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Prévia do material em texto

Coleção LESTE
Nikolai Gógol
TARÁS BULBA
Tradução, posfácio e notas
Niudldo dos Santos
editoral34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo -SP Brasíl Tel/Fax (11) 3811-6777 www.edítora34.com.br
Copyright © Edítora 34 Ltda., 2007
Tradução © Nivaldo dos Santos, 2007
A FOTOcól.lA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E llEGAI. E CON[`lGURA UMA
AI'ROPRIAÇÃO INDF.VIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.
Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Título c)riginal:
Tarás Bulba
lmagem da capa:
Desenho de Eugêne DelacToix (1798-1863), Museu Delacroix, Paris
Pboto RMN © Herué Leu)andotuski
Capa, proieto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher d Malta Produção Gráfica
Revisão:
Fabrício Corsaletti
1o Edíção -2oo7, 2a Edição -2o| |, 3a Edição -2o|g
CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte
(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)
Gógol, Nko!ai,1809-1852
Tarás Bulba / Nikolâi Ciógol; t[adução,
posfácio e notas de Nivaldo dos Santos -
São Paulo: Edi[o[a 34, 2019 (3@ Edição).
176 p. (Coleção Leste)
ISBN 978-85-7326-386-2
Tradução de: Tarás Bulba
1. htemtura russa. 1. Santos, Nivaldo dos.
II. Título 111 Série.
CDD -891.73
Tarás Bulba
TARÁS BULBA
Pos£ácío, Niualdo dos Santos
TARÁS BULBA
As notas do tradutor fecham com (N. do T.); as notas da edição rus-
sa, com (N. da E.).
Traduzído do original russo, de N. V. Gógol, J'5674##j`G proj`suedí.é-
#j4 # du#Á¢ fomóÁ4 (Obras selecionadas em dois volumes), Leningrado,
Ed. Lenizdat,1965.
-Ah, vire-se, meu filho! Que engraçado você está! E
que levita de pope] é essa que está usando? É assim que to-
dos andam na academia? -Foi com tais palavras que o ve-
lho Bulba recebeu seus dois filhos, que estudavam no semi-
nário2 de Kíev e voltavam à casa do pai.
Seus filhos tinham acabado de descer dos cavalos. Eram
dois jovens robustos, que ainda olhavam de soslaio como alu-
nos recém-saídos do seminário. Seus rostos firmes e saudáveis
estavam cobertos pelo primeiro buço, ainda não tocado pela
navalha. Eles estavam muito confusos por aquela recepção do
pai e permaneciam imóveis, de olhos voltados para o chão.
-Parem, parem! Deixem-me olhá-los bem -continuou
ele, fazendo-os virar. -Mas que cafetãs3 tão compridos! Que
cafetãs! Nunca se viu uns cafetãs desses no mundo. Pois cor-
ra um de vocês! Quero ver se não leva um tombo se enros-
cando nos panos.
-Não ria, paizinho, não ria! -disse afinal o mais ve-
lho deles.
-Ora, veja só que orgulhoso! E por que eu não riria?
] Sacerdote russo. (N. do T.)
2 No origmal, GG£rscí. Trata-se de uma espécie de colégio imerno, mi-
cialmente de caráter religioso. (N. do T.)
`' No origina[, sv;`Íkc7, espécie de meio cafetã utilizado pelos ucra-
nianos. (N. da E.)
T.irás Bulba
-Emboravocêsei.ameupai,secontínuararír,juropor
Deus que lhe dou uma surra!
-Ah, seu fílho de uma qualquer! Bate no seu pai, é?...
- disse Tarás Bulba, recuando surpreso alguns passos.
- É isso mesmo. Não levo desaforo de ninguém.
-E como você quer lutar comígo? Com os punhos?
- Do jeito que for.
-Bem,vamoslá,comospunhos!-disseTarásBulba,
arregaçandoasmangas.-Veremosquetípodehomemvocê
é com os punhos.
E pai e filho, ao ínvés de saudações após a longa ausên-
ci:, começaram a trocar socos nos flancos, nas costas e no
peito, ora recuando e olhando em volta, ora recomeçando no-
vamente.
-Vejasó,boagente:umvelholouco!Perdeuojuízode
vez!-disseamãepálída,magrelaebondosa,queestavaper-
todoumbraleaindanãoconseguiraabraçarseusfilhosque-
ridos - Os filhos víeram para casa, há mais de um ano que
nãoosvíamos,eelepensoulogonísso:lutarcomospunhos!
-Sim,elelutabem!-disseBulba,detendo-se.-Juro
por Deus que é bom! -continuou ele, recompondo-se um
pouco. - Nem é preciso experimentar. Será um bom cossa-
co!Bem,sejabem-vindo,filho!Dêumabraço!-Epaíefílho
começaram a se beii.ar. -Muíto bem, filho! Bata em qual-
quer um assím, do jeito qiie você me socou, não se rebaixe
díante de nínguém! Mas apesar disso, sua roupa é engraça-
da3quecordaéessaaípendurada?Evocê,rapaz,porque€stá
aíparadodebraçosestirados?-dísseele,vírando-separao
caçula. -Por que não bate em mim, filho de um cão?
-Ora, mas que ideia! -disse a mãe, que então abra-
çava o caçula. -De onde tirou a ídeia de um filho legítimo
baternopai?Ejustamenteagora:omeninoéjovem,fezuma
longa viagem, está cansado (esse meníno tinha mais de vinte
anos e exatamente dois metros de altura); agora ele precisa é
dormír, comer alguma coísa, e você quer obrigá-1o a lutar!
10
Nikolaí Gógol
-Ah, estou vendo que você é um mimadinho! -disse
Bulba. -Não dê ouvidos a sua mãe, filho; ela é mulher, não
sabe de nada. Do que é que vocês precisam? Precisam de cam-
po aberto e um bom cavalo. Aí está do que precisam! E estão
vendo este sabre? Isto é a mãe de vocês! É tudo besteira aqui-
lo que meteram na cabeça de vocês: academia, todos aque-
li.s livros, cartilhas, filosofia, e toda aquela sabença. Pois eu
cuspo nisso tudo! --Aqui Bulba expressou literalmente uma
palavra que nem mesmo se emprega numa publicação. - É
iiielhor que eu mande vocês já na próxima semana para Za-
i)orójie.4 É onde está a ciência de verdade! É lá que está a es-
c()la de que precisam; só lá vão criar juízo.
- Mas então, eles só vão ficar em casa por uma sema-
iia? -disse num lamento a mãe velha e magrela, com lágri-
iiias nos olhos. - Os pobrezinhos não poderão passear, não
r)oderão conhecer a casa paterna, e eu nem poderei olhar di-
reito para eles!
-Chega, chega de uivar, velha! Um cossaco não é para
viver com mulheres. Você iria escondê-los embaixo da saia e
ficaria sentada em cima deles como uma galinha choca. Va-
mos, vamos, e coloque logo na mesa tudo o que houver aí. Não
precisa de bolinhos, docinhos de mel, docinhos de papoula e
()utras guloseimas; traga-nos um carneiro, uma cabra e hidro-
mel envelhecido! E bastante aguardente, mas não aquela de
mentira, com passas e tudo quanto é bobageira, e sim a aguar-
dente pura, bem forte, que borbulha e espuma feito louca.
Bulba levou os filhos para a sala principal, de onde saí-
ram correndo apressadas duas criadas jovens e bonitas usan-
do colares vermelhos e que estavam arrumando a casa. Pelo
4 Zapo[ójie é Lima região ucraniana localizada às margens do rio
I)ni€pr e que, entre os séculos Xvl e XVIII, scrviu como quartel-general
do exército cossaco. A palavra Z4Poró/m é formada a partir da preposi-
ção Z4 (do outro lado de) mais o substantivo porog#í (corredeiras). Os
zaporogos cossacos que habitavam essa região seriam "aqueles que vivem
do outro lado das corredeiras". (N. do T.)
Tarás Bulba
Í,l
visto,elasseassustaramcomachegadadosfilhosdopatrão,
que não gostavam de perder oportunidades; ou então que-
ríamsimplesmentepreservarumcostumefeminíno:odegri-
tarefugirdepressaaoverumhomem,paradepoisficarpor
muíto tempo cobríndo o rosto de tanta vergonha. A sala es-
tava arrumada ao gosto daquela época cu).as vivas alusões fi-
carf m somente nas canções e no imagínário popu|ar, já não
mais cantadas na Ucrânía por velhos cegos e barbudos, com
acompanhamento das cordas suaves de uma bandurra e o
povo em volta; ao gosto daquela época difícil, de guerras,
quando começavam a se desencadear na Ucrânía os comba-
tes e as batalhas pela União.5 Tudo estava limpo, revestído
com argila colorída. Nas paredes havia sabres, chicotes, re-
des para pássaros, redes de pesca e espingardas, um chífre
parapólvorahabilmentetrabalhado,umabfídadouradapa-
ra cavalos e travas com chapas prateadas. As janelas da sala
erampequenas,comvidrosredondoseopacos,talcomohoje
emdiasóseencontranasigrei.asantigas,eatravésdosquaís
nãosepodeenxergar,amenosqueselevanteovidromóvel.
