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Coleção LESTE Nikolai Gógol TARÁS BULBA Tradução, posfácio e notas Niudldo dos Santos editoral34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo -SP Brasíl Tel/Fax (11) 3811-6777 www.edítora34.com.br Copyright © Edítora 34 Ltda., 2007 Tradução © Nivaldo dos Santos, 2007 A FOTOcól.lA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E llEGAI. E CON[`lGURA UMA AI'ROPRIAÇÃO INDF.VIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Título c)riginal: Tarás Bulba lmagem da capa: Desenho de Eugêne DelacToix (1798-1863), Museu Delacroix, Paris Pboto RMN © Herué Leu)andotuski Capa, proieto gráfico e editoração eletrônica: Bracher d Malta Produção Gráfica Revisão: Fabrício Corsaletti 1o Edíção -2oo7, 2a Edição -2o| |, 3a Edição -2o|g CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Gógol, Nko!ai,1809-1852 Tarás Bulba / Nikolâi Ciógol; t[adução, posfácio e notas de Nivaldo dos Santos - São Paulo: Edi[o[a 34, 2019 (3@ Edição). 176 p. (Coleção Leste) ISBN 978-85-7326-386-2 Tradução de: Tarás Bulba 1. htemtura russa. 1. Santos, Nivaldo dos. II. Título 111 Série. CDD -891.73 Tarás Bulba TARÁS BULBA Pos£ácío, Niualdo dos Santos TARÁS BULBA As notas do tradutor fecham com (N. do T.); as notas da edição rus- sa, com (N. da E.). Traduzído do original russo, de N. V. Gógol, J'5674##j`G proj`suedí.é- #j4 # du#Á¢ fomóÁ4 (Obras selecionadas em dois volumes), Leningrado, Ed. Lenizdat,1965. -Ah, vire-se, meu filho! Que engraçado você está! E que levita de pope] é essa que está usando? É assim que to- dos andam na academia? -Foi com tais palavras que o ve- lho Bulba recebeu seus dois filhos, que estudavam no semi- nário2 de Kíev e voltavam à casa do pai. Seus filhos tinham acabado de descer dos cavalos. Eram dois jovens robustos, que ainda olhavam de soslaio como alu- nos recém-saídos do seminário. Seus rostos firmes e saudáveis estavam cobertos pelo primeiro buço, ainda não tocado pela navalha. Eles estavam muito confusos por aquela recepção do pai e permaneciam imóveis, de olhos voltados para o chão. -Parem, parem! Deixem-me olhá-los bem -continuou ele, fazendo-os virar. -Mas que cafetãs3 tão compridos! Que cafetãs! Nunca se viu uns cafetãs desses no mundo. Pois cor- ra um de vocês! Quero ver se não leva um tombo se enros- cando nos panos. -Não ria, paizinho, não ria! -disse afinal o mais ve- lho deles. -Ora, veja só que orgulhoso! E por que eu não riria? ] Sacerdote russo. (N. do T.) 2 No origmal, GG£rscí. Trata-se de uma espécie de colégio imerno, mi- cialmente de caráter religioso. (N. do T.) `' No origina[, sv;`Íkc7, espécie de meio cafetã utilizado pelos ucra- nianos. (N. da E.) T.irás Bulba -Emboravocêsei.ameupai,secontínuararír,juropor Deus que lhe dou uma surra! -Ah, seu fílho de uma qualquer! Bate no seu pai, é?... - disse Tarás Bulba, recuando surpreso alguns passos. - É isso mesmo. Não levo desaforo de ninguém. -E como você quer lutar comígo? Com os punhos? - Do jeito que for. -Bem,vamoslá,comospunhos!-disseTarásBulba, arregaçandoasmangas.-Veremosquetípodehomemvocê é com os punhos. E pai e filho, ao ínvés de saudações após a longa ausên- ci:, começaram a trocar socos nos flancos, nas costas e no peito, ora recuando e olhando em volta, ora recomeçando no- vamente. -Vejasó,boagente:umvelholouco!Perdeuojuízode vez!-disseamãepálída,magrelaebondosa,queestavaper- todoumbraleaindanãoconseguiraabraçarseusfilhosque- ridos - Os filhos víeram para casa, há mais de um ano que nãoosvíamos,eelepensoulogonísso:lutarcomospunhos! -Sim,elelutabem!-disseBulba,detendo-se.-Juro por Deus que é bom! -continuou ele, recompondo-se um pouco. - Nem é preciso experimentar. Será um bom cossa- co!Bem,sejabem-vindo,filho!Dêumabraço!-Epaíefílho começaram a se beii.ar. -Muíto bem, filho! Bata em qual- quer um assím, do jeito qiie você me socou, não se rebaixe díante de nínguém! Mas apesar disso, sua roupa é engraça- da3quecordaéessaaípendurada?Evocê,rapaz,porque€stá aíparadodebraçosestirados?-dísseele,vírando-separao caçula. -Por que não bate em mim, filho de um cão? -Ora, mas que ideia! -disse a mãe, que então abra- çava o caçula. -De onde tirou a ídeia de um filho legítimo baternopai?Ejustamenteagora:omeninoéjovem,fezuma longa viagem, está cansado (esse meníno tinha mais de vinte anos e exatamente dois metros de altura); agora ele precisa é dormír, comer alguma coísa, e você quer obrigá-1o a lutar! 10 Nikolaí Gógol -Ah, estou vendo que você é um mimadinho! -disse Bulba. -Não dê ouvidos a sua mãe, filho; ela é mulher, não sabe de nada. Do que é que vocês precisam? Precisam de cam- po aberto e um bom cavalo. Aí está do que precisam! E estão vendo este sabre? Isto é a mãe de vocês! É tudo besteira aqui- lo que meteram na cabeça de vocês: academia, todos aque- li.s livros, cartilhas, filosofia, e toda aquela sabença. Pois eu cuspo nisso tudo! --Aqui Bulba expressou literalmente uma palavra que nem mesmo se emprega numa publicação. - É iiielhor que eu mande vocês já na próxima semana para Za- i)orójie.4 É onde está a ciência de verdade! É lá que está a es- c()la de que precisam; só lá vão criar juízo. - Mas então, eles só vão ficar em casa por uma sema- iia? -disse num lamento a mãe velha e magrela, com lágri- iiias nos olhos. - Os pobrezinhos não poderão passear, não r)oderão conhecer a casa paterna, e eu nem poderei olhar di- reito para eles! -Chega, chega de uivar, velha! Um cossaco não é para viver com mulheres. Você iria escondê-los embaixo da saia e ficaria sentada em cima deles como uma galinha choca. Va- mos, vamos, e coloque logo na mesa tudo o que houver aí. Não precisa de bolinhos, docinhos de mel, docinhos de papoula e ()utras guloseimas; traga-nos um carneiro, uma cabra e hidro- mel envelhecido! E bastante aguardente, mas não aquela de mentira, com passas e tudo quanto é bobageira, e sim a aguar- dente pura, bem forte, que borbulha e espuma feito louca. Bulba levou os filhos para a sala principal, de onde saí- ram correndo apressadas duas criadas jovens e bonitas usan- do colares vermelhos e que estavam arrumando a casa. Pelo 4 Zapo[ójie é Lima região ucraniana localizada às margens do rio I)ni€pr e que, entre os séculos Xvl e XVIII, scrviu como quartel-general do exército cossaco. A palavra Z4Poró/m é formada a partir da preposi- ção Z4 (do outro lado de) mais o substantivo porog#í (corredeiras). Os zaporogos cossacos que habitavam essa região seriam "aqueles que vivem do outro lado das corredeiras". (N. do T.) Tarás Bulba Í,l visto,elasseassustaramcomachegadadosfilhosdopatrão, que não gostavam de perder oportunidades; ou então que- ríamsimplesmentepreservarumcostumefeminíno:odegri- tarefugirdepressaaoverumhomem,paradepoisficarpor muíto tempo cobríndo o rosto de tanta vergonha. A sala es- tava arrumada ao gosto daquela época cu).as vivas alusões fi- carf m somente nas canções e no imagínário popu|ar, já não mais cantadas na Ucrânía por velhos cegos e barbudos, com acompanhamento das cordas suaves de uma bandurra e o povo em volta; ao gosto daquela época difícil, de guerras, quando começavam a se desencadear na Ucrânía os comba- tes e as batalhas pela União.5 Tudo estava limpo, revestído com argila colorída. Nas paredes havia sabres, chicotes, re- des para pássaros, redes de pesca e espingardas, um chífre parapólvorahabilmentetrabalhado,umabfídadouradapa- ra cavalos e travas com chapas prateadas. As janelas da sala erampequenas,comvidrosredondoseopacos,talcomohoje emdiasóseencontranasigrei.asantigas,eatravésdosquaís nãosepodeenxergar,amenosqueselevanteovidromóvel. Ao redor das janelas e portas havia adornos vermelhos. Nas prateleiraspeloscantoshaviajarros,garrafõesefrascosdeví- dro azul e verde, taças de prata lapidadas,cálices banhados aou.roetrabalhadosemtodoestílo-veneziano,turco,cir- ca?siano - e que entraram na casa de Bulba de diversas ma- neiras, por terceiras e quartas mãos, o que era bastante co- mum naqueles tempos de valentía. Os bancos de bétula ao redor de todo o cômodo, a mesa enorme sob os ícones no cfnto da entrada, o grande forno com salíêncías e reentrân- ciasecobertocomazulei.osdevariadascores;tudoaquiloera bastante familiar aos nossos dois jovens, que todo ano ví- nham para casa na época das férias, e vinham a pé porque aíndanãotinhamcavalosenãoeracostumepermitírquees- 5Uniãoentrealgre)'aCatólicaealgreiaOrtodoxaGrega,querece- b"apomdaPolônia,masfoícombatidapelosucraniaiios.(N.doT.) 12 Níkolai Gógol riidantes andassem montados. Tinham apenas um topete que iiualquer cossaco que levasse uma espingarda podia puxar. Só ii()r ocasião da saída definitiva do seminário é que Bulba lhes enviou dois jovens garanhões de sua própria tropa. Por causa da chegada dos filhos, Bulba mandou chamar r()dos os só£#Í.Ás6 e oficiais do regimento que estivessem pre- sentes; e quando chegaram dois deles e mais o ess#ú/7 Dmitro Tóvkatch, seu velho companheiro, ele apresentou imediata- itiente seus filhos, dizendo: "Vej.am só que rapagões! Logo vou mandá-los para a Siétch".8 0s visitantes parabenizaram Bulba e os dois jovens, dizendo que era uma boa coisa o que fdziam e que não havia ciência melhor para um jovem do que í`quela da Siétch de Zaporójie. -Bem, senhoresg e irmãos, sentem-se onde cada um .ichar melhor. Muito bem, filhos! Antes de mais nada, beba- mos aguardente! -assim falava Bulba. -Deus nos abençoe! Sí`úde, meus filhos: você, Óstap, e você, Andríi! Queira Deus que na guerra sejam sempre bem-aventurados! Que matem os infiéis, os turcos e os tártaros; e quando os polacos começa- rem a fazer algo contra a nossa fé, que matem também a eles! Bcm, aproxime seu copo. E então, é boa a aguardente? E co- iii() se diz aguardente em latim? Ora, ora, filho, eram burros ()s latinos: eles nem sabiam que no mundo existia aguardente. C(]mo se chamava mesmo aquele que escrevia versos latinos? Não sou muito [etrado, por isso não sei. É Horácio, não é? 6 Chefe de esquadrão cossaco. Posto equivalente a segundo-tenente. (N. do T.) 7 Capítão cossaco. (N. do T.) 8 A Siétch era uma fortificação militar criada pelos cossacos e que pi)ssui`a a infraestrutura de uma pequena cidade. A primeira delas foi fun- il.