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taras bulba - gogol

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Coleção LESTE
Nikolai Gógol
TARÁS BULBA
Tradução, posfácio e notas
Niudldo dos Santos
editoral34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo -SP Brasíl Tel/Fax (11) 3811-6777 www.edítora34.com.br
Copyright © Edítora 34 Ltda., 2007
Tradução © Nivaldo dos Santos, 2007
A FOTOcól.lA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E llEGAI. E CON[`lGURA UMA
AI'ROPRIAÇÃO INDF.VIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.
Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Título c)riginal:
Tarás Bulba
lmagem da capa:
Desenho de Eugêne DelacToix (1798-1863), Museu Delacroix, Paris
Pboto RMN © Herué Leu)andotuski
Capa, proieto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher d Malta Produção Gráfica
Revisão:
Fabrício Corsaletti
1o Edíção -2oo7, 2a Edição -2o| |, 3a Edição -2o|g
CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte
(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)
Gógol, Nko!ai,1809-1852
Tarás Bulba / Nikolâi Ciógol; t[adução,
posfácio e notas de Nivaldo dos Santos -
São Paulo: Edi[o[a 34, 2019 (3@ Edição).
176 p. (Coleção Leste)
ISBN 978-85-7326-386-2
Tradução de: Tarás Bulba
1. htemtura russa. 1. Santos, Nivaldo dos.
II. Título 111 Série.
CDD -891.73
Tarás Bulba
TARÁS BULBA
Pos£ácío, Niualdo dos Santos
TARÁS BULBA
As notas do tradutor fecham com (N. do T.); as notas da edição rus-
sa, com (N. da E.).
Traduzído do original russo, de N. V. Gógol, J'5674##j`G proj`suedí.é-
#j4 # du#Á¢ fomóÁ4 (Obras selecionadas em dois volumes), Leningrado,
Ed. Lenizdat,1965.
-Ah, vire-se, meu filho! Que engraçado você está! E
que levita de pope] é essa que está usando? É assim que to-
dos andam na academia? -Foi com tais palavras que o ve-
lho Bulba recebeu seus dois filhos, que estudavam no semi-
nário2 de Kíev e voltavam à casa do pai.
Seus filhos tinham acabado de descer dos cavalos. Eram
dois jovens robustos, que ainda olhavam de soslaio como alu-
nos recém-saídos do seminário. Seus rostos firmes e saudáveis
estavam cobertos pelo primeiro buço, ainda não tocado pela
navalha. Eles estavam muito confusos por aquela recepção do
pai e permaneciam imóveis, de olhos voltados para o chão.
-Parem, parem! Deixem-me olhá-los bem -continuou
ele, fazendo-os virar. -Mas que cafetãs3 tão compridos! Que
cafetãs! Nunca se viu uns cafetãs desses no mundo. Pois cor-
ra um de vocês! Quero ver se não leva um tombo se enros-
cando nos panos.
-Não ria, paizinho, não ria! -disse afinal o mais ve-
lho deles.
-Ora, veja só que orgulhoso! E por que eu não riria?
] Sacerdote russo. (N. do T.)
2 No origmal, GG£rscí. Trata-se de uma espécie de colégio imerno, mi-
cialmente de caráter religioso. (N. do T.)
`' No origina[, sv;`Íkc7, espécie de meio cafetã utilizado pelos ucra-
nianos. (N. da E.)
T.irás Bulba
-Emboravocêsei.ameupai,secontínuararír,juropor
Deus que lhe dou uma surra!
-Ah, seu fílho de uma qualquer! Bate no seu pai, é?...
- disse Tarás Bulba, recuando surpreso alguns passos.
- É isso mesmo. Não levo desaforo de ninguém.
-E como você quer lutar comígo? Com os punhos?
- Do jeito que for.
-Bem,vamoslá,comospunhos!-disseTarásBulba,
arregaçandoasmangas.-Veremosquetípodehomemvocê
é com os punhos.
E pai e filho, ao ínvés de saudações após a longa ausên-
ci:, começaram a trocar socos nos flancos, nas costas e no
peito, ora recuando e olhando em volta, ora recomeçando no-
vamente.
-Vejasó,boagente:umvelholouco!Perdeuojuízode
vez!-disseamãepálída,magrelaebondosa,queestavaper-
todoumbraleaindanãoconseguiraabraçarseusfilhosque-
ridos - Os filhos víeram para casa, há mais de um ano que
nãoosvíamos,eelepensoulogonísso:lutarcomospunhos!
-Sim,elelutabem!-disseBulba,detendo-se.-Juro
por Deus que é bom! -continuou ele, recompondo-se um
pouco. - Nem é preciso experimentar. Será um bom cossa-
co!Bem,sejabem-vindo,filho!Dêumabraço!-Epaíefílho
começaram a se beii.ar. -Muíto bem, filho! Bata em qual-
quer um assím, do jeito qiie você me socou, não se rebaixe
díante de nínguém! Mas apesar disso, sua roupa é engraça-
da3quecordaéessaaípendurada?Evocê,rapaz,porque€stá
aíparadodebraçosestirados?-dísseele,vírando-separao
caçula. -Por que não bate em mim, filho de um cão?
-Ora, mas que ideia! -disse a mãe, que então abra-
çava o caçula. -De onde tirou a ídeia de um filho legítimo
baternopai?Ejustamenteagora:omeninoéjovem,fezuma
longa viagem, está cansado (esse meníno tinha mais de vinte
anos e exatamente dois metros de altura); agora ele precisa é
dormír, comer alguma coísa, e você quer obrigá-1o a lutar!
10
Nikolaí Gógol
-Ah, estou vendo que você é um mimadinho! -disse
Bulba. -Não dê ouvidos a sua mãe, filho; ela é mulher, não
sabe de nada. Do que é que vocês precisam? Precisam de cam-
po aberto e um bom cavalo. Aí está do que precisam! E estão
vendo este sabre? Isto é a mãe de vocês! É tudo besteira aqui-
lo que meteram na cabeça de vocês: academia, todos aque-
li.s livros, cartilhas, filosofia, e toda aquela sabença. Pois eu
cuspo nisso tudo! --Aqui Bulba expressou literalmente uma
palavra que nem mesmo se emprega numa publicação. - É
iiielhor que eu mande vocês já na próxima semana para Za-
i)orójie.4 É onde está a ciência de verdade! É lá que está a es-
c()la de que precisam; só lá vão criar juízo.
- Mas então, eles só vão ficar em casa por uma sema-
iia? -disse num lamento a mãe velha e magrela, com lágri-
iiias nos olhos. - Os pobrezinhos não poderão passear, não
r)oderão conhecer a casa paterna, e eu nem poderei olhar di-
reito para eles!
-Chega, chega de uivar, velha! Um cossaco não é para
viver com mulheres. Você iria escondê-los embaixo da saia e
ficaria sentada em cima deles como uma galinha choca. Va-
mos, vamos, e coloque logo na mesa tudo o que houver aí. Não
precisa de bolinhos, docinhos de mel, docinhos de papoula e
()utras guloseimas; traga-nos um carneiro, uma cabra e hidro-
mel envelhecido! E bastante aguardente, mas não aquela de
mentira, com passas e tudo quanto é bobageira, e sim a aguar-
dente pura, bem forte, que borbulha e espuma feito louca.
Bulba levou os filhos para a sala principal, de onde saí-
ram correndo apressadas duas criadas jovens e bonitas usan-
do colares vermelhos e que estavam arrumando a casa. Pelo
4 Zapo[ójie é Lima região ucraniana localizada às margens do rio
I)ni€pr e que, entre os séculos Xvl e XVIII, scrviu como quartel-general
do exército cossaco. A palavra Z4Poró/m é formada a partir da preposi-
ção Z4 (do outro lado de) mais o substantivo porog#í (corredeiras). Os
zaporogos cossacos que habitavam essa região seriam "aqueles que vivem
do outro lado das corredeiras". (N. do T.)
Tarás Bulba
Í,l
visto,elasseassustaramcomachegadadosfilhosdopatrão,
que não gostavam de perder oportunidades; ou então que-
ríamsimplesmentepreservarumcostumefeminíno:odegri-
tarefugirdepressaaoverumhomem,paradepoisficarpor
muíto tempo cobríndo o rosto de tanta vergonha. A sala es-
tava arrumada ao gosto daquela época cu).as vivas alusões fi-
carf m somente nas canções e no imagínário popu|ar, já não
mais cantadas na Ucrânía por velhos cegos e barbudos, com
acompanhamento das cordas suaves de uma bandurra e o
povo em volta; ao gosto daquela época difícil, de guerras,
quando começavam a se desencadear na Ucrânía os comba-
tes e as batalhas pela União.5 Tudo estava limpo, revestído
com argila colorída. Nas paredes havia sabres, chicotes, re-
des para pássaros, redes de pesca e espingardas, um chífre
parapólvorahabilmentetrabalhado,umabfídadouradapa-
ra cavalos e travas com chapas prateadas. As janelas da sala
erampequenas,comvidrosredondoseopacos,talcomohoje
emdiasóseencontranasigrei.asantigas,eatravésdosquaís
nãosepodeenxergar,amenosqueselevanteovidromóvel.
Ao redor das janelas e portas havia adornos vermelhos. Nas
prateleiraspeloscantoshaviajarros,garrafõesefrascosdeví-
dro azul e verde, taças de prata lapidadas,cálices banhados
aou.roetrabalhadosemtodoestílo-veneziano,turco,cir-
ca?siano - e que entraram na casa de Bulba de diversas ma-
neiras, por terceiras e quartas mãos, o que era bastante co-
mum naqueles tempos de valentía. Os bancos de bétula ao
redor de todo o cômodo, a mesa enorme sob os ícones no
cfnto da entrada, o grande forno com salíêncías e reentrân-
ciasecobertocomazulei.osdevariadascores;tudoaquiloera
bastante familiar aos nossos dois jovens, que todo ano ví-
nham para casa na época das férias, e vinham a pé porque
aíndanãotinhamcavalosenãoeracostumepermitírquees-
5Uniãoentrealgre)'aCatólicaealgreiaOrtodoxaGrega,querece-
b"apomdaPolônia,masfoícombatidapelosucraniaiios.(N.doT.)
12
Níkolai Gógol
riidantes andassem montados. Tinham apenas um topete que
iiualquer cossaco que levasse uma espingarda podia puxar. Só
ii()r ocasião da saída definitiva do seminário é que Bulba lhes
enviou dois jovens garanhões de sua própria tropa.
Por causa da chegada dos filhos, Bulba mandou chamar
r()dos os só£#Í.Ás6 e oficiais do regimento que estivessem pre-
sentes; e quando chegaram dois deles e mais o ess#ú/7 Dmitro
Tóvkatch, seu velho companheiro, ele apresentou imediata-
itiente seus filhos, dizendo: "Vej.am só que rapagões! Logo
vou mandá-los para a Siétch".8 0s visitantes parabenizaram
Bulba e os dois jovens, dizendo que era uma boa coisa o que
fdziam e que não havia ciência melhor para um jovem do que
í`quela da Siétch de Zaporójie.
-Bem, senhoresg e irmãos, sentem-se onde cada um
.ichar melhor. Muito bem, filhos! Antes de mais nada, beba-
mos aguardente! -assim falava Bulba. -Deus nos abençoe!
Sí`úde, meus filhos: você, Óstap, e você, Andríi! Queira Deus
que na guerra sejam sempre bem-aventurados! Que matem os
infiéis, os turcos e os tártaros; e quando os polacos começa-
rem a fazer algo contra a nossa fé, que matem também a eles!
Bcm, aproxime seu copo. E então, é boa a aguardente? E co-
iii() se diz aguardente em latim? Ora, ora, filho, eram burros
()s latinos: eles nem sabiam que no mundo existia aguardente.