Ao redor das janelas e portas havia adornos vermelhos. Nas
prateleiraspeloscantoshaviajarros,garrafõesefrascosdeví-
dro azul e verde, taças de prata lapidadas,cálices banhados
aou.roetrabalhadosemtodoestílo-veneziano,turco,cir-
ca?siano - e que entraram na casa de Bulba de diversas ma-
neiras, por terceiras e quartas mãos, o que era bastante co-
mum naqueles tempos de valentía. Os bancos de bétula ao
redor de todo o cômodo, a mesa enorme sob os ícones no
cfnto da entrada, o grande forno com salíêncías e reentrân-
ciasecobertocomazulei.osdevariadascores;tudoaquiloera
bastante familiar aos nossos dois jovens, que todo ano ví-
nham para casa na época das férias, e vinham a pé porque
aíndanãotinhamcavalosenãoeracostumepermitírquees-
5Uniãoentrealgre)'aCatólicaealgreiaOrtodoxaGrega,querece-
b"apomdaPolônia,masfoícombatidapelosucraniaiios.(N.doT.)
12
Níkolai Gógol
riidantes andassem montados. Tinham apenas um topete que
iiualquer cossaco que levasse uma espingarda podia puxar. Só
ii()r ocasião da saída definitiva do seminário é que Bulba lhes
enviou dois jovens garanhões de sua própria tropa.
Por causa da chegada dos filhos, Bulba mandou chamar
r()dos os só£#Í.Ás6 e oficiais do regimento que estivessem pre-
sentes; e quando chegaram dois deles e mais o ess#ú/7 Dmitro
Tóvkatch, seu velho companheiro, ele apresentou imediata-
itiente seus filhos, dizendo: "Vej.am só que rapagões! Logo
vou mandá-los para a Siétch".8 0s visitantes parabenizaram
Bulba e os dois jovens, dizendo que era uma boa coisa o que
fdziam e que não havia ciência melhor para um jovem do que
í`quela da Siétch de Zaporójie.
-Bem, senhoresg e irmãos, sentem-se onde cada um
.ichar melhor. Muito bem, filhos! Antes de mais nada, beba-
mos aguardente! -assim falava Bulba. -Deus nos abençoe!
Sí`úde, meus filhos: você, Óstap, e você, Andríi! Queira Deus
que na guerra sejam sempre bem-aventurados! Que matem os
infiéis, os turcos e os tártaros; e quando os polacos começa-
rem a fazer algo contra a nossa fé, que matem também a eles!
Bcm, aproxime seu copo. E então, é boa a aguardente? E co-
iii() se diz aguardente em latim? Ora, ora, filho, eram burros
()s latinos: eles nem sabiam que no mundo existia aguardente.
C(]mo se chamava mesmo aquele que escrevia versos latinos?
Não sou muito [etrado, por isso não sei. É Horácio, não é?
6 Chefe de esquadrão cossaco. Posto equivalente a segundo-tenente.
(N. do T.)
7 Capítão cossaco. (N. do T.)
8 A Siétch era uma fortificação militar criada pelos cossacos e que
pi)ssui`a a infraestrutura de uma pequena cidade. A primeira delas foi fun-
il.`ila, no século XVI, i)or Dmitri Baida Vichnievestski numa ilha do Dniepr
tli.nt]minada Málaia Khortítsa. Esta ilha, ho)e, é conhecida pelo nome de
B:`id.i. (N. do T.)
9 N() original, p47% (senhores, em polonês). (N. do T.)
l'imis Blllba 13
"Vejam só esse meu paí!", pensava consígo o mais ve-
lho,Óstap."Sabetudoessecãovelho,masficaaífingíndo."
-Acho que o arquimandrita não os deixava sequer
cheírar aguardente -contínuava Tarás. -Confessem, fí-
lhos:açoítavamvocêscomvarasdegini.eírasnascostaseem
tudoaquiloquetemumcossaco?Outalvez,porteremsetor-
nadologobastanteai.uízados,surravamvocêscomchicotes,
não.) E decerto não só aos sábados, mas também às quartas
e quintas?
respo=druã:okás:::uqeu_:r::móbsrtaarp:=Uôã:Ses;:;s%au],Z;na::o=
-Poís que tentem agora! -disse Andríi. -Só quero
veralguémmeofenderagora!Eseumbandodetártarosapa-
recer, vão saber o que é o sabre de um cossaco!
-Muito bem, filho! Por Deus muito bem! E já que é
assím,euvoucomvocês!JuroporDeusquevou!Quediabo
vou esperar aqui.? Para eu me tornar um plantador de trigo-
-sarraceno, um dono de casa, cuidar de ovelhas e porcos e
molengar com a mulher.) Maldita seja: eu sou um cossaco,
não quero Ísso! E daí que não estamos em guerra.? Eu vou
comvocêsaoZaporójíeparapassear.JuroporDeusquevou!
- E o velho Bulba foí pouco a pouco se exaltando, se exal-
tando,eafinalseirrítoudevez,1evantou-sedamesae,estu-
fando o peito, bateu com o pé no chão. -Iremos amanhã!
Paraqueadiar.'Queinimigopodemosesperaraquísentados.)
ParaqueprecísamosdestakÃW"Paraqueprecisamosdis-
sotudo.'Paraqueessespotes?-Dítoisto,elecomeçouadar
socos e arremessar potes e cantís.
Apobrevelhinha,jáacostumadacomessesprocedímen-
tosdeseumarido,viatudocomtristezasentadanumbanco.
Nãoousavadizernada;mas,aoouvíradecísãoqueparaela
eratãoterrível,nãoconseguíuconteraslágrimas;olhoupa-
ra seus filhos, cuja separação tão breve a ameaçava -e nin-
]° Casa de campo ucraniana. (N. do T.)
14
Níkolai Gógol
guém poderia descrever toda a força silenciosa de sua afli-
ção, que tremia em seús olhos e nos lábios convulsivamente
comprimidos.
Bulba era extremamente teimoso. Era um daqueles ca-
racteres que podiam surgir somente no difícil século XV num
canto seminômade da Europa, quando toda a primitiva Rús-
sia do sul, abandonada por seus príncipes, estava devastada,
reduzida a cinzas pelas indomáveis incursões dos saqueadores
mongóis; quando o homem, depois de perder a casa e o teto,
ali tornou-se intrépido; quando em meio aos restos do incên-
dio, à vista de vizinhos terríveis e da ameaça constante, ele se
instalou e se acostumou a olhá-los diretamente nos olhos,
tendo esquecido se no mundo existia algum perigo; quando
o outrora pacífico espírito eslavo cobriu-se de uma chama
guerreira e apareceram os cossacos -um vasto e desregrado
proceder da natureza russa - e quando todos os caminhos
marginais, vaus, margens de rios e lugares apropriados foram
ocupados pelos cossacos, cuja quantidade ninguém sabia di-
zer, e os valentes companheiros tinham razão ao responder
para um sultão, que desejava saber quantos eram eles: "Quem
é que sabe? Estamos espalhados por toda a estepe: cada mor-
rinho é um cossaco" (quer dizer, onde há uma pequena coli-
na, lá está um cossaco). Era exatamente um extraordinário
fenômeno da força russa: fora expelido do seio do povo por
um raio de desgraças. Em lugar dos antigos feudos, dos pe-
quenos vilarejos repletos de cachorreiros e monteiros, em lu-
gar dos pequenos principados com cidades que comerciali-
zavam e se hostilizavam mutuamente, apareceram aldeias fe-
rozes, acampamentos e cercados unidos pelo perigo comum
e pelo ódio aos saqueadores anticristãos. Pela História todos
já sabiam como sua eterna batalha e sua vida turbulenta sal-
varam a Europa das incursões indomáveis que ameaçavam
destruí-la. Os reis poloneses, que tinham se tornado senho-
res das terras mais extensas no lugar dos príncipes feudais,
embora distantes e fracos, compreenderam o significado dos
Tarás Bulba 15
cossacoseasvantagensdeumavídatãoguerreiraevígilante.