`ila, no século XVI, i)or Dmitri Baida Vichnievestski numa ilha do Dniepr tli.nt]minada Málaia Khortítsa. Esta ilha, ho)e, é conhecida pelo nome de B:`id.i. (N. do T.) 9 N() original, p47% (senhores, em polonês). (N. do T.) l'imis Blllba 13 "Vejam só esse meu paí!", pensava consígo o mais ve- lho,Óstap."Sabetudoessecãovelho,masficaaífingíndo." -Acho que o arquimandrita não os deixava sequer cheírar aguardente -contínuava Tarás. -Confessem, fí- lhos:açoítavamvocêscomvarasdegini.eírasnascostaseem tudoaquiloquetemumcossaco?Outalvez,porteremsetor- nadologobastanteai.uízados,surravamvocêscomchicotes, não.) E decerto não só aos sábados, mas também às quartas e quintas? respo=druã:okás:::uqeu_:r::móbsrtaarp:=Uôã:Ses;:;s%au],Z;na::o= -Poís que tentem agora! -disse Andríi. -Só quero veralguémmeofenderagora!Eseumbandodetártarosapa- recer, vão saber o que é o sabre de um cossaco! -Muito bem, filho! Por Deus muito bem! E já que é assím,euvoucomvocês!JuroporDeusquevou!Quediabo vou esperar aqui.? Para eu me tornar um plantador de trigo- -sarraceno, um dono de casa, cuidar de ovelhas e porcos e molengar com a mulher.) Maldita seja: eu sou um cossaco, não quero Ísso! E daí que não estamos em guerra.? Eu vou comvocêsaoZaporójíeparapassear.JuroporDeusquevou! - E o velho Bulba foí pouco a pouco se exaltando, se exal- tando,eafinalseirrítoudevez,1evantou-sedamesae,estu- fando o peito, bateu com o pé no chão. -Iremos amanhã! Paraqueadiar.'Queinimigopodemosesperaraquísentados.) ParaqueprecísamosdestakÃW"Paraqueprecisamosdis- sotudo.'Paraqueessespotes?-Dítoisto,elecomeçouadar socos e arremessar potes e cantís. Apobrevelhinha,jáacostumadacomessesprocedímen- tosdeseumarido,viatudocomtristezasentadanumbanco. Nãoousavadizernada;mas,aoouvíradecísãoqueparaela eratãoterrível,nãoconseguíuconteraslágrimas;olhoupa- ra seus filhos, cuja separação tão breve a ameaçava -e nin- ]° Casa de campo ucraniana. (N. do T.) 14 Níkolai Gógol guém poderia descrever toda a força silenciosa de sua afli- ção, que tremia em seús olhos e nos lábios convulsivamente comprimidos. Bulba era extremamente teimoso. Era um daqueles ca- racteres que podiam surgir somente no difícil século XV num canto seminômade da Europa, quando toda a primitiva Rús- sia do sul, abandonada por seus príncipes, estava devastada, reduzida a cinzas pelas indomáveis incursões dos saqueadores mongóis; quando o homem, depois de perder a casa e o teto, ali tornou-se intrépido; quando em meio aos restos do incên- dio, à vista de vizinhos terríveis e da ameaça constante, ele se instalou e se acostumou a olhá-los diretamente nos olhos, tendo esquecido se no mundo existia algum perigo; quando o outrora pacífico espírito eslavo cobriu-se de uma chama guerreira e apareceram os cossacos -um vasto e desregrado proceder da natureza russa - e quando todos os caminhos marginais, vaus, margens de rios e lugares apropriados foram ocupados pelos cossacos, cuja quantidade ninguém sabia di- zer, e os valentes companheiros tinham razão ao responder para um sultão, que desejava saber quantos eram eles: "Quem é que sabe? Estamos espalhados por toda a estepe: cada mor- rinho é um cossaco" (quer dizer, onde há uma pequena coli- na, lá está um cossaco). Era exatamente um extraordinário fenômeno da força russa: fora expelido do seio do povo por um raio de desgraças. Em lugar dos antigos feudos, dos pe- quenos vilarejos repletos de cachorreiros e monteiros, em lu- gar dos pequenos principados com cidades que comerciali- zavam e se hostilizavam mutuamente, apareceram aldeias fe- rozes, acampamentos e cercados unidos pelo perigo comum e pelo ódio aos saqueadores anticristãos. Pela História todos já sabiam como sua eterna batalha e sua vida turbulenta sal- varam a Europa das incursões indomáveis que ameaçavam destruí-la. Os reis poloneses, que tinham se tornado senho- res das terras mais extensas no lugar dos príncipes feudais, embora distantes e fracos, compreenderam o significado dos Tarás Bulba 15 cossacoseasvantagensdeumavídatãoguerreiraevígilante. Elesosincentivavamebajulavamconitodadísposíção.Sob seupoderdístante,osÁe'£m4#es]tescolhidosentreospróprios cossacostransformaramoscercadoseacampamentosemver- dÀa_d_eí_[_?.S_F=g_í=eTtoçedí_stritos:-riiíe_r-{:=a.'r.?:rí:àcal,FnvEt doereunido,poísnínguémovíaassjm;masemcasodeguer- ra ou de um movímento geral, cada um aparecía num cava- 1o,comtodooseuequjpamento,recebendodoreíapenasum ducado]2comopagamento,eemduassemanasorganízava- -seumexércítocomonemnasforçasregularessepoderiare- crutar. Terminada a campanha, o combatente saía para os p_radosecamposlavradosouparaosvausdoDniepr,een- tao pescava, comercializava, fazía cerveja e tornava-se um fossacolivre.Osestrangeírosmodernosseespantavamentão justamente por suas extraordinárjas virtudes. Não havia um ofícíoqueocossaconãoconhecesse:destílarvínhos,equípar uma telega, fabrícar pólvora, realízar trabalho de ferreiro e serralheiroe,somadoaissotudo,passeardesvaíradamente, beber e farrear como só um russo é capaz - tudo ísso era muitofácHparaele.Alémdoscossacosregistrados,quecon- sideravamumdeverapresentar-seemtemposdeguerra,po- dia-se a qualquer momento, e em caso de grande necessida- de, reunír multidões inteiras de voluntários: bastava que os ess4zé/spassassempelosmercadosepraçasdetodasasaldeias e povoados e gritassem com toda força, de pé numa telega: "Eí,vocês,cerve).eirose.toneleiros!Chegadefazercervej.a,de ficarmolengandoporcimadosfornosealimentarasmoscas]]Amaío"dosestudiososconsideraqiieapalavra%~vemdo alemão%%"(chefe).Essapa]avrapenetrou,comcertasvariações, emváriaslínguaseslavas,comoopolonês,oucranianoeotcheco.Entre oscossacos,oW"eraochefedeumdistrítooumesmot>governador de um temtóriq podendo exercer também a função de comandante em chefe do exérc`ito. (N. do T.) "Noorigínal,£ctewó"ezs,antigamoedadeoiirocii)ovalor,em diferentesépocas,oscilavaentre3,50e10rublos.(N.doT.) 16 Níkolai Gógol com seus corpos gordurentos! Venham marchar em busca da lionra e da glória dos cavaleiros! Vocês, lavradores, planta- ilores de trigo-sarraceno, pastores de ovelhas e mulherengos! Chega de andar atrás do arado, de sujar na terra suas botas i`marelas, de cortejar as esposas e destruir a força de cavalei- ro! É hora de a[cançar a glória cossaca!". E essas palavras ei.am como faíscas que caíam numa árvore seca. 01avrador largava seu arado, os toneleiros e cervejeiros jogavam seus tonéis e despedaçavam os barris, o artesão e o comerciante mandavam ao diabo o ofício e a barraca, quebravam potes i`in casa. E todos, sem exceção, montavam num cavalo. Nu- ina palavra: o caráter russo ganhou aqui uma poderosa e ex- tensa ampliação, um aspecto vigoroso. Tarás era um dos velhos e radicais coronéis: todo ele fo- ra criado para a ânsia guerreira e se distinguia pela sincerida- cle grosseira de seu temperamento. A inf[uência da Polônia já começava então a se mostrar sobre a nobreza russa. Muitos iá adotavam os costumes poloneses, adquiriam o luxo, a cria- dagem suntuosa, falcões, monteiros, banquetes e palácios. Isso não era do gosto de Tarás. Ele adorava a vida simples dos i`()ssacos e rompeu com aqueles que, dentre os seus compa- nheiros, estavam inclinados para o lado de Varsóvia, cha- mando-os de lacaios dos senhores poloneses. Eternamente in- (iuieto, ele considerava a si próprio um legítimo defensor da t]rtodoxia grega. Entrava arbitrariamente nas aldeias onde houvesse queixas pela opressão dos arrendadores e do au- mento excessívo dos novos impostos. Com seus cossacos, ele mesmo aplicava-lhes um castigo, e estabeleceu para si a regra de que se deveria usar o sabre em três casos: quando os comis- siírios não respeitassem os chefes e ficassem de gorro diante dcstes, quando zombassem da ortodoxia grega e não respei- t:`ssem a lei dos antepassados e, finalmente, quando os inimi- g()s fossem muçulmanos e turcos, contra os quais ele conside- rava que, em qualquer situação, era permitido levantar armas r).ira glória da cristandade. l'á`r.ís Bulba 17 Agora ele se entretínha com a ideía antecípada de apa- fecer com seus dois fílhos na Siétch e dízer: "Vejam só que iovens eu trouxe a vocês! ", de apresentá-los a todos os velhos e aguerridos companheiros, de ver as primeiras façanhas de ambos na ciência bélica e na farra, que ele considerava tam- bém uma das qualidades ímportantes de um cavaleiro. Inícíal- mente ele queria envíá-los sozínhos. Mas, em vísta da juven- tude, da estatura e da beleza vigorosa e corada de ambos, seu espírito se inflamou e já no outro dia decidíu ir com eles, em- bora a necessidade disso fosse apenas a sua vontade obstina- da. E logo ele já estava gesticulando e dando ordens, esco- lhendoosarreioseoscavalosparaseusjovensfilhos,questio- nando ora na cavalariça, ora nos celeiros, e escolheu os cría- dos que deveriam ír com eles no día seguinte. Transferiu seu poder ao ess4ú/ Tóvkatch junto com a ordem expressa de partír ímediatamente com todo o seu regimento, se fosse re- cebida uma ordem da Siétch. Embora ele estivesse contente e a embríaguez aínda vagasse em sua cabeça, não havia se es- quecido de nada. Ordenou ínclusive que dessem água aos ca- valosecolocassemparaelesotrigomelhoremaisconsistente, e voltou cansado de suas preocupações. - Bem, filhos, agora é preciso dormir, e amanhã fare- mos o que Deus quíser. E não arrume a cama para nós! Não precisamos de cama. Vamos dormir no pátio. A noíte mal tinha abraçado o céu, mas Bulba sempre se deitava cedo. Ele se esparramou num tapete, cobriu-se com uma peliça de pele de carneiro, porque o ar da noite era bas- tante fresco e porque Bulba gostava de se abrigar e fícar bem aquecidoquandoestavaemcasa.Logoelecomeçouaroncar, e todo o pátio o seguíu; tudo que havia nos díferentes cantos do pátio começou a roncar e cantar; a sentínela adormeceu antes de todo mundo, poís tinha bebído mais do que todos pela chegada dos jovens patrões. Sozinha, a pobre mãe não dormia. Ela estava apoiada à cabeceira da cama de seus querídos filhos, que estavam dei- 18 Nikolai Gógol [.