C(]mo se chamava mesmo aquele que escrevia versos latinos?
Não sou muito [etrado, por isso não sei. É Horácio, não é?
6 Chefe de esquadrão cossaco. Posto equivalente a segundo-tenente.
(N. do T.)
7 Capítão cossaco. (N. do T.)
8 A Siétch era uma fortificação militar criada pelos cossacos e que
pi)ssui`a a infraestrutura de uma pequena cidade. A primeira delas foi fun-
il.`ila, no século XVI, i)or Dmitri Baida Vichnievestski numa ilha do Dniepr
tli.nt]minada Málaia Khortítsa. Esta ilha, ho)e, é conhecida pelo nome de
B:`id.i. (N. do T.)
9 N() original, p47% (senhores, em polonês). (N. do T.)
l'imis Blllba 13
"Vejam só esse meu paí!", pensava consígo o mais ve-
lho,Óstap."Sabetudoessecãovelho,masficaaífingíndo."
-Acho que o arquimandrita não os deixava sequer
cheírar aguardente -contínuava Tarás. -Confessem, fí-
lhos:açoítavamvocêscomvarasdegini.eírasnascostaseem
tudoaquiloquetemumcossaco?Outalvez,porteremsetor-
nadologobastanteai.uízados,surravamvocêscomchicotes,
não.) E decerto não só aos sábados, mas também às quartas
e quintas?
respo=druã:okás:::uqeu_:r::móbsrtaarp:=Uôã:Ses;:;s%au],Z;na::o=
-Poís que tentem agora! -disse Andríi. -Só quero
veralguémmeofenderagora!Eseumbandodetártarosapa-
recer, vão saber o que é o sabre de um cossaco!
-Muito bem, filho! Por Deus muito bem! E já que é
assím,euvoucomvocês!JuroporDeusquevou!Quediabo
vou esperar aqui.? Para eu me tornar um plantador de trigo-
-sarraceno, um dono de casa, cuidar de ovelhas e porcos e
molengar com a mulher.) Maldita seja: eu sou um cossaco,
não quero Ísso! E daí que não estamos em guerra.? Eu vou
comvocêsaoZaporójíeparapassear.JuroporDeusquevou!
- E o velho Bulba foí pouco a pouco se exaltando, se exal-
tando,eafinalseirrítoudevez,1evantou-sedamesae,estu-
fando o peito, bateu com o pé no chão. -Iremos amanhã!
Paraqueadiar.'Queinimigopodemosesperaraquísentados.)
ParaqueprecísamosdestakÃW"Paraqueprecisamosdis-
sotudo.'Paraqueessespotes?-Dítoisto,elecomeçouadar
socos e arremessar potes e cantís.
Apobrevelhinha,jáacostumadacomessesprocedímen-
tosdeseumarido,viatudocomtristezasentadanumbanco.
Nãoousavadizernada;mas,aoouvíradecísãoqueparaela
eratãoterrível,nãoconseguíuconteraslágrimas;olhoupa-
ra seus filhos, cuja separação tão breve a ameaçava -e nin-
]° Casa de campo ucraniana. (N. do T.)
14
Níkolai Gógol
guém poderia descrever toda a força silenciosa de sua afli-
ção, que tremia em seús olhos e nos lábios convulsivamente
comprimidos.
Bulba era extremamente teimoso. Era um daqueles ca-
racteres que podiam surgir somente no difícil século XV num
canto seminômade da Europa, quando toda a primitiva Rús-
sia do sul, abandonada por seus príncipes, estava devastada,
reduzida a cinzas pelas indomáveis incursões dos saqueadores
mongóis; quando o homem, depois de perder a casa e o teto,
ali tornou-se intrépido; quando em meio aos restos do incên-
dio, à vista de vizinhos terríveis e da ameaça constante, ele se
instalou e se acostumou a olhá-los diretamente nos olhos,
tendo esquecido se no mundo existia algum perigo; quando
o outrora pacífico espírito eslavo cobriu-se de uma chama
guerreira e apareceram os cossacos -um vasto e desregrado
proceder da natureza russa - e quando todos os caminhos
marginais, vaus, margens de rios e lugares apropriados foram
ocupados pelos cossacos, cuja quantidade ninguém sabia di-
zer, e os valentes companheiros tinham razão ao responder
para um sultão, que desejava saber quantos eram eles: "Quem
é que sabe? Estamos espalhados por toda a estepe: cada mor-
rinho é um cossaco" (quer dizer, onde há uma pequena coli-
na, lá está um cossaco). Era exatamente um extraordinário
fenômeno da força russa: fora expelido do seio do povo por
um raio de desgraças. Em lugar dos antigos feudos, dos pe-
quenos vilarejos repletos de cachorreiros e monteiros, em lu-
gar dos pequenos principados com cidades que comerciali-
zavam e se hostilizavam mutuamente, apareceram aldeias fe-
rozes, acampamentos e cercados unidos pelo perigo comum
e pelo ódio aos saqueadores anticristãos. Pela História todos
já sabiam como sua eterna batalha e sua vida turbulenta sal-
varam a Europa das incursões indomáveis que ameaçavam
destruí-la. Os reis poloneses, que tinham se tornado senho-
res das terras mais extensas no lugar dos príncipes feudais,
embora distantes e fracos, compreenderam o significado dos
Tarás Bulba 15
cossacoseasvantagensdeumavídatãoguerreiraevígilante.
Elesosincentivavamebajulavamconitodadísposíção.Sob
seupoderdístante,osÁe'£m4#es]tescolhidosentreospróprios
cossacostransformaramoscercadoseacampamentosemver-
dÀa_d_eí_[_?.S_F=g_í=eTtoçedí_stritos:-riiíe_r-{:=a.'r.?:rí:àcal,FnvEt
doereunido,poísnínguémovíaassjm;masemcasodeguer-
ra ou de um movímento geral, cada um aparecía num cava-
1o,comtodooseuequjpamento,recebendodoreíapenasum
ducado]2comopagamento,eemduassemanasorganízava-
-seumexércítocomonemnasforçasregularessepoderiare-
crutar. Terminada a campanha, o combatente saía para os
p_radosecamposlavradosouparaosvausdoDniepr,een-
tao pescava, comercializava, fazía cerveja e tornava-se um
fossacolivre.Osestrangeírosmodernosseespantavamentão
justamente por suas extraordinárjas virtudes. Não havia um
ofícíoqueocossaconãoconhecesse:destílarvínhos,equípar
uma telega, fabrícar pólvora, realízar trabalho de ferreiro e
serralheiroe,somadoaissotudo,passeardesvaíradamente,
beber e farrear como só um russo é capaz - tudo ísso era
muitofácHparaele.Alémdoscossacosregistrados,quecon-
sideravamumdeverapresentar-seemtemposdeguerra,po-
dia-se a qualquer momento, e em caso de grande necessida-
de, reunír multidões inteiras de voluntários: bastava que os
ess4zé/spassassempelosmercadosepraçasdetodasasaldeias
e povoados e gritassem com toda força, de pé numa telega:
"Eí,vocês,cerve).eirose.toneleiros!Chegadefazercervej.a,de
ficarmolengandoporcimadosfornosealimentarasmoscas]]Amaío"dosestudiososconsideraqiieapalavra%~vemdo
alemão%%"(chefe).Essapa]avrapenetrou,comcertasvariações,
emváriaslínguaseslavas,comoopolonês,oucranianoeotcheco.Entre
oscossacos,oW"eraochefedeumdistrítooumesmot>governador
de um temtóriq podendo exercer também a função de comandante em
chefe do exérc`ito. (N. do T.)
"Noorigínal,£ctewó"ezs,antigamoedadeoiirocii)ovalor,em
diferentesépocas,oscilavaentre3,50e10rublos.(N.doT.)
16
Níkolai Gógol
com seus corpos gordurentos! Venham marchar em busca da
lionra e da glória dos cavaleiros! Vocês, lavradores, planta-
ilores de trigo-sarraceno, pastores de ovelhas e mulherengos!
Chega de andar atrás do arado, de sujar na terra suas botas
i`marelas, de cortejar as esposas e destruir a força de cavalei-
ro! É hora de a[cançar a glória cossaca!". E essas palavras
ei.am como faíscas que caíam numa árvore seca. 01avrador
largava seu arado, os toneleiros e cervejeiros jogavam seus
tonéis e despedaçavam os barris, o artesão e o comerciante
mandavam ao diabo o ofício e a barraca, quebravam potes
i`in casa. E todos, sem exceção, montavam num cavalo. Nu-
ina palavra: o caráter russo ganhou aqui uma poderosa e ex-
tensa ampliação, um aspecto vigoroso.
Tarás era um dos velhos e radicais coronéis: todo ele fo-
ra criado para a ânsia guerreira e se distinguia pela sincerida-
cle grosseira de seu temperamento. A inf[uência da Polônia já
começava então a se mostrar sobre a nobreza russa. Muitos
iá adotavam os costumes poloneses, adquiriam o luxo, a cria-
dagem suntuosa, falcões, monteiros, banquetes e palácios.
Isso não era do gosto de Tarás. Ele adorava a vida simples dos
i`()ssacos e rompeu com aqueles que, dentre os seus compa-
nheiros, estavam inclinados para o lado de Varsóvia, cha-
mando-os de lacaios dos senhores poloneses. Eternamente in-
(iuieto, ele considerava a si próprio um legítimo defensor da
t]rtodoxia grega. Entrava arbitrariamente nas aldeias onde
houvesse queixas pela opressão dos arrendadores e do au-
mento excessívo dos novos impostos. Com seus cossacos, ele
mesmo aplicava-lhes um castigo, e estabeleceu para si a regra
de que se deveria usar o sabre em três casos: quando os comis-
siírios não respeitassem os chefes e ficassem de gorro diante
dcstes, quando zombassem da ortodoxia grega e não respei-
t:`ssem a lei dos antepassados e, finalmente, quando os inimi-
g()s fossem muçulmanos e turcos, contra os quais ele conside-
rava que, em qualquer situação, era permitido levantar armas
r).ira glória da cristandade.
l'á`r.ís Bulba 17
Agora ele se entretínha com a ideía antecípada de apa-
fecer com seus dois fílhos na Siétch e dízer: "Vejam só que
iovens eu trouxe a vocês! ", de apresentá-los a todos os velhos
e aguerridos companheiros, de ver as primeiras façanhas de
ambos na ciência bélica e na farra, que ele considerava tam-
bém uma das qualidades ímportantes de um cavaleiro. Inícíal-
mente ele queria envíá-los sozínhos. Mas, em vísta da juven-
tude, da estatura e da beleza vigorosa e corada de ambos, seu
espírito se inflamou e já no outro dia decidíu ir com eles, em-
bora a necessidade disso fosse apenas a sua vontade obstina-
da. E logo ele já estava gesticulando e dando ordens, esco-
lhendoosarreioseoscavalosparaseusjovensfilhos,questio-
nando ora na cavalariça, ora nos celeiros, e escolheu os cría-
dos que deveriam ír com eles no día seguinte. Transferiu seu
poder ao ess4ú/ Tóvkatch junto com a ordem expressa de
partír ímediatamente com todo o seu regimento, se fosse re-
cebida uma ordem da Siétch. Embora ele estivesse contente
e a embríaguez aínda vagasse em sua cabeça, não havia se es-
quecido de nada. Ordenou ínclusive que dessem água aos ca-
valosecolocassemparaelesotrigomelhoremaisconsistente,
e voltou cansado de suas preocupações.
- Bem, filhos, agora é preciso dormir, e amanhã fare-
mos o que Deus quíser. E não arrume a cama para nós! Não
precisamos de cama. Vamos dormir no pátio.