Elesosincentivavamebajulavamconitodadísposíção.Sob
seupoderdístante,osÁe'£m4#es]tescolhidosentreospróprios
cossacostransformaramoscercadoseacampamentosemver-
dÀa_d_eí_[_?.S_F=g_í=eTtoçedí_stritos:-riiíe_r-{:=a.'r.?:rí:àcal,FnvEt
doereunido,poísnínguémovíaassjm;masemcasodeguer-
ra ou de um movímento geral, cada um aparecía num cava-
1o,comtodooseuequjpamento,recebendodoreíapenasum
ducado]2comopagamento,eemduassemanasorganízava-
-seumexércítocomonemnasforçasregularessepoderiare-
crutar. Terminada a campanha, o combatente saía para os
p_radosecamposlavradosouparaosvausdoDniepr,een-
tao pescava, comercializava, fazía cerveja e tornava-se um
fossacolivre.Osestrangeírosmodernosseespantavamentão
justamente por suas extraordinárjas virtudes. Não havia um
ofícíoqueocossaconãoconhecesse:destílarvínhos,equípar
uma telega, fabrícar pólvora, realízar trabalho de ferreiro e
serralheiroe,somadoaissotudo,passeardesvaíradamente,
beber e farrear como só um russo é capaz - tudo ísso era
muitofácHparaele.Alémdoscossacosregistrados,quecon-
sideravamumdeverapresentar-seemtemposdeguerra,po-
dia-se a qualquer momento, e em caso de grande necessida-
de, reunír multidões inteiras de voluntários: bastava que os
ess4zé/spassassempelosmercadosepraçasdetodasasaldeias
e povoados e gritassem com toda força, de pé numa telega:
"Eí,vocês,cerve).eirose.toneleiros!Chegadefazercervej.a,de
ficarmolengandoporcimadosfornosealimentarasmoscas]]Amaío"dosestudiososconsideraqiieapalavra%~vemdo
alemão%%"(chefe).Essapa]avrapenetrou,comcertasvariações,
emváriaslínguaseslavas,comoopolonês,oucranianoeotcheco.Entre
oscossacos,oW"eraochefedeumdistrítooumesmot>governador
de um temtóriq podendo exercer também a função de comandante em
chefe do exérc`ito. (N. do T.)
"Noorigínal,£ctewó"ezs,antigamoedadeoiirocii)ovalor,em
diferentesépocas,oscilavaentre3,50e10rublos.(N.doT.)
16
Níkolai Gógol
com seus corpos gordurentos! Venham marchar em busca da
lionra e da glória dos cavaleiros! Vocês, lavradores, planta-
ilores de trigo-sarraceno, pastores de ovelhas e mulherengos!
Chega de andar atrás do arado, de sujar na terra suas botas
i`marelas, de cortejar as esposas e destruir a força de cavalei-
ro! É hora de a[cançar a glória cossaca!". E essas palavras
ei.am como faíscas que caíam numa árvore seca. 01avrador
largava seu arado, os toneleiros e cervejeiros jogavam seus
tonéis e despedaçavam os barris, o artesão e o comerciante
mandavam ao diabo o ofício e a barraca, quebravam potes
i`in casa. E todos, sem exceção, montavam num cavalo. Nu-
ina palavra: o caráter russo ganhou aqui uma poderosa e ex-
tensa ampliação, um aspecto vigoroso.
Tarás era um dos velhos e radicais coronéis: todo ele fo-
ra criado para a ânsia guerreira e se distinguia pela sincerida-
cle grosseira de seu temperamento. A inf[uência da Polônia já
começava então a se mostrar sobre a nobreza russa. Muitos
iá adotavam os costumes poloneses, adquiriam o luxo, a cria-
dagem suntuosa, falcões, monteiros, banquetes e palácios.
Isso não era do gosto de Tarás. Ele adorava a vida simples dos
i`()ssacos e rompeu com aqueles que, dentre os seus compa-
nheiros, estavam inclinados para o lado de Varsóvia, cha-
mando-os de lacaios dos senhores poloneses. Eternamente in-
(iuieto, ele considerava a si próprio um legítimo defensor da
t]rtodoxia grega. Entrava arbitrariamente nas aldeias onde
houvesse queixas pela opressão dos arrendadores e do au-
mento excessívo dos novos impostos. Com seus cossacos, ele
mesmo aplicava-lhes um castigo, e estabeleceu para si a regra
de que se deveria usar o sabre em três casos: quando os comis-
siírios não respeitassem os chefes e ficassem de gorro diante
dcstes, quando zombassem da ortodoxia grega e não respei-
t:`ssem a lei dos antepassados e, finalmente, quando os inimi-
g()s fossem muçulmanos e turcos, contra os quais ele conside-
rava que, em qualquer situação, era permitido levantar armas
r).ira glória da cristandade.
l'á`r.ís Bulba 17
Agora ele se entretínha com a ideía antecípada de apa-
fecer com seus dois fílhos na Siétch e dízer: "Vejam só que
iovens eu trouxe a vocês! ", de apresentá-los a todos os velhos
e aguerridos companheiros, de ver as primeiras façanhas de
ambos na ciência bélica e na farra, que ele considerava tam-
bém uma das qualidades ímportantes de um cavaleiro. Inícíal-
mente ele queria envíá-los sozínhos. Mas, em vísta da juven-
tude, da estatura e da beleza vigorosa e corada de ambos, seu
espírito se inflamou e já no outro dia decidíu ir com eles, em-
bora a necessidade disso fosse apenas a sua vontade obstina-
da. E logo ele já estava gesticulando e dando ordens, esco-
lhendoosarreioseoscavalosparaseusjovensfilhos,questio-
nando ora na cavalariça, ora nos celeiros, e escolheu os cría-
dos que deveriam ír com eles no día seguinte. Transferiu seu
poder ao ess4ú/ Tóvkatch junto com a ordem expressa de
partír ímediatamente com todo o seu regimento, se fosse re-
cebida uma ordem da Siétch. Embora ele estivesse contente
e a embríaguez aínda vagasse em sua cabeça, não havia se es-
quecido de nada. Ordenou ínclusive que dessem água aos ca-
valosecolocassemparaelesotrigomelhoremaisconsistente,
e voltou cansado de suas preocupações.
- Bem, filhos, agora é preciso dormir, e amanhã fare-
mos o que Deus quíser. E não arrume a cama para nós! Não
precisamos de cama. Vamos dormir no pátio.
A noíte mal tinha abraçado o céu, mas Bulba sempre se
deitava cedo. Ele se esparramou num tapete, cobriu-se com
uma peliça de pele de carneiro, porque o ar da noite era bas-
tante fresco e porque Bulba gostava de se abrigar e fícar bem
aquecidoquandoestavaemcasa.Logoelecomeçouaroncar,
e todo o pátio o seguíu; tudo que havia nos díferentes cantos
do pátio começou a roncar e cantar; a sentínela adormeceu
antes de todo mundo, poís tinha bebído mais do que todos
pela chegada dos jovens patrões.
Sozinha, a pobre mãe não dormia. Ela estava apoiada à
cabeceira da cama de seus querídos filhos, que estavam dei-
18
Nikolai Gógol
[.\tlos um ao lado do outro; penteava-lhes os cabelos encara-
itilados, jovens e desgrenhados, umedecendo-os com lágri-
iiií`s; ela olhava inteiramente para eles, olhava com todos os
hL.ntidos, transformou-se toda num olhar e não podia mais
vi.r a si mesma. Ela os amamentara com seu próprio peito, ela
()s i`riou e educou -e os viu diante de si por um instante ape-
n.is. "Meus filhos, meus filhos queridos! 0 que será de vocês?
( ) que os espera?" -dizia ela, e as lágrimas se detiveram nas
i.iit:as, que tinham transformado seu rosto outrora belo. Ela
m rcalmente uma infeliz, como qualquer mu[her daquele
séciilo intrépido. Viveu o amor por apenas um instante, ape-
nas na primeira febre da paixão, na primeira febre da juven-
tiide, e [ogo seu rude sedutor a trocou pelo sabre, pelos com-
i)iinheiros e pela farra. Via o marido dois ou três dias por ano,
i. depois, durante alguns anos, não tinha nenhum sinal dele.