\tlos um ao lado do outro; penteava-lhes os cabelos encara- itilados, jovens e desgrenhados, umedecendo-os com lágri- iiií`s; ela olhava inteiramente para eles, olhava com todos os hL.ntidos, transformou-se toda num olhar e não podia mais vi.r a si mesma. Ela os amamentara com seu próprio peito, ela ()s i`riou e educou -e os viu diante de si por um instante ape- n.is. "Meus filhos, meus filhos queridos! 0 que será de vocês? ( ) que os espera?" -dizia ela, e as lágrimas se detiveram nas i.iit:as, que tinham transformado seu rosto outrora belo. Ela m rcalmente uma infeliz, como qualquer mu[her daquele séciilo intrépido. Viveu o amor por apenas um instante, ape- nas na primeira febre da paixão, na primeira febre da juven- tiide, e [ogo seu rude sedutor a trocou pelo sabre, pelos com- i)iinheiros e pela farra. Via o marido dois ou três dias por ano, i. depois, durante alguns anos, não tinha nenhum sinal dele. 1.`, quando se encontravam, quando estavam juntos, que tipo ili` vida ela tinha? Suportava ofensas e até surras; apenas por piedade recebia carícias ocasionais, ela era um ser estranho mquela turba de cavaleiros solteiros inveterados, sobre os quais o desregrado Zaporójie lançava seu áspero co[orido. A iuventude sem prazer passou rapidamente diante dela, e os seios e as faces belas e frescas murcharam sem beijos e cobri- rí`m-se de rugas prematuras. Todo o amor, todo o sentimen- t(), tudo que há de carinhoso e apaixonado numa mulher, tudo nela voltou-se para um único sentimento de maternida- de. Com ardor, paixão e lágrimas ela flutuava sobre seus fi- lhtis como uma gaivota das estepes. Seus filhos, os seus que- iidos filhos estavam sendo tirados dela, estavam sendo tira- dos para não vê-los nunca mais! Quem sabe, talvez na pri- iiieira batalha um tártaro lhes partisse as cabeças, e ela nem saberia onde jaziam os seus corpos abandonados e sendo de- vt)rados por uma ave de rapina de beira de estrada; por cada g()ta do sangue deles, ela daria tudo de si própria. Soluçan- d{), ela os olhou bem, quando o todo-poderoso sono já come- ç`.`va a cerrar seus olhos: "Quiçá quando despertar, Bulba Tarás Bulba 19 adie a partida por uns doís dias; talvez ele tenha planejado partír tão depressa por ter bebido muito". Doaltodocéualuahámuítojáilumínavatodoopátío repletodeadormecidos,odensomontedesalgueíroseomato crescido,ondedesaparecíaaestacadaquecercavaopátio.Ela permaneciasentadajuntoàcabeceiradeseusquerídosfilhos, e nem por um mínuto desviou deles os olhos e sequer pensa- va no sono. Sentíndo o amanhecer, todos os cavalos se dei- taram na relva e pararam de comer; as folhas maís altas dos salgueíroscomeçaramamurmurar,epoucoapoucoumjor- ro sussurrante desceu por eles até embaíxo. Ela permaneceu sentada até o amanhecer, não estava de nenhuma maneíra fatigada,enofundodesejavaqueanoiteseestendesseomá- ximopossível.Daestepechegouosonororelinchodeumpo- tro, e listras vermelhas apareceram no céu. Bulba despertou de repente e deu um salto. Ele se lem- brava-mBue,:o,::Fazdees't:Íeog:udeeàrodre:,ar:aÉnhao:Í::e;::a,Deem águaaoscavalos!Ondeéqueestáavelha?(Eraassimqueele habitualmentechamavasuaesposa.)Depressa,velha,prepa- re-nos algo para comer: o caminho é longo! Apobrevelhinha,despojadadesuaderradeíraesperan- ça,camínhoutrístementeparaaÁb4£cz.Enquantoelaprepa-rava em meio às lágrímas tudo que era precíso para o café da manhã,Bulbadavasuasordens,íadeumladoparaoutrona cavalariça e escolhia ele mesmo os melhores equipamentos paraseusfílhos.Osseminaristassetransformaramderepen- te:einlugardasbotassujas,elesapareceramdebotasverme- Ihasdecouromaciocomferradurasprateadas;bombachasda larguradoMarNegrocomcentenasdepregaseapetrechos, apertadasporumcínturãodourado;aocinturãoestavamen- ganchadaslongascorreiascomborlaseoutrosutensi'Iiospara cachímbo. 0 cafetã de cor vermelha, de um tecído brílhante como fogo, era cingído por um cinto bordado; pístolas tur- cas cínzeladas estavam metidas no cinto; o sabre ressoava 20 Nikolai Gógol l`.`ti`iidt) nas pernas. Seus rostos ainda pouco bronzeados pa- i.c.ii`m mais belos e brancos; os bigodes negros agora realça- w`i`i mais claramente a brancura de ambos e a cor saudável c vig()rosa da juventude; eles ficaram bem com aqueles gor- i i )` iiegros de pele de carneiro com a parte superior dourada. ^u vê-los, a pobre mãe não conseguiu proferir uma palavra, c .is lágrimas detiveram-se em seus olhos. -Bem, filhos, tudo pronto! Não há por que demorar! -afinal exclamou Bulba. -Agora, de acordo com o costu- ii`i` i`ristão, é preciso que nos sentemos por um momento an- 1`.` da partida.13 Todos se sentaram, inclusive os rapazes que permane- ciam respeitosamente junto às portas. -Agora abençoe seus filhos, mãe! -disse Bulba. - Ri`ze a Deus para que eles lutem bravamente, que defendam `i`mpre a honra de cavaleiro, que se mantenham sempre na fé i.m Cristo, senão é melhor que desapareçam, para que seus i``píritos sumam do mundo! Aproximem-se de sua mãe, fi- lhtjs: a oração materna salva na água e na terra. A mãe, fraca como uma mãe, abraçou-os; pegou dois i)i`quenos ícones e colocou-lhes no pescoço, soluçando. -Que a Mãe de Deus... os proteja... Não se esqueçam de sua mãe, meus filhos... mandem uma notícia pelo menos... -Ela não conseguiu dizer mais nada. -Bem, vamos, filhos! -disse Bulba. Junto à marquise estavam os cavalos selados. Bulba sal- t()u em seu Diabo, que recuou com raiva ao sentir sobre si iima carga de vinte PzócJs,]4 porque Bulba era extraordinaria- mente pesado e gordo. " Trata-se de um antigo costume que amda hoje é seguido por mui- tos russos. Quando uma pessoa vai realizar uma longa viagem, ela senta- -se momentos antes da partida e imagina o trajeto que percorrerá até o seu dcstirio. (N. do T.) 14 Antiga medida de peso equivalente a 16,38 kg. (N. do T.) Tarás Bulba 21 cossaca de sobrancelhas Quando a mãe viu que seus filhos já tínham montado nos cavalos, ela se atirou ao maís novo, cuj.os traços do ros- to expressavam uma ternura maior; agarrou-o pelo estribo, grudou-se em sua sela e com desespero nos olhos não o dei- xava sair de suas mãos. Dois cossacos robustos a pegaram com cuidado e levaram-na para a ÁZÁ~ Mas quando eles passaram pelo portão, ela saiu correndo com a agilidade de uma cabra montesa, algo íncompatível com sua idade, dete- veocavalocomumaforçaínacreditáveleabraçouumdeseus filhos com um ardor alucinado e ínconsciente; e outra vez a levaram. Osjovenscossacosseguiamconfusos,contendoaslágrí- mas, c?m medo do pai que, por sua vez, também estava um poucoinquieto,emboraseesforçasseparanãoodemonstrar. 0diaestavacinzento,agramabrilhavademodointenso,as avesgorjeavamemdesordem.Depoisdeavançaremumpou- co,elesolharamparatrás;aaldeíaquasedesapareceranater- ra, via-se apenas as duas chaminés da casínha modesta e as copasdasárvores,emcujostroncoselessubiamcomoesqui- 1os; diante deles estendía-se apenas um prado distante - o pradopeloqua]elespodiamrecordartodaahistóriadesuas vídas, desde os anos em que rolavam pela relva coberta de orvalhoatéostemposemqueesperavampassarumajovem r`r`eo^-r` À^ ^_L _ _ negras, que criizava por alí temero- saeapressadacomaajudadesuaspernasrobustaselígeiras. E agora apenas o mastro acima do poço, com uma roda de telegaatadanoalto,apareciasolítárionohorízonte3elogo a planiície que eles haviam atravessado pareceu tomar a for- madeumamontanha,eencobríutudo.Adeusàínfância,às brincadeiras, a tudo, tudo! 22 Nikolaí Gógol Os três cavaleiros seguiam em silêncio. 0 velho Bulba i)i.iisava no passado: diante dele passava sua mocidade, os i`ii()s transcorridos, pelos quais um cossaco sempre chora, de- *i.jtiso de que sua vida inteira fosse de juventude. Pensava em qmis daqueles seus antigos companheiros ele encontraria na Siéti`h. Calculava quais tinham perecido, e quais ainda esta- v:`iii vivos. Uma lágrima se arredondava silenciosamente em `ii:` pupila, e sua cabeça grisalha inclinou-se com tristeza. Seus filhos estavam ocupados com outros pensamentos. M:`s é preciso dizer algo mais sobre eles. Aos doze anos fo- r:im confiados à Academia de Kíev, porque todos os dignitá- i.i()` de então consideravam indispensável dar educação a seus lilhos, embora fizessem isso para depois esquecê-la por com- iili`to. Eram então como todos os que ingressavam no semi- iiário, selvagens, criados em liberdade, e que ali se tornavam habitualmente um pouco civilizados, recebendo uma educa- ção em comum, que os fazia parecerem uns com os outros. (')stap, o mais velho, começou sua carreira fugindo já no pri- iiiciro ano. Levaram-no de volta, castigaram terrivelmente e () plantaram na frente dos livros. Ele enterrou quatro vezes sua i`artilha na terra, e quatro vezes lhe compraram uma no- va, depois de o açoitarem de forma desumana. Mas, sem dú- vida, ele teria repetido isso pela quinta vez, se o pai não lhe tivesse feito a promessa solene de encerrá-lo nos serviços mo- násticos por vinte anos inteiros e não jurasse de antemão que, se ele não estudasse todas as ciências na academia, jamais ve- Tarás Bulba 23 riaZaporójie.Écuriosoqueístotenhasidodítopelopróprio Tarás Bulba, que xingava todo saber científíco e, como já vimos,aconselhavaosfílhosanãoseocuparemcomele.Des- de então, Óstap passou a fícar sentado na frente dos lívros enfadonhoscomumânimoextraordínário,elogoseigualou aos melhores. 