A noíte mal tinha abraçado o céu, mas Bulba sempre se
deitava cedo. Ele se esparramou num tapete, cobriu-se com
uma peliça de pele de carneiro, porque o ar da noite era bas-
tante fresco e porque Bulba gostava de se abrigar e fícar bem
aquecidoquandoestavaemcasa.Logoelecomeçouaroncar,
e todo o pátio o seguíu; tudo que havia nos díferentes cantos
do pátio começou a roncar e cantar; a sentínela adormeceu
antes de todo mundo, poís tinha bebído mais do que todos
pela chegada dos jovens patrões.
Sozinha, a pobre mãe não dormia. Ela estava apoiada à
cabeceira da cama de seus querídos filhos, que estavam dei-
18
Nikolai Gógol
[.\tlos um ao lado do outro; penteava-lhes os cabelos encara-
itilados, jovens e desgrenhados, umedecendo-os com lágri-
iiií`s; ela olhava inteiramente para eles, olhava com todos os
hL.ntidos, transformou-se toda num olhar e não podia mais
vi.r a si mesma. Ela os amamentara com seu próprio peito, ela
()s i`riou e educou -e os viu diante de si por um instante ape-
n.is. "Meus filhos, meus filhos queridos! 0 que será de vocês?
( ) que os espera?" -dizia ela, e as lágrimas se detiveram nas
i.iit:as, que tinham transformado seu rosto outrora belo. Ela
m rcalmente uma infeliz, como qualquer mu[her daquele
séciilo intrépido. Viveu o amor por apenas um instante, ape-
nas na primeira febre da paixão, na primeira febre da juven-
tiide, e [ogo seu rude sedutor a trocou pelo sabre, pelos com-
i)iinheiros e pela farra. Via o marido dois ou três dias por ano,
i. depois, durante alguns anos, não tinha nenhum sinal dele.
1.`, quando se encontravam, quando estavam juntos, que tipo
ili` vida ela tinha? Suportava ofensas e até surras; apenas por
piedade recebia carícias ocasionais, ela era um ser estranho
mquela turba de cavaleiros solteiros inveterados, sobre os
quais o desregrado Zaporójie lançava seu áspero co[orido. A
iuventude sem prazer passou rapidamente diante dela, e os
seios e as faces belas e frescas murcharam sem beijos e cobri-
rí`m-se de rugas prematuras. Todo o amor, todo o sentimen-
t(), tudo que há de carinhoso e apaixonado numa mulher,
tudo nela voltou-se para um único sentimento de maternida-
de. Com ardor, paixão e lágrimas ela flutuava sobre seus fi-
lhtis como uma gaivota das estepes. Seus filhos, os seus que-
iidos filhos estavam sendo tirados dela, estavam sendo tira-
dos para não vê-los nunca mais! Quem sabe, talvez na pri-
iiieira batalha um tártaro lhes partisse as cabeças, e ela nem
saberia onde jaziam os seus corpos abandonados e sendo de-
vt)rados por uma ave de rapina de beira de estrada; por cada
g()ta do sangue deles, ela daria tudo de si própria. Soluçan-
d{), ela os olhou bem, quando o todo-poderoso sono já come-
ç`.`va a cerrar seus olhos: "Quiçá quando despertar, Bulba
Tarás Bulba 19
adie a partida por uns doís dias; talvez ele tenha planejado
partír tão depressa por ter bebido muito".
Doaltodocéualuahámuítojáilumínavatodoopátío
repletodeadormecidos,odensomontedesalgueíroseomato
crescido,ondedesaparecíaaestacadaquecercavaopátio.Ela
permaneciasentadajuntoàcabeceiradeseusquerídosfilhos,
e nem por um mínuto desviou deles os olhos e sequer pensa-
va no sono. Sentíndo o amanhecer, todos os cavalos se dei-
taram na relva e pararam de comer; as folhas maís altas dos
salgueíroscomeçaramamurmurar,epoucoapoucoumjor-
ro sussurrante desceu por eles até embaíxo. Ela permaneceu
sentada até o amanhecer, não estava de nenhuma maneíra
fatigada,enofundodesejavaqueanoiteseestendesseomá-
ximopossível.Daestepechegouosonororelinchodeumpo-
tro, e listras vermelhas apareceram no céu.
Bulba despertou de repente e deu um salto. Ele se lem-
brava-mBue,:o,::Fazdees't:Íeog:udeeàrodre:,ar:aÉnhao:Í::e;::a,Deem
águaaoscavalos!Ondeéqueestáavelha?(Eraassimqueele
habitualmentechamavasuaesposa.)Depressa,velha,prepa-
re-nos algo para comer: o caminho é longo!
Apobrevelhinha,despojadadesuaderradeíraesperan-
ça,camínhoutrístementeparaaÁb4£cz.Enquantoelaprepa-rava em meio às lágrímas tudo que era precíso para o café da
manhã,Bulbadavasuasordens,íadeumladoparaoutrona
cavalariça e escolhia ele mesmo os melhores equipamentos
paraseusfílhos.Osseminaristassetransformaramderepen-
te:einlugardasbotassujas,elesapareceramdebotasverme-
Ihasdecouromaciocomferradurasprateadas;bombachasda
larguradoMarNegrocomcentenasdepregaseapetrechos,
apertadasporumcínturãodourado;aocinturãoestavamen-
ganchadaslongascorreiascomborlaseoutrosutensi'Iiospara
cachímbo. 0 cafetã de cor vermelha, de um tecído brílhante
como fogo, era cingído por um cinto bordado; pístolas tur-
cas cínzeladas estavam metidas no cinto; o sabre ressoava
20
Nikolai Gógol
l`.`ti`iidt) nas pernas. Seus rostos ainda pouco bronzeados pa-
i.c.ii`m mais belos e brancos; os bigodes negros agora realça-
w`i`i mais claramente a brancura de ambos e a cor saudável
c vig()rosa da juventude; eles ficaram bem com aqueles gor-
i i )` iiegros de pele de carneiro com a parte superior dourada.
^u vê-los, a pobre mãe não conseguiu proferir uma palavra,
c .is lágrimas detiveram-se em seus olhos.
-Bem, filhos, tudo pronto! Não há por que demorar!
-afinal exclamou Bulba. -Agora, de acordo com o costu-
ii`i` i`ristão, é preciso que nos sentemos por um momento an-
1`.` da partida.13
Todos se sentaram, inclusive os rapazes que permane-
ciam respeitosamente junto às portas.
-Agora abençoe seus filhos, mãe! -disse Bulba. -
Ri`ze a Deus para que eles lutem bravamente, que defendam
`i`mpre a honra de cavaleiro, que se mantenham sempre na fé
i.m Cristo, senão é melhor que desapareçam, para que seus
i``píritos sumam do mundo! Aproximem-se de sua mãe, fi-
lhtjs: a oração materna salva na água e na terra.
A mãe, fraca como uma mãe, abraçou-os; pegou dois
i)i`quenos ícones e colocou-lhes no pescoço, soluçando.
-Que a Mãe de Deus... os proteja... Não se esqueçam
de sua mãe, meus filhos... mandem uma notícia pelo menos...
-Ela não conseguiu dizer mais nada.
-Bem, vamos, filhos! -disse Bulba.
Junto à marquise estavam os cavalos selados. Bulba sal-
t()u em seu Diabo, que recuou com raiva ao sentir sobre si
iima carga de vinte PzócJs,]4 porque Bulba era extraordinaria-
mente pesado e gordo.
" Trata-se de um antigo costume que amda hoje é seguido por mui-
tos russos. Quando uma pessoa vai realizar uma longa viagem, ela senta-
-se momentos antes da partida e imagina o trajeto que percorrerá até o seu
dcstirio. (N. do T.)
14 Antiga medida de peso equivalente a 16,38 kg. (N. do T.)
Tarás Bulba 21
cossaca de sobrancelhas
Quando a mãe viu que seus filhos já tínham montado
nos cavalos, ela se atirou ao maís novo, cuj.os traços do ros-
to expressavam uma ternura maior; agarrou-o pelo estribo,
grudou-se em sua sela e com desespero nos olhos não o dei-
xava sair de suas mãos. Dois cossacos robustos a pegaram
com cuidado e levaram-na para a ÁZÁ~ Mas quando eles
passaram pelo portão, ela saiu correndo com a agilidade de
uma cabra montesa, algo íncompatível com sua idade, dete-
veocavalocomumaforçaínacreditáveleabraçouumdeseus
filhos com um ardor alucinado e ínconsciente; e outra vez a
levaram.
Osjovenscossacosseguiamconfusos,contendoaslágrí-
mas, c?m medo do pai que, por sua vez, também estava um
poucoinquieto,emboraseesforçasseparanãoodemonstrar.
0diaestavacinzento,agramabrilhavademodointenso,as
avesgorjeavamemdesordem.Depoisdeavançaremumpou-
co,elesolharamparatrás;aaldeíaquasedesapareceranater-
ra, via-se apenas as duas chaminés da casínha modesta e as
copasdasárvores,emcujostroncoselessubiamcomoesqui-
1os; diante deles estendía-se apenas um prado distante - o
pradopeloqua]elespodiamrecordartodaahistóriadesuas
vídas, desde os anos em que rolavam pela relva coberta de
orvalhoatéostemposemqueesperavampassarumajovem
r`r`eo^-r` À^ ^_L _ _
negras, que criizava por alí temero-
saeapressadacomaajudadesuaspernasrobustaselígeiras.
E agora apenas o mastro acima do poço, com uma roda de
telegaatadanoalto,apareciasolítárionohorízonte3elogo
a planiície que eles haviam atravessado pareceu tomar a for-
madeumamontanha,eencobríutudo.Adeusàínfância,às
brincadeiras, a tudo, tudo!
22
Nikolaí Gógol
Os três cavaleiros seguiam em silêncio. 0 velho Bulba
i)i.iisava no passado: diante dele passava sua mocidade, os
i`ii()s transcorridos, pelos quais um cossaco sempre chora, de-
*i.jtiso de que sua vida inteira fosse de juventude. Pensava em
qmis daqueles seus antigos companheiros ele encontraria na
Siéti`h. Calculava quais tinham perecido, e quais ainda esta-
v:`iii vivos. Uma lágrima se arredondava silenciosamente em
`ii:` pupila, e sua cabeça grisalha inclinou-se com tristeza.
Seus filhos estavam ocupados com outros pensamentos.
M:`s é preciso dizer algo mais sobre eles. Aos doze anos fo-
r:im confiados à Academia de Kíev, porque todos os dignitá-
i.i()` de então consideravam indispensável dar educação a seus
lilhos, embora fizessem isso para depois esquecê-la por com-
iili`to. Eram então como todos os que ingressavam no semi-
iiário, selvagens, criados em liberdade, e que ali se tornavam
habitualmente um pouco civilizados, recebendo uma educa-
ção em comum, que os fazia parecerem uns com os outros.