1.`, quando se encontravam, quando estavam juntos, que tipo
ili` vida ela tinha? Suportava ofensas e até surras; apenas por
piedade recebia carícias ocasionais, ela era um ser estranho
mquela turba de cavaleiros solteiros inveterados, sobre os
quais o desregrado Zaporójie lançava seu áspero co[orido. A
iuventude sem prazer passou rapidamente diante dela, e os
seios e as faces belas e frescas murcharam sem beijos e cobri-
rí`m-se de rugas prematuras. Todo o amor, todo o sentimen-
t(), tudo que há de carinhoso e apaixonado numa mulher,
tudo nela voltou-se para um único sentimento de maternida-
de. Com ardor, paixão e lágrimas ela flutuava sobre seus fi-
lhtis como uma gaivota das estepes. Seus filhos, os seus que-
iidos filhos estavam sendo tirados dela, estavam sendo tira-
dos para não vê-los nunca mais! Quem sabe, talvez na pri-
iiieira batalha um tártaro lhes partisse as cabeças, e ela nem
saberia onde jaziam os seus corpos abandonados e sendo de-
vt)rados por uma ave de rapina de beira de estrada; por cada
g()ta do sangue deles, ela daria tudo de si própria. Soluçan-
d{), ela os olhou bem, quando o todo-poderoso sono já come-
ç`.`va a cerrar seus olhos: "Quiçá quando despertar, Bulba
Tarás Bulba 19
adie a partida por uns doís dias; talvez ele tenha planejado
partír tão depressa por ter bebido muito".
Doaltodocéualuahámuítojáilumínavatodoopátío
repletodeadormecidos,odensomontedesalgueíroseomato
crescido,ondedesaparecíaaestacadaquecercavaopátio.Ela
permaneciasentadajuntoàcabeceiradeseusquerídosfilhos,
e nem por um mínuto desviou deles os olhos e sequer pensa-
va no sono. Sentíndo o amanhecer, todos os cavalos se dei-
taram na relva e pararam de comer; as folhas maís altas dos
salgueíroscomeçaramamurmurar,epoucoapoucoumjor-
ro sussurrante desceu por eles até embaíxo. Ela permaneceu
sentada até o amanhecer, não estava de nenhuma maneíra
fatigada,enofundodesejavaqueanoiteseestendesseomá-
ximopossível.Daestepechegouosonororelinchodeumpo-
tro, e listras vermelhas apareceram no céu.
Bulba despertou de repente e deu um salto. Ele se lem-
brava-mBue,:o,::Fazdees't:Íeog:udeeàrodre:,ar:aÉnhao:Í::e;::a,Deem
águaaoscavalos!Ondeéqueestáavelha?(Eraassimqueele
habitualmentechamavasuaesposa.)Depressa,velha,prepa-
re-nos algo para comer: o caminho é longo!
Apobrevelhinha,despojadadesuaderradeíraesperan-
ça,camínhoutrístementeparaaÁb4£cz.Enquantoelaprepa-rava em meio às lágrímas tudo que era precíso para o café da
manhã,Bulbadavasuasordens,íadeumladoparaoutrona
cavalariça e escolhia ele mesmo os melhores equipamentos
paraseusfílhos.Osseminaristassetransformaramderepen-
te:einlugardasbotassujas,elesapareceramdebotasverme-
Ihasdecouromaciocomferradurasprateadas;bombachasda
larguradoMarNegrocomcentenasdepregaseapetrechos,
apertadasporumcínturãodourado;aocinturãoestavamen-
ganchadaslongascorreiascomborlaseoutrosutensi'Iiospara
cachímbo. 0 cafetã de cor vermelha, de um tecído brílhante
como fogo, era cingído por um cinto bordado; pístolas tur-
cas cínzeladas estavam metidas no cinto; o sabre ressoava
20
Nikolai Gógol
l`.`ti`iidt) nas pernas. Seus rostos ainda pouco bronzeados pa-
i.c.ii`m mais belos e brancos; os bigodes negros agora realça-
w`i`i mais claramente a brancura de ambos e a cor saudável
c vig()rosa da juventude; eles ficaram bem com aqueles gor-
i i )` iiegros de pele de carneiro com a parte superior dourada.
^u vê-los, a pobre mãe não conseguiu proferir uma palavra,
c .is lágrimas detiveram-se em seus olhos.
-Bem, filhos, tudo pronto! Não há por que demorar!
-afinal exclamou Bulba. -Agora, de acordo com o costu-
ii`i` i`ristão, é preciso que nos sentemos por um momento an-
1`.` da partida.13
Todos se sentaram, inclusive os rapazes que permane-
ciam respeitosamente junto às portas.
-Agora abençoe seus filhos, mãe! -disse Bulba. -
Ri`ze a Deus para que eles lutem bravamente, que defendam
`i`mpre a honra de cavaleiro, que se mantenham sempre na fé
i.m Cristo, senão é melhor que desapareçam, para que seus
i``píritos sumam do mundo! Aproximem-se de sua mãe, fi-
lhtjs: a oração materna salva na água e na terra.
A mãe, fraca como uma mãe, abraçou-os; pegou dois
i)i`quenos ícones e colocou-lhes no pescoço, soluçando.
-Que a Mãe de Deus... os proteja... Não se esqueçam
de sua mãe, meus filhos... mandem uma notícia pelo menos...
-Ela não conseguiu dizer mais nada.
-Bem, vamos, filhos! -disse Bulba.
Junto à marquise estavam os cavalos selados. Bulba sal-
t()u em seu Diabo, que recuou com raiva ao sentir sobre si
iima carga de vinte PzócJs,]4 porque Bulba era extraordinaria-
mente pesado e gordo.
" Trata-se de um antigo costume que amda hoje é seguido por mui-
tos russos. Quando uma pessoa vai realizar uma longa viagem, ela senta-
-se momentos antes da partida e imagina o trajeto que percorrerá até o seu
dcstirio. (N. do T.)
14 Antiga medida de peso equivalente a 16,38 kg. (N. do T.)
Tarás Bulba 21
cossaca de sobrancelhas
Quando a mãe viu que seus filhos já tínham montado
nos cavalos, ela se atirou ao maís novo, cuj.os traços do ros-
to expressavam uma ternura maior; agarrou-o pelo estribo,
grudou-se em sua sela e com desespero nos olhos não o dei-
xava sair de suas mãos. Dois cossacos robustos a pegaram
com cuidado e levaram-na para a ÁZÁ~ Mas quando eles
passaram pelo portão, ela saiu correndo com a agilidade de
uma cabra montesa, algo íncompatível com sua idade, dete-
veocavalocomumaforçaínacreditáveleabraçouumdeseus
filhos com um ardor alucinado e ínconsciente; e outra vez a
levaram.
Osjovenscossacosseguiamconfusos,contendoaslágrí-
mas, c?m medo do pai que, por sua vez, também estava um
poucoinquieto,emboraseesforçasseparanãoodemonstrar.
0diaestavacinzento,agramabrilhavademodointenso,as
avesgorjeavamemdesordem.Depoisdeavançaremumpou-
co,elesolharamparatrás;aaldeíaquasedesapareceranater-
ra, via-se apenas as duas chaminés da casínha modesta e as
copasdasárvores,emcujostroncoselessubiamcomoesqui-
1os; diante deles estendía-se apenas um prado distante - o
pradopeloqua]elespodiamrecordartodaahistóriadesuas
vídas, desde os anos em que rolavam pela relva coberta de
orvalhoatéostemposemqueesperavampassarumajovem
r`r`eo^-r` À^ ^_L _ _
negras, que criizava por alí temero-
saeapressadacomaajudadesuaspernasrobustaselígeiras.
E agora apenas o mastro acima do poço, com uma roda de
telegaatadanoalto,apareciasolítárionohorízonte3elogo
a planiície que eles haviam atravessado pareceu tomar a for-
madeumamontanha,eencobríutudo.Adeusàínfância,às
brincadeiras, a tudo, tudo!
22
Nikolaí Gógol
Os três cavaleiros seguiam em silêncio. 0 velho Bulba
i)i.iisava no passado: diante dele passava sua mocidade, os
i`ii()s transcorridos, pelos quais um cossaco sempre chora, de-
*i.jtiso de que sua vida inteira fosse de juventude. Pensava em
qmis daqueles seus antigos companheiros ele encontraria na
Siéti`h. Calculava quais tinham perecido, e quais ainda esta-
v:`iii vivos. Uma lágrima se arredondava silenciosamente em
`ii:` pupila, e sua cabeça grisalha inclinou-se com tristeza.
Seus filhos estavam ocupados com outros pensamentos.
M:`s é preciso dizer algo mais sobre eles. Aos doze anos fo-
r:im confiados à Academia de Kíev, porque todos os dignitá-
i.i()` de então consideravam indispensável dar educação a seus
lilhos, embora fizessem isso para depois esquecê-la por com-
iili`to. Eram então como todos os que ingressavam no semi-
iiário, selvagens, criados em liberdade, e que ali se tornavam
habitualmente um pouco civilizados, recebendo uma educa-
ção em comum, que os fazia parecerem uns com os outros.