0 tipo de ensíno daquele tempo divergía ter- rivelmente do modo de vida: aquelas particularídades esco- lásticas, gramaticais, retóricas e lógicas defínitívamente não combinavamcomaépoca,nuncaseai.ustavamenemseapli- cavam à vida. Os que aprendíam não podiam assocjar a nada os seus conhecimentos, e menos aínda os conhecimentos es- colástícos.Osprópriosmestresdeentãoerammaisignoran- tes do que os outros, porque estavam totalmente afastados daprática.Ademais,aestruturarepublicanadoseminárío,a horrível multidão de pessoas j.ovens, robustas e saudáveis - :u::Íâseomdâ:,:u.:sfuoncdu,:ançe::::sTuadaat:::f.aÃ::::e:1:t::ean,:: mentaçãoeojej.umfrequentementeusadocomocastígo,ou- trasvezesasmuitasnecessídadesquesemanifestamnumjo- vemforte,saudáveleviçoso-tudoissojuntoproduziane- les aquela intrepidez que depois se desenvolvia em Zaporó- jie. Os seminaristas famíntos percorriam as ruas de Kíev e obrigavamtodosaficarematentos.Asvendedorasqueesta- vam nos bazares, tão 1ogo viam um seminarista passando, semprecobríamcomosbraçosassuastortas,pãesesementes deabóbora,comoaságuiascomseusfilhotes.0cônsul,que por obrigação devia zelar pelos companheíros que estavam sob sua custódía, tinha os bolsos das bombachas tão gran- desqiiepodíameteralitodaabarracadeumavendedoradis- traída. Esses seminaristas constituíam um mundo completa- menteàparte:elesnãoeramaceitosnocírculomaisalto,for- mado por nobres poloneses e russos. 0 próprío uoj.ezJod4," " Denommação, na Rússia antiga e em alguns outros estados esla- vos,dochefedeuinatropa,deiimaregiãooudeumdistrito.(N.doT.) 24 Nikolai Gógol A(l:`m Kissél, apesar da demonstrada proteção à academia, ii.`() ()s introduzia na sociedade e ordenava que fossem tra- i.iil()s do modo mais severo. Aliás, esse preceito era total- nii.i`tc inútil, porque o reitor e os monges-professores não ti- nl`mm piedade das varase das chibatas, e os lictores, por or- tlt.m i]L.les, frequentemente açoitavam seus cônsules de forma i.`ti i`riiel que estes ficavam passando a mão nas calças duran- it' .`lgiimas semanas. Para muitos deles aqui[o não era abso- l`iiamente nada, e parecia um pouco mais forte do que uma l`tia vodca com pimenta; outros ficavam afinal tão fartos da- tiucles constantes cataplasmas que fugiam para Zaporójie, tli.`ili` que soubessem encontrar o caminho e não fossem apa- iih`cl()s durante o trajeto. Óstap Bulba, embora tivesse come- ``.`ilt7 a estudar lógica e até teologia com grande entusiasmo, ii.iti i`scapava de maneira alguma das varas implacáveis. É na- i u i..`l que isto tenha lhe endurecido um pouco o caráter e in- i utiil() nele a dureza que sempre distinguiu os cossacos. Ós- i.`r f()i sempre considerado um dos melhores companheiros. l`:m`mente ele mandava os outros em aventuras ousadas, co- i" dcvastar um jardim ou uma horta alheia, mas em com- i`t.i`sação era um dos primeiros a se juntar a algum semina- rim mais intrépido, e nunca, em nenhuma situação, delata- v.` `cus companheiros. Nenhuma chibata ou vara conseguia nl)rií:á-lo a fazer isso. Era insensível a outros impulsos que n.lt) .i guerra e a farra desvairada; pelo menos quase nunca i\i.i`sava em outra coisa. Ele era sincero com seus pares. Ti- i`l`.` b()ndade na medida em que esta podia existir num cará- ii`i. i`()mo o dele, e numa época como aquela. Ele estava sin- i`i`rí`mente tocado pelas lágrimas da pobre mãe, e isto era a i'uiii`n coisa que o perturbava e o obrigava a baixar a cabeça ',l.,,sí,tivo. Scu irmão mais novo, Andríi, tinha sentimentos um pou- i`u imis vivos e mais desenvolvidos. Estudava com mais pra- /w e sem o esforço geralmente despendido por um caráter l(}rte e difícil. Era mais criativo que seu irmão; aparecia mais 1.mix Bl'lba 25 frequentemente como líder de aventuras bastante perigosas, e às vezes, com a ajuda de sua inteligência criativa, sabia es- capar do castigo, enquanto seu irmão Óstap, que não toma- va nenhum cuidado, tirava o casaco e se deítava no chão, sem sequer pensar em pedir misericórdia. Ele também era louco por uma proeza, mas sua alma era ao mesmo tempo acessí- vel a outros sentimentos. A necessídade de amor inflamou-se vivamente dentro dele ao completar dezoito anos. A mulher passou a aparecer com mais frequêncía em seus sonhos ar- dentes; enquanto ouvia as dísputas fílosóficas, ele a visua- lizava a cada instante - fresca, de olhos negros, carinhosa. A todo momento passavam diante dele uns seios flamejantes e firmes, uns braços carínhosos, belos e nus; o próprío vesti- do que cobría seus membros fortes e virgínais inspirava em seus sonhos uma volúpia indescrítível. Ele escondia cuidado- samente de seus companheiros esses movimentos de uma al- ma juvenil apaixonada, porque naquele século era uma ver- gonha e uma infâmia que um cossaco pensasse em mulher e amor sem ter experimentado uma batalha. De modo geral, nos últimos anos ele muito raramente aparecia como líder de uma turma, mas vagava sozinho com mais frequência em al- gum recanto isolado de Kíev, mergulhado em jardins de ce- rejeiras e entre casinhas baixas que olhavam sedutoramente para a rua. Às vezes se metía na rua dos aristocratas, na ve- 1ha Kíev dos dias atuaís, onde moravam nobres poloneses e ucraníanos e onde as casas eram construídas com certo ca- pricho. Uma vez, quando caminhava boquiaberto, quase foi atropelado pela carroça de um senhor polonês, e o cocheiro de bigodes enormes que estava sentado na boleia o fustigou bastante bem com o chicote. 0 jovem seminarista fícou fu- rioso: com uma coragem louca, ele agarrou a roda traseira com sua mão poderosa e deteve a carroça. Mas o cocheíro, temendo a reação, deu um golpe nos cavalos; estcs partiram, e Andríí, que felízmente conseguíra tirar a mão da roda, se estatelou no chão com o rosto bem na lama. A mais sonora 26 Nikolai Gógol c h`rmoniosa gargalhada ressoou acima dele. Andríi ergueu m olhos e viu numa janela uma mu[her linda como jamais i uilm visto: de olhos negros e branca como a neve iluminada iN.l.` cor matutina do sol. Ela ria com toda a alma, e o riso M i.t'`ct.ntava uma força brilhante a sua esplêndida beleza. Ele lim pasmo. 0lhou para ela totalmente perdido, limpando il.. t.orma desatenta a lama do rosto que se sujava mais ain~ `lm Quem seria aquela bela mulher? Foi saber junto à crial `h`8t`m, que estava vestida de maneira luxuosa perto dos por- i(-)i.` .` aglomerada ao redor de um jovem que tocava bandur- ri`. Mas a criadagem começou a rir quando viu sua pele suja `. i`t.in deu ouvidos à sua pergunta. Finalmente soube que ela u .` tilha de um uo!.evod¢ de Kovno que viera passar um tem- im :`li. Na noite seguinte, com a audácia típica de um semi- ii.irista, ele entrou no jardim através da paliçada e subiu nu- m .irvore cuios ramos se estendiam até o telhado da casa; da m vm ele passou para o telhado e introduziu-se pela chami- i`{. tl.` lareira diretamente no quarto da bela mulher, que àque- 1.` hora estava sentada diante de uma vela tirando de suas oi.t.lhas os brincos valiosos. A bela polaquinha assustou-se i.`i`to ao ver diante de si um homem desconhecido que não ` m`cguiu pronunciar uma palavra; mas, quando ela perce- l`(`ii que o seminarista estava parado, de olhos baixos e sem m atrever a mover a mão de tanta timidez, quando ela reco- i`l`i`ccu aquele mesmo iovem que tinha se estatelado na rua lm na sua frente, o riso a dominou outra vez. Ademais, nos i r.```os de Andríi não havia nada de terrível: ele era de muito 1`o:` aparência. Ela ria com sinceridade, e se divertiu bastan- m .`h custas dele. A bela jovem era leviana, como uma po- I.i`iiiinha, mas seus olhos maravilhosos, brilhantes ç clargs l.ii```i`vam um olhar demorado, constante. 0 seminarista nao wmi`guia mover a mão, como se estivesse amarrado dentro J.` iun saco; foi quando a filha do vo!.evoJ4 se aproximou dele m hesitação, pôs em sua cabeça um diadema brilhante, pen- `l`irou-lhe os brincos nos lábios e lançou sobre ele uma blu- l';`r.is Bulba 27 sinhademusselinatransparentecomornatosbordadosaou- ro.Elaoarrumavaefaziacomelemíltohcesdiferentescom adesenvolturainfantilqueécaracterísticadaspo]aquinhasle- víanas,oquedeixouopobresemínarístaaindamaísemba- raçado.Elerepresentavaumafiguraridícula,debocaaberta eolhandoimóvelparaosseusolhínhosdeslumbrantes.Nes- sa hora, uma batída que ressoou na porta a assustou. Ela o fezesconder-sedebaixodacama,elogoqueoperigopassou, chamousuaaia,umaservatártara,edeu-lheaordemdelevá- -[ocomcuidadoparao)ardimedespachábdaliatravésda cerca. Mas desta vez o nosso semínarísta não atravessou a cerca com tanta ventura: o vígía que despertava o agarrou firmementepelaspernas,eacriadagemreunidaoespancou bastantejánarua,atéquesuaspernas]igeirasosalvaram. Depoisdisso,ficoumuitoperigosopassarpertodacasa,por- queacriadagemdouoí.eüodfleramuitonumerosa.Eleaen- controu de novo numa ígrej`a católíca: ela o notou e sorríu combastanteprazer,comosefosseparaumvelhoconhecí- do.Eleaviudepassagemaindaumavez,elogodepoisdisso o oozezJod4 de Kovno foi embora, e no lugar da bela pola- quinhadeolhosnegrosapareciaumrostogordonas]anelas. AíestánoquepensavaAndríi,comacabeçainclinadaeos olhos voltados para a crína de seu cavalo. Mas enquanto Ísso, a estepe há muito tempo ;.á tinha tomadoatodoselesemseusbraçosverdes,arelvaaltaque seacercavaosencobríu,eentresuasespígassóapareciamos gorros negros dos cossacos. -Ora,ora,ora!Porqueéqueestãocaladosassím,ra- pazes?-díssea£inalBu]ba,despertandodesuameditação. -Pareeatéquesãomonges!Bem,deumavezportodas, aodíabocomessespensamentos!Seguremoscachimbosnos dentesevamosfumar;vamosesporeafoscavalosevoarde um jeito que nem uma ave nos alcance! E inclinados sobre os cavalos, os cossacos desaparece- ramnarelva.Jánãosepodíavernemosgorrosnegros;só28 Nkolai Gógol iiiiii` ll`tra de relva amassada indicava o rastro de sua corri- 1,, l,Ht`,,.