Buscar

RECORTE, DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 102 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 102 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 102 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

autonomia da vontade privada e o da livre-iniciativa de um lado (arts. 1.º, IV, e 170, caput); o da dignidade da
pessoa humana e o da máxima efetividade dos direitos fundamentais (art. 1.º, III) de outro.
Diante dessa “colisão”, indispensável será a “ponderação de interesses”21 à luz da razoabilidade e da
concordância prática ou harmonização. Não sendo possível a harmonização, o Judiciário terá de avaliar qual dos
interesses deverá prevalecer.
■ 14.9. DEVERES FUNDAMENTAIS
Além dos direitos fundamentais, desenvolvem-se estudos sobre os deveres fundamentais, chegando alguns a
sustentar uma nova “Era dos Deveres Fundamentais” (no Brasil, dentre outros, Carlos Rátis).
Dessa forma, diante da vida em sociedade, devemos pensar, também, a necessidade de serem observados os
deveres, pois muitas vezes o direito de um indivíduo depende do dever do outro em não violar ou impedir a
concretização do referido direito.
Dimoulis e Martins tratam do assunto, e procuraremos esquematizar o pensamento dos autores, identificando
os seguintes deveres fundamentais:22
■ dever de efetivação dos direitos fundamentais: sobretudo os direitos sociais e garantias das
instituições públicas e privadas. Estamos diante da necessidade de atuação positiva do Estado, passando-se
a falar em um Estado que tem o dever de realizar os direitos, aquela ideia de Estado prestacionista;
■ deveres específicos do Estado diante dos indivíduos: como exemplo, os autores citam o dever de
indenizar o condenado por erro judiciário, o que se dará por atuação e dever das autoridades estatais;
■ deveres de criminalização do Estado: a Constituição determina que o Poder Legislativo edite atos
normativos para implementar os comandos, como no caso do art. 5.º, XLIII, devendo haver a normatização
do crime de tortura;
■ deveres dos cidadãos e da sociedade: como exemplos, os autores citam o dever do serviço militar
obrigatório (art. 143 da CF) e a educação enquanto dever do Estado e da família (art. 205);
■ dever de exercício do direito de forma solidária e levando em consideração os interesses da
sociedade: como exemplo, os autores citam o direito de propriedade que deve ser exercido conforme a sua
função social (art. 5.º, XXIII, da CF);
■ deveres implícitos: segundo Dimoulis, “existem tantos deveres implícitos quantos direitos
explicitamente declarados”, consistindo referidos deveres em ação ou omissão. E conclui no sentido de que
“o direito de uma pessoa pressupõe o dever de todas as demais (quando se aceita a tese do efeito horizontal
direto) e, sobretudo, das autoridades do Estado”.23
■ 14.10. DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Dado o objetivo principal deste trabalho, qual seja, ferramenta para ajudar o candidato em concursos públicos,
provas e mesmo na vida profissional, restringimo-nos a tecer breves comentários sobre os direitos individuais e
coletivos, caso contrário abandonaríamos o nosso escopo.
■ 14.10.1. Direito à vida (art. 5.º, caput)
■ 14.10.1.1. Aspectos gerais
O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5.º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, de não
ser privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna.
Em decorrência do seu primeiro desdobramento (direito de não se ver privado da vida de modo artificial),
encontramos a proibição da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX.
Assim, mesmo por emenda constitucional é vedada a instituição da pena de morte no Brasil, sob pena de se ferir a
cláusula pétrea do art. 60, § 4.º, IV.
Também, entendemos que o poder constituinte originário não poderia ampliar as hipóteses de pena de morte
(nem mesmo uma nova Constituição) tendo em vista o princípio da continuidade e proibição ao retrocesso.
Isso quer dizer que os direitos fundamentais conquistados não podem retroceder.
Afastamo-nos, portanto, da ideia de onipotência do poder constituinte.
Canotilho observa que o poder constituinte “... é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta
espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida,
considerados como ‘vontade do povo’”. Fala, ainda, na necessidade de observância dos princípios de Justiça
(suprapositivos e supralegais) e, também, dos princípios de direito internacional (princípio da independência,
princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos — neste último caso de vinculação
jurídica, chegando a doutrina a propor uma juridicização e evolução do poder constituinte).24
Toda essa argumentação reforça-se a partir da assinatura de diversos documentos internacionais, destacando-
se:
■ Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal” (art. III);
■ Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966): “o direito à vida é inerente à pessoa
humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”
(parte III, art. 6.º);25
■ Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos com vistas à
Abolição da Pena de Morte (1989): “nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado-Parte no presente
Protocolo será executado. Os Estados-Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte
no âmbito da sua jurisdição” (art. 1.º, 1 e 2).26
Quanto ao segundo desdobramento, ou seja, o direito a uma vida digna, a Constituição garante as
necessidades vitais básicas do ser humano e proíbe qualquer tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter
perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc.
A análise do direito à vida e seus desdobramentos enaltece aquilo que tem sido denominado pela doutrina
“desacordo moral razoável” e que tem levado a amplas discussões (cf. item 3.7.5).
Isso porque há inexistência de consenso em relação a temas polêmicos e com entendimentos antagônicos e
diametralmente opostos e que se fundam em conclusão racional, por exemplo, a interrupção da gravidez. Assumir
uma das posições significa negar a outra, e essa realidade é marca de uma sociedade plural, característica das
democracias modernas (posições religiosas, morais, filosóficas etc.).
De todo modo, destacamos, a seguir, alguns temas importantes:
■ células-tronco embrionárias (ADI 3.510);
■ interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo (ADPF 54);
■ interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre (HC 124.306);
■ distanásia, eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia.
■ 14.10.1.2. Células-tronco embrionárias
O STF definiu o conceito de vida no julgamento da ADI 3.510 que tratava da análise do art. 5.º da Lei n.
11.105/2005 (Lei de Biossegurança).
Em 20.04.2007 foi realizada a primeira audiência pública à luz da Lei n. 9.868/99, objetivando pluralizar o
debate e dar maior legitimidade à decisão.27
Os argumentos do PGR eram no sentido de que a Lei de Biossegurança violava o direito à vida e a dignidade
da pessoa humana, sendo que a vida humana começa a partir da fecundação.
Desde o ajuizamento da ADI (03.05.2005) até a solução final (29.05.2008) foram mais de 3 anos, e o STF
concluiu, por votação bastante apertada, 6 x 5, que as pesquisas com célula-tronco embrionária, nos termos da lei,
não violam o direito à vida.
Os Ministros vencidos propunham a observância de outras condicionantes além daquelas do art. 5.º da Lei,
ingerência que chegou a ser considerada indevida, sob pena de se violar o princípio da separação de “poderes”.
O Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, entendeu tratar-se de um “bem concatenado bloco normativo” fixado
pela lei, destacando-se o procedimento: a) para fins de pesquisa e terapia; b) somente em relação às células-tronco
embrionárias; c) apenas aquelas fertilizadas in vitro; d) embriões inviáveis ou congelados há pelo menos 3 anos;
e) consentimento dos genitores; f) controle por comitê de ética em pesquisa; g) proibição da comercialização.
Além disso, segundo interpretação do Relator, o texto,ao tratar de “dignidade da pessoa humana” (art. 1.º, III),
“direitos da pessoa humana” (art. 34, VII, “b”), “livre exercício dos direitos... individuais” (art. 85, III), “direitos e
garantias individuais” (art. 60, § 4.º, IV), estaria se referindo a direitos do indivíduo-pessoa, já nascido (cf. Inf.
508/STF).
Nesse ponto, deixamos, com o máximo respeito, a nossa crítica, pois não nos parece tenha o texto se omitido
de destinar esses direitos e garantias ao nascituro, que, segundo o Relator, de fato, tem proteção legal, por
exemplo, no art. 2.º do CC; no art. 9.º, § 7.º, da Lei de Transplantes (Lei n. 9.434/97); nos arts. 124-126 do CP
(aborto).
Segundo o Relator, o zigoto seria o embrião em estágio inicial, pois ainda destituído de cérebro. A vida
humana começaria com o surgimento do cérebro, que, por sua vez, só apareceria depois de introduzido o embrião
no útero da mulher. Assim, antes da introdução no útero não se teria cérebro e, portanto, sem cérebro, não haveria
vida.
A constatação de que a vida começa com a existência do cérebro (segundo o STF e sem apresentar qualquer
análise axiológica ou filosófica) estaria estabelecida, também, no art. 3.º da Lei de Transplantes, que prevê a
possibilidade de retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento
depois da morte desde que se constate a morte encefálica. Logo, para a lei, o fim da vida dar-se-ia com a morte
cerebral, e, novamente, sem cérebro, não haveria vida. Portanto, nessa linha, o conceito de vida estaria ligado
(segundo o STF) ao surgimento do cérebro.