(')stap, o mais velho, começou sua carreira fugindo já no pri-
iiiciro ano. Levaram-no de volta, castigaram terrivelmente e
() plantaram na frente dos livros. Ele enterrou quatro vezes
sua i`artilha na terra, e quatro vezes lhe compraram uma no-
va, depois de o açoitarem de forma desumana. Mas, sem dú-
vida, ele teria repetido isso pela quinta vez, se o pai não lhe
tivesse feito a promessa solene de encerrá-lo nos serviços mo-
násticos por vinte anos inteiros e não jurasse de antemão que,
se ele não estudasse todas as ciências na academia, jamais ve-
Tarás Bulba 23
riaZaporójie.Écuriosoqueístotenhasidodítopelopróprio
Tarás Bulba, que xingava todo saber científíco e, como já
vimos,aconselhavaosfílhosanãoseocuparemcomele.Des-
de então, Óstap passou a fícar sentado na frente dos lívros
enfadonhoscomumânimoextraordínário,elogoseigualou
aos melhores. 0 tipo de ensíno daquele tempo divergía ter-
rivelmente do modo de vida: aquelas particularídades esco-
lásticas, gramaticais, retóricas e lógicas defínitívamente não
combinavamcomaépoca,nuncaseai.ustavamenemseapli-
cavam à vida. Os que aprendíam não podiam assocjar a nada
os seus conhecimentos, e menos aínda os conhecimentos es-
colástícos.Osprópriosmestresdeentãoerammaisignoran-
tes do que os outros, porque estavam totalmente afastados
daprática.Ademais,aestruturarepublicanadoseminárío,a
horrível multidão de pessoas j.ovens, robustas e saudáveis -
:u::Íâseomdâ:,:u.:sfuoncdu,:ançe::::sTuadaat:::f.aÃ::::e:1:t::ean,::
mentaçãoeojej.umfrequentementeusadocomocastígo,ou-
trasvezesasmuitasnecessídadesquesemanifestamnumjo-
vemforte,saudáveleviçoso-tudoissojuntoproduziane-
les aquela intrepidez que depois se desenvolvia em Zaporó-
jie. Os seminaristas famíntos percorriam as ruas de Kíev e
obrigavamtodosaficarematentos.Asvendedorasqueesta-
vam nos bazares, tão 1ogo viam um seminarista passando,
semprecobríamcomosbraçosassuastortas,pãesesementes
deabóbora,comoaságuiascomseusfilhotes.0cônsul,que
por obrigação devia zelar pelos companheíros que estavam
sob sua custódía, tinha os bolsos das bombachas tão gran-
desqiiepodíameteralitodaabarracadeumavendedoradis-
traída. Esses seminaristas constituíam um mundo completa-
menteàparte:elesnãoeramaceitosnocírculomaisalto,for-
mado por nobres poloneses e russos. 0 próprío uoj.ezJod4,"
" Denommação, na Rússia antiga e em alguns outros estados esla-
vos,dochefedeuinatropa,deiimaregiãooudeumdistrito.(N.doT.)
24
Nikolai Gógol
A(l:`m Kissél, apesar da demonstrada proteção à academia,
ii.`() ()s introduzia na sociedade e ordenava que fossem tra-
i.iil()s do modo mais severo. Aliás, esse preceito era total-
nii.i`tc inútil, porque o reitor e os monges-professores não ti-
nl`mm piedade das varase das chibatas, e os lictores, por or-
tlt.m i]L.les, frequentemente açoitavam seus cônsules de forma
i.`ti i`riiel que estes ficavam passando a mão nas calças duran-
it' .`lgiimas semanas. Para muitos deles aqui[o não era abso-
l`iiamente nada, e parecia um pouco mais forte do que uma
l`tia vodca com pimenta; outros ficavam afinal tão fartos da-
tiucles constantes cataplasmas que fugiam para Zaporójie,
tli.`ili` que soubessem encontrar o caminho e não fossem apa-
iih`cl()s durante o trajeto. Óstap Bulba, embora tivesse come-
``.`ilt7 a estudar lógica e até teologia com grande entusiasmo,
ii.iti i`scapava de maneira alguma das varas implacáveis. É na-
i u i..`l que isto tenha lhe endurecido um pouco o caráter e in-
i utiil() nele a dureza que sempre distinguiu os cossacos. Ós-
i.`r f()i sempre considerado um dos melhores companheiros.
l`:m`mente ele mandava os outros em aventuras ousadas, co-
i" dcvastar um jardim ou uma horta alheia, mas em com-
i`t.i`sação era um dos primeiros a se juntar a algum semina-
rim mais intrépido, e nunca, em nenhuma situação, delata-
v.` `cus companheiros. Nenhuma chibata ou vara conseguia
nl)rií:á-lo a fazer isso. Era insensível a outros impulsos que
n.lt) .i guerra e a farra desvairada; pelo menos quase nunca
i\i.i`sava em outra coisa. Ele era sincero com seus pares. Ti-
i`l`.` b()ndade na medida em que esta podia existir num cará-
ii`i. i`()mo o dele, e numa época como aquela. Ele estava sin-
i`i`rí`mente tocado pelas lágrimas da pobre mãe, e isto era a
i'uiii`n coisa que o perturbava e o obrigava a baixar a cabeça
',l.,,sí,tivo.
Scu irmão mais novo, Andríi, tinha sentimentos um pou-
i`u imis vivos e mais desenvolvidos. Estudava com mais pra-
/w e sem o esforço geralmente despendido por um caráter
l(}rte e difícil. Era mais criativo que seu irmão; aparecia mais
1.mix Bl'lba 25
frequentemente como líder de aventuras bastante perigosas,
e às vezes, com a ajuda de sua inteligência criativa, sabia es-
capar do castigo, enquanto seu irmão Óstap, que não toma-
va nenhum cuidado, tirava o casaco e se deítava no chão, sem
sequer pensar em pedir misericórdia. Ele também era louco
por uma proeza, mas sua alma era ao mesmo tempo acessí-
vel a outros sentimentos. A necessídade de amor inflamou-se
vivamente dentro dele ao completar dezoito anos. A mulher
passou a aparecer com mais frequêncía em seus sonhos ar-
dentes; enquanto ouvia as dísputas fílosóficas, ele a visua-
lizava a cada instante - fresca, de olhos negros, carinhosa.