``. ( ) `til aparecera há muito tempo no céu limpo e banha- vii ,i i```tepe com sua luz viva e calorosa. Tudo que havia de ` i niím() c sonolento na alma dos cossacos sumiu num instan- it`, `. `i.iis corações se agitaram como aves. Qii.`nto mais avançavam, mais bela a estepe se tornava. 1 i ii .it> ttido o sul, toda aquela extensão que constitui a Nova 1` `i``i;` dc hoje, até o Mar Negro, era um deserto verde e vir- Ht.iii. Nunca o arado tinha passado pelas imensas ondas de v{`Ht.t,iç..io selvagem. Eram pisoteadas apenas por uns cavalos i im `i` i`scondiam nelas como num bosque. Não podia haver ii.itl.` nii`lhor na natureza. Toda a superfície da terra apresen- i.iv.i-h.. como um oceano verde-cré, pelo qual brotavam mi- " it.s ili` f[ores diferentes. Através das hastes finas e longas da i i`lv.` trmsparecia uma vegetação fechada, de cor azul-escura, i`/ul-i`i`leste e lilás, uma gesta amarela despontava com seu ` utiii` piramidal, o trevo branco de gorros em forma de guar- il.i i huva abundava na superfície; uma espiga de trigo trazida `.il``. l)cus de onde amadurecia no mato cerrado. Sob suas i .u;i``` finas corriam perdizes com o pescoço esticado. 0 ar t.`i.ivi` repleto de assobios de centenas de pássaros diferentes. Nn i`éu, abutres permaneciam imóveis com suas asas estira- il.i` i` ()s olhos fixos na relva. 0 grito de uma nuvem de gan- `{ i` `elvagens que se deslocava ressoou em algum lago distan- i`..1 )a relva subiu uma gaivota em movimento cadenciado e l`,`iih()u-se magnificamente nas ondas azuis do ar. Lá ela de- `.ii`.`receu nas alturas e apenas cintilava em forma de um pon- iu iic`gro. Lá ela virou as asas e brilhou diante do sol... Que ili.ih()s! Como você é boa, estepe!... Nossos viajantes pararam apenas alguns minutos para o .` 1 iiitiç`o, e o destacamento de dez cossacos que seguia com eles ili.`icu dos cavalos e pegou os cantis de madeira com aguar- tli`iiti. e as cuias que são utilizadas no lugar de vasilhas. Co- ini.ri`ni apenas pão com toucinho ou panqueca e beberam só l`;\'..is Bulba 29 um cálice de aguardente, unicamente para reforço, porque Tarás Bulba nunca permitia que se embriagassem no cami- nho; e daí continuaram a viagem até o anoitecer. À noite, a estepe mudava completamente. Toda aquela extensão colo- rida era abraçada pelo último reflexo de sol e escurecia pouco a pouco, de modo que era possível ver a sombra avançando pela estepe que se tornava verde-escura; vapores se erguiam no mato cerrado, todas as flores e ervas exalavam âmbar, e tudo ali fumegava perfume. No céu azul-escuro havia largas faixas de ouro rosado, como se tivessem sido pintadas por um pincel gigantesco; de vez em quando branquejavam nuvens suaves e transparentes em forma de farrapos, e a brisa fresca e sedutora, semelhante a ondas do mar, quase nem balançava o topo da relva e tocava as faces apenas levemente. Toda a música ouvida durante o dia silenciara e fora substituída por outra. Marmotas de variadas cores saíam de suas tocas, de- tinham-se sobre as patas traseiras e enchiam a estepe de asso- bios. 0 cricrido dos grilos tornava-se mais audível. Às vezes ouvia-se de algum lago afastado o grito de um cisne ecoan- do no ar como metal. Detendo-se no meio do campo, os via- jantes escolheram um lugar para o acampamento, armaram uma fogueira e puseram sobre ela um caldeirão, onde cozi- nharam uma papa; o vapor se desprendia e fumegava no ar. Depois do jantar, os cossacos se deitaram, deixando seus ca- valos amarrados pela estepe. Eles se esparramaram sobre os cafetãs. As estrelas da noite olhavam diretamente para eles. Ouvia-se claramente o inumerável mundo de insetos que en- chiam a relva, todo o seu crepitar, assobio, cricrido - tudo isso ressoava abertamente no meio da noite, purificava-se no ar fresco e embalava os ouvidos sonolentos. Se algum deles se erguesse e se levantasse nessa hora, a estepe se lhe apresen- taria coberta pelas faíscas brilhantes dos vaga-lumes. Às ve- zes, o céu noturno era iluminado em alguns lugares pelo cla- rão distante de um canavial seco queimando pelos prados e margens de rios, e a fileira escura de cisnes que voavam para 30 Níkolai Gógol n iit)rri` foi de repente iluminada por uma luz rosa e prateada, r i.nt ```tj parecia que lenços vermelhos voavam pelo céu escuro. ( )s viajantes prosseguiam sem quaisquer incidentes. Não ll`t.` .`i).`recia sequer uma árvore; era tudo aquela mesma es- iri`i` iiifinita, livre e maravilhosa. De vez em quando divisa- vn -w () cume de um bosque afastado, que se estendia pelas " i.gi`ns do Dniepr. Só uma vez Tarás mostrou aos filhos um i`..`iiii`no ponto enegrecido na relva distante, dizendo: "Ve- ji`i`i, filhos, ali vai um tártaro!". Uma pequena cabeça com l`iRt)des fitava-os de longe com seus olhos oblíquos, farejan- il( i t) m como um cão ga[go, e ao perceber que ali havia treze ` ()``.`cos, desapareceu como um cabrito montês. "Pois bem, lill`()s, tentem alcançar o tártaro!... Não, nem tentem, nun- i.i` vão conseguir: ele tem um cavalo mais rápido que o meu ".`1)(). " Todavia Bulba tomou precauções, protegendo-se de .`hiima emboscada. Eles galoparam até um pequeno riacho ilt.n()minado Tatarka, que desembocava no Dniepr; daí ati- i..`i..`m-se na água com seus cavalos e seguiram por ele para ciii.()brir suas pegadas; depois, saindo para a margem, pros- 8cguiram sua jornada. Três dias depois, já estavam perto do lugar que tinha `iilt) a razão da partida. 0 ar em volta começou a ficar frio; t.li.` sentiram a proximidade do Dniepr. E ali estava ele, bri- lli.`ndo ao longe e se apartando do horizonte numa faixa es- i.ura. Ele tremulava em ondas frias e se alargava mais e mais, `[i'` que finalmente abraçou metade da superfície da terra. Era i`i``se [ugar que o Dniepr, até então infestado de pedras, tor- i`.`va-se finalmente livre e rumorejava como o mar, derra- "`ndo-se à vontade; era ali que as ilhas lançadas no centro ili.`alojavam-no ainda mais das margens, e suas ondas esten- ilií`m-se amplamente pela terra, sem encontrar penhascos nem i`li.vações. Os cossacos desceram de seus cavalos, subiram nu- iii:` barca e, depois de três horas de navegação, já estavam iiH`to às margens da ilha Khortítsa, onde ficava então a Sié- ii`li, que mudava de lugar com bastante frequência. l'á`rás Bulba 31 Um bando de gente discutia na margem com os barquei- ros. Os cossacos arrumaram os cavalos. Tarás assumiu uma postura de valentão, apertou mais o cinto e passou a mão alti- vamente pelo bigode. Seus jovens filhos também se examina- ram dos pés à cabeça com certo temor e uma satisfação inde- finida -e seguiram todos juntos para os arrabaldes, que fi- cavam a meia versta da Siétch. Ao chegarem, foram atordoa- dos por cinquenta martelos de ferreiros batendo nas vinte e cinco ferrarias, que eram cavadas no solo e cobertas de mato. Curtidores robustos, sentados sob o toldo dos terraços de en- trada na rua, amassavam peles bovinas com suas mãos vigo- rosas. Mercadores estavam sentados embaíxo de tendas com montes de pederneiras, pólvora e fuzís. Um armênio pendu- rava lenços de tecido caro. Um tártaro gírava espetos de car- ne ovina misturada com massa. Um judeu, com o pescoço es- ticado para frente, destilava aguardente de um barril. Mas o primeiro que eles encontraram foi um zaporogo que dormia bem no meio da estrada, com as pernas e os braços estirados. Tarás Bulba não podia deixar de parar e admirá-1o. -Que jeíto de se apresentar, hein! Ora, mas que fígura magnífica! -disse ele, detendo o cavalo. De fato, cra um quadro bastante engraçado: o zaporogo estava estendido na estrada como um leão. Seu topete erguido altívamente ocupava meio ¢rcÁz.#í6 do solo. As bombachas de tecido escarlate fino estavam sujas de breu, o que demonstra- va um total desprezo paracom elas. Passada a admíração, Bulba seguíu adiante por uma rua estreita e atravancada de artesãos ocupados com seu ofício e de gente de todas as na- cionalidades que enchiam aquele arraba]de, o qual se asseme- lhava a uma feira que vestia e alímentava a Siétch; esta, por sua vez, só sabia passear e atirar com espingardas. Fínalmente eles atravessaram o arrabalde e viram algu- mas casinhas separadas cobertas com palha ou, ao estilo tár- ]6 Medida equivalente a 0,71 m. (N. do T.) 32 Nikolai Gógol ii`i.ti. |`()m feltro. Outras estavam equipadas com canhões. Em luHm .`lgum se viam cercas ou aquelas casinhas baixas com it.l.Iti` sobre colunas de madeira, como eram no arrabalde. I lm i`('queno aterro e uma paliçada, que não eram protegidos itt n .`hsolutamente ninguém, mostravam uma incrível des- iu t.t ii`iipação. Alguns zaporogos corajosos, que estavam dei- i.iil()` l)em no caminho com cachimbos nos lábios, olharam i}.ii..` ty, recém-chegados de forma bastante indiferente e não `iii`r" do lugar. Tarás passou entre eles cuidadosamente com o` tilhos, dizendo: "Olá, senhores!" -"01á para vocês!", i`..`ii(mderam os zaporogos. Em toda parte, por todo o cam- iiii, :`píirecia gente em forma de montes pitorescos. Por cau- w ili` `eus rostos queimados de sol, via-se que todos eles es- ii`v:`iii cndurecidos pelos combates e que tinham experimen- i.iiltj ttida sorte de infortúnios. E isso era a Siétch! Esse era o ni i`l`ti de onde voavam todos os que eram altivos e fortes co- niti li.(~)i.s! Era dali que a determinação e os cossacos se espa- lli.`vmi por toda a Ucrânia! ()s viajantes saíram para uma praça espaçosa, onde ha- 1 `` i ii.` lmente o conselho se reunia. Sobre um grande barril tom- l\,`il() i`stava sentado um zaporogo sem camisa; ele a segurava n.i* i"ios e costurava os buracos que havia nela. Novamente t i i.i`minho deles foi interrompido por um bando de músicos, iiu i``i`io dos quais dançava entusiasmado um jovem zapo- i um ciue trazia o gorro de lado e agitava os braços. Ele gri- i .i vi`: "Toquem com mais energia, rapazes! Não tenha pieda- ilt., l.