Outro argumento utilizado foi a ideia de dignidade da pessoa humana e paternidade responsável,
lembrando o art. 226, § 7.º.
De fato, o Estado não pode, constitucionalmente, restringir a quantidade de filhos por casal. A Constituição,
contudo, determina o dever de orientação em relação ao planejamento familiar.
Nesse sentido, o item 7.3 do Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
(Conferência do Cairo, realizada entre 5 e 13.09.1994), apesar da forte resistência de setores conservadores traz
as seguintes disposições sobre os direitos de reprodução e saúde reprodutiva: “os direitos de reprodução abrangem
certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos
e em outros documentos de acordos. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de
todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus
filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde
sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação,
coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos. No exercício desse direito,
devem levar em consideração as necessidades de seus filhos atuais e futuros e suas responsabilidades para com a
comunidade. A promoção do exercício responsável desses direitos por todo indivíduo deve ser a base fundamental
de políticas e programas de governos e da comunidade na área da saúde reprodutiva, inclusive o planejamento
familiar...”.
Dessa forma, afirmou o Ministro Relator da ADI 3.510, se não se define o número de filhos, feita a fertilização
in vitro, o casal pode optar pela quantidade de embriões a serem introduzidos no útero. Se eventualmente não
quiserem introduzir todos, os embriões poderão ser congelados.
E se o casal não tiver como congelar (até porque isso gera custo)? Respondeu outro Ministro, indagando: serão
os embriões jogados como lixo hospitalar? Então, que se admita a pesquisa, dentro dos critérios éticos fixados na
lei e consagrando a ideia de uma sociedade fraterna (preâmbulo e art. 3.º, I, além da ideia de direitos de 3.a
dimensão), objetivando a cura das pessoas com doenças degenerativas (e nos parece, nesse ponto, bastante
acertada a decisão).
Outros argumentos poderiam ser mencionados, como o direito à saúde (arts. 196-200) e o incentivo ao
desenvolvimento e à pesquisa científica (arts. 218-219).
■ 14.10.1.3. Interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo
Desconsiderando os aspectos moral, ético ou religioso, tecnicamente, em relação à interrupção da gravidez
de feto anencéfalo,28 desde que se comprove, por laudos médicos, com 100% de certeza, que o feto não tem
cérebro e não há perspectiva de sobrevida (situação não imaginada na década de 1940 — quando o Código Penal
foi elaborado — e, atualmente, totalmente viável em razão da evolução tecnológica), nessa linha de
desenvolvimento, o STF, para seguir a lógica do julgamento anterior (célula-tronco), teria de autorizar a
possibilidade de antecipação terapêutica do parto.
Esse tema, como todos sabem, foi enfrentado pela Corte no julgamento da ADPF 54, ajuizada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde — CNTS.
Conforme anotou o Min. Marco Aurélio em seu voto, “não se coaduna com o princípio da
proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não
tem sequer expectativa de vida extrauterina, aniquilando, em contrapartida, os direitos da mulher, impingindo-
lhe sacrifício desarrazoado. A imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será
irremediavelmente a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais
precisamente à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de
privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. O ato de
obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo,
desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício
que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido”.
Dessa forma, em 12.04.2012, por maioria de votos, o Plenário do STF, enaltecendo o direito à dignidade da
pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral
e à saúde (arts. 1.º, III; 5.º, caput e incisos II, III e X; e 6.º, caput, da CF/88), julgou procedente o pedido
formulado para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto
anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, I e II, todos do Código Penal (cf. Inf. 661/STF).
A partir dessa decisão proferida em sede de ADPF, portanto com efeitos erga omnes e vinculante, o Conselho
Federal de Medicina editou a Res. n. 1.989/2012, dispondo sobre o diagnóstico de anencefalia para a
antecipação terapêutica do parto, considerando este o pressuposto fático fundamental para a realização do
procedimento.
De acordo com o art. 2.º da referida resolução, o diagnóstico de anencefalia será feito por exame
ultrassonográfico realizado a partir da 12.ª semana de gestação e deve conter: I — duas fotografias,
identificadas e datadas: uma com a face do feto em posição sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico
no corte transversal, demonstrando a ausência da calota craniana e de parênquima cerebral identificável; II —
laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal diagnóstico.
Concluído o diagnóstico de anencefalia, o médico deve prestar à gestante todos os esclarecimentos que lhe
forem solicitados, garantindo a ela o direito de decidir livremente sobre a conduta a ser adotada, sem impor
sua autoridade para induzi-la a tomar qualquer decisão ou para limitá-la naquilo que decidir. Se a opção for pela
interrupção, a realização do procedimento independerá de autorização do Estado.
■ 14.10.1.4. Interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre (STF, 1.ª T., HC 124.306)
Conforme já destacamos, o direito à vida não é absoluto, seja pelo próprio comando constitucional que
admite a pena de morte no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX (art. 5.º, XLVII, “a”), seja em
razão de interpretaçõesjá fixadas pela Corte no julgamento da ADPF 54 (interrupção da gravidez de feto com
anencefalia) e da ADI 3.510 (pesquisa com células-tronco embrionárias).
Nesse sentido, a legislação infraconstitucional, que nesse ponto nunca foi questionada, prescreveu duas
hipóteses em que o aborto não foi considerado crime, estabelecendo, portanto, causas especiais de exclusão de
ilicitude (aborto legal):
■ aborto necessário ou terapêutico (art. 128, I): não se pune o aborto praticado por médico se não há
outro meio de salvar a vida da gestante;
■ aborto sentimental ou humanitário (art. 128, II): não se pune o aborto praticado por médico se a
gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
O Código Penal, ao tratar da tipificação do crime de aborto, não fez nenhuma distinção em relação ao
momento da gestação para a caracterização do delito, exigindo apenas a constatação da gravidez (havendo,
inclusive, amplo debate em relação à definição do seu início) e a sua interrupção, nas hipóteses descritas nos arts.
124 a 127 do CP.
Essa questão, depois de quase 80 anos, veio a ser apreciada pela 1.ª Turma do STF, que, por 4 x 1, conferiu
interpretação conforme à Constituição aos arts. 124 a 126 do Código Penal para excluir do seu âmbito de
incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. Os Ministros entenderam
que a criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da
proporcionalidade, nos temos do voto do Min. Barroso (HC 124.306, j. 29.11.2016, DJE de 17.03.2017).
Em relação aos direitos fundamentais, a 1.ª Turma do STF, por maioria, entendeu ser a criminalização
incompatível com:
■ direitos sexuais e reprodutivos da mulher: “que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma
gestação indesejada”;
■ autonomia da mulher: “que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais”;
■ integridade física e psíquica da gestante: “que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os
efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena
de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.
No tocante ao princípio da proporcionalidade, Sua Excelência estabeleceu os seguintes argumentos em
relação à tipificação penal:
■ medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do
nascituro): “por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas
impedindo que sejam feitos de modo seguro”;
■ meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização para que o Estado evite a ocorrência
dos abortos: no caso o Min. Barroso destaca a educação sexual, a distribuição de contraceptivos e o amparo
à mulher que deseja ter o filho mas se encontra em condições adversas;
■ desproporcionalidade em sentido estrito da medida: “por gerar custos sociais (problemas de saúde
pública e mortes) superiores aos seus benefícios”.
Por sua vez, a Min. Rosa Weber, em seu substancioso voto, observou que, “no contexto atual normativo, a
questão do aborto deve avançar na agenda interpretativa para colocar em pauta não apenas o direito à privacidade
da mulher ou a perspectiva de saúde da mulher, por fatores médicos, mas colocar o aborto como uma questão do
direito da mulher, na acepção reprodutiva e sexual, e do direito de liberdade, autonomia e igualdade, por
conseguinte, de escolha, em face do direito à tutela do nascituro” (HC 124.306, fls. 39 do acórdão).
Outro ponto destacado no voto do Ministro Barroso foi “o impacto da criminalização sobre as mulheres
pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm
acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos
procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos”.
Conforme levantamento feito pelo Min. Barroso, “praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do
mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos,
Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália”.
Em relação à experiência da jurisprudência comparada, vale a pena destacar o julgamento proferido pela
Suprema Corte dos Estados Unidos em Roe vs. Wade, tendo a decisão afetado a normatização de 46 Estados
daquele país.