A todo momento passavam diante dele uns seios flamejantes
e firmes, uns braços carínhosos, belos e nus; o próprío vesti-
do que cobría seus membros fortes e virgínais inspirava em
seus sonhos uma volúpia indescrítível. Ele escondia cuidado-
samente de seus companheiros esses movimentos de uma al-
ma juvenil apaixonada, porque naquele século era uma ver-
gonha e uma infâmia que um cossaco pensasse em mulher e
amor sem ter experimentado uma batalha. De modo geral,
nos últimos anos ele muito raramente aparecia como líder de
uma turma, mas vagava sozinho com mais frequência em al-
gum recanto isolado de Kíev, mergulhado em jardins de ce-
rejeiras e entre casinhas baixas que olhavam sedutoramente
para a rua. Às vezes se metía na rua dos aristocratas, na ve-
1ha Kíev dos dias atuaís, onde moravam nobres poloneses e
ucraníanos e onde as casas eram construídas com certo ca-
pricho. Uma vez, quando caminhava boquiaberto, quase foi
atropelado pela carroça de um senhor polonês, e o cocheiro
de bigodes enormes que estava sentado na boleia o fustigou
bastante bem com o chicote. 0 jovem seminarista fícou fu-
rioso: com uma coragem louca, ele agarrou a roda traseira
com sua mão poderosa e deteve a carroça. Mas o cocheíro,
temendo a reação, deu um golpe nos cavalos; estcs partiram,
e Andríí, que felízmente conseguíra tirar a mão da roda, se
estatelou no chão com o rosto bem na lama. A mais sonora
26 Nikolai Gógol
c h`rmoniosa gargalhada ressoou acima dele. Andríi ergueu
m olhos e viu numa janela uma mu[her linda como jamais
i uilm visto: de olhos negros e branca como a neve iluminada
iN.l.` cor matutina do sol. Ela ria com toda a alma, e o riso
M i.t'`ct.ntava uma força brilhante a sua esplêndida beleza. Ele
lim pasmo. 0lhou para ela totalmente perdido, limpando
il.. t.orma desatenta a lama do rosto que se sujava mais ain~
`lm Quem seria aquela bela mulher? Foi saber junto à crial
`h`8t`m, que estava vestida de maneira luxuosa perto dos por-
i(-)i.` .` aglomerada ao redor de um jovem que tocava bandur-
ri`. Mas a criadagem começou a rir quando viu sua pele suja
`. i`t.in deu ouvidos à sua pergunta. Finalmente soube que ela
u .` tilha de um uo!.evod¢ de Kovno que viera passar um tem-
im :`li. Na noite seguinte, com a audácia típica de um semi-
ii.irista, ele entrou no jardim através da paliçada e subiu nu-
m .irvore cuios ramos se estendiam até o telhado da casa; da
m vm ele passou para o telhado e introduziu-se pela chami-
i`{. tl.` lareira diretamente no quarto da bela mulher, que àque-
1.` hora estava sentada diante de uma vela tirando de suas
oi.t.lhas os brincos valiosos. A bela polaquinha assustou-se
i.`i`to ao ver diante de si um homem desconhecido que não
` m`cguiu pronunciar uma palavra; mas, quando ela perce-
l`(`ii que o seminarista estava parado, de olhos baixos e sem
m atrever a mover a mão de tanta timidez, quando ela reco-
i`l`i`ccu aquele mesmo iovem que tinha se estatelado na rua
lm na sua frente, o riso a dominou outra vez. Ademais, nos
i r.```os de Andríi não havia nada de terrível: ele era de muito
1`o:` aparência. Ela ria com sinceridade, e se divertiu bastan-
m .`h custas dele. A bela jovem era leviana, como uma po-
I.i`iiiinha, mas seus olhos maravilhosos, brilhantes ç clargs
l.ii```i`vam um olhar demorado, constante. 0 seminarista nao
wmi`guia mover a mão, como se estivesse amarrado dentro
J.` iun saco; foi quando a filha do vo!.evoJ4 se aproximou dele
m hesitação, pôs em sua cabeça um diadema brilhante, pen-
`l`irou-lhe os brincos nos lábios e lançou sobre ele uma blu-
l';`r.is Bulba
27
sinhademusselinatransparentecomornatosbordadosaou-
ro.Elaoarrumavaefaziacomelemíltohcesdiferentescom
adesenvolturainfantilqueécaracterísticadaspo]aquinhasle-
víanas,oquedeixouopobresemínarístaaindamaísemba-
raçado.Elerepresentavaumafiguraridícula,debocaaberta
eolhandoimóvelparaosseusolhínhosdeslumbrantes.Nes-
sa hora, uma batída que ressoou na porta a assustou. Ela o
fezesconder-sedebaixodacama,elogoqueoperigopassou,
chamousuaaia,umaservatártara,edeu-lheaordemdelevá-
-[ocomcuidadoparao)ardimedespachábdaliatravésda
cerca. Mas desta vez o nosso semínarísta não atravessou a
cerca com tanta ventura: o vígía que despertava o agarrou
firmementepelaspernas,eacriadagemreunidaoespancou
bastantejánarua,atéquesuaspernas]igeirasosalvaram.
Depoisdisso,ficoumuitoperigosopassarpertodacasa,por-
queacriadagemdouoí.eüodfleramuitonumerosa.Eleaen-
controu de novo numa ígrej`a católíca: ela o notou e sorríu
combastanteprazer,comosefosseparaumvelhoconhecí-
do.Eleaviudepassagemaindaumavez,elogodepoisdisso
o oozezJod4 de Kovno foi embora, e no lugar da bela pola-
quinhadeolhosnegrosapareciaumrostogordonas]anelas.
AíestánoquepensavaAndríi,comacabeçainclinadaeos
olhos voltados para a crína de seu cavalo.
Mas enquanto Ísso, a estepe há muito tempo ;.á tinha
tomadoatodoselesemseusbraçosverdes,arelvaaltaque
seacercavaosencobríu,eentresuasespígassóapareciamos
gorros negros dos cossacos.
-Ora,ora,ora!Porqueéqueestãocaladosassím,ra-
pazes?-díssea£inalBu]ba,despertandodesuameditação.
-Pareeatéquesãomonges!Bem,deumavezportodas,
aodíabocomessespensamentos!Seguremoscachimbosnos
dentesevamosfumar;vamosesporeafoscavalosevoarde
um jeito que nem uma ave nos alcance!
E inclinados sobre os cavalos, os cossacos desaparece-
ramnarelva.Jánãosepodíavernemosgorrosnegros;só28
Nkolai Gógol
iiiiii` ll`tra de relva amassada indicava o rastro de sua corri-
1,, l,Ht`,,.``.
( ) `til aparecera há muito tempo no céu limpo e banha-
vii ,i i```tepe com sua luz viva e calorosa. Tudo que havia de
` i niím() c sonolento na alma dos cossacos sumiu num instan-
it`, `. `i.iis corações se agitaram como aves.
Qii.`nto mais avançavam, mais bela a estepe se tornava.
1 i ii .it> ttido o sul, toda aquela extensão que constitui a Nova
1` `i``i;` dc hoje, até o Mar Negro, era um deserto verde e vir-
Ht.iii. Nunca o arado tinha passado pelas imensas ondas de
v{`Ht.t,iç..io selvagem. Eram pisoteadas apenas por uns cavalos
i im `i` i`scondiam nelas como num bosque. Não podia haver
ii.itl.` nii`lhor na natureza. Toda a superfície da terra apresen-
i.iv.i-h.. como um oceano verde-cré, pelo qual brotavam mi-
" it.s ili` f[ores diferentes. Através das hastes finas e longas da
i i`lv.` trmsparecia uma vegetação fechada, de cor azul-escura,
i`/ul-i`i`leste e lilás, uma gesta amarela despontava com seu
` utiii` piramidal, o trevo branco de gorros em forma de guar-
il.i i huva abundava na superfície; uma espiga de trigo trazida
`.il``. l)cus de onde amadurecia no mato cerrado. Sob suas
i .u;i``` finas corriam perdizes com o pescoço esticado. 0 ar
t.`i.ivi` repleto de assobios de centenas de pássaros diferentes.
Nn i`éu, abutres permaneciam imóveis com suas asas estira-
il.i` i` ()s olhos fixos na relva. 0 grito de uma nuvem de gan-
`{ i` `elvagens que se deslocava ressoou em algum lago distan-
i`..1 )a relva subiu uma gaivota em movimento cadenciado e
l`,`iih()u-se magnificamente nas ondas azuis do ar. Lá ela de-
`.ii`.`receu nas alturas e apenas cintilava em forma de um pon-
iu iic`gro. Lá ela virou as asas e brilhou diante do sol... Que
ili.ih()s! Como você é boa, estepe!...
Nossos viajantes pararam apenas alguns minutos para o
.` 1 iiitiç`o, e o destacamento de dez cossacos que seguia com eles
ili.`icu dos cavalos e pegou os cantis de madeira com aguar-
tli`iiti. e as cuias que são utilizadas no lugar de vasilhas. Co-
ini.ri`ni apenas pão com toucinho ou panqueca e beberam só
l`;\'..is Bulba 29
um cálice de aguardente, unicamente para reforço, porque
Tarás Bulba nunca permitia que se embriagassem no cami-
nho; e daí continuaram a viagem até o anoitecer. À noite, a
estepe mudava completamente. Toda aquela extensão colo-
rida era abraçada pelo último reflexo de sol e escurecia pouco
a pouco, de modo que era possível ver a sombra avançando
pela estepe que se tornava verde-escura; vapores se erguiam
no mato cerrado, todas as flores e ervas exalavam âmbar, e
tudo ali fumegava perfume. No céu azul-escuro havia largas
faixas de ouro rosado, como se tivessem sido pintadas por um
pincel gigantesco; de vez em quando branquejavam nuvens
suaves e transparentes em forma de farrapos, e a brisa fresca
e sedutora, semelhante a ondas do mar, quase nem balançava
o topo da relva e tocava as faces apenas levemente. Toda a
música ouvida durante o dia silenciara e fora substituída por
outra. Marmotas de variadas cores saíam de suas tocas, de-
tinham-se sobre as patas traseiras e enchiam a estepe de asso-
bios. 0 cricrido dos grilos tornava-se mais audível. Às vezes
ouvia-se de algum lago afastado o grito de um cisne ecoan-
do no ar como metal. Detendo-se no meio do campo, os via-
jantes escolheram um lugar para o acampamento, armaram
uma fogueira e puseram sobre ela um caldeirão, onde cozi-
nharam uma papa; o vapor se desprendia e fumegava no ar.
Depois do jantar, os cossacos se deitaram, deixando seus ca-
valos amarrados pela estepe. Eles se esparramaram sobre os
cafetãs. As estrelas da noite olhavam diretamente para eles.