`t)má: aguardente para todos os cristãos ortodoxos!". E lit ii"i, com um olho inchado enchia uma caneca imensa para ` .iil.` iini que se aproximava. Em volta do j.ovem zaporogo, uiii ti`i.`rteto de velhos mexia as pernas com bastante habili- il.i`lt.; i`les saltavam rodopiando como um redemoinho, qua- i.. `t)liri. :` cabeça dos músicos, e de repente, agachados, dan- ``iiv,`m a pr;.ssÍ'czdÁ4]7 batendo no chão duro com os tacões 17 l)ança popular russa. (N. do T.) '''''.'tN ''ulha 33 prateados de forma severa e enérgica. 0 chão bramia de um modo surdo em toda parte, e no ar, mais ao longe, ressoavam gop4'Áes e £rop¢'Áes,[8 sacudidas pelos sonoros tacões das bo- tas. Mas havia um que gritava com mais vivacidade do que todos e atirou-se na dança seguindo os outros. Sua mecha de cabelos esvoaçava no vento, o peito robusto estava todo à mostra; vestia uma pelíça grossa de inverno e o suor escorria em bicas. "Vamos, tire a pelíça! " -disse afinal Tarás. "Você está cozinhando! " "Não posso! " -grítou o zaporogo. "Por quê?" "Não posso3 tenho esse costume: tudo que tiro, eu tro- co por bebída." 0 rapagão há muito tempo já estava sem gorro, sem cinto sobre o cafetã e sem lenço bordado; tudo tínha voado para alguma direção. A multidão crescia e outros se juntaram aos dançarinos; era impossível assístir sem co- moção àquela dança, a mais livre e mais £uríosa que o mun- do i.á viu e que, por causa de seus vigorosos inventores, era chamada de Á4z4fcbóÁ.19 -Ah, se eu não estívesse a cavalo! -gritou Tarás. - Eu mesmo iria me atirar nessa dança! Enquanto isso, começaram a chegar cossacos velhos e austeros,detopetesgrisalhos,queeramrespeitadospelosser- viços prestados à Siétch e que por mais de uma vez tinham exercido a função de chefe. Tarás encontrou logo uma mul- tidão de rostos conhecidos. Óstap e Andri'í ouviam apenas os cumprimentos: "Ah, é você, Petchéritsa! Olá, Kozólup! ", "De onde Deus o trouxe, Tarás?", "Como chegou até aqui, Doló- to.)", "Saudações, Kírdiága! Saudações, Gústi! Eu nem ima- ginava vê-1o, Remién!". E os bravos guerreíros, oriundos de tododquelemundodesregradodaRússíaOriental,beijavam- -se mutuamente; e daí propagaram-se perguntas: "E o que £oí feito de Kassián? E Borodávka? E Kolópier? E Pidsíchok?". " Danças ucranianas. (N. do T.) " Dança dos cossacos. (N. do T.) 34 Nikolai Gógol 1.', i`tiiiio resposta, Tarás Bulba ouviu apenas que Borodávka li w ,` i.iiforcado em Tolopan, que Kolópier tinha sido esfola- `lt i n" ;`rredores de Kizikírmien e que a cabeça de Pidsichok li n .i `:`lgada num barril e enviada a Tsargrad.2° 0 velho Bulba li,uxt>ii a cabeça e disse pensativo: "Foram bons cossacos!". 2° Constantinopla. (N. do T.) 1`'''.1\\ l)ll'ba 35 111 |.í havia cerca de uma semana que Tarás Bulba estava ` " `i`us filhos na Siétch. Óstap e Andríi estudavam pouco n .`rti. militar. A Siétch não gostava de se estorvar com exer- i.`i`i()s militares e nem de perder tempo; nele a juventude se liimui'a e se formava por uma única experiência: no próprio •wtl()r das batalhas, as quais, justamente por isso, eram qua- w ii`iiiterruptas. Os cossacos consideravam tedioso ocupar- -nc tl`irante os intervalos com o estudo de qualquer disciplina, cxi.i.t() o tiro ao alvo e, de vez em quando, o sa[to a cavalo e w i.í`i`íi pelas estepes e prados; o tempo restante era dedicado A(i`` fi.stins, sinal de um amplo desprendimento da vontade da iilin.`. Toda a Siétch apresentava-se como um fenômeno ex- ii .`()rilinário. Era um banquete incessante, um baile que já i iiiiii`çava ruidoso e que não tinha fim. Alguns se ocupavam ` iHi` scu ofício, outros armavam suas barracas e se dedicavam iin i`t)mércio; mas a maior parte farreava de manhã até a noi- i`., ili```de que nos bolsos ainda tilintasse algum recurso e os l``.ii` ()btidos não tivessem passado para as mãos dos comer- ` i.u`tcs e taberneiros. Esse banquete geral tinha algo que en- lt.ii iç`ava. Não era um ajuntamento de bebuns, que se embria- r\.iw`m de desgosto, mas simplesmente uma baderna furiosa •lt. .`li`gria. Qualquer um que chegava àquele lugar se esque- i i.` i. ;`bandonava tudo a que se dedicara até então. Pode-se `li/i`r que cuspia em seu passado e se entregava despreocupa- `l.i i`ii`nte à liberdade e à camaradagem daqueles que eram far- i i\r:`s i`omo ele mesmo, que não tinham nem parentes, nem l.i i i` nein família, mas apenas o céu livre e o festim eterno de l'lmit, ltlllba 37 sua alma. Isso produzía aquela alegria furiosa que não pode- rianascerdenenhumaoutrafonte.Todasashístóriasetaga- relicesnomeiodaquelaturbareunida,equedescansavaprc- guíçosamente no chão, eram sempre engraçadas e cheíravam a narrativas tão fortes e vivas que era precíso ter toda a apa- renteserenídadedozaporogoparamanteraexpressãoimpas- sível do rosto, sem ao menos mexer o bígode - o traço cor- tante pelo qual o russo do sul se distíngue até hoje dos seus outros irmãos. Era uma alegria embríagada, barulhenta, mas nãoadeumbotequimcscurecído,ondeumhomemseesque- ce de si por causa de uma alegria sombria e deturpada5 aqui- 1oeraumcírculoestreitodecolegasdeescola.Adiferençaera que, em lugar de observar as ordens e as orientações vulga- res de um professor, eles realizavam íncursões montados em cinco mil cavalos; em lugar do prado onde se joga bola, eles tinham fronteíras despreocupadas e desguamecidas, à vísta das quais um tártaro mostrava sua cabeça ligeira e um turco olhava ímóvel e severo sob seu tui.bante verde. A diferença era que, em lugar de serem reunídos à força numa escola, eles próprios tinham abandonado os pais e as mães e fugiram de casa; ali estavam aqueles em cujos pescoços já tinha sido co- 1ocada uma corda e que, em lugar da morte pálida, tinham vístoavida-eumavidadeplenabaderna;aliestavamaque-lesque,porumhábítonobre,nãoconseguiamguardarumsó copeque no bolso; ali estavam aqueles que até então conside- ravam que um ducado era uma riqueza, e cui.os bolsos, gra- ças à píedade dos arrendatários judeus, podíam ser arranca- dos sem qualquer receio de deíxar cair alguma coisa. Ali es- tavam todos os seminaristas que não tinham suportado as vergastadas na academia e nem tinham aprendido uma só letranaescola;masjuntocomelesestavamosqueconhecíam Horácio, Cícero e a República Romana. Ali estavam muitos daqueles oficíais que depois se destacaram nas tropas reais3 aliestavaumamultidãodeguerrilheirosexperienteseinstruí- dos,quetinhamanobreconvicçãodequetantofazlutaraquí 38 N/kolaiGógol ()ii ;`i.()lá, pois, para um homem nobre, indecência era viver •rn` hi`talhas. E havia aqueles que ali chegavam apenas para, ii`ui` t;irde, dizer que tinham estado na Siétch e que já eram i.iw.`li.iros calejados. Mas quem ali não era? Aquela estranha i.ci`i`il)lica era realmente uma necessidade daquele sécu[o. Os iiiii:uites da vida militar, das taças de ouro, dos ricos bro- i.ii`l{)`, ducados e moedas podiam encontrar trabalho ali em iiu.`l`iuer época. Os únicos que não encontrariam nada ali rn`i`` :`queles que amavam as mulheres, pois estas nem ousa- viim iiparecer nos arrabaldes da Siétch. A Óstap e Andríi parecia estranho demais que chegasse iiin `i`m-número de pessoas à Siétch, e sem que ninguém se- •iw iierguntasse: de onde vem essa gente, quem são e como •c i.h`mam? Chegavam ali como se voltassem para sua pró- prií` i`asa, da qual tivessem saído há apenas uma hora. 0 re- i.6i``-i`hegado apresentava-se apenas ao ÁocÁ)eLJóí.,2í que habi- t`i{`l iiicnte dizia: -Olá! E então, acredita em Cristo? -Acredito! -respondia o recém-chegado. -E crê na Santíssima Trindade? -Creio! -E vai à igreja? -Vou! -Bem, faça o sinal da cruz! 0 recém-chegado fazia o sinal da cruz. -Muito bem! -respondia o Áocbc'#óf.. -Entre no ba- i,` ih.i()22 que você já conhece. 21 Comandante supremo do exércjto cossaco de Zaporójie. Era tam- l.ém i`hamado de atamã Áocbevóí.. A palavra ÁocbcLJó! vem de Áocb, uma ii`i``.i` .idornada com um rabo de cavalo e que simbolizava a autoridade do •.ii"`iidante. 0 atamã ÁocÁ)cuó!. era eleito democraticamente pelos pró- riri.)s i`()ssacos. Podia ser destituído a qualquer momento, também por ii`i`it>ri.i de votos, se cometesse algum crime ou se fosse considerado um ii`i``i i`()mandante. (N. do T.) 22 No original, Á#7f.é#. Essa palavra designava uma divisão adminis- •l'arás Bulba 39 Com isso termínava toda a cerímônia. E toda a Siétch rezava numa só ígreja e estava pronta para defendê-1a até a última gota de sangue, embora não quisesse nem ouvir falar sobre jejum e abstinêncía. Apenas os judeus, armênios e tár- taros, induzídos por uma forte cobiça, ousavam víver e co- mercializar nos arrabaldes, porque os zaporogos nunca gos- taram de pechinchar e pagavam a quantia de dinheíro que a mão tirasse do bolso. Entretanto, o destino desses comercían- tesganancíososeralamentável.Eramparecidoscomaqueles que moravam ao pé do Vesúvio, pois logo que acabava o di- nheiro dos zaporogos, estes bravos destruíam suas barracas e tomavam tudo de graça. A Siétch era constituída de sessenta e poucos batalhões, que se assemelhavam a repúblícas sepa- radas, índependentes, ou mesmo a uma escola ou a um semi- nário de alunos ínternos. Nínguém acumulava nem guarda- va nada consigo. Tudo ficava nas mãos do atamã23 do bata- lhão, que era por isso chamado habitualmente de paizínho. Ele guardava dínheiro, roupas, víveres, farinha de aveía e de milhoeatécombustível;entregavam-lhetodoodinheiropa- ra que guardasse. Não raro, ocorríam disputas entre os bata- lhões. Nesses casos, a coísa descambava para brigas de ver- dade. Os batalhões cobríam a praça e trocavam socos entre sÍ até que alguns não resistiam e deixavam de avançar con- traosoutros;daícomeçavaumafestança.AssimeraaSiétch, que tinha tantos atrativos para os i.ovens. ÓstapeAndrííatiraram-secomtodooardordajuven- tude naquele mar de badernas e esquecerain de ímediato a trativadaSíétch,podendosertraduzidatambémporacampamento.Como unidade tática em combate, o Á#7J.c'# assemelha-se a um batalhão, sendo divid[do em sóí#« (centúrias ou esquadrões). (N. do T.) 23 Possivelmente a palavra %mã tem a mesma origem de bémz 0 termo era usado para designar o comandante do cxército ou de um ba- talhãocossaco.Nesteúltímocaso,empi-egava-seaforma¢f4mõÁz#7jewou apenas Á#7!