(')stap, o mais velho, começou sua carreira fugindo já no pri-
iiiciro ano. Levaram-no de volta, castigaram terrivelmente e
() plantaram na frente dos livros. Ele enterrou quatro vezes
sua i`artilha na terra, e quatro vezes lhe compraram uma no-
va, depois de o açoitarem de forma desumana. Mas, sem dú-
vida, ele teria repetido isso pela quinta vez, se o pai não lhe
tivesse feito a promessa solene de encerrá-lo nos serviços mo-
násticos por vinte anos inteiros e não jurasse de antemão que,
se ele não estudasse todas as ciências na academia, jamais ve-
Tarás Bulba 23
riaZaporójie.Écuriosoqueístotenhasidodítopelopróprio
Tarás Bulba, que xingava todo saber científíco e, como já
vimos,aconselhavaosfílhosanãoseocuparemcomele.Des-
de então, Óstap passou a fícar sentado na frente dos lívros
enfadonhoscomumânimoextraordínário,elogoseigualou
aos melhores. 0 tipo de ensíno daquele tempo divergía ter-
rivelmente do modo de vida: aquelas particularídades esco-
lásticas, gramaticais, retóricas e lógicas defínitívamente não
combinavamcomaépoca,nuncaseai.ustavamenemseapli-
cavam à vida. Os que aprendíam não podiam assocjar a nada
os seus conhecimentos, e menos aínda os conhecimentos es-
colástícos.Osprópriosmestresdeentãoerammaisignoran-
tes do que os outros, porque estavam totalmente afastados
daprática.Ademais,aestruturarepublicanadoseminárío,a
horrível multidão de pessoas j.ovens, robustas e saudáveis -
:u::Íâseomdâ:,:u.:sfuoncdu,:ançe::::sTuadaat:::f.aÃ::::e:1:t::ean,::
mentaçãoeojej.umfrequentementeusadocomocastígo,ou-
trasvezesasmuitasnecessídadesquesemanifestamnumjo-
vemforte,saudáveleviçoso-tudoissojuntoproduziane-
les aquela intrepidez que depois se desenvolvia em Zaporó-
jie. Os seminaristas famíntos percorriam as ruas de Kíev e
obrigavamtodosaficarematentos.Asvendedorasqueesta-
vam nos bazares, tão 1ogo viam um seminarista passando,
semprecobríamcomosbraçosassuastortas,pãesesementes
deabóbora,comoaságuiascomseusfilhotes.0cônsul,que
por obrigação devia zelar pelos companheíros que estavam
sob sua custódía, tinha os bolsos das bombachas tão gran-
desqiiepodíameteralitodaabarracadeumavendedoradis-
traída. Esses seminaristas constituíam um mundo completa-
menteàparte:elesnãoeramaceitosnocírculomaisalto,for-
mado por nobres poloneses e russos. 0 próprío uoj.ezJod4,"
" Denommação, na Rússia antiga e em alguns outros estados esla-
vos,dochefedeuinatropa,deiimaregiãooudeumdistrito.(N.doT.)
24
Nikolai Gógol
A(l:`m Kissél, apesar da demonstrada proteção à academia,
ii.`() ()s introduzia na sociedade e ordenava que fossem tra-
i.iil()s do modo mais severo. Aliás, esse preceito era total-
nii.i`tc inútil, porque o reitor e os monges-professores não ti-
nl`mm piedade das varase das chibatas, e os lictores, por or-
tlt.m i]L.les, frequentemente açoitavam seus cônsules de forma
i.`ti i`riiel que estes ficavam passando a mão nas calças duran-
it' .`lgiimas semanas. Para muitos deles aqui[o não era abso-
l`iiamente nada, e parecia um pouco mais forte do que uma
l`tia vodca com pimenta; outros ficavam afinal tão fartos da-
tiucles constantes cataplasmas que fugiam para Zaporójie,
tli.`ili` que soubessem encontrar o caminho e não fossem apa-
iih`cl()s durante o trajeto. Óstap Bulba, embora tivesse come-
``.`ilt7 a estudar lógica e até teologia com grande entusiasmo,
ii.iti i`scapava de maneira alguma das varas implacáveis. É na-
i u i..`l que isto tenha lhe endurecido um pouco o caráter e in-
i utiil() nele a dureza que sempre distinguiu os cossacos. Ós-
i.`r f()i sempre considerado um dos melhores companheiros.
l`:m`mente ele mandava os outros em aventuras ousadas, co-
i" dcvastar um jardim ou uma horta alheia, mas em com-
i`t.i`sação era um dos primeiros a se juntar a algum semina-
rim mais intrépido, e nunca, em nenhuma situação, delata-
v.` `cus companheiros. Nenhuma chibata ou vara conseguia
nl)rií:á-lo a fazer isso. Era insensível a outros impulsos que
n.lt) .i guerra e a farra desvairada; pelo menos quase nunca
i\i.i`sava em outra coisa. Ele era sincero com seus pares. Ti-
i`l`.` b()ndade na medida em que esta podia existir num cará-
ii`i. i`()mo o dele, e numa época como aquela. Ele estava sin-
i`i`rí`mente tocado pelas lágrimas da pobre mãe, e isto era a
i'uiii`n coisa que o perturbava e o obrigava a baixar a cabeça
',l.,,sí,tivo.
Scu irmão mais novo, Andríi, tinha sentimentos um pou-
i`u imis vivos e mais desenvolvidos. Estudava com mais pra-
/w e sem o esforço geralmente despendido por um caráter
l(}rte e difícil. Era mais criativo que seu irmão; aparecia mais
1.mix Bl'lba 25
frequentemente como líder de aventuras bastante perigosas,
e às vezes, com a ajuda de sua inteligência criativa, sabia es-
capar do castigo, enquanto seu irmão Óstap, que não toma-
va nenhum cuidado, tirava o casaco e se deítava no chão, sem
sequer pensar em pedir misericórdia. Ele também era louco
por uma proeza, mas sua alma era ao mesmo tempo acessí-
vel a outros sentimentos. A necessídade de amor inflamou-se
vivamente dentro dele ao completar dezoito anos. A mulher
passou a aparecer com mais frequêncía em seus sonhos ar-
dentes; enquanto ouvia as dísputas fílosóficas, ele a visua-
lizava a cada instante - fresca, de olhos negros, carinhosa.
A todo momento passavam diante dele uns seios flamejantes
e firmes, uns braços carínhosos, belos e nus; o próprío vesti-
do que cobría seus membros fortes e virgínais inspirava em
seus sonhos uma volúpia indescrítível. Ele escondia cuidado-
samente de seus companheiros esses movimentos de uma al-
ma juvenil apaixonada, porque naquele século era uma ver-
gonha e uma infâmia que um cossaco pensasse em mulher e
amor sem ter experimentado uma batalha. De modo geral,
nos últimos anos ele muito raramente aparecia como líder de
uma turma, mas vagava sozinho com mais frequência em al-
gum recanto isolado de Kíev, mergulhado em jardins de ce-
rejeiras e entre casinhas baixas que olhavam sedutoramente
para a rua. Às vezes se metía na rua dos aristocratas, na ve-
1ha Kíev dos dias atuaís, onde moravam nobres poloneses e
ucraníanos e onde as casas eram construídas com certo ca-
pricho. Uma vez, quando caminhava boquiaberto, quase foi
atropelado pela carroça de um senhor polonês, e o cocheiro
de bigodes enormes que estava sentado na boleia o fustigou
bastante bem com o chicote. 0 jovem seminarista fícou fu-
rioso: com uma coragem louca, ele agarrou a roda traseira
com sua mão poderosa e deteve a carroça. Mas o cocheíro,
temendo a reação, deu um golpe nos cavalos; estcs partiram,
e Andríí, que felízmente conseguíra tirar a mão da roda, se
estatelou no chão com o rosto bem na lama. A mais sonora
26 Nikolai Gógol
c h`rmoniosa gargalhada ressoou acima dele. Andríi ergueu
m olhos e viu numa janela uma mu[her linda como jamais
i uilm visto: de olhos negros e branca como a neve iluminada
iN.l.` cor matutina do sol. Ela ria com toda a alma, e o riso
M i.t'`ct.ntava uma força brilhante a sua esplêndida beleza. Ele
lim pasmo. 0lhou para ela totalmente perdido, limpando
il.. t.orma desatenta a lama do rosto que se sujava mais ain~
`lm Quem seria aquela bela mulher? Foi saber junto à crial
`h`8t`m, que estava vestida de maneira luxuosa perto dos por-
i(-)i.` .` aglomerada ao redor de um jovem que tocava bandur-
ri`. Mas a criadagem começou a rir quando viu sua pele suja
`. i`t.in deu ouvidos à sua pergunta. Finalmente soube que ela
u .` tilha de um uo!.evod¢ de Kovno que viera passar um tem-
im :`li. Na noite seguinte, com a audácia típica de um semi-
ii.irista, ele entrou no jardim através da paliçada e subiu nu-
m .irvore cuios ramos se estendiam até o telhado da casa; da
m vm ele passou para o telhado e introduziu-se pela chami-
i`{. tl.` lareira diretamente no quarto da bela mulher, que àque-
1.` hora estava sentada diante de uma vela tirando de suas
oi.t.lhas os brincos valiosos. A bela polaquinha assustou-se
i.`i`to ao ver diante de si um homem desconhecido que não
` m`cguiu pronunciar uma palavra; mas, quando ela perce-
l`(`ii que o seminarista estava parado, de olhos baixos e sem
m atrever a mover a mão de tanta timidez, quando ela reco-
i`l`i`ccu aquele mesmo iovem que tinha se estatelado na rua
lm na sua frente, o riso a dominou outra vez. Ademais, nos
i r.```os de Andríi não havia nada de terrível: ele era de muito
1`o:` aparência. Ela ria com sinceridade, e se divertiu bastan-
m .`h custas dele. A bela jovem era leviana, como uma po-
I.i`iiiinha, mas seus olhos maravilhosos, brilhantes ç clargs
l.ii```i`vam um olhar demorado, constante. 0 seminarista nao
wmi`guia mover a mão, como se estivesse amarrado dentro
J.` iun saco; foi quando a filha do vo!.evoJ4 se aproximou dele
m hesitação, pôs em sua cabeça um diadema brilhante, pen-
`l`irou-lhe os brincos nos lábios e lançou sobre ele uma blu-
l';`r.is Bulba
27
sinhademusselinatransparentecomornatosbordadosaou-
ro.Elaoarrumavaefaziacomelemíltohcesdiferentescom
adesenvolturainfantilqueécaracterísticadaspo]aquinhasle-
víanas,oquedeixouopobresemínarístaaindamaísemba-
raçado.Elerepresentavaumafiguraridícula,debocaaberta
eolhandoimóvelparaosseusolhínhosdeslumbrantes.Nes-
sa hora, uma batída que ressoou na porta a assustou. Ela o
fezesconder-sedebaixodacama,elogoqueoperigopassou,
chamousuaaia,umaservatártara,edeu-lheaordemdelevá-
-[ocomcuidadoparao)ardimedespachábdaliatravésda
cerca. Mas desta vez o nosso semínarísta não atravessou a
cerca com tanta ventura: o vígía que despertava o agarrou
firmementepelaspernas,eacriadagemreunidaoespancou
bastantejánarua,atéquesuaspernas]igeirasosalvaram.
Depoisdisso,ficoumuitoperigosopassarpertodacasa,por-
queacriadagemdouoí.eüodfleramuitonumerosa.Eleaen-
controu de novo numa ígrej`a católíca: ela o notou e sorríu
combastanteprazer,comosefosseparaumvelhoconhecí-
do.Eleaviudepassagemaindaumavez,elogodepoisdisso
o oozezJod4 de Kovno foi embora, e no lugar da bela pola-
quinhadeolhosnegrosapareciaumrostogordonas]anelas.
AíestánoquepensavaAndríi,comacabeçainclinadaeos
olhos voltados para a crína de seu cavalo.
Mas enquanto Ísso, a estepe há muito tempo ;.á tinha
tomadoatodoselesemseusbraçosverdes,arelvaaltaque
seacercavaosencobríu,eentresuasespígassóapareciamos
gorros negros dos cossacos.
-Ora,ora,ora!Porqueéqueestãocaladosassím,ra-
pazes?-díssea£inalBu]ba,despertandodesuameditação.
-Pareeatéquesãomonges!Bem,deumavezportodas,
aodíabocomessespensamentos!Seguremoscachimbosnos
dentesevamosfumar;vamosesporeafoscavalosevoarde
um jeito que nem uma ave nos alcance!
E inclinados sobre os cavalos, os cossacos desaparece-
ramnarelva.Jánãosepodíavernemosgorrosnegros;só28
Nkolai Gógol
iiiiii` ll`tra de relva amassada indicava o rastro de sua corri-
1,, l,Ht`,,.``.