Ouvia-se claramente o inumerável mundo de insetos que en-
chiam a relva, todo o seu crepitar, assobio, cricrido - tudo
isso ressoava abertamente no meio da noite, purificava-se no
ar fresco e embalava os ouvidos sonolentos. Se algum deles
se erguesse e se levantasse nessa hora, a estepe se lhe apresen-
taria coberta pelas faíscas brilhantes dos vaga-lumes. Às ve-
zes, o céu noturno era iluminado em alguns lugares pelo cla-
rão distante de um canavial seco queimando pelos prados e
margens de rios, e a fileira escura de cisnes que voavam para
30 Níkolai Gógol
n iit)rri` foi de repente iluminada por uma luz rosa e prateada,
r i.nt ```tj parecia que lenços vermelhos voavam pelo céu escuro.
( )s viajantes prosseguiam sem quaisquer incidentes. Não
ll`t.` .`i).`recia sequer uma árvore; era tudo aquela mesma es-
iri`i` iiifinita, livre e maravilhosa. De vez em quando divisa-
vn -w () cume de um bosque afastado, que se estendia pelas
" i.gi`ns do Dniepr. Só uma vez Tarás mostrou aos filhos um
i`..`iiii`no ponto enegrecido na relva distante, dizendo: "Ve-
ji`i`i, filhos, ali vai um tártaro!". Uma pequena cabeça com
l`iRt)des fitava-os de longe com seus olhos oblíquos, farejan-
il( i t) m como um cão ga[go, e ao perceber que ali havia treze
` ()``.`cos, desapareceu como um cabrito montês. "Pois bem,
lill`()s, tentem alcançar o tártaro!... Não, nem tentem, nun-
i.i` vão conseguir: ele tem um cavalo mais rápido que o meu
".`1)(). " Todavia Bulba tomou precauções, protegendo-se de
.`hiima emboscada. Eles galoparam até um pequeno riacho
ilt.n()minado Tatarka, que desembocava no Dniepr; daí ati-
i..`i..`m-se na água com seus cavalos e seguiram por ele para
ciii.()brir suas pegadas; depois, saindo para a margem, pros-
8cguiram sua jornada.
Três dias depois, já estavam perto do lugar que tinha
`iilt) a razão da partida. 0 ar em volta começou a ficar frio;
t.li.` sentiram a proximidade do Dniepr. E ali estava ele, bri-
lli.`ndo ao longe e se apartando do horizonte numa faixa es-
i.ura. Ele tremulava em ondas frias e se alargava mais e mais,
`[i'` que finalmente abraçou metade da superfície da terra. Era
i`i``se [ugar que o Dniepr, até então infestado de pedras, tor-
i`.`va-se finalmente livre e rumorejava como o mar, derra-
"`ndo-se à vontade; era ali que as ilhas lançadas no centro
ili.`alojavam-no ainda mais das margens, e suas ondas esten-
ilií`m-se amplamente pela terra, sem encontrar penhascos nem
i`li.vações. Os cossacos desceram de seus cavalos, subiram nu-
iii:` barca e, depois de três horas de navegação, já estavam
iiH`to às margens da ilha Khortítsa, onde ficava então a Sié-
ii`li, que mudava de lugar com bastante frequência.
l'á`rás Bulba 31
Um bando de gente discutia na margem com os barquei-
ros. Os cossacos arrumaram os cavalos. Tarás assumiu uma
postura de valentão, apertou mais o cinto e passou a mão alti-
vamente pelo bigode. Seus jovens filhos também se examina-
ram dos pés à cabeça com certo temor e uma satisfação inde-
finida -e seguiram todos juntos para os arrabaldes, que fi-
cavam a meia versta da Siétch. Ao chegarem, foram atordoa-
dos por cinquenta martelos de ferreiros batendo nas vinte e
cinco ferrarias, que eram cavadas no solo e cobertas de mato.
Curtidores robustos, sentados sob o toldo dos terraços de en-
trada na rua, amassavam peles bovinas com suas mãos vigo-
rosas. Mercadores estavam sentados embaíxo de tendas com
montes de pederneiras, pólvora e fuzís. Um armênio pendu-
rava lenços de tecido caro. Um tártaro gírava espetos de car-
ne ovina misturada com massa. Um judeu, com o pescoço es-
ticado para frente, destilava aguardente de um barril. Mas o
primeiro que eles encontraram foi um zaporogo que dormia
bem no meio da estrada, com as pernas e os braços estirados.
Tarás Bulba não podia deixar de parar e admirá-1o.
-Que jeíto de se apresentar, hein! Ora, mas que fígura
magnífica! -disse ele, detendo o cavalo.
De fato, cra um quadro bastante engraçado: o zaporogo
estava estendido na estrada como um leão. Seu topete erguido
altívamente ocupava meio ¢rcÁz.#í6 do solo. As bombachas de
tecido escarlate fino estavam sujas de breu, o que demonstra-
va um total desprezo paracom elas. Passada a admíração,
Bulba seguíu adiante por uma rua estreita e atravancada de
artesãos ocupados com seu ofício e de gente de todas as na-
cionalidades que enchiam aquele arraba]de, o qual se asseme-
lhava a uma feira que vestia e alímentava a Siétch; esta, por
sua vez, só sabia passear e atirar com espingardas.
Fínalmente eles atravessaram o arrabalde e viram algu-
mas casinhas separadas cobertas com palha ou, ao estilo tár-
]6 Medida equivalente a 0,71 m. (N. do T.)
32 Nikolai Gógol
ii`i.ti. |`()m feltro. Outras estavam equipadas com canhões. Em
luHm .`lgum se viam cercas ou aquelas casinhas baixas com
it.l.Iti` sobre colunas de madeira, como eram no arrabalde.
I lm i`('queno aterro e uma paliçada, que não eram protegidos
itt n .`hsolutamente ninguém, mostravam uma incrível des-
iu t.t ii`iipação. Alguns zaporogos corajosos, que estavam dei-
i.iil()` l)em no caminho com cachimbos nos lábios, olharam
i}.ii..` ty, recém-chegados de forma bastante indiferente e não
`iii`r" do lugar. Tarás passou entre eles cuidadosamente com
o` tilhos, dizendo: "Olá, senhores!" -"01á para vocês!",
i`..`ii(mderam os zaporogos. Em toda parte, por todo o cam-
iiii, :`píirecia gente em forma de montes pitorescos. Por cau-
w ili` `eus rostos queimados de sol, via-se que todos eles es-
ii`v:`iii cndurecidos pelos combates e que tinham experimen-
i.iiltj ttida sorte de infortúnios. E isso era a Siétch! Esse era o
ni i`l`ti de onde voavam todos os que eram altivos e fortes co-
niti li.(~)i.s! Era dali que a determinação e os cossacos se espa-
lli.`vmi por toda a Ucrânia!
()s viajantes saíram para uma praça espaçosa, onde ha-
1 `` i ii.` lmente o conselho se reunia. Sobre um grande barril tom-
l\,`il() i`stava sentado um zaporogo sem camisa; ele a segurava
n.i* i"ios e costurava os buracos que havia nela. Novamente
t i i.i`minho deles foi interrompido por um bando de músicos,
iiu i``i`io dos quais dançava entusiasmado um jovem zapo-
i um ciue trazia o gorro de lado e agitava os braços. Ele gri-
i .i vi`: "Toquem com mais energia, rapazes! Não tenha pieda-
ilt., l.`t)má: aguardente para todos os cristãos ortodoxos!". E
lit ii"i, com um olho inchado enchia uma caneca imensa para
` .iil.` iini que se aproximava. Em volta do j.ovem zaporogo,
uiii ti`i.`rteto de velhos mexia as pernas com bastante habili-
il.i`lt.; i`les saltavam rodopiando como um redemoinho, qua-
i.. `t)liri. :` cabeça dos músicos, e de repente, agachados, dan-
``iiv,`m a pr;.ssÍ'czdÁ4]7 batendo no chão duro com os tacões
17 l)ança popular russa. (N. do T.)