`e#i.. (N. do T.) 40 Nikolai Gógol i.asa do pai, o seminário e tudo o que outrora lhes preocupa- va a alma; e daí se entregaram à nova vida. Tudo os atraía: (is costumes baderneiros da Siétch, a administração descom- iilii`ada e as leis que, às vezes, lhes pareciam até bastante se- vi`r.`s no interior de uma república tão indisciplinada. Se um i.(}ssaco cometesse um roubo, se furtasse uma bagatela qual- •iiii`r, isso era considerado uma infâmia para todos os cos- \.`i`()s; então, o infame era amarrado ao pelourinho e a seu l.iilti era colocado um porrete, com o qual todos que pas- `.```cm por ali estavam obrigados a desfechar-lhc um golpe, `it`` que morresse. 0 devedor que não pagava era acorrenta- `lu `` um canhão, onde tinha de permanecer até que algum \lti` scus companheiros resolvesse resgatá-lo, pagando sua `Ii`vida. Porém, o que mais causou impressão a Andríi foi a i`i`m estabelecida para assassinato. Nesse caso, abria-se uma i twa na frente do assassino, colocavam-no vivo ali dentro e i`()r cima dele o caixão que guardava o corpo de sua vítima; i`m seguida cobriam a ambos com terra. Muito tempo de- i`tn` Andríi ainda tinha a visão daquele terrível ritual de su- i`li'i it) e daquele homem enterrado vivo junto com um caixão ll,lll.l,roso. Em pouco tempo os dois jovens já eram bem vistos pe- li}` t)utros cossacos. Frequentemente eles saíam para a este- i`(. i()m alguns companheiros, às vezes até com todo o bata- lli.iti e com seus vizinhos, para caçar um sem-número de es- i`{`.iii`s de aves, cervos e cabritos; ou então iam para os lagos, i.it)` i` canais, que eram desviados para cada batalhão, e daí ii iHi`vam redes e levavam ricas pescarias para alimentar a to- `lti`. Embora nessas situações não houvesse ciência em que uiii i`()ssaco pudesse ser colocado à prova, eles se destacavam i.iirri` os outros jovens pela audácia direta e pela sorte em tu- `li}. ^tiravam no alvo com desenvoltura e de modo certeiro, i i.`il.wam no Dniepr contra a correnteza, ato pelo qual um no- v,iiu i`ra aceito solenemente nos círculos de cossacos. Mas o velho Tarás lhes preparava outra atividade. Não 1.irÁs Bulba 41 lhe agradava uma vida tão ociosa - ele queria ação de ver- dade. Ficava imaginando como levantar a Siétch para uma ação de valor, onde pudessc se divertir como cabe a um ca- valeiro. Finalmente um dia ele foi até o Áoc4evóg. e disse de forma direta: -E então, Á:ocbért/ój., não é hora dos zaporogos se diver- tirem? -Não há onde se divertir -respondeu o Áoc4ez/óÇ., ti- rando da boca um pequeno cachimbo e cuspindo para um lado. --Como não há? Podemos ir para Turiéschina ou para a Tatarva. -Não podemos ir nem para Turiéschina e nem para a Tatarva - respondeu o Áocbeyóí., colocando tranquilamen- te seu cachimbo na boca outra vez. -Como não podemos? - É isso mesmo. Nós prometemos paz ao sultão. - Mas ele é muçulmano; e Deus e as Sagradas Escritu- ras mandam combater os muçulmanos. -.-- Não temos o direito. Se não tivéssemos jurado por nossa fé, então podia ser; mas não foi assim. Agora não po- demos. -Como não podemos? Por que você diz: não temos o direito? Pois eu tenho dois filhos, ambos são jovens. Nem um nem outro estiveram sequer uma vez numa guerra, e você diz que não temos o direito? Você diz que os zaporogos não po- dem ir? -Bem, as coisas não são mais desse jeito. •- Pois então é assimque a força dos cossacos desapa- reça em vão, que o homem pereça como um cachorro, sem ter feito uma obra boa, e para que nem a pátria nem o Cristia- nismo tirem dele qualquer proveito? Então para que nós vi- vemos, para que diabo nós vivemos? Explique-me isso! Você é um homem inteligente, não foi em vão que o escolheram como ÁocÁ}evóz.; explique-me: para que nós vivemos? 42 Nil(olai Gógol ( ) Á:ocb€vóÍ. não deu resposta a essa pergunta. Era um ` ii``{`i`ti teimoso. Ele ficou calado por um instante e depois 'l',hl,: - Apesar de tudo, não vai haver guerra. -Então não vai haver guerra? -perguntou de novo l arás. - Não. -Então não se deve nem pensar nisso? - Não se deve nem pensar nisso. "F,spere só, seu filhote do Cão!" ~ disse Bulba para si inc`iiit). "Você vai ver só!" E decidiu se vingar do Áoc47evóz'. l)epois de conversar com uns e outros, ofereceu a todos iin`.i l)ebedeira, e os cossacos embriagados, num certo nú- nit.i.(} de homens, foram direto para a praça, onde estavam iiiii.u.rados num poste os tambores em que batiam para reunir u itmselho. Como não encontraram as baquetas, que eram h``ii`pre guardadas pelo tamboreiro, eles pegaram uma acha (. i`()meçaram a bater nos tambores. 0 primeiro a correr pa- i.,i .` pancadaria foi o tamboreiro, um homem alto, caolho, tiiie apesar de tudo parecia terrivelmente sonolento. -Quem se atreve a bater nos tambores? -gritou ele. - Cale-se! Pegue suas baquetas e toque quando lhe ii`.`iidarem! -responderam os comandantes que se aproxi- ''':\Vam. 0 tamboreiro tirou imediatamente do bolso as baquetas `iui` trazia consigo, pois conhecia muito bem o desfecho de \t.iiielhantes ocorrências. Os tambores troaram -e logo ban- `li>` negros de zaporogos se ajuntaram na praça como marim- l`{indos. Todos se reuniram em pequenos círculos, e depois da i t.rl`cira pancadaria, finalmente chegaram os comandantes: o A.Í)t.Á7eL;óz' com a maça na mão, sinal de sua autoridade, o juiz i`(m o sinete do exército, o escrivão com o tinteiro e o css4zí/ i.()m um cetro. 0 kocbevóí. e os comandantes tiraram os gor- rt)s e saudaram a todos os cossacos, que permaneciam de pé i.()m as mãos na cintura. l'.`rás Bulba 43 -0 que significa essa reunião? 0 que desejam, senho- res? -disse o ÁocbÉ'tJóÍ'. Injúrias e gritos não o deixaram fa- lar. -Largue a maça! Largue a maça agora mesmo, filho do Cão! Não queremos mais você! -gritavam da turba os cos- Sacos. Parecia que alguns que estavam sóbrios queriam se opor; mas os batalhões, tanto os bêbados como os sóbrios, parti- ram para a briga. Foi uma gritaria e uma barulheira geral. 0 ÁocbctJó/. queria falar, mas sabia que a turba livre, uma vez furiosa, podia surrá-lo até a morte por causa disso, coisa que sempre acontecia em semelhantes situações; então ele fez uma profunda reverência, largou a maça e sumiu na multidão, -Senhores, desejam que nós também larguemos estas insígnias de autoridade? -disseram o juíz, o escrivão e o c'ss¢zé/, já se preparando para largar o tinteiro, o sinete do exército e o cetro. - Não, vocês ficam! - gritaram da turba. - Precisá- vamos apenas expulsar o Áocbevóz., porque ele é um maricas; precisamos de um homem no comando. - E quem vocês vão escolher para kocbevóí? - disse- ram os comandantes. -Escolhemos Kukubienko! -gritava uma parte. -Não queremos Kukubienko! -gritava outra parte. -É cedo para ele, ainda está cheirando a leite! -Que Chilo seja o atamã! -gritavam alguns. -Va- mos colocar Chilo no comando! -Uma sovelada24 na sua cabeça! -gritava a turba com iima injúria. --0 que vale um cossaco assim, se esse fi- 24 Há aqui um jogo de palavras intraduzível. A palavra "chilo" (so- vela, espécie de agulha grossa de sapateiro) é empregada por Gógol co- mo iiome próprio e como substantivo comum. (N. do T.) 44 Nikolai Gógol lhn ilt` um cão rouba como um tártaro! 0 diabo que carregue iiiM`i `.ii`() esse bêbado do Chilo! - Borodati, vamos pôr Borodati no comando! -Não queremos Borodati! Que Borodati vá pro infer- „('1 -Gritem "Kirdiága"! -sussurrou Tarás Bulba para "h,,,". -Kirdiága! Kirdiága! -gritava a turba. -Borodati! l\(w.tiil{iti! Kirdiága! Kirdiága! Chilo! Ao diabo com Chilo! N,.,li;iga! Quando ouviram seus nomes sendo pronunciados, todos •i` i ,uididatos saíram imediatamente da turba, a fim de não •lin i\i.nhum pretexto para que pensassem que eles estavam ` ( n`i i.il)uindo para sua própria eleição. -Kirdiága! Kirdiága! -ressoava mais forte que os de- ii`i`i``. -Borodati! A questão foi resolvida pela contagem das mãos, e Kir- illi{Hi` venceu. -Tragam Kirdiága! -começaram a gritar. l``,ntão uma dezena de cossacos se separou da multidão; iilpuns deles mal se mantinham em pé, de tanto que tinham lu.hi(l(), e foram logo atrás de Kirdiága informá-lo sobre sua .l,.i\.iio. Kirdiága, embora velho, era um cossaco inteligente; já iinh` se recolhido ao seu batalhão, fingindo não ter a míni- " ideia do que estava se passando. -Pois não, senhores, o que desejam? -perguntou ele. -Venha, você foi escolhido como kocbecJóí.!... -Tenham dó, senhores! -disse Kirdiága. -Desde \iwmdo sou digno de tanta honra? Como posso ser Áocbeyó¢? N.iti tenho juízo bastante para o exercício dessa função. Será `iui` não havia ninguém melhor em toda a tropa? -Vamos, estão chamando você! -gritaram os zapo- i.(i*()s. Dois deles pegaram-no pelo braço; embora tivesse re- `i`tido com unhas e dentes, ele foi finalmente arrastado para l'.`rás Bulba 45 a praça, acompanhado de injúrias e impelido por exortações, socos e pontapés. - Não recue, fílho do Cão! Aceíte a hon- ra que lhe deram, seu cachorro! Dessa forma é que Kirdiága foi levado ao círculo de cos- Sacos. -E então, senhores? -exclamaram aqueles que o ti- nhamtrazido.-Vocêsestãodeacordoqueestecossacosei.a o nosso kocheuói? -Todos de acordo! -começou a grítar a turba, e o grito ecoou por todo o campo. Um dos comandantes pegou a maça e a ofereceu para o recém-eleito kocbevóí.. Seguíndo a tradição, Kirdiága a re- cusou. 