( ) `til aparecera há muito tempo no céu limpo e banha-
vii ,i i```tepe com sua luz viva e calorosa. Tudo que havia de
` i niím() c sonolento na alma dos cossacos sumiu num instan-
it`, `. `i.iis corações se agitaram como aves.
Qii.`nto mais avançavam, mais bela a estepe se tornava.
1 i ii .it> ttido o sul, toda aquela extensão que constitui a Nova
1` `i``i;` dc hoje, até o Mar Negro, era um deserto verde e vir-
Ht.iii. Nunca o arado tinha passado pelas imensas ondas de
v{`Ht.t,iç..io selvagem. Eram pisoteadas apenas por uns cavalos
i im `i` i`scondiam nelas como num bosque. Não podia haver
ii.itl.` nii`lhor na natureza. Toda a superfície da terra apresen-
i.iv.i-h.. como um oceano verde-cré, pelo qual brotavam mi-
" it.s ili` f[ores diferentes. Através das hastes finas e longas da
i i`lv.` trmsparecia uma vegetação fechada, de cor azul-escura,
i`/ul-i`i`leste e lilás, uma gesta amarela despontava com seu
` utiii` piramidal, o trevo branco de gorros em forma de guar-
il.i i huva abundava na superfície; uma espiga de trigo trazida
`.il``. l)cus de onde amadurecia no mato cerrado. Sob suas
i .u;i``` finas corriam perdizes com o pescoço esticado. 0 ar
t.`i.ivi` repleto de assobios de centenas de pássaros diferentes.
Nn i`éu, abutres permaneciam imóveis com suas asas estira-
il.i` i` ()s olhos fixos na relva. 0 grito de uma nuvem de gan-
`{ i` `elvagens que se deslocava ressoou em algum lago distan-
i`..1 )a relva subiu uma gaivota em movimento cadenciado e
l`,`iih()u-se magnificamente nas ondas azuis do ar. Lá ela de-
`.ii`.`receu nas alturas e apenas cintilava em forma de um pon-
iu iic`gro. Lá ela virou as asas e brilhou diante do sol... Que
ili.ih()s! Como você é boa, estepe!...
Nossos viajantes pararam apenas alguns minutos para o
.` 1 iiitiç`o, e o destacamento de dez cossacos que seguia com eles
ili.`icu dos cavalos e pegou os cantis de madeira com aguar-
tli`iiti. e as cuias que são utilizadas no lugar de vasilhas. Co-
ini.ri`ni apenas pão com toucinho ou panqueca e beberam só
l`;\'..is Bulba 29
um cálice de aguardente, unicamente para reforço, porque
Tarás Bulba nunca permitia que se embriagassem no cami-
nho; e daí continuaram a viagem até o anoitecer. À noite, a
estepe mudava completamente. Toda aquela extensão colo-
rida era abraçada pelo último reflexo de sol e escurecia pouco
a pouco, de modo que era possível ver a sombra avançando
pela estepe que se tornava verde-escura; vapores se erguiam
no mato cerrado, todas as flores e ervas exalavam âmbar, e
tudo ali fumegava perfume. No céu azul-escuro havia largas
faixas de ouro rosado, como se tivessem sido pintadas por um
pincel gigantesco; de vez em quando branquejavam nuvens
suaves e transparentes em forma de farrapos, e a brisa fresca
e sedutora, semelhante a ondas do mar, quase nem balançava
o topo da relva e tocava as faces apenas levemente. Toda a
música ouvida durante o dia silenciara e fora substituída por
outra. Marmotas de variadas cores saíam de suas tocas, de-
tinham-se sobre as patas traseiras e enchiam a estepe de asso-
bios. 0 cricrido dos grilos tornava-se mais audível. Às vezes
ouvia-se de algum lago afastado o grito de um cisne ecoan-
do no ar como metal. Detendo-se no meio do campo, os via-
jantes escolheram um lugar para o acampamento, armaram
uma fogueira e puseram sobre ela um caldeirão, onde cozi-
nharam uma papa; o vapor se desprendia e fumegava no ar.
Depois do jantar, os cossacos se deitaram, deixando seus ca-
valos amarrados pela estepe. Eles se esparramaram sobre os
cafetãs. As estrelas da noite olhavam diretamente para eles.
Ouvia-se claramente o inumerável mundo de insetos que en-
chiam a relva, todo o seu crepitar, assobio, cricrido - tudo
isso ressoava abertamente no meio da noite, purificava-se no
ar fresco e embalava os ouvidos sonolentos. Se algum deles
se erguesse e se levantasse nessa hora, a estepe se lhe apresen-
taria coberta pelas faíscas brilhantes dos vaga-lumes. Às ve-
zes, o céu noturno era iluminado em alguns lugares pelo cla-
rão distante de um canavial seco queimando pelos prados e
margens de rios, e a fileira escura de cisnes que voavam para
30 Níkolai Gógol
n iit)rri` foi de repente iluminada por uma luz rosa e prateada,
r i.nt ```tj parecia que lenços vermelhos voavam pelo céu escuro.
( )s viajantes prosseguiam sem quaisquer incidentes. Não
ll`t.` .`i).`recia sequer uma árvore; era tudo aquela mesma es-
iri`i` iiifinita, livre e maravilhosa. De vez em quando divisa-
vn -w () cume de um bosque afastado, que se estendia pelas
" i.gi`ns do Dniepr. Só uma vez Tarás mostrou aos filhos um
i`..`iiii`no ponto enegrecido na relva distante, dizendo: "Ve-
ji`i`i, filhos, ali vai um tártaro!". Uma pequena cabeça com
l`iRt)des fitava-os de longe com seus olhos oblíquos, farejan-
il( i t) m como um cão ga[go, e ao perceber que ali havia treze
` ()``.`cos, desapareceu como um cabrito montês. "Pois bem,
lill`()s, tentem alcançar o tártaro!... Não, nem tentem, nun-
i.i` vão conseguir: ele tem um cavalo mais rápido que o meu
".`1)(). " Todavia Bulba tomou precauções, protegendo-se de
.`hiima emboscada. Eles galoparam até um pequeno riacho
ilt.n()minado Tatarka, que desembocava no Dniepr; daí ati-
i..`i..`m-se na água com seus cavalos e seguiram por ele para
ciii.()brir suas pegadas; depois, saindo para a margem, pros-
8cguiram sua jornada.
Três dias depois, já estavam perto do lugar que tinha
`iilt) a razão da partida. 0 ar em volta começou a ficar frio;
t.li.` sentiram a proximidade do Dniepr. E ali estava ele, bri-
lli.`ndo ao longe e se apartando do horizonte numa faixa es-
i.ura. Ele tremulava em ondas frias e se alargava mais e mais,
`[i'` que finalmente abraçou metade da superfície da terra. Era
i`i``se [ugar que o Dniepr, até então infestado de pedras, tor-
i`.`va-se finalmente livre e rumorejava como o mar, derra-
"`ndo-se à vontade; era ali que as ilhas lançadas no centro
ili.`alojavam-no ainda mais das margens, e suas ondas esten-
ilií`m-se amplamente pela terra, sem encontrar penhascos nem
i`li.vações. Os cossacos desceram de seus cavalos, subiram nu-
iii:` barca e, depois de três horas de navegação, já estavam
iiH`to às margens da ilha Khortítsa, onde ficava então a Sié-
ii`li, que mudava de lugar com bastante frequência.
l'á`rás Bulba 31
Um bando de gente discutia na margem com os barquei-
ros. Os cossacos arrumaram os cavalos. Tarás assumiu uma
postura de valentão, apertou mais o cinto e passou a mão alti-
vamente pelo bigode. Seus jovens filhos também se examina-
ram dos pés à cabeça com certo temor e uma satisfação inde-
finida -e seguiram todos juntos para os arrabaldes, que fi-
cavam a meia versta da Siétch. Ao chegarem, foram atordoa-
dos por cinquenta martelos de ferreiros batendo nas vinte e
cinco ferrarias, que eram cavadas no solo e cobertas de mato.
Curtidores robustos, sentados sob o toldo dos terraços de en-
trada na rua, amassavam peles bovinas com suas mãos vigo-
rosas. Mercadores estavam sentados embaíxo de tendas com
montes de pederneiras, pólvora e fuzís. Um armênio pendu-
rava lenços de tecido caro. Um tártaro gírava espetos de car-
ne ovina misturada com massa. Um judeu, com o pescoço es-
ticado para frente, destilava aguardente de um barril. Mas o
primeiro que eles encontraram foi um zaporogo que dormia
bem no meio da estrada, com as pernas e os braços estirados.
Tarás Bulba não podia deixar de parar e admirá-1o.
-Que jeíto de se apresentar, hein! Ora, mas que fígura
magnífica! -disse ele, detendo o cavalo.
De fato, cra um quadro bastante engraçado: o zaporogo
estava estendido na estrada como um leão. Seu topete erguido
altívamente ocupava meio ¢rcÁz.#í6 do solo. As bombachas de
tecido escarlate fino estavam sujas de breu, o que demonstra-
va um total desprezo paracom elas. Passada a admíração,
Bulba seguíu adiante por uma rua estreita e atravancada de
artesãos ocupados com seu ofício e de gente de todas as na-
cionalidades que enchiam aquele arraba]de, o qual se asseme-
lhava a uma feira que vestia e alímentava a Siétch; esta, por
sua vez, só sabia passear e atirar com espingardas.
Fínalmente eles atravessaram o arrabalde e viram algu-
mas casinhas separadas cobertas com palha ou, ao estilo tár-
]6 Medida equivalente a 0,71 m. (N. do T.)
32 Nikolai Gógol
ii`i.ti. |`()m feltro. Outras estavam equipadas com canhões. Em
luHm .`lgum se viam cercas ou aquelas casinhas baixas com
it.l.Iti` sobre colunas de madeira, como eram no arrabalde.
I lm i`('queno aterro e uma paliçada, que não eram protegidos
itt n .`hsolutamente ninguém, mostravam uma incrível des-
iu t.t ii`iipação. Alguns zaporogos corajosos, que estavam dei-
i.iil()` l)em no caminho com cachimbos nos lábios, olharam
i}.ii..` ty, recém-chegados de forma bastante indiferente e não
`iii`r" do lugar. Tarás passou entre eles cuidadosamente com
o` tilhos, dizendo: "Olá, senhores!" -"01á para vocês!",
i`..`ii(mderam os zaporogos. Em toda parte, por todo o cam-
iiii, :`píirecia gente em forma de montes pitorescos. Por cau-
w ili` `eus rostos queimados de sol, via-se que todos eles es-
ii`v:`iii cndurecidos pelos combates e que tinham experimen-
i.iiltj ttida sorte de infortúnios. E isso era a Siétch! Esse era o
ni i`l`ti de onde voavam todos os que eram altivos e fortes co-
niti li.(~)i.s! Era dali que a determinação e os cossacos se espa-
lli.`vmi por toda a Ucrânia!
()s viajantes saíram para uma praça espaçosa, onde ha-
1 `` i ii.` lmente o conselho se reunia. Sobre um grande barril tom-
l\,`il() i`stava sentado um zaporogo sem camisa; ele a segurava
n.i* i"ios e costurava os buracos que havia nela. Novamente
t i i.i`minho deles foi interrompido por um bando de músicos,
iiu i``i`io dos quais dançava entusiasmado um jovem zapo-
i um ciue trazia o gorro de lado e agitava os braços. Ele gri-
i .i vi`: "Toquem com mais energia, rapazes! Não tenha pieda-
ilt., l.`t)má: aguardente para todos os cristãos ortodoxos!". E
lit ii"i, com um olho inchado enchia uma caneca imensa para
` .iil.` iini que se aproximava. Em volta do j.ovem zaporogo,
uiii ti`i.`rteto de velhos mexia as pernas com bastante habili-
il.i`lt.; i`les saltavam rodopiando como um redemoinho, qua-
i.. `t)liri. :` cabeça dos músicos, e de repente, agachados, dan-
``iiv,`m a pr;.ssÍ'czdÁ4]7 batendo no chão duro com os tacões
17 l)ança popular russa. (N. do T.)