Tratava-se da legislação do Estado do Texas, que permitia o aborto apenas para salvar a vida da mulher
gestante. Contudo, por 7 x 2, seguindo o voto proferido pelo Justice Blackmun, a Corte admitiu a possibilidade de
interrupção da gravidez até o primeiro trimestre, tendo por fundamento o direito à privacidade da mulher e a
interpretação dada à 14.ª emenda, assegurando-lhe a decisão sobre a continuidade ou não da gestação, tal como
reconhecido no caso Griswold vs. Connecticut.29
Mas um alerta deve ser feito, como bem estabeleceu o Min. Barroso em premissa de seu raciocínio: “o aborto
é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso
mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição
de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas.
Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa
da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que ser pretende é que ele seja raro e seguro” (HC 124.306,
fls. 13 do acórdão).
Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma que a interrupção voluntária da gravidez não deve ser tratada como
método anticoncepcional, devendo ser criados “mecanismos extrapenais para evitar a sua banalização (...)
relacionados à educação sexual, ao planejamento familiar e ao fortalecimento da rede de proteção social voltada
para a mulher”.30
Diante do exposto, um esclarecimento final, a partir da seguinte indagação: a interrupção voluntária da
gestação no primeiro trimestre deixou de ser considerada crime no direito brasileiro?
Não!
Estamos diante de questão incidental decidida pela 1.ª Turma do STF como fundamento para a concessão de
habeas corpus de ofício para o afastamento de prisão preventiva e, portanto, sem caráter vinculante (não tendo
havido, inclusive, a determinação de trancamento da ação penal por atipicidade).
O afastamento da caracterização do crime nas hipóteses definidas em referido julgado (primeiro trimestre da
gestação) depende de apreciação em ADPF pelo Pleno do STF ou a partir de alteração normativa pelo Congresso
Nacional a introduzir, se for o caso e houver vontade política, mais uma hipótese de aborto legal (pendente). O
tema, contudo, se mostra extremamente polêmico e delicado.
■ 14.10.1.5. Distanásia, eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia
Dentro da ideia de vida digna e do direito de viver com dignidade, surge a problemática do direito de dispor
sobre a própria vida e de “morrer com dignidade” (tema, inclusive, que está sendo discutido no Projeto de
Novo Código Penal — pendente), remetendo à análise dos seguintes institutos: distanásia, eutanásia, suicídio
assistido e ortotanásia. Vejamos:
■ distanásia: também conhecida como “obstinação terapêutica” (l’acharnement thérapeutique — Jean
Robert Debray), enseja uma morte lenta e com intenso sofrimento.
Isso se deve ao impressionante avanço tecnológico da medicina, que permite o excessivo prolongamento da
morte (e do sofrimento) em detrimento da vida digna, especialmente nos casos de pacientes terminais.
Conforme afirmou Debora Diniz, a obstinação terapêutica se caracteriza por um excesso de medidas “que
impõem sofrimento e dor à pessoa doente, cujas ações médicas não são capazes de modificar o quadro
mórbido”.31
Leo Pessini, por sua vez, observa que o termo distanásia “também pode ser empregado como sinônimo de
tratamento inútil.Trata-se da atitude médica que, visando salvar a vida do paciente terminal, submete-o a grande
sofrimento. Nesta conduta não se prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer. No mundo
europeu fala-se de ‘obstinação terapêutica’, nos Estados Unidos de ‘futilidade médica’ (medical futility). Em
termos mais populares a questão seria colocada da seguinte forma: até que ponto se deve prolongar o processo do
morrer quando não há mais esperança de reverter o quadro? Manter a pessoa ‘morta-viva’ interessa a quem?”.32
Destacamos, ainda, a exposição de motivos da Res. n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (que
permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase
terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal), no
ponto em que realça a definição do termo obstinação terapêutica trazida por Jean Robert Debray em seu livro
L’acharnement thérapeutique: “‘Comportamento médico que consiste em utilizar procedimentos terapêuticos
cujos efeitos são mais nocivos do que o próprio mal a ser curado. Inúteis, pois a cura é impossível e os
benefícios esperados são menores que os inconvenientes provocados’. Essa batalha fútil, travada em nome do
caráter sagrado da vida, parece negar a própria vida humana naquilo que ela tem de mais essencial: a dignidade”.
■ eutanásia: por alguns chamada de “morte serena”, “morte doce”, “boa morte”, consiste em abreviar a
vida de doente incurável e terminal, procurando diminuir a sua dor ou sofrimento.
Conforme explicam Barroso e Martel, a eutanásia pode ser definida como a “ação médica intencional de
apressar ou provocar a morte — com exclusiva finalidade benevolente — de pessoa que se encontre em situação
considerada irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos
físicos e psíquicos”.33
Os autores ainda estabelecem três espécies do instituto: a) eutanásia voluntária: “quando há expresso e
informado consentimento”; b) eutanásia não voluntária: “quando se realiza sem o conhecimento da vontade do
paciente”, por exemplo, no caso de pacientes incapazes; c) eutanásia involuntária: “quando é realizada contra a
vontade do paciente. No que toca à eutanásia involuntária, há um relevante e adequado consenso jurídico quanto
ao seu caráter criminoso”.34
Atualmente, não tendo ainda o STF apreciado a matéria, a eutanásia enseja a prática do crime previsto no art.
121, § 1.º, CP, qual seja, homicídio privilegiado, já que praticado por motivo de relevante valor moral e, por
esse motivo, a prescrição normativa da causa de diminuição de pena. Alguns autores o denominam “homicídio
por piedade”.
Nesse sentido, o item 39 da Exposição de Motivos do Código Penal estabelece que, “por ‘motivo de relevante
valor social ou moral’, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática,
como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico)”.
Não se pode confundir o conceito acima definido de eutanásia, por alguns denominado eutanásia ativa (ou em
sentido estrito), “consistente na ação deliberada de matar, por exemplo, ministrando algum medicamento, ou
mediante a supressão de um tratamento já iniciado”, com a eutanásia passiva, essa consistente na “omissão de
algum tratamento que poderia assegurar a continuidade da vida, caso ministrado”.35
■ suicídio assistido: nesse caso, a pessoa em estágio terminal é assistida para implementação da morte,
praticando ela mesma todos os atos que levarão à sua morte.
Debora Diniz observa que em muitos casos a pessoa que quer pôr termo ao sofrimento não tem condições de
se suicidar em razão de sua debilidade. Assim, “foram desenvolvidos mecanismos para garantir que apertando um
botão de uma máquina, por exemplo, seja acionado um dispositivo para injetar o medicamento”, no caso, letal.36
■ ortotanásia: “trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários
e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia.
É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso. É prática ‘sensível ao processo de
humanização da morte, ao alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos com aplicação de
meios desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionais’”.37
Dentro dessa perspectiva, apesar das divergências de nomenclatura na doutrina, parece possível fazer a
seguinte distinção: a) eutanásia ativa indireta: os mecanismos de sustentação artificial da vida são retirados,
como, por exemplo, o desligamento de aparelhos; b) eutanásia passiva: não se inicia uma ação médica. A morte,
nesses casos, virá naturalmente, diante da omissão.
Conforme anotam Canotilho e Vital Moreira, “jurídico-constitucionalmente, não existe o direito à eutanásia
ativa, concebido como direito de exigir de um terceiro a provocação da morte para atenuar sofrimentos (‘morte
doce’), pois o respeito pela vida alheia não pode isentar os “homicidas por piedade” (cfr., porém, as
especificidades do crime de ‘homicídio a pedido da vítima’ tipificado no art. 134 do CP). Relativamente à
ortotanásia (‘eutanásia ativa indireta’) e eutanásia passiva — o direito de se opor ao prolongamento artificial
da própria vida — em caso de doença incurável (‘testamento biológico’, ‘direito de viver a morte’), podem-se
justificar regras especiais quanto à organização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal
(‘direito de morte com dignidade’), mas não se confere aos médicos ou pessoal de saúde qualquer direito de
abstenção de cuidados em relação aos pacientes...”.38
O tema se mostra bastante polêmico e está em discussão. A ideia de bom senso, prudência e razoabilidade
deve ser considerada, deixando claro não haver, ao menos explicitamente, qualquer vedação constitucional ao dito
“direito de morrer com dignidade” (Sarlet).
Finalmente, conforme já sinalizamos, deve ser destacada a Res. n. 1.805/2006 do Conselho Federal de
Medicina, que permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do
doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu
representante legal, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento.
Apesar de todas essas perspectivas, entendemos que a decisão individual terá de ser respeitada. A fé e a
esperança não podem ser menosprezadas e, portanto, a frieza da definição não conseguirá explicar e convencer os
milagres da vida. A Constituição garante, ao menos, apesar de ser o Estado laico, o amparo ao sentimento de
esperança e fé que, muitas vezes, dá sentido a algumas situações incompreensíveis da vida.