0 comandante ofereceu outra vez. Kirdiága recusou denovo,esónaterceíravezaaceitou.Umgrítoencorajador ressoou por toda a multidão, e novamente começou a ecoar por todo o campo o grito dos cossacos. Então saíu do meio do povo o quarteto de cossacos mais velhos, de topetes e bi- godes grisalhos (não havia homens muito velhos na Siétch, poisnenhumzaporogomorriademortenatural),edepoísde cada um pegar um punhado de terra, que na ocasião tinha virado lama por causa de uma chuva recente, puseram-no na cabeça do Áoc6evój.. A terra molhada escoi-reu de sua cabe- ça, atingiu os bigodes e as faces e lambuzou todo o seu ros- to. Mas Kírdiága permaneceu imóvel e agradeceu aos cossa- cos pela honra concedida. Assim terminou a barulhenta eleição, que não se sabe se tinha agradado aos outros tanto quanto a Bulba: dessa for- ma ele tínha se víngado do Áoc¢eoóç. anteríor e, além disso, Kirdiága era seu velho companheiro e tinha estado a seu lado em campanhas por terra e por mar, dividíndo a dureza e as dificuldades da vida guerreíra. A turba se dispersou para co- memorar a eleição, e foi organizada uma farra como até en- tão Óstap e Andríi nunca tinham vísto. As tavernas foram arrebentadas5ohidromel,aaguardenteeacervejaforamsim- plesmente apanhados, sem pagamento; e os taverneiros ainda 46 Níkolai Gógol li` ;`r.iin felizes por terem saído ilesos. A noite passou inteira i.iii ri. gritos e canções que celebravam proezas. A lua que sur- ii,u .`iiida contemplou por muito tempo os grupos de músicos `iHi. ii.issavam pelas ruas com bandurras, pandeiros e balalai- ` .i` ."redondadas, e de cantores de igreja, os quais eram man- iiilti` na Siétch para os cantos religiosos e de louvores aos li`ir()s dos zaporogos. Finalmente a embriaguez e o cansaço ` t)iiicçaram a vencer aquelas cabeças duras. E via-se aqui e .` li um cossaco caindo ao chão. Um companheiroabraçava o i.iitro, comovido e até em prantos, e caía junto com ele. Aqui ui`` bando se deitava formando um monte, ali um outro pro- i urava o melhor lugar para se deitar, terminando por se en- i.t)çtar logo num tronco de árvore. 0 último, que era mais `tirte, ainda pronunciava umas palavras sem nexo; por fim, i t()rça da embriaguez o abateu, e ele desabou - e toda a `ii`.tch adormeceu. 'l`arás Bulba 47 No outro dia, Tarás Bulba já consultava o novo kocbe- iJi;/. sobre como levantar os zaporogos para alguma ação. 0 Aw t..bcoóf. era um cossaco inteligente e astucioso, conhecia os /.`itorogos em todos os aspectos, e começou dizendo: "Não wttli`mosquebrarojuramento,issonãopodemosdeieitone- i`liui`i". E depois de um silêncio, acrescentou: "Não faz mal, iwMli`mos fazer algo, sim; não vamos quebrar o iuramento, iu.`` imaginaremos alguma coisa. Só precisamos que o povo `t. i.t'úna, mas não por minha ordem, e sim por vontade pró- w Você já sabe como £azer isso. Depois eu irei imediata- "m com os comandantes para a praça, como se não sou- l``.ssc de nada". Não se passou nem uma hora depois dessa conversa, e mtamboresjácomeçaramasoar.Oscossacosapareceramde i.t`pente,bêbadosetresloucados.Ummilhãodegorrossurgiu `iiliitamentenapraça.Levantou-seummurmúrio:"Quem?... m quê?... Por que convocaram essa reunião?". Ninguém i`.`pondia. Finalmente ouviu-se num canto e no outro: "A loi.çacossacaestáseperdendoemvão:nãohámaisguerra!... `)`comandantesficarammolengasdevez,estãoatédeolhos uichados!... Pelo ieito, não existe justiça nesse mundo!". Os t)utros cossacos ouviram esse começo e depois eles m.esmos i)usei.am-se a falar: "Realmente não existe nenhuma iustiça i`cssemundo!''.Oscomandantespareciamassombradoscom .`quelas palavras. Finalmente o kocbevóg. avançou e disse: - Permitam que eu lhes fale, senhores zaporogos! - Fale! 49 Tarás Bulba - 0 que está em discussão, nobres senhores, e talvez saibam dísso melhor do que eu, é que muitos zaporogos es- tão devendo tanto nas tavernas dos judeus e para seus pró- príos írmãos que nem mesmo um díabo concederá maís cré- dítoaeles.Alémdisso,oquetambémestáemdíscussãoéque há muitos rapazes que aínda nem sabem o que é uma guer- ra; e os senhores sabem muito bem que um jovem não pode fícar sem guerra. Que zaporogo vai ser ele, se nenhuma vez bateu num muçulmano? "Ele fala bem", pensou Bulba. -Todavia,senhores,nãopensemqueeudígoissopara quebrar a paz, Deus me lívre! Estou apenas falando. Além disso, temos um templo divíno. É até pecado dizer, mas a Siétchexistehátantosanos,graçasaDeus,eatéhojenãohá scquer um adorno nem do lado de fora e nem nas imagens! QuiseraDeusquealguémselembrassedeforjarumamoldura para elas! Elas só receberam o que foi deíxado em testamen- toporalgunscossacos.Eodonativodeleserapobre,porque tínham gastado quase tudo em bebidas. Assím, eu faço este discursonãoparacomeçarumaguerracomosmuçulmanos: prometemos.paz ao sultão, e seria um grande pecado para nós, porque iuramos por nossos mandamentos. "Quetramaéessaqueeleestáarmando?"-disseTarás para si mesmo. - Então, como veem, senhores, não podemos começar uma guerra. A honra de cavaleiro não permite. Mas, em meu pobre i.uízo, eu penso o seguinte: podemos permítír que al- guns jovens, em canoas, vasculhem um pouco as costas da Anatólia. 0 que acham, senhores? -Mande todos, mande todos! -a multidão começou a. gritar por toda parte. - Pela fé estamos prontos para ar- riscar nossas cabeças! 0 Áocbeú se assustou; ele não queria de modo algum lev?ntaroZaporójíeínteiro:nestecaso,romperapazlhepa- recia uma coisa incorreta. 50 Nikolai Gógol -Permitam-me, senhores, dizer mais uma coisa! -Basta! -gritaram os zaporogos. -É melhor não di- i,rr iii:`is nada! - Então, que assim seja! Sou um servo da vontade de v()i`ês. É sabido por todos, e sabe-se pelas Escrituras, que a vw ilo povo é a voz de Deus. É impossível imaginar algo mais ii`ii`hi'nte do que aquilo que é imaginado por todo o povo. M.`` há um porém: os senhores sabem que o sultão não dei- wi`rii iiiipune o deleite desses jovens. Mas nesse ínterim, nós |Á t``t:`ríamos preparados, nossas forças descansadas, e não ii`iut`ríamos a ninguém. E durante essa ausência, os tártaros iwul"` atacar; os cães dos turcos não vão se atirar à nossa 1 i {.i`ti. c nem ousarão invadir a casa na presença do dono: vão uioi.tlcr no calcanhar, e a mordida será dolorosa. E para di- /i`i. .` verdade, nós nem temos canoas de reserva, e a pólvora i i n `i'il;i não é suficiente para que todos possam partir. Mas sou ii.Iv .m ser um servo da vontade dos senhores. 0 astucioso kocbc'c/óí. se calou. Os bandos começaram a i.tHwi`rsar, os atamanes dos batalhões deliberavam: os bêba- tlm, t-clizmente, eram poucos, e foi decidido que seguiriam o ` t ii``clho prudente. Na mesma hora alguns homens lançaram-se à margem ()iiti`ta do Dniepr, ao depósito das tropas, onde, em esconde- i iim inacessíveis, sob a água e no meio de juncos, estavam i.`i`t]tididos os tesouros e parte das armas tomadas do inimi- Hu Todos os outros lançaram-se às canoas para examiná-las i` i"pará-[as para a viagem. Num instante a margem ficou ` lim de gente. Alguns carpinteiros apareceram com macha- `lm nas mãos. Velhos zaporogos queimados de sol, de om- hrti` largos e pernas robustas, bigodes negros e meio grisa- ll`()s, com as bombachas arregaçadas, estavam na água até os ii ).`lhos e puxavam as canoas da margem com cabos resisten- i`.`. Outros carregavam troncos secos e todo tipo de madei- i .`. Aqui revestiam uma canoa com tábuas; ali viravam-na de i`.`beça para baixo e a vedavam; acolá, seguindo um costume 1 arás Bulba 51 cossaco, prendíam feíxes de juncos comprídos às bordas de outrasembarcaçõesparaqueestasnãofosseminundadaspe- lasondasdomar;portodaacostaarmaramfogueirasefer- verampícheemcaldeirõesdecobreparaacoberturadoscas- cos.Osvelhoseosveteranosdavamconselhosaosjovens.As batídaseagritaríadostrabalhadoresseestenderamportoda a redondeza; a margem ínteira ficou víva e agítada. Nessahora,umagrandebalsacomeçouaseaproximar damargem.Nelahavíaummontedegenteacenandodelon- ge. Eram cossacos de cafetãs rasgados. Sua vestímenta esta- va.emdesordem-muítosnãotinhamnadaalémdeumaca- misaeuincachimbodecanocurtonaboca-,indicandoque elestínhamescapadodeumadesgraçaqualquer,ouentãoti- rihamfarreadotantoquegastaramaténãosobrarnadaso- breocorpo.Umcossacobaíxoteedeombroslargos,deuns cinquenta anos, destacou-se do meío deles e parou à frente. Elegrítavaeagjtavaamãocommaísforçadoquetodos,mas por.causa das batídas e dos gritos dos trabalhadores não se ouviam suas palavras. -0quetrazemdenovo.)-perguntouoÁocÁepój.quan- do o barco chegou à margem. Todos os trabalhadores, ínterrompendo suas tarefas e mantendoerguidososmachadosefomões,fícaramatentos. -Uma desgraça! -gritou da balsa o cossaco baixote. - Como.? -Senhores zaporogos, permítam que eu lhes fale.? - Fale! -Ou talvez queiram reunir o conselho.? - Fale, estamos todos aquí. 0 povo se ajuntou num úníco bando. -Acasonãoouvíramnadasobreoqueestáacontecen- do na Hetmánschina.)25 25 Estado autônomo dos cossacos que ociipou a parte central do atualterritóríodaUcrânia,incluindo,entKoutras,ascídadesdcKíev, 52 Nkolai Gógol -0 que foi? -exclamou um dos atamanes. -Como assim "o que foi?"! Pelo jeito, os tártaros ta- r®rí`m seus ouvidos com cola para que não ouvissem nada. -Fale logo: o que está acontecendo por lá? - 0 que está acontecendo nós nunca vimos desde que n..ccm()s e fomos batizados. - Diga-nos logo o que está acontecendo, filho de um •`lí}l -gritou alguém do meio do povo, pelo visto já sem p"`.,ê.ncia. -Chegou um tempo em que as santas igrejas não são mi`is nossas. -Como não são nossas? -Agora são arrendadas pelos judeus. E se o pagamen- t{} iião é feito com antecedência, então não se pode celebrar l''issa. -0 que você está dizendo? -E se o cão judeu não puser sinais com
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