'''''.'tN ''ulha 33
prateados de forma severa e enérgica. 0 chão bramia de um
modo surdo em toda parte, e no ar, mais ao longe, ressoavam
gop4'Áes e £rop¢'Áes,[8 sacudidas pelos sonoros tacões das bo-
tas. Mas havia um que gritava com mais vivacidade do que
todos e atirou-se na dança seguindo os outros. Sua mecha de
cabelos esvoaçava no vento, o peito robusto estava todo à
mostra; vestia uma pelíça grossa de inverno e o suor escorria
em bicas. "Vamos, tire a pelíça! " -disse afinal Tarás. "Você
está cozinhando! " "Não posso! " -grítou o zaporogo. "Por
quê?" "Não posso3 tenho esse costume: tudo que tiro, eu tro-
co por bebída." 0 rapagão há muito tempo já estava sem
gorro, sem cinto sobre o cafetã e sem lenço bordado; tudo
tínha voado para alguma direção. A multidão crescia e outros
se juntaram aos dançarinos; era impossível assístir sem co-
moção àquela dança, a mais livre e mais £uríosa que o mun-
do i.á viu e que, por causa de seus vigorosos inventores, era
chamada de Á4z4fcbóÁ.19
-Ah, se eu não estívesse a cavalo! -gritou Tarás. -
Eu mesmo iria me atirar nessa dança!
Enquanto isso, começaram a chegar cossacos velhos e
austeros,detopetesgrisalhos,queeramrespeitadospelosser-
viços prestados à Siétch e que por mais de uma vez tinham
exercido a função de chefe. Tarás encontrou logo uma mul-
tidão de rostos conhecidos. Óstap e Andri'í ouviam apenas os
cumprimentos: "Ah, é você, Petchéritsa! Olá, Kozólup! ", "De
onde Deus o trouxe, Tarás?", "Como chegou até aqui, Doló-
to.)", "Saudações, Kírdiága! Saudações, Gústi! Eu nem ima-
ginava vê-1o, Remién!". E os bravos guerreíros, oriundos de
tododquelemundodesregradodaRússíaOriental,beijavam-
-se mutuamente; e daí propagaram-se perguntas: "E o que £oí
feito de Kassián? E Borodávka? E Kolópier? E Pidsíchok?".
" Danças ucranianas. (N. do T.)
" Dança dos cossacos. (N. do T.)
34
Nikolai Gógol
1.', i`tiiiio resposta, Tarás Bulba ouviu apenas que Borodávka
li w ,` i.iiforcado em Tolopan, que Kolópier tinha sido esfola-
`lt i n" ;`rredores de Kizikírmien e que a cabeça de Pidsichok
li n .i `:`lgada num barril e enviada a Tsargrad.2° 0 velho Bulba
li,uxt>ii a cabeça e disse pensativo: "Foram bons cossacos!".
2° Constantinopla. (N. do T.)
1`'''.1\\ l)ll'ba 35
111
|.í havia cerca de uma semana que Tarás Bulba estava
` " `i`us filhos na Siétch. Óstap e Andríi estudavam pouco
n .`rti. militar. A Siétch não gostava de se estorvar com exer-
i.`i`i()s militares e nem de perder tempo; nele a juventude se
liimui'a e se formava por uma única experiência: no próprio
•wtl()r das batalhas, as quais, justamente por isso, eram qua-
w ii`iiiterruptas. Os cossacos consideravam tedioso ocupar-
-nc tl`irante os intervalos com o estudo de qualquer disciplina,
cxi.i.t() o tiro ao alvo e, de vez em quando, o sa[to a cavalo e
w i.í`i`íi pelas estepes e prados; o tempo restante era dedicado
A(i`` fi.stins, sinal de um amplo desprendimento da vontade da
iilin.`. Toda a Siétch apresentava-se como um fenômeno ex-
ii .`()rilinário. Era um banquete incessante, um baile que já
i iiiiii`çava ruidoso e que não tinha fim. Alguns se ocupavam
` iHi` scu ofício, outros armavam suas barracas e se dedicavam
iin i`t)mércio; mas a maior parte farreava de manhã até a noi-
i`., ili```de que nos bolsos ainda tilintasse algum recurso e os
l``.ii` ()btidos não tivessem passado para as mãos dos comer-
` i.u`tcs e taberneiros. Esse banquete geral tinha algo que en-
lt.ii iç`ava. Não era um ajuntamento de bebuns, que se embria-
r\.iw`m de desgosto, mas simplesmente uma baderna furiosa
•lt. .`li`gria. Qualquer um que chegava àquele lugar se esque-
i i.` i. ;`bandonava tudo a que se dedicara até então. Pode-se
`li/i`r que cuspia em seu passado e se entregava despreocupa-
`l.i i`ii`nte à liberdade e à camaradagem daqueles que eram far-
i i\r:`s i`omo ele mesmo, que não tinham nem parentes, nem
l.i i i` nein família, mas apenas o céu livre e o festim eterno de
l'lmit, ltlllba 37
sua alma. Isso produzía aquela alegria furiosa que não pode-
rianascerdenenhumaoutrafonte.Todasashístóriasetaga-
relicesnomeiodaquelaturbareunida,equedescansavaprc-
guíçosamente no chão, eram sempre engraçadas e cheíravam
a narrativas tão fortes e vivas que era precíso ter toda a apa-
renteserenídadedozaporogoparamanteraexpressãoimpas-
sível do rosto, sem ao menos mexer o bígode - o traço cor-
tante pelo qual o russo do sul se distíngue até hoje dos seus
outros irmãos. Era uma alegria embríagada, barulhenta, mas
nãoadeumbotequimcscurecído,ondeumhomemseesque-
ce de si por causa de uma alegria sombria e deturpada5 aqui-
1oeraumcírculoestreitodecolegasdeescola.Adiferençaera
que, em lugar de observar as ordens e as orientações vulga-
res de um professor, eles realizavam íncursões montados em
cinco mil cavalos; em lugar do prado onde se joga bola, eles
tinham fronteíras despreocupadas e desguamecidas, à vísta
das quais um tártaro mostrava sua cabeça ligeira e um turco
olhava ímóvel e severo sob seu tui.bante verde. A diferença
era que, em lugar de serem reunídos à força numa escola, eles
próprios tinham abandonado os pais e as mães e fugiram de
casa; ali estavam aqueles em cujos pescoços já tinha sido co-
1ocada uma corda e que, em lugar da morte pálida, tinham
vístoavida-eumavidadeplenabaderna;aliestavamaque-lesque,porumhábítonobre,nãoconseguiamguardarumsó
copeque no bolso; ali estavam aqueles que até então conside-
ravam que um ducado era uma riqueza, e cui.os bolsos, gra-
ças à píedade dos arrendatários judeus, podíam ser arranca-
dos sem qualquer receio de deíxar cair alguma coisa. Ali es-
tavam todos os seminaristas que não tinham suportado as
vergastadas na academia e nem tinham aprendido uma só
letranaescola;masjuntocomelesestavamosqueconhecíam
Horácio, Cícero e a República Romana. Ali estavam muitos
daqueles oficíais que depois se destacaram nas tropas reais3
aliestavaumamultidãodeguerrilheirosexperienteseinstruí-
dos,quetinhamanobreconvicçãodequetantofazlutaraquí
38
N/kolaiGógol
()ii ;`i.()lá, pois, para um homem nobre, indecência era viver
•rn` hi`talhas. E havia aqueles que ali chegavam apenas para,
ii`ui` t;irde, dizer que tinham estado na Siétch e que já eram
i.iw.`li.iros calejados. Mas quem ali não era? Aquela estranha
i.ci`i`il)lica era realmente uma necessidade daquele sécu[o. Os
iiiii:uites da vida militar, das taças de ouro, dos ricos bro-
i.ii`l{)`, ducados e moedas podiam encontrar trabalho ali em
iiu.`l`iuer época. Os únicos que não encontrariam nada ali
rn`i`` :`queles que amavam as mulheres, pois estas nem ousa-
viim iiparecer nos arrabaldes da Siétch.
A Óstap e Andríi parecia estranho demais que chegasse
iiin `i`m-número de pessoas à Siétch, e sem que ninguém se-
•iw iierguntasse: de onde vem essa gente, quem são e como
•c i.h`mam? Chegavam ali como se voltassem para sua pró-
prií` i`asa, da qual tivessem saído há apenas uma hora. 0 re-
i.6i``-i`hegado apresentava-se apenas ao ÁocÁ)eLJóí.,2í que habi-
t`i{`l iiicnte dizia:
-Olá! E então, acredita em Cristo?
-Acredito! -respondia o recém-chegado.
-E crê na Santíssima Trindade?
-Creio!
-E vai à igreja?
-Vou!
-Bem, faça o sinal da cruz!
0 recém-chegado fazia o sinal da cruz.
-Muito bem! -respondia o Áocbc'#óf.. -Entre no ba-
i,` ih.i()22 que você já conhece.
21 Comandante supremo do exércjto cossaco de Zaporójie. Era tam-
l.ém i`hamado de atamã Áocbevóí.. A palavra ÁocbcLJó! vem de Áocb, uma
ii`i``.i` .idornada com um rabo de cavalo e que simbolizava a autoridade do
•.ii"`iidante. 0 atamã ÁocÁ)cuó!. era eleito democraticamente pelos pró-
riri.)s i`()ssacos. Podia ser destituído a qualquer momento, também por
ii`i`it>ri.i de votos, se cometesse algum crime ou se fosse considerado um
ii`i``i i`()mandante. (N. do T.)
22 No original, Á#7f.é#. Essa palavra designava uma divisão adminis-
•l'arás Bulba
39
Com isso termínava toda a cerímônia. E toda a Siétch
rezava numa só ígreja e estava pronta para defendê-1a até a
última gota de sangue, embora não quisesse nem ouvir falar
sobre jejum e abstinêncía. Apenas os judeus, armênios e tár-
taros, induzídos por uma forte cobiça, ousavam víver e co-
mercializar nos arrabaldes, porque os zaporogos nunca gos-
taram de pechinchar e pagavam a quantia de dinheíro que a
mão tirasse do bolso. Entretanto, o destino desses comercían-
tesganancíososeralamentável.Eramparecidoscomaqueles
que moravam ao pé do Vesúvio, pois logo que acabava o di-
nheiro dos zaporogos, estes bravos destruíam suas barracas
e tomavam tudo de graça. A Siétch era constituída de sessenta
e poucos batalhões, que se assemelhavam a repúblícas sepa-
radas, índependentes, ou mesmo a uma escola ou a um semi-
nário de alunos ínternos. Nínguém acumulava nem guarda-
va nada consigo. Tudo ficava nas mãos do atamã23 do bata-
lhão, que era por isso chamado habitualmente de paizínho.
Ele guardava dínheiro, roupas, víveres, farinha de aveía e de
milhoeatécombustível;entregavam-lhetodoodinheiropa-
ra que guardasse. Não raro, ocorríam disputas entre os bata-
lhões. Nesses casos, a coísa descambava para brigas de ver-
dade. Os batalhões cobríam a praça e trocavam socos entre
sÍ até que alguns não resistiam e deixavam de avançar con-
traosoutros;daícomeçavaumafestança.AssimeraaSiétch,
que tinha tantos atrativos para os i.ovens.
ÓstapeAndrííatiraram-secomtodooardordajuven-
tude naquele mar de badernas e esquecerain de ímediato a
trativadaSíétch,podendosertraduzidatambémporacampamento.Como
unidade tática em combate, o Á#7J.c'# assemelha-se a um batalhão, sendo
divid[do em sóí#« (centúrias ou esquadrões). (N. do T.)
23 Possivelmente a palavra %mã tem a mesma origem de bémz
0 termo era usado para designar o comandante do cxército ou de um ba-
talhãocossaco.Nesteúltímocaso,empi-egava-seaforma¢f4mõÁz#7jewou
apenas Á#7!`e#i.. (N. do T.)
40
Nikolai Gógol
i.asa do pai, o seminário e tudo o que outrora lhes preocupa-
va a alma; e daí se entregaram à nova vida. Tudo os atraía:
(is costumes baderneiros da Siétch, a administração descom-
iilii`ada e as leis que, às vezes, lhes pareciam até bastante se-
vi`r.`s no interior de uma república tão indisciplinada. Se um
i.(}ssaco cometesse um roubo, se furtasse uma bagatela qual-
•iiii`r, isso era considerado uma infâmia para todos os cos-
\.`i`()s; então, o infame era amarrado ao pelourinho e a seu
l.iilti era colocado um porrete, com o qual todos que pas-
`.```cm por ali estavam obrigados a desfechar-lhc um golpe,
`it`` que morresse. 0 devedor que não pagava era acorrenta-
`lu `` um canhão, onde tinha de permanecer até que algum
\lti` scus companheiros resolvesse resgatá-lo, pagando sua
`Ii`vida. Porém, o que mais causou impressão a Andríi foi a
i`i`m estabelecida para assassinato. Nesse caso, abria-se uma
i twa na frente do assassino, colocavam-no vivo ali dentro e
i`()r cima dele o caixão que guardava o corpo de sua vítima;
i`m seguida cobriam a ambos com terra. Muito tempo de-
i`tn` Andríi ainda tinha a visão daquele terrível ritual de su-
i`li'i it) e daquele homem enterrado vivo junto com um caixão
ll,lll.l,roso.
Em pouco tempo os dois jovens já eram bem vistos pe-
li}` t)utros cossacos. Frequentemente eles saíam para a este-
i`(. i()m alguns companheiros, às vezes até com todo o bata-
lli.iti e com seus vizinhos, para caçar um sem-número de es-
i`{`.iii`s de aves, cervos e cabritos; ou então iam para os lagos,
i.it)` i` canais, que eram desviados para cada batalhão, e daí
ii iHi`vam redes e levavam ricas pescarias para alimentar a to-
`lti`. Embora nessas situações não houvesse ciência em que
uiii i`()ssaco pudesse ser colocado à prova, eles se destacavam
i.iirri` os outros jovens pela audácia direta e pela sorte em tu-
`li}. ^tiravam no alvo com desenvoltura e de modo certeiro,
i i.`il.wam no Dniepr contra a correnteza, ato pelo qual um no-
v,iiu i`ra aceito solenemente nos círculos de cossacos.
Mas o velho Tarás lhes preparava outra atividade. Não
1.irÁs Bulba 41
lhe agradava uma vida tão ociosa - ele queria ação de ver-
dade. Ficava imaginando como levantar a Siétch para uma
ação de valor, onde pudessc se divertir como cabe a um ca-
valeiro. Finalmente um dia ele foi até o Áoc4evóg. e disse de
forma direta:
-E então, Á:ocbért/ój., não é hora dos zaporogos se diver-
tirem?
-Não há onde se divertir -respondeu o Áoc4ez/óÇ., ti-
rando da boca um pequeno cachimbo e cuspindo para um
lado.
--Como não há? Podemos ir para Turiéschina ou para
a Tatarva.
-Não podemos ir nem para Turiéschina e nem para a
Tatarva - respondeu o Áocbeyóí., colocando tranquilamen-
te seu cachimbo na boca outra vez.
-Como não podemos?
- É isso mesmo. Nós prometemos paz ao sultão.
- Mas ele é muçulmano; e Deus e as Sagradas Escritu-
ras mandam combater os muçulmanos.
-.-- Não temos o direito. Se não tivéssemos jurado por
nossa fé, então podia ser; mas não foi assim. Agora não po-
demos.
-Como não podemos? Por que você diz: não temos o
direito? Pois eu tenho dois filhos, ambos são jovens. Nem um
nem outro estiveram sequer uma vez numa guerra, e você diz
que não temos o direito? Você diz que os zaporogos não po-
dem ir?
-Bem, as coisas não são mais desse jeito.
•- Pois então é assimque a força dos cossacos desapa-
reça em vão, que o homem pereça como um cachorro, sem ter
feito uma obra boa, e para que nem a pátria nem o Cristia-
nismo tirem dele qualquer proveito? Então para que nós vi-
vemos, para que diabo nós vivemos? Explique-me isso! Você
é um homem inteligente, não foi em vão que o escolheram
como ÁocÁ}evóz.; explique-me: para que nós vivemos?
42 Nil(olai Gógol
( ) Á:ocb€vóÍ. não deu resposta a essa pergunta. Era um
` ii``{`i`ti teimoso. Ele ficou calado por um instante e depois
'l',hl,:
- Apesar de tudo, não vai haver guerra.
-Então não vai haver guerra? -perguntou de novo
l arás.
- Não.
-Então não se deve nem pensar nisso?
- Não se deve nem pensar nisso.
"F,spere só, seu filhote do Cão!" ~ disse Bulba para si
inc`iiit). "Você vai ver só!" E decidiu se vingar do Áoc47evóz'.
l)epois de conversar com uns e outros, ofereceu a todos
iin`.i l)ebedeira, e os cossacos embriagados, num certo nú-
nit.i.(} de homens, foram direto para a praça, onde estavam
iiiii.u.rados num poste os tambores em que batiam para reunir
u itmselho. Como não encontraram as baquetas, que eram
h``ii`pre guardadas pelo tamboreiro, eles pegaram uma acha
(. i`()meçaram a bater nos tambores. 0 primeiro a correr pa-
i.,i .` pancadaria foi o tamboreiro, um homem alto, caolho,
tiiie apesar de tudo parecia terrivelmente sonolento.
-Quem se atreve a bater nos tambores? -gritou ele.
- Cale-se! Pegue suas baquetas e toque quando lhe
ii`.`iidarem! -responderam os comandantes que se aproxi-
''':\Vam.
0 tamboreiro tirou imediatamente do bolso as baquetas
`iui` trazia consigo, pois conhecia muito bem o desfecho de
\t.iiielhantes ocorrências. Os tambores troaram -e logo ban-
`li>` negros de zaporogos se ajuntaram na praça como marim-
l`{indos. Todos se reuniram em pequenos círculos, e depois da
i t.rl`cira pancadaria, finalmente chegaram os comandantes: o
A.Í)t.Á7eL;óz' com a maça na mão, sinal de sua autoridade, o juiz
i`(m o sinete do exército, o escrivão com o tinteiro e o css4zí/
i.()m um cetro. 0 kocbevóí. e os comandantes tiraram os gor-
rt)s e saudaram a todos os cossacos, que permaneciam de pé
i.()m as mãos na cintura.
l'.`rás Bulba 43
-0 que significa essa reunião? 0 que desejam, senho-
res? -disse o ÁocbÉ'tJóÍ'. Injúrias e gritos não o deixaram fa-
lar.
-Largue a maça! Largue a maça agora mesmo, filho do
Cão! Não queremos mais você! -gritavam da turba os cos-
Sacos.
Parecia que alguns que estavam sóbrios queriam se opor;
mas os batalhões, tanto os bêbados como os sóbrios, parti-
ram para a briga. Foi uma gritaria e uma barulheira geral.
0 ÁocbctJó/. queria falar, mas sabia que a turba livre,
uma vez furiosa, podia surrá-lo até a morte por causa disso,
coisa que sempre acontecia em semelhantes situações; então
ele fez uma profunda reverência, largou a maça e sumiu na
multidão,
-Senhores, desejam que nós também larguemos estas
insígnias de autoridade? -disseram o juíz, o escrivão e o
c'ss¢zé/, já se preparando para largar o tinteiro, o sinete do
exército e o cetro.
- Não, vocês ficam! - gritaram da turba. - Precisá-
vamos apenas expulsar o Áocbevóz., porque ele é um maricas;
precisamos de um homem no comando.
- E quem vocês vão escolher para kocbevóí? - disse-
ram os comandantes.
-Escolhemos Kukubienko! -gritava uma parte.
-Não queremos Kukubienko! -gritava outra parte.
-É cedo para ele, ainda está cheirando a leite!
-Que Chilo seja o atamã! -gritavam alguns. -Va-
mos colocar Chilo no comando!
-Uma sovelada24 na sua cabeça! -gritava a turba
com iima injúria. --0 que vale um cossaco assim, se esse fi-
24 Há aqui um jogo de palavras intraduzível. A palavra "chilo" (so-
vela, espécie de agulha grossa de sapateiro) é empregada por Gógol co-
mo iiome próprio e como substantivo comum. (N. do T.)
44 Nikolai Gógol
lhn ilt` um cão rouba como um tártaro! 0 diabo que carregue
iiiM`i `.ii`() esse bêbado do Chilo!
- Borodati, vamos pôr Borodati no comando!
-Não queremos Borodati! Que Borodati vá pro infer-
„('1
-Gritem "Kirdiága"! -sussurrou Tarás Bulba para
"h,,,".
-Kirdiága! Kirdiága! -gritava a turba. -Borodati!
l\(w.tiil{iti! Kirdiága! Kirdiága! Chilo! Ao diabo com Chilo!
N,.,li;iga!
Quando ouviram seus nomes sendo pronunciados, todos
•i` i ,uididatos saíram imediatamente da turba, a fim de não
•lin i\i.nhum pretexto para que pensassem que eles estavam
` ( n`i i.il)uindo para sua própria eleição.
-Kirdiága! Kirdiága! -ressoava mais forte que os de-
ii`i`i``. -Borodati!
A questão foi resolvida pela contagem das mãos, e Kir-
illi{Hi` venceu.
-Tragam Kirdiága! -começaram a gritar.
l``,ntão uma dezena de cossacos se separou da multidão;
iilpuns deles mal se mantinham em pé, de tanto que tinham
lu.hi(l(), e foram logo atrás de Kirdiága informá-lo sobre sua
.l,.i\.iio.
Kirdiága, embora velho, era um cossaco inteligente; já
iinh` se recolhido ao seu batalhão, fingindo não ter a míni-
" ideia do que estava se passando.
-Pois não, senhores, o que desejam? -perguntou ele.
-Venha, você foi escolhido como kocbecJóí.!...
-Tenham dó, senhores! -disse Kirdiága. -Desde
\iwmdo sou digno de tanta honra? Como posso ser Áocbeyó¢?
N.iti tenho juízo bastante para o exercício dessa função. Será
`iui` não havia ninguém melhor em toda a tropa?
-Vamos, estão chamando você! -gritaram os zapo-
i.(i*()s. Dois deles pegaram-no pelo braço; embora tivesse re-
`i`tido com unhas e dentes, ele foi finalmente arrastado para
l'.`rás Bulba 45
a praça, acompanhado de injúrias e impelido por exortações,
socos e pontapés. - Não recue, fílho do Cão! Aceíte a hon-
ra que lhe deram, seu cachorro!
Dessa forma é que Kirdiága foi levado ao círculo de cos-
Sacos.
-E então, senhores? -exclamaram aqueles que o ti-
nhamtrazido.-Vocêsestãodeacordoqueestecossacosei.a
o nosso kocheuói?
-Todos de acordo! -começou a grítar a turba, e o
grito ecoou por todo o campo.