■ 14.10.2. Princípio da igualdade (art. 5.º, caput, I)
■ 14.10.2.1. Aspectos gerais
O art. 5.º, caput, consagra serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico),
mas, principalmente, a igualdade material.
Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real
perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada em face da lei.
Essa busca por uma igualdade substancial, muitas vezes idealista, reconheça-se, eterniza-se na sempre
lembrada, com emoção, Oração aos Moços, de Rui Barbosa, inspirada na lição secular de Aristóteles, devendo-se
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Em diversas hipóteses a própria Constituição se encarrega de aprofundar a regra da isonomia material: a) art.
3.º, I, III e IV; b) art. 4.º, VIII; c) art. 5.º, I, XXXVII, XLI e XLII; d) art. 7.º, XX, XXX,39 XXXI, XXXII e
XXXIV; e) art. 12, §§ 2.º e 3.º; f) art. 14, caput; g) art. 19, III; h) art. 23, II e X; i) art. 24, XIV; j) art. 37, I e VIII;
k) art. 43, caput; l) art. 146, III, “d” (EC n. 42/2003 — ReformaTributária); m) art. 150, II; n) art. 183, § 1.º, e
art. 189, parágrafo único; o) art. 203, IV e V; p) art. 206, I; q) art. 208, III; r) art. 226, § 5.º; s) art. 231, § 2.º etc.
Em outras, é o próprio constituinte quem estabelece as desigualdades, por exemplo, em relação à igualdade
entre homens e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição, destacando-se as seguintes
diferenciações: a) art. 5.º, L (condições às presidiárias para que possam permanecer com os seus filhos durante o
período de amamentação); b) art. 7.º, XVIII e XIX (licença-maternidade e licença-paternidade); c) art. 143, §§
1.º e 2.º (serviço militar obrigatório); d) art. 40, III, e art. 201, § 7.º, I e II (regras sobre aposentadoria — EC n.
103/2019).
Além dessas e de outras hipóteses expressamente previstas na CF/88, a grande dificuldade consiste em saber
até que ponto a desigualdade não gera inconstitucionalidade.
Celso Antônio Bandeira de Mello parece ter encontrado parâmetros sólidos e coerentes em sua clássica
monografia sobre o tema do princípio da igualdade, na qual fala em três questões a serem observadas, a fim de
se verificar o respeito ou desrespeito ao aludido princípio. O desrespeito a qualquer delas leva à inexorável ofensa
à isonomia. Resta, então, enumerá-las: “a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a
segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a
disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação
lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados”.40
■ 14.10.2.2. “Separate but equal” e “Treatment as an equal” (Brown v. Board of Education)
Destacamos, antes das ações afirmativas, a perspectiva do separate but equal, que vigorou durante muito
tempo nos Estados Unidos e consistia na separação (separate) de brancos e negros, porém, assegurando uma
prestação de serviços idêntica (equal). Assim, por exemplo, existiam escolas para negros e escolas para brancos,
mas, embora separados, a qualidade de ensino deveria ser igual. O mesmo acontecia em relação ao transporte, ou
seja, vagões para brancos e vagões para negros. Como a qualidade dos serviços era a mesma, não se vislumbrava
violação à isonomia, muito embora a segregação.
Esse entendimento foi estabelecido pela Suprema Corte dos Estados Unidos no precedente Plessy v. Ferguson,
163 U.S. 537, em 18.05.1896. O Estado da Louisiana (Estados Unidos) promulgou uma lei que exigia vagões de
trens separados para negros e brancos. Em 1892, Homer Adolph Plessy — que na descrição do julgado foi
“definido” como sendo 7/8 caucasiano, aqui no sentido de “raça branca”, e 1/8 de “raça negra” — sentou-se em
um vagão apenas para “brancos” em um trem da Louisiana. Houve pedido para se mudar para o vagão destinado
aos “negros”. Diante de sua recusa, ele foi preso e retirado do trem.
Por 7 x 1, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que essa segregação imposta pela lei nos Estados do
Sul não violava a 14.ª Emenda à Constituição americana, por não significar inferioridade dos afro-americanos,
tratando-se de questão meramente política.
Em momento seguinte, sob forte influência do Chief Justice Earl Warren, nomeado por Eisenhower, a
Suprema Corte dos Estados Unidos, por 9 x 0, no famoso caso Brown v. Board of Education (347 U.S. 483, 1954)
proferiu decisão histórica, verdadeiro marco no movimento de direitos civis, declarando ser inconstitucional a
segregação racial entre estudantes brancos e negros nas escolas públicas do país por violar a cláusula de proteção
de iguais prevista na 14.ª emenda, revertendo, assim, o citado entendimento que até então vigorava desde 1896
(Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537).
Houve muita resistência para o cumprimento da decisão, assim como a alegação de que esta não teria
disciplinado o modo de sua execução, o que ensejou a necessidade de uma nova explicitação pela Corte (caso
Brown II), pela qual se ordenou a implementação da proibição de segregação da forma mais rápida possível.
Como essa decisão ensejou forte reação contrária e resistência (o fenômeno do backlash — cf. item 1.7), podemos
dizer que a Corte exerceu, na sistematização proposta por Luís Roberto Barroso,41 um sugerido papel iluminista
(cf. item 1.6.4 deste nosso estudo).
Essa nova perspectiva do treatment as an equal estimulou a implementação das ações afirmativas para afastar
o sentimento de discriminação que vigorou por muitos anos. Atualmente, contudo, as próprias ações afirmativas
estão sendo revistas, no sentido de que a igualdade já está assegurada de modo substancial, não havendo mais
necessidade de interferência do Estado.
■ 14.10.2.3. Ações afirmativas — três importantes precedentes da Suprema Corte
Esses critérios podem servir de parâmetros para a aplicação das denominadas discriminações positivas, ou
affirmative actions,42 tendo em vista que, segundo David Araujo e Nunes Júnior, “... o constituinte tratou de
proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma
realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de
estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades
com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições”.43
Passamos a destacar importantes precedentes estabelecidos pelo STF.
A) COTAS RACIAIS
Em primeiro lugar, lembramos, em 26.04.2012, o julgamento das cotas raciais, notadamente a discussão
travada na ADPF 186, que considerou constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes
da Universidade de Brasília (UnB) (para um outro precedente, cf. julgamento do RE 597.285 que discute o
sistema de cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Conforme ponderou o Min. Lewandowski, relator do caso, “as experiências submetidas ao crivo desta
Suprema Corte têm como propósito a correção de desigualdades sociais, historicamente determinadas, bem como
a promoção da diversidade cultural na comunidade acadêmica e científica. No caso da Universidade de Brasília, a
reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros e de ‘um pequeno número’ delas para ‘índios de todos os
Estados brasileiros’, pelo prazo de 10 anos, constitui providência adequada e proporcional ao atingimento dos
mencionados desideratos. Dito de outro modo, a política de ação afirmativa adotada pela UnB não se mostra
desproporcional ou irrazoável, afigurando-se, também sob esse ângulo, compatível com os valores e princípios da
Constituição” (fls. 46-47 de seu voto).
Ainda, o STF declarou o reconhecimento da proclamação na Constituição da igualdade material, sendo que,
para assegurá-la, “o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista — a abranger número
indeterminado de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir
grupos sociais determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a
suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção
de políticas que levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integraria o
cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de concepção estratificada da igualdade, outrora definida
apenas como direito, sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade” (Inf. 663/STF).
A partir desse julgamento, devemos destacar, em momento seguinte, a aprovação da Lei n. 12.990/2014 que
reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e
empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das
empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, pelo prazo de 10 anos (art.
6.º).
Cabe lembrar que, em 08.06.2017, o STF, por unanimidade, julgou procedenteo pedido formulado na ADC 41
para declarar a integral constitucionalidade da referida Lei n. 12.990/2014, fixando a seguinte tese de julgamento:
“é constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos
efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além
da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da
pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
Na medida em que a legislação é explícita ao estabelecer a reserva de vagas apenas no âmbito do Poder
Executivo Federal, muitos vêm discutindo a extensão dessas regras para o âmbito dos demais entes federativos e,
ainda, para os concursos realizados no Judiciário e no Legislativo.
Procurando minimizar essa polêmica, em 18.03.2015, levando em consideração a decisão firmada na ADPF
186, bem como a Lei n. 12.990/2014 e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010), o presidente do
STF e do CNJ, Min. Lewandowski, assinou atos normativos instituindo a reserva de vagas dentro do limite fixado
na citada Lei n. 12.990/2014, qual seja, 10 anos a partir de sua publicação, para os concursos de provimento de
cargos efetivos nos âmbitos do STF (Res. n. 548/2015) e do CNJ (IN n. 63/2015).
Durante a solenidade, o Min. Lewandowski afirmou que em breve o CNJ analisaria a implantação das regras
para os concursos públicos de todo o Judiciário brasileiro. Conforme afirmou, “‘o que o Supremo Tribunal
Federal faz hoje é um primeiro passo, mas que em breve deverá ser estendido, por meio de decisão do
Conselho Nacional de Justiça, para toda a magistratura’, afirmou durante a cerimônia. O presidente do STF
destacou que segundo dados do último censo realizado pelo IBGE, em toda a magistratura brasileira figuram
apenas 1,4% de negros” (Notícias STF de 18.03.2015).
Em curto espaço de tempo, o CNJ editou a Res. n. 203/2015, dispondo sobre a reserva aos negros, no âmbito
do Poder Judiciário, de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de
ingresso na magistratura.
Nesse mesmo sentido, com certa demora, já que a lei data de 2014, o CNMP editou a Res. n. 170/2017,
também dispondo sobre a reserva aos negros do mínimo de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para
provimento de cargos do Conselho Nacional do Ministério Público e do Ministério Público brasileiro, bem como
de ingresso na carreira de membros dos órgãos enumerados no art. 128, incisos I e II, da Constituição Federal.
B) PROUNI
Em segundo lugar, dentro dessa ideia de política de cotas e diante de toda a problemática gerada por outras
iniciativas, o Governo Federal, através da MP n. 213, de 10.09.2004, instituiu o PROUNI — Programa
Universidade para Todos, que foi regulamentado pelo Decreto n. 5.493/2005. A Medida Provisória n. 213 foi
objeto das ADIs 3.314 e 3.379, apensadas à ADI 3.330, e, posteriormente, convertida na Lei n. 11.096/2005.
O art. 1.º da Lei, ao instituir o PROUNI, dispõe tratar-se de programa destinado à concessão de bolsas de
estudo integrais e parciais de 50% ou de 25% para estudantes de cursos de graduação e sequenciais de formação
específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos.
O art. 2.º destina a bolsa para: a) estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede
pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; b) estudante portador de deficiência, nos
termos da lei; c) professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia,
destinados à formação do magistério da educação básica, independentemente da renda a que se referem os §§ 1.º e
2.º do art. 1.º desta Lei.
Por maioria de votos, o STF, em 03.05.2012, julgou constitucional o PROUNI, como importante fator de
inserção social e cumprimento do art. 205 da CF/88, que estatui ser a educação direito de todos e dever do Estado
e da família.
Ainda, o programa encontra-se em sintonia com diversos dispositivos da Constituição que estabelecem a
redução de desigualdades sociais.
Não se poderia sustentar violação ao princípio da autonomia universitária, previsto no art. 207 da CF/88, na
medida em que a adesão ao programa é facultativa (art. 5.º, caput, da Lei n. 11.096/2005).
Também, não se acatou a argumentação de violação ao princípio da livre-iniciativa (art. 170, parágrafo único),
tendo em vista “a ociosidade de vagas nas instituições de ensino superior, a favorecer a manutenção de suas
atividades, frente aos benefícios tributários de que passariam a usufruir” (Inf. 664/STF).
No mais, a isonomia substancial mostra-se fortalecida, uma vez que o programa permite o cumprimento da
regra contida no art. 206, I: princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
C) LEI MARIA DA PENHA
Finalmente, destacamos decisão do STF pela qual se adotaram interpretações mais protetivas às mulheres em
relação a dispositivos da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), em nítida ação afirmativa com o objetivo
de intimidar a prática de violência doméstica.
O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, em 09.02.2012, julgou procedente a ADC 19,
para declarar a constitucionalidade dos arts. 1.º, 33 e 41 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), tendo por
fundamento o princípio da igualdade, bem como o combate ao desprezo às famílias, sendo considerada a
mulher a sua célula básica.
Na mesma assentada, por maioria e nos termos do voto do Relator, o STF julgou procedente a ADI 4.424,
para, dando interpretação conforme os arts. 12, I, e 16, ambos da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha),
declarar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão
desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico (cf. item 19.9.5).
■ 14.10.2.4. Ações afirmativas — indicação de Ministros para o STF
Temos, ainda, 2 exemplos de ações afirmativas, quais sejam, a indicação de uma mulher e de um negro para
o STF, isso depois de mais de 200 anos e 289 Ministros nomeados (quantidade até o fechamento desta edição),
considerando que o STF tem a sua origem histórica no início do século XIX (Casa da Suplicação do Brasil —
ainda na fase colonial, em 10.05.1808, e Supremo Tribunal de Justiça, em 09.01.1829 — vide item 11.8.1).
Como se sabe, Ellen Gracie Northfleet foi a primeira mulher a integrar o STF, tendo tomado posse em
14.12.2000. Conforme asseverou o Ministro Celso de Mello, “o ato de escolha da Ministra Ellen Gracie para o
Supremo Tribunal Federal — além de expressar a celebração de um novo tempo — teve o significado de
verdadeiro rito de passagem, pois inaugurou, de modo positivo, na história judiciária do Brasil, uma clara e
irreversível transição para um modelo social que repudia a discriminação de gênero, ao mesmo tempo em que
consagra a prática afirmativa e republicana da igualdade”.44
Em relação à indicação de um Ministro negro, conforme noticiado pelo STF, “o presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva, pretende indicar um ministro negro para uma das próximas vagas que abrirão para o
Supremo Tribunal Federal. A informação foi dada na manhã de hoje (7/4/03) pela secretária Especial de Políticas
e Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco
Aurélio, com quem esteve em audiência. A secretária disse que conversou com Marco Aurélio sobre ações
afirmativas, e declarou, após o encontro: ‘Estamos vivendo um período bastante positivo em que este governo
está, de fato, sendo propositivo e indicando pessoas que não tiveram acesso ao poder, considerando que o nosso
país é bastante discriminatório e racista’. A secretária afirmou também que o debate desse tema ‘deve ser
aprofundado’”.45
Essa pretensão do Presidente Lula, como todos sabem, foi confirmada pela indicação do Ministro Joaquim
Barbosa, que, juntamente com Cezar Peluso e Carlos Britto, tomou posse no STF em 25.06.2003.
■14.10.2.5. Congeneridade
Outro assunto causou muita polêmica, a qual foi vivenciada pelos amigos do Distrito Federal.
O art. 49 da Lei n. 9.394/96 (que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional) prescreve que as
instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de
existência de vagas e mediante processo seletivo.
O parágrafo único do aludido dispositivo, por seu turno, prescreve que as transferências ex officio dar-se-ão
na forma da lei.
A Lei n. 9.536/97 regulamenta o assunto. O seu art. 1.º prevê que a transferência ex officio será efetivada,
entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independentemente da
existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente
estudante, se requerida por motivo de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de
domicílio para o Município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta, não se
aplicando essa regra quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de
concurso público, cargo comissionado ou função de confiança.
Em virtude dessa regra e de Parecer AGU/RA 02/2004, o Conselho Universitário da Universidade de Brasília
(UnB) decidiu suspender o vestibular para o curso de Direito tamanha a quantidade de pedidos de
transferência, sobretudo de filhos de militares. A situação se agrava haja vista ser a Capital Federal, sem dúvida,
um grande centro de concentração do oficialato militar.
Diante de toda essa polêmica, foi proposta a ADI 3.324, pelo PGR, questionando a aludida sistemática,
especialmente a transferência de militares e dependentes estudantes em universidades particulares para públicas.
O Plenário do STF, por unanimidade, julgou procedente, em parte, a Ação Direta de Inconstitucionalidade,
acompanhando o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, “que decidiu dar ao artigo 1.º da Lei 9.536/1997
interpretação conforme à Constituição Federal, de modo a autorizar a transferência obrigatória desde que a
instituição de destino seja congênere à de origem, ou seja, de pública para pública ou de privada para privada” (j.
16.12.2004).
“O Ministro Gilmar Mendes, que também acompanhou o voto do relator, disse que ‘o critério da
congeneridade é estritamente proporcional ao caso porque garante o ingresso ex officio, como garante a
integridade da autonomia universitária, além de preservar minimamente o interesse daqueles que não são
servidores públicos civis ou militares ou seus dependentes, ou seja, a grande maioria da população brasileira’”
(Notícias STF, 16.12.2004 — 18h34).
Em relação ao servidor público federal civil, cabe destacar, no mesmo sentido do julgamento da ADI 3.324, o
art. 99 da Lei n. 8.112/90, que garante a “matrícula em instituição de ensino congênere”.46
A orientação firmada na ADI 3.324 tem sido aplicada em diversas decisões da Corte, sejam colegiadas ou
monocráticas, inclusive em reclamações constitucionais em razão do efeito vinculante da ação direta.47
Destacando voto do Min. Teori Zavascki na Rcl 11.920, o Min. Celso de Mello, no julgamento da Rcl 23.849,
explicitou o critério da congeneridade das instituições de ensino: “de instituição particular para instituição
particular ou, então, de instituição pública para instituição pública, sendo indiferente, neste último caso, que se
trate de instituição federal, estadual, distrital ou municipal”. Tratava-se de matrícula na Faculdade de Direito
da USP (de natureza pública estadual) de aluna oriunda da UNIRIO (de natureza pública federal), em razão de
manter união estável com integrante das Forças Armadas transferido ex officio do Rio de Janeiro para São Paulo,
em razão de interesse da Administração Pública (j. 16.06.2016).
Mas uma pergunta prática deve ser feita: e se na localidade de transferência do servidor público por
interesse da administração inexistir instituição de ensino congênere?
O STJ vinha admitindo uma exceção à referida regra da congeneridade (universidade pública para pública
ou privada para privada), qual seja, “se não houver curso correspondente em estabelecimento congênere no local
da nova residência ou em suas imediações, hipótese em que deve ser assegurada a matrícula em instituição
não congênere” (AgRg no REsp 1.161.861-RS, DJE de 04.02.2010, e AgRg no REsp 1.335.562-RS, Rel. Min.
Arnaldo Esteves Lima, j. 06.11.2012).
Essa particularidade (inexistência de curso correspondente em estabelecimento congênere no local da nova
residência ou em suas imediações) não foi apreciada pelo STF no julgamento da ADI 3.324 (precedente) e em
outros julgados sobre a matéria.
Em momento seguinte, contudo, a Corte, apreciando o tema 57 da repercussão geral, fixou a seguinte tese: “é
constitucional a previsão legal que assegure, na hipótese de transferência ex officio de servidor, a matrícula em
instituição pública, se inexistir instituição congênere à de origem” (RE 601.580, j. 19.09.2018), enaltecendo o
direito à educação.
■ 14.10.2.6. Foro da residência da mulher no revogado CPC/73. Novas regras trazidas pelo CPC/2015
(foro de domicílio do guardião de filho incapaz) e pela Lei n. 13.894/2019 (foro do domicílio da
vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei Maria da Penha)
O STF, em discutível decisão, analisando a regra contida no art. 100, I, do revogado CPC/73, que determinava
ser competente o foro da residência da mulher para a ação de separação dos cônjuges e a conversão desta em
divórcio, e para a anulação de casamento, entendeu não haver afronta ao princípio da igualdade entre homens e
mulheres (art. 5.º, I, CF/88), nem mesmo à isonomia entre os cônjuges (art. 226, § 5.º, da CF/88), declarando,
naquele momento, a sua recepção pela Constituição (RE 227.114, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22.11.2011, 2.ª
T., DJE de 16.02.2012).
O CPC/2015, por sua vez, modificando a regra do CPC/73, deixou de prever o foro privilegiado da residência
da mulher, passando a estabelecer, como premissa, a vulnerabilidade do guardião e do filho incapaz
(conjuntamente considerados).
Pela nova regra contida no art. 53, I, CPC/2015, para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e
reconhecimento ou dissolução de união estável, era competente o foro de domicílio do guardião de filho
incapaz. Caso não houvesse filho incapaz, o do último domicílio do casal. Se nenhuma das partes residisse no
antigo domicílio do casal, o do réu.
Em momento seguinte, a Lei n. 13.894/2019 alterou referida regra processual, passando a estabelecer a
competência do foro do domicílio da vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei n.
11.340/2006 (Lei Maria da Penha) (art. 53, I, “d”, do CPC/2015).
Conforme se observa, o legislador silenciou sobre a preferência de domicílio. Antes do advento da referida lei,
havia consenso em se afirmar que as alíneas “a” – “c” do art. 53, I, CPC/2015, estavam previstas em ordem
preferencial.
Com a nova regra, contudo, pensamos que a alínea “d” (foro de domicílio da vítima de violência doméstica e
familiar) passa a ter preferência sobre as demais, que incidirão somente se não observada a situação de vítima de
violência doméstica e familiar.
■ 14.10.2.7. Art. 384 da CLT: obrigatoriedade de intervalo de 15 minutos para as mulheres antes de
hora extra. Revogação expressa pela Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista)
Antes de sua revogação expressa pela Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), o tema da isonomia entre
homens e mulheres (art. 5.º, I) foi retomado na discussão sobre a recepção ou não do art. 384 da CLT, que,
tratando da proteção do trabalho da mulher, estabeleceu, para a hipótese de prorrogação do horário normal, a
obrigatoriedade de descanso de 15 minutos, no mínimo, antes do início do período extraordinário.
Analisando os artigos da Carta Magna, não há qualquer regra expressa sobre a hipótese tratada na CLT, que
destinava a proteção exclusivamente para a mulher.Encontramos apenas a previsão genérica do art. 7.º, XX, que
assegura a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei.
Essa garantia exclusiva da trabalhadora mulher, muito embora polêmica diante do princípio da isonomia,
desde 17.11.2008, já vinha sendo reconhecida pelo TST desde o julgamento de questão de ordem resolvida pelo
Pleno em recurso de revista (TST-IIN-RR-1.540/2005-046-12-00.5).
O STF, por maioria apertada (5 x 4), referendou esse entendimento, reconhecendo a recepção do art. 384 da
CLT no julgamento do RE 658.312 (j. 27.11.2014, DJE de 03.09.2015).
Para o Min. Dias Toffoli, Relator, dois foram os argumentos a ensejar o tratamento desigual entre os gêneros:
a) existência de componente orgânico e biológico a justificar a desigualação, inclusive diante de menor resistência
física da mulher; b) existência de componente social justificado pela dita dupla jornada da mulher, no lar e no
ambiente de trabalho.
Contra essa decisão foram interpostos embargos declaratórios, sustentando a nulidade do julgamento por
ausência de intimação dos defensores do embargante. O Pleno, em 05.08.2015, acolhendo o pedido, conferiu
efeito modificativo e anulou o acórdão, determinando a inclusão em pauta para novo julgamento.
Antes deste novo julgamento, contudo, a Reforma Trabalhista revogou expressamente o art. 384 da CLT
(art. 5.º da Lei n. 13.467/2017), deixando claro, portanto, não ser mais obrigatória a concessão desse intervalo
para a mulher.
Em edições anteriores, diante da nova posição que, felizmente, a mulher vem adquirindo na sociedade,
sustentávamos a revogação do dispositivo ou a sua ampliação, em igualdade, para os homens trabalhadores.
Superada essa questão em relação à distinção entre o homem e a mulher, um ponto final precisa ser colocado:
diante da revogação expressa do art. 384 da CLT, essa garantia, que era assegurada ao empregado menor de 18
anos, nos termos do art. 413, parágrafo único, da CLT, também deixou de ser obrigatória. Em nosso entender, o
legislador poderia ter sido mais cauteloso em relação a esse ponto específico, pois, pensamos, havia razoabilidade
em se assegurar essa garantia para o menor de 18 anos.
■ 14.10.3. Princípio da legalidade (art. 5.º, II)
O princípio da legalidade surgiu com o Estado de Direito, opondo-se a toda e qualquer forma de poder
autoritário, antidemocrático.
Esse princípio já estava previsto no art. 4.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No direito
brasileiro vem contemplado nos arts. 5.º, II; 37; e 84, IV, da CF/88.
O inciso II do art. 5.º estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei”. Mencionado princípio deve ser lido de forma diferente para o particular e para a administração.
Vejamos:
No âmbito das relações particulares, pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, vigorando o princípio da
autonomia da vontade, lembrando a possibilidade de ponderação desse valor com o da dignidade da pessoa
humana e, assim, a aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, conforme
estudado.
Já no que tange à administração, esta só poderá fazer o que a lei permitir. Deve andar nos “trilhos da lei”,
corroborando a máxima do direito inglês: rule of law, not of men. Trata-se do princípio da legalidade estrita,
que, por seu turno, não é absoluto! Existem algumas restrições, como as medidas provisórias, o estado de defesa
e o estado de sítio, já analisados por nós neste trabalho.
■ 14.10.4. Proibição da tortura (art. 5.º, III)
Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, sendo que a lei considerará
crime inafiançável a prática da tortura (art. 5.º, XLIII, CF/88). A Lei n. 9.455/97 integrou a referida norma
constitucional, definindo os crimes de tortura. Por sua vez, a Lei n. 12.847/2013, além de instituir o Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
■ 14.10.4.1. Algemas
Conforme jurisprudência do STF, “o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional,
a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso,
desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso
contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento
jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (HC 89.429, Rel. Min. Cármen Lúcia, j.
22.08.2006, DJ de 02.02.2007).
Nesse sentido, destacamos a SV 11/2008, com a seguinte redação: “só é lícito o uso de algemas em casos de
resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado”.
Referida súmula vinculante “prescrevendo” regras em relação ao uso de algemas foi aprovada pelo STF
quando ainda não havia normatização geral sobre a matéria pelo Congresso Nacional.
No momento de sua adoção, destacamos a existência do art. 199 da Lei n. 7.210/84 (LEP), ao estabelecer que
o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal, havendo, em termos normativos, a Lei n. 11.689, de
09.06.2008, que disciplina o seu uso apenas para as hipóteses do plenário do júri. Conforme se observa, a SV
11/STF foi aprovada em momento seguinte, qual seja, em 13.08.2008.
Com atraso de mais de 30 anos, atendendo ao comando da LEP, foi editado o Decreto n. 8.858/2016, que
disciplinou o uso de algemas, partindo das seguintes diretrizes:
■ dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/88);
■ proibição de submissão a tratamento desumano e degradante (art. 5.º, III, CF/88);
■ Regras de Bangkok (Resolução n. 2010/16, de 22.07.2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de
mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras);
■ Pacto de San José da Costa Rica (que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das
mulheres em condição de vulnerabilidade).
O art. 2.º do decreto copia as disposições da SV 11, sem contudo prescrever consequências em caso de seu
descumprimento.
Por sua vez, o art. 3.º do decreto veda o uso de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema
penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade
hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.
Sinceramente temos dúvidas, apesar do grande avanço trazido pelo decreto, se a disposição prevista no art. 199
da LEP, que delega ao decreto a regulamentação sobre o uso de algemas, foi recepcionada pela CF/88.
Em nosso entender, de acordo com o art. 22, I, haveria a necessidade de lei (nacional) em sentido formal para
tratar sobre o assunto e não de decreto do Executivo.
Nesse sentido, a Lei n. 13.434/2017, ao acrescentar o parágrafo único ao art. 292 do CPP, parece ter
substituído o art. 3.º do decreto. Confira: “é vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos
médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em
mulheres durante o período de puerpério imediato”.
Por todo o exposto, não restam dúvidas que a SV 11/STF continua válida e aplicável, em qualquer das
hipóteses em que se possa pensar:
■ o art. 199 da LEP foi recepcionado e, portanto, o decreto é válido: a SV 11 continua válida no ponto
em que estabelece consequências em caso de seu descumprimento, quais sejam: a) responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade; b) nulidade da prisão ou do ato processual a que se
refere; c) responsabilidade civil do Estado;
■ o art. 199 da LEP nãofoi recepcionado pela CF/88, pois haveria a necessidade de lei formal: nessa
hipótese, além da regra sobre o uso de algemas no júri (Lei n. 11.689/2008), há apenas a Lei n. 13.434/2017
tratando sobre um único assunto: regras em relação às mulheres grávidas. Assim, a SV 11/STF estaria com a
sua validade total, já que não teria sido derrogada pelo decreto presidencial.
Sobre o tema, vale lembrar que o art. 17 da Lei n. 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade) tinha a seguinte
redação: “Submeter o preso, internado ou apreendido ao uso de algemas ou de qualquer outro objeto que lhe
restrinja o movimento dos membros, quando manifestamente não houver resistência à prisão, internação ou
apreensão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, internado ou apreendido, da autoridade
ou de terceiro”.
Referido dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, com as seguintes razões: “A propositura
legislativa, ao tratar de forma genérica sobre a matéria, gera insegurança jurídica por encerrar tipo penal aberto e
que comporta interpretação. Ademais, há ofensa ao princípio da intervenção mínima, para o qual o Direito Penal
só deve ser aplicado quando estritamente necessário, além do fato de que o uso de algemas já se encontra
devidamente tratado pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos da Súmula Vinculante n. 11, que
estabelece parâmetros e a eventual responsabilização do agente público que o descumprir” (Mensagem n.
406/2019).
Analisando a redação da SV n. 11 e a do artigo vetado, observa-se um conteúdo muito próximo. Em nossa
opinião, não é papel do Poder Judiciário legislar. Nesse sentido, os motivos do veto quando afirmam que o tema já
está disciplinado não se sustentam, já que é o Parlamento o órgão que tem a função típica de normatizar.
■ 14.10.4.2. Lei da Anistia
Outro tema importante diz respeito à análise da recepção da chamada Lei da Anistia (Lei n. 6.683/79) pelo
novo ordenamento, levado ao STF pela OAB na ADPF 153, que pretendia fosse anulado o perdão dado aos
policiais e militares acusados de praticar atos de tortura, durante o regime militar, e que encontrava respaldo no
art. 1.º da referida lei, com a seguinte redação:
“É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02.09.61 e 15.08.79, cometeram
crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e
aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos
Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais,
punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.
O STF, por 7 x 2, entendeu como não admitida a revisão jurisdicional da Lei da Anistia, sustentando ter sido
“... uma decisão política assumida naquele momento — o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n.
6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada
a partir da realidade no momento em que foi conquistada. A Lei n. 6.683/1979 precede a Convenção das
Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes — adotada
pela Assembleia Geral em 10.12.1984, vigorando desde 26.06.1987 — e a Lei n. 9.455, de 07.04.1997, que define
o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo art. 5.º, XLIII, da Constituição — que declara insuscetíveis de
graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes — não alcança, por impossibilidade lógica, anistias
anteriormente à sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido”
(ADPF 153).
■ 14.10.5. Liberdade da manifestação de pensamento (art. 5.º, IV e V)
A Constituição assegurou a liberdade de manifestação do pensamento, vedando o anonimato. Caso durante a
manifestação do pensamento se cause dano material, moral ou à imagem, assegura-se o direito de resposta,
proporcional ao agravo, além da indenização.
Tem razão Ingo Sarlet ao afirmar que a regra contida no referido art. 5.º, IV, CF/88, estabelece uma espécie
de “cláusula geral” que, em conjunto com outros dispositivos, asseguram a liberdade de expressão nas suas
diversas manifestações:
■ liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de opinião);
■ liberdade de expressão artística;
■ liberdade de ensino e pesquisa;
■ liberdade de comunicação e de informação (liberdade de “imprensa”);
■ liberdade de expressão religiosa.48
Isso posto, nessa parte, passamos a tecer alguns comentários pontuais, destacando precedentes do STF,
lembrando que os temas da divisão apontada acima serão estudados em tópicos próprios. Vejamos.
■ 14.10.5.1. Liberdade de expressão e a problemática do “hate speech”. “Posição de preferência” da
liberdade de expressão.
A garantia da liberdade de expressão tem sido objeto de instigantes discussões no âmbito do STF e,
certamente, deverá ser amplamente analisada no julgamento da RCL 38.782, ajuizada em 09.01.2020 por Netflix
(plataforma de streaming), contra a decisão do TJRJ que determinou a proibição de difusão do conteúdo
audiovisual do especial de Natal da produtora “Porta dos Fundos”, em razão de ter o conteúdo do filme, segundo a
decisão atacada, ultrapassado os limites da liberdade artística e, naquele momento, em se tratando de medida
liminar, para “acalmar os ânimos” da sociedade brasileira (TJRJ, AgR n. 0083896-72.2019.8.19.0000).
No mesmo dia do ajuizamento da referida reclamação constitucional que buscava a garantia da autoridade das
decisões do STF proferidas na ADPF 130 e na ADI 2.404, o Min. Presidente do STF, Dias Toffoli (os autos
foram distribuídos para o Min. Gilmar Mendes), por se tratar de recesso, monocraticamente, deferiu a liminar,
suspendendo os efeitos da decisão do TJRJ e, assim, restabeleceu o status quo, afastando a proibição de exibição
do filme.