'''''.'tN ''ulha 33
prateados de forma severa e enérgica. 0 chão bramia de um
modo surdo em toda parte, e no ar, mais ao longe, ressoavam
gop4'Áes e £rop¢'Áes,[8 sacudidas pelos sonoros tacões das bo-
tas. Mas havia um que gritava com mais vivacidade do que
todos e atirou-se na dança seguindo os outros. Sua mecha de
cabelos esvoaçava no vento, o peito robusto estava todo à
mostra; vestia uma pelíça grossa de inverno e o suor escorria
em bicas. "Vamos, tire a pelíça! " -disse afinal Tarás. "Você
está cozinhando! " "Não posso! " -grítou o zaporogo. "Por
quê?" "Não posso3 tenho esse costume: tudo que tiro, eu tro-
co por bebída." 0 rapagão há muito tempo já estava sem
gorro, sem cinto sobre o cafetã e sem lenço bordado; tudo
tínha voado para alguma direção. A multidão crescia e outros
se juntaram aos dançarinos; era impossível assístir sem co-
moção àquela dança, a mais livre e mais £uríosa que o mun-
do i.á viu e que, por causa de seus vigorosos inventores, era
chamada de Á4z4fcbóÁ.19
-Ah, se eu não estívesse a cavalo! -gritou Tarás. -
Eu mesmo iria me atirar nessa dança!
Enquanto isso, começaram a chegar cossacos velhos e
austeros,detopetesgrisalhos,queeramrespeitadospelosser-
viços prestados à Siétch e que por mais de uma vez tinham
exercido a função de chefe. Tarás encontrou logo uma mul-
tidão de rostos conhecidos. Óstap e Andri'í ouviam apenas os
cumprimentos: "Ah, é você, Petchéritsa! Olá, Kozólup! ", "De
onde Deus o trouxe, Tarás?", "Como chegou até aqui, Doló-
to.)", "Saudações, Kírdiága! Saudações, Gústi! Eu nem ima-
ginava vê-1o, Remién!". E os bravos guerreíros, oriundos de
tododquelemundodesregradodaRússíaOriental,beijavam-
-se mutuamente; e daí propagaram-se perguntas: "E o que £oí
feito de Kassián? E Borodávka? E Kolópier? E Pidsíchok?".
" Danças ucranianas. (N. do T.)
" Dança dos cossacos. (N. do T.)
34
Nikolai Gógol
1.', i`tiiiio resposta, Tarás Bulba ouviu apenas que Borodávka
li w ,` i.iiforcado em Tolopan, que Kolópier tinha sido esfola-
`lt i n" ;`rredores de Kizikírmien e que a cabeça de Pidsichok
li n .i `:`lgada num barril e enviada a Tsargrad.2° 0 velho Bulba
li,uxt>ii a cabeça e disse pensativo: "Foram bons cossacos!".
2° Constantinopla. (N. do T.)
1`'''.1\\ l)ll'ba 35
111
|.í havia cerca de uma semana que Tarás Bulba estava
` " `i`us filhos na Siétch. Óstap e Andríi estudavam pouco
n .`rti. militar. A Siétch não gostava de se estorvar com exer-
i.`i`i()s militares e nem de perder tempo; nele a juventude se
liimui'a e se formava por uma única experiência: no próprio
•wtl()r das batalhas, as quais, justamente por isso, eram qua-
w ii`iiiterruptas. Os cossacos consideravam tedioso ocupar-
-nc tl`irante os intervalos com o estudo de qualquer disciplina,
cxi.i.t() o tiro ao alvo e, de vez em quando, o sa[to a cavalo e
w i.í`i`íi pelas estepes e prados; o tempo restante era dedicado
A(i`` fi.stins, sinal de um amplo desprendimento da vontade da
iilin.`. Toda a Siétch apresentava-se como um fenômeno ex-
ii .`()rilinário. Era um banquete incessante, um baile que já
i iiiiii`çava ruidoso e que não tinha fim. Alguns se ocupavam
` iHi` scu ofício, outros armavam suas barracas e se dedicavam
iin i`t)mércio; mas a maior parte farreava de manhã até a noi-
i`., ili```de que nos bolsos ainda tilintasse algum recurso e os
l``.ii` ()btidos não tivessem passado para as mãos dos comer-
` i.u`tcs e taberneiros. Esse banquete geral tinha algo que en-
lt.ii iç`ava. Não era um ajuntamento de bebuns, que se embria-
r\.iw`m de desgosto, mas simplesmente uma baderna furiosa
•lt. .`li`gria. Qualquer um que chegava àquele lugar se esque-
i i.` i. ;`bandonava tudo a que se dedicara até então. Pode-se
`li/i`r que cuspia em seu passado e se entregava despreocupa-
`l.i i`ii`nte à liberdade e à camaradagem daqueles que eram far-
i i\r:`s i`omo ele mesmo, que não tinham nem parentes, nem
l.i i i` nein família, mas apenas o céu livre e o festim eterno de
l'lmit, ltlllba 37
sua alma. Isso produzía aquela alegria furiosa que não pode-
rianascerdenenhumaoutrafonte.Todasashístóriasetaga-
relicesnomeiodaquelaturbareunida,equedescansavaprc-
guíçosamente no chão, eram sempre engraçadas e cheíravam
a narrativas tão fortes e vivas que era precíso ter toda a apa-
renteserenídadedozaporogoparamanteraexpressãoimpas-
sível do rosto, sem ao menos mexer o bígode - o traço cor-
tante pelo qual o russo do sul se distíngue até hoje dos seus
outros irmãos. Era uma alegria embríagada, barulhenta, mas
nãoadeumbotequimcscurecído,ondeumhomemseesque-
ce de si por causa de uma alegria sombria e deturpada5 aqui-
1oeraumcírculoestreitodecolegasdeescola.Adiferençaera
que, em lugar de observar as ordens e as orientações vulga-
res de um professor, eles realizavam íncursões montados em
cinco mil cavalos; em lugar do prado onde se joga bola, eles
tinham fronteíras despreocupadas e desguamecidas, à vísta
das quais um tártaro mostrava sua cabeça ligeira e um turco
olhava ímóvel e severo sob seu tui.bante verde. A diferença
era que, em lugar de serem reunídos à força numa escola, eles
próprios tinham abandonado os pais e as mães e fugiram de
casa; ali estavam aqueles em cujos pescoços já tinha sido co-
1ocada uma corda e que, em lugar da morte pálida, tinham
vístoavida-eumavidadeplenabaderna;aliestavamaque-lesque,porumhábítonobre,nãoconseguiamguardarumsó
copeque no bolso; ali estavam aqueles que até então conside-
ravam que um ducado era uma riqueza, e cui.os bolsos, gra-
ças à píedade dos arrendatários judeus, podíam ser arranca-
dos sem qualquer receio de deíxar cair alguma coisa. Ali es-
tavam todos os seminaristas que não tinham suportado as
vergastadas na academia e nem tinham aprendido uma só
letranaescola;masjuntocomelesestavamosqueconhecíam
Horácio, Cícero e a República Romana. Ali estavam muitos
daqueles oficíais que depois se destacaram nas tropas reais3
aliestavaumamultidãodeguerrilheirosexperienteseinstruí-
dos,quetinhamanobreconvicçãodequetantofazlutaraquí
38
N/kolaiGógol
()ii ;`i.()lá, pois, para um homem nobre, indecência era viver
•rn` hi`talhas. E havia aqueles que ali chegavam apenas para,
ii`ui` t;irde, dizer que tinham estado na Siétch e que já eram
i.iw.`li.iros calejados. Mas quem ali não era? Aquela estranha
i.ci`i`il)lica era realmente uma necessidade daquele sécu[o. Os
iiiii:uites da vida militar, das taças de ouro, dos ricos bro-
i.ii`l{)`, ducados e moedas podiam encontrar trabalho ali em
iiu.`l`iuer época. Os únicos que não encontrariam nada ali
rn`i`` :`queles que amavam as mulheres, pois estas nem ousa-
viim iiparecer nos arrabaldes da Siétch.
A Óstap e Andríi parecia estranho demais que chegasse
iiin `i`m-número de pessoas à Siétch, e sem que ninguém se-
•iw iierguntasse: de onde vem essa gente, quem são e como
•c i.h`mam? Chegavam ali como se voltassem para sua pró-
prií` i`asa, da qual tivessem saído há apenas uma hora. 0 re-
i.6i``-i`hegado apresentava-se apenas ao ÁocÁ)eLJóí.,2í que habi-
t`i{`l iiicnte dizia:
-Olá! E então, acredita em Cristo?
-Acredito! -respondia o recém-chegado.
-E crê na Santíssima Trindade?
-Creio!
-E vai à igreja?
-Vou!
-Bem, faça o sinal da cruz!
0 recém-chegado fazia o sinal da cruz.
-Muito bem! -respondia o Áocbc'#óf.. -Entre no ba-
i,` ih.i()22 que você já conhece.
21 Comandante supremo do exércjto cossaco de Zaporójie. Era tam-
l.ém i`hamado de atamã Áocbevóí.. A palavra ÁocbcLJó! vem de Áocb, uma
ii`i``.i` .idornada com um rabo de cavalo e que simbolizava a autoridade do
•.ii"`iidante. 0 atamã ