadurecimento da narrativa no Brasil, a partir de romances e contos, foi objeto de reflexão nas estéticas seguintes ao Romantismo – Realismo e Geração de 1930 do Modernismo –, apontando os gêneros como instrumentos de descoberta, interpretação e força ideológica no Brasil. Privilegiamos Machado de Assis, Graciliano Ramos e Jorge Amado como objetos de estudo desse momento da Literatura Brasileira. A poesia brasileira do modernismo e do pós-modernismo também foram alvo de reflexão. Apontamos o voltar-se para o outro e para as questões universais do ser humano em Carlos Drummond de Andrade e a frustação da busca de uma identidade em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.
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