Em seu voto, pendente a apreciação pelo Pleno, o Ministro Dias Toffoli resgata a argumentação desenvolvida
na SL 1.248 (j. 08.09.2019, pela qual se suspendeu decisão da Presidência do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro que permitia a apreensão de livros que tratavam do tema da homotransexualidade na Bienal do Livro – no
mesmo sentido, RCL 36.742, tendo orientado a decisão tomada na STP 165 MC, j. 30.12.2019, pela qual se
assegurou a apresentação de cantores e grupos religiosos no Réveillon organizado pela Prefeitura do Município do
Rio de Janeiro), pedindo vênia para reproduzi-la:
“(...) o regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito a
voz. De fato, a democracia somente se firma e progride em um ambiente em que diferentes convicções e visões de
mundo possam ser expostas, defendidas e confrontadas umas com as outras, em um debate rico, plural e
resolutivo.
Nesse sentido, é esclarecedora a noção de ‘mercado livre de ideias’ (marketplace of ideas, a expressão em
inglês, acrescente-se), oriunda do pensamento do célebre juiz da Suprema Corte Americana Oliver Wendell
Holmes, segundo o qual ideias e pensamentos devem circular livremente no espaço público para que sejam
continuamente aprimorados e confrontados em direção à verdade.
Além desse caráter instrumental para a democracia, a liberdade de expressão é um direito humano universal –
previsto no artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 –, sendo condição para o
exercício pleno da cidadania e da autonomia individual.
(...).
O Supremo Tribunal Federal tem construído uma jurisprudência consistente em defesa da liberdade de
expressão: declarou a inconstitucionalidade da antiga lei de imprensa, por possuir preceitos tendentes a restringir a
liberdade de expressão de diversas formas (ADPF 130, DJe de 06.11.2009); afirmou a constitucionalidade das
manifestações em prol da legalização da maconha, tendo em vista o direito de reunião e o direito à livre expressão
de pensamento (ADPF 187, DJe de 29.05.2014); dispensou diploma para o exercício da profissão de jornalismo,
por força da estreita vinculação entre essa atividadee o pleno exercício das liberdades de expressão e de
informação (RE 511.961, DJe de 13.11.2009); determinou, em ação de minha relatoria, que a classificação
indicativa das diversões públicas e dos programas de rádio e TV, de competência da União, tenha natureza
meramente indicativa, não podendo ser confundida com licença prévia (ADI 2.404, DJe de 1.º.08.2017) — para
citar apenas alguns casos”.
Isso posto, indagamos: a partir das colocações expostas, podemos afirmar que o direito brasileiro e a
jurisprudência do STF adotaram o entendimento de que a garantia da liberdade de expressão abrange o
hate speech?
NÃO.
A problemática do hate speech (discurso do ódio) evidencia-se em precedentes da Suprema Corte dos Estados
Unidos ao fazer interpretações da primeira emenda à Constituição (first amendment), que assegurou a liberdade
de expressão nos seguintes termos: “Congress shall make no law (...) abridging the freedom of speech, or of the
press” (“o Congresso não pode elaborar nenhuma lei limitando — cerceando a liberdade de expressão ou de
imprensa”).
Conforme anotou Daniel Sarmento em trabalho de fôlego (produzido durante a sua estadia como visiting
scholar na Universidade de Yale — EUA, durante o primeiro semestre de 2006), a análise do hate speech está
relacionada à liberdade de expressão e às “manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra
determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e
orientação sexual, dentre outros fatores...”.49
Em suas conclusões, o Brasil, inclusive o nosso STF, não adotou o entendimento de que a garantia da
liberdade de expressão abrangeria o hate speech. Ou seja, muito embora a “posição de preferência”50 que o
direito fundamental da liberdade de expressão adquire no Brasil (com o seu especial significado para um país
que vivenciou atrocidades a direitos fundamentais durante a ditadura), assim como em outros países, a liberdade
de expressão não é absoluta, encontrando restrições “voltadas ao combate do preconceito e da intolerância
contra minorias estigmatizadas”.51
Mas o autor alerta: “... num país como o nosso, em que a cultura da liberdade de expressão ainda não deitou
raízes, há que se ter cautela e equilíbrio no percurso deste caminho, para que os nobres objetivos de promoção da
tolerância e de defesa dos direitos humanos dos excluídos não resvalem para a perigosa tirania do politicamente
correto”.52
Para tanto, o modelo de solução parece ser, conforme sugere e com o qual concordamos, o da ponderação,
pautada pelo princípio da proporcionalidade e a ser analisado no caso concreto, como se observou, para se ter
um exemplo, no julgamento da ADPF 130 (não recepção da lei de imprensa).53
Ainda, outra orientação importante sobre o tema é a de que eventual restrição prévia à liberdade de
expressão somente seria admitida por meio de decisão judicial e “em hipóteses absolutamente excepcionais...
em favor da tutela de direitos ou outros bens jurídicos contrapostos”.54
No tocante à limitação legislativa prévia à liberdade de expressão, muito embora o voto condutor proferido
pelo Min. Ayres Britto no julgamento da ADPF 130, negando-a, em outro julgado, que entendeu como
inconstitucional a exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, estabeleceu o Min. Gilmar
Mendes, no item 6 da ementa do acórdão: “as liberdades de expressão e de informação e, especificamente, a
liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em hipóteses excepcionais, sempre em razão da
proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à
imagem, à privacidade e à personalidade em geral. Precedente do STF: ADPF n. 130, Rel. Min. Carlos Britto”
(RE 511.961, j. 17.06.2009).
Essa limitação, conforme sustenta Sarmento, deve se dar “de forma geral e abstrata, desde que respeitados os
‘limites dos limites’ dos direitos fundamentais, notadamente o princípio da proporcionalidade”.55
Nessa mesma linha sugerida por Sarmento, Ingo Sarlet estabelece: “doutrina e jurisprudência, notadamente o
STF, embora adotem a tese da posição preferencial da liberdade de expressão, admitem não se tratar de
direito absolutamente infenso a limites e restrições, desde que eventual restrição tenha caráter excepcional,
seja promovida por lei e/ou decisão judicial (visto que vedada toda e qualquer censura administrativa) e tenha por
fundamento a salvaguarda da dignidade da pessoa humana (que aqui opera simultaneamente como limite e
limite aos limites de direitos fundamentais) e de direitos e bens jurídicos-constitucionais individuais e coletivos
fundamentais, observados os critérios da proporcionalidade e da preservação do núcleo essencial dos direitos
em conflito”.56
Essa perspectiva em relação à liberdade de expressão, para se ter um exemplo, verifica-se no art. 1957 da Lei
n. 12.965/2014 (conhecida como “marco civil da internet”) que assegurou a liberdade de expressão na rede
mundial de computadores, salvo ordem judicial específica, com exceção apenas aos conteúdo de nudez ou de
atos sexuais de caráter privado (art. 21).58
Destacamos, também, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que dispõe sobre o tratamento de
dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou
privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre
desenvolvimento da personalidade da pessoa natural (Lei n. 13.709/2018).
■ 14.10.5.2. Ainda a problemática do “hate speech” (discursos de incitação ao ódio). Liberdade de
expressão e a prática do crime de racismo: precedente histórico na jurisprudência do STF — HC
82.424. A liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto
Conforme vimos, muito embora a “posição de preferência” que pode ser reconhecida na doutrina e
jurisprudência em relação à liberdade de expressão, esse direito fundamental não é absoluto.
Em caso concreto, discutia-se a prática ou não de crime de racismo cometido por escritor e editor de livros por
suposta discriminação contra os judeus (art. 5.º, XLII) ao pregar ideias antissemitas, preconceituosas e
discriminatórias. Absolvido em primeira instância, a 3.ª Câmara Criminal do TJRS, por unanimidade, reformou a
sentença e o condenou. Impetrado HC no STJ, a ordem foi denegada. Houve nova impetração de habeas corpus
no STF, ora em análise (HC 82.424).
O STF, por 8 x 3, em julgamento finalizado em 17.09.2003, manteve a condenação imposta pelo TJRS por
crime de racismo, flexibilizando a amplitude da liberdade de expressão. Em razão da importância do tema (o Min.
Marco Aurélio, que ficou vencido e defendeu a tese da liberdade de expressão, definiu o julgamento como um dos
mais importantes da Corte desde a sua chegada há 13 anos), pedimos vênia para transcrever a ementa:
“1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo apologia de ideias preconceituosas e
discriminatórias’ contra a comunidade judaica (Lei n. 7.716/89, art. 20, na redação dada pela Lei n.
8.081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, art.
5.º, XLII). (...). 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando ideias antissemitas, que buscam
resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de
fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e
desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrimen com acentuado conteúdo racista,
reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se baseiam. (...). 15. (...). Jamais podem se apagar
da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e
incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos
crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a
reinstauração de velhos e ultrapassados

Continue navegando