Um dos comandantes pegou a maça e a ofereceu para o
recém-eleito kocbevóí.. Seguíndo a tradição, Kirdiága a re-
cusou. 0 comandante ofereceu outra vez. Kirdiága recusou
denovo,esónaterceíravezaaceitou.Umgrítoencorajador
ressoou por toda a multidão, e novamente começou a ecoar
por todo o campo o grito dos cossacos. Então saíu do meio
do povo o quarteto de cossacos mais velhos, de topetes e bi-
godes grisalhos (não havia homens muito velhos na Siétch,
poisnenhumzaporogomorriademortenatural),edepoísde
cada um pegar um punhado de terra, que na ocasião tinha
virado lama por causa de uma chuva recente, puseram-no na
cabeça do Áoc6evój.. A terra molhada escoi-reu de sua cabe-
ça, atingiu os bigodes e as faces e lambuzou todo o seu ros-
to. Mas Kírdiága permaneceu imóvel e agradeceu aos cossa-
cos pela honra concedida.
Assim terminou a barulhenta eleição, que não se sabe se
tinha agradado aos outros tanto quanto a Bulba: dessa for-
ma ele tínha se víngado do Áoc¢eoóç. anteríor e, além disso,
Kirdiága era seu velho companheiro e tinha estado a seu lado
em campanhas por terra e por mar, dividíndo a dureza e as
dificuldades da vida guerreíra. A turba se dispersou para co-
memorar a eleição, e foi organizada uma farra como até en-
tão Óstap e Andríi nunca tinham vísto. As tavernas foram
arrebentadas5ohidromel,aaguardenteeacervejaforamsim-
plesmente apanhados, sem pagamento; e os taverneiros ainda
46
Níkolai Gógol
li` ;`r.iin felizes por terem saído ilesos. A noite passou inteira
i.iii ri. gritos e canções que celebravam proezas. A lua que sur-
ii,u .`iiida contemplou por muito tempo os grupos de músicos
`iHi. ii.issavam pelas ruas com bandurras, pandeiros e balalai-
` .i` ."redondadas, e de cantores de igreja, os quais eram man-
iiilti` na Siétch para os cantos religiosos e de louvores aos
li`ir()s dos zaporogos. Finalmente a embriaguez e o cansaço
` t)iiicçaram a vencer aquelas cabeças duras. E via-se aqui e
.` li um cossaco caindo ao chão. Um companheiroabraçava o
i.iitro, comovido e até em prantos, e caía junto com ele. Aqui
ui`` bando se deitava formando um monte, ali um outro pro-
i urava o melhor lugar para se deitar, terminando por se en-
i.t)çtar logo num tronco de árvore. 0 último, que era mais
`tirte, ainda pronunciava umas palavras sem nexo; por fim,
i t()rça da embriaguez o abateu, e ele desabou - e toda a
`ii`.tch adormeceu.
'l`arás Bulba 47
No outro dia, Tarás Bulba já consultava o novo kocbe-
iJi;/. sobre como levantar os zaporogos para alguma ação. 0
Aw t..bcoóf. era um cossaco inteligente e astucioso, conhecia os
/.`itorogos em todos os aspectos, e começou dizendo: "Não
wttli`mosquebrarojuramento,issonãopodemosdeieitone-
i`liui`i". E depois de um silêncio, acrescentou: "Não faz mal,
iwMli`mos fazer algo, sim; não vamos quebrar o iuramento,
iu.`` imaginaremos alguma coisa. Só precisamos que o povo
`t. i.t'úna, mas não por minha ordem, e sim por vontade pró-
w Você já sabe como £azer isso. Depois eu irei imediata-
"m com os comandantes para a praça, como se não sou-
l``.ssc de nada".
Não se passou nem uma hora depois dessa conversa, e
mtamboresjácomeçaramasoar.Oscossacosapareceramde
i.t`pente,bêbadosetresloucados.Ummilhãodegorrossurgiu
`iiliitamentenapraça.Levantou-seummurmúrio:"Quem?...
m quê?... Por que convocaram essa reunião?". Ninguém
i`.`pondia. Finalmente ouviu-se num canto e no outro: "A
loi.çacossacaestáseperdendoemvão:nãohámaisguerra!...
`)`comandantesficarammolengasdevez,estãoatédeolhos
uichados!... Pelo ieito, não existe justiça nesse mundo!". Os
t)utros cossacos ouviram esse começo e depois eles m.esmos
i)usei.am-se a falar: "Realmente não existe nenhuma iustiça
i`cssemundo!''.Oscomandantespareciamassombradoscom
.`quelas palavras. Finalmente o kocbevóg. avançou e disse:
- Permitam que eu lhes fale, senhores zaporogos!
- Fale!
49
Tarás Bulba
- 0 que está em discussão, nobres senhores, e talvez
saibam dísso melhor do que eu, é que muitos zaporogos es-
tão devendo tanto nas tavernas dos judeus e para seus pró-
príos írmãos que nem mesmo um díabo concederá maís cré-
dítoaeles.Alémdisso,oquetambémestáemdíscussãoéque
há muitos rapazes que aínda nem sabem o que é uma guer-
ra; e os senhores sabem muito bem que um jovem não pode
fícar sem guerra. Que zaporogo vai ser ele, se nenhuma vez
bateu num muçulmano?
"Ele fala bem", pensou Bulba.
-Todavia,senhores,nãopensemqueeudígoissopara
quebrar a paz, Deus me lívre! Estou apenas falando. Além
disso, temos um templo divíno. É até pecado dizer, mas a
Siétchexistehátantosanos,graçasaDeus,eatéhojenãohá
scquer um adorno nem do lado de fora e nem nas imagens!
QuiseraDeusquealguémselembrassedeforjarumamoldura
para elas! Elas só receberam o que foi deíxado em testamen-
toporalgunscossacos.Eodonativodeleserapobre,porque
tínham gastado quase tudo em bebidas. Assím, eu faço este
discursonãoparacomeçarumaguerracomosmuçulmanos:
prometemos.paz ao sultão, e seria um grande pecado para
nós, porque iuramos por nossos mandamentos.
"Quetramaéessaqueeleestáarmando?"-disseTarás
para si mesmo.
- Então, como veem, senhores, não podemos começar
uma guerra. A honra de cavaleiro não permite. Mas, em meu
pobre i.uízo, eu penso o seguinte: podemos permítír que al-
guns jovens, em canoas, vasculhem um pouco as costas da
Anatólia. 0 que acham, senhores?
-Mande todos, mande todos! -a multidão começou
a. gritar por toda parte. - Pela fé estamos prontos para ar-
riscar nossas cabeças!
0 Áocbeú se assustou; ele não queria de modo algum
lev?ntaroZaporójíeínteiro:nestecaso,romperapazlhepa-
recia uma coisa incorreta.
50
Nikolai Gógol
-Permitam-me, senhores, dizer mais uma coisa!
-Basta! -gritaram os zaporogos. -É melhor não di-
i,rr iii:`is nada!
- Então, que assim seja! Sou um servo da vontade de
v()i`ês. É sabido por todos, e sabe-se pelas Escrituras, que a
vw ilo povo é a voz de Deus. É impossível imaginar algo mais
ii`ii`hi'nte do que aquilo que é imaginado por todo o povo.
M.`` há um porém: os senhores sabem que o sultão não dei-
wi`rii iiiipune o deleite desses jovens. Mas nesse ínterim, nós
|Á t``t:`ríamos preparados, nossas forças descansadas, e não
ii`iut`ríamos a ninguém. E durante essa ausência, os tártaros
iwul"` atacar; os cães dos turcos não vão se atirar à nossa
1 i {.i`ti. c nem ousarão invadir a casa na presença do dono: vão
uioi.tlcr no calcanhar, e a mordida será dolorosa. E para di-
/i`i. .` verdade, nós nem temos canoas de reserva, e a pólvora
i i n `i'il;i não é suficiente para que todos possam partir. Mas sou
ii.Iv .m ser um servo da vontade dos senhores.
0 astucioso kocbc'c/óí. se calou. Os bandos começaram a
i.tHwi`rsar, os atamanes dos batalhões deliberavam: os bêba-
tlm, t-clizmente, eram poucos, e foi decidido que seguiriam o
` t ii``clho prudente.
Na mesma hora alguns homens lançaram-se à margem
()iiti`ta do Dniepr, ao depósito das tropas, onde, em esconde-
i iim inacessíveis, sob a água e no meio de juncos, estavam
i.`i`t]tididos os tesouros e parte das armas tomadas do inimi-
Hu Todos os outros lançaram-se às canoas para examiná-las
i` i"pará-[as para a viagem. Num instante a margem ficou
` lim de gente. Alguns carpinteiros apareceram com macha-
`lm nas mãos. Velhos zaporogos queimados de sol, de om-
hrti` largos e pernas robustas, bigodes negros e meio grisa-
ll`()s, com as bombachas arregaçadas, estavam na água até os
ii ).`lhos e puxavam as canoas da margem com cabos resisten-
i`.`. Outros carregavam troncos secos e todo tipo de madei-
i .`. Aqui revestiam uma canoa com tábuas; ali viravam-na de
i`.`beça para baixo e a vedavam; acolá, seguindo um costume
1 arás Bulba 51
cossaco, prendíam feíxes de juncos comprídos às bordas de
outrasembarcaçõesparaqueestasnãofosseminundadaspe-
lasondasdomar;portodaacostaarmaramfogueirasefer-
verampícheemcaldeirõesdecobreparaacoberturadoscas-
cos.Osvelhoseosveteranosdavamconselhosaosjovens.As
batídaseagritaríadostrabalhadoresseestenderamportoda
a redondeza; a margem ínteira ficou víva e agítada.
Nessahora,umagrandebalsacomeçouaseaproximar
damargem.Nelahavíaummontedegenteacenandodelon-
ge. Eram cossacos de cafetãs rasgados. Sua vestímenta esta-
va.emdesordem-muítosnãotinhamnadaalémdeumaca-
misaeuincachimbodecanocurtonaboca-,indicandoque
elestínhamescapadodeumadesgraçaqualquer,ouentãoti-
rihamfarreadotantoquegastaramaténãosobrarnadaso-
breocorpo.Umcossacobaíxoteedeombroslargos,deuns
cinquenta anos, destacou-se do meío deles e parou à frente.
Elegrítavaeagjtavaamãocommaísforçadoquetodos,mas
por.causa das batídas e dos gritos dos trabalhadores não se
ouviam suas palavras.
-0quetrazemdenovo.)-perguntouoÁocÁepój.quan-
do o barco chegou à margem.
Todos os trabalhadores, ínterrompendo suas tarefas e
mantendoerguidososmachadosefomões,fícaramatentos.
-Uma desgraça! -gritou da balsa o cossaco baixote.
- Como.?
-Senhores zaporogos, permítam que eu lhes fale.?
- Fale!
-Ou talvez queiram reunir o conselho.?
- Fale, estamos todos aquí.
0 povo se ajuntou num úníco bando.
-Acasonãoouvíramnadasobreoqueestáacontecen-
do na Hetmánschina.)25
25 Estado autônomo dos cossacos que ociipou a parte central do
atualterritóríodaUcrânia,incluindo,entKoutras,ascídadesdcKíev,
52
Nkolai Gógol
-0 que foi? -exclamou um dos atamanes.
-Como assim "o que foi?"! Pelo jeito, os tártaros ta-
r®rí`m seus ouvidos com cola para que não ouvissem nada.
-Fale logo: o que está acontecendo por lá?
- 0 que está acontecendo nós nunca vimos desde que
n..ccm()s e fomos batizados.
- Diga-nos logo o que está acontecendo, filho de um
•`lí}l -gritou alguém do meio do povo, pelo visto já sem
p"`.,ê.ncia.
-Chegou um tempo em que as santas igrejas não são
mi`is nossas.
-Como não são nossas?
-Agora são arrendadas pelos judeus. E se o pagamen-
t{} iião é feito com antecedência, então não se pode celebrar
l''issa.
-0 que você está dizendo?
-E se o cão judeu não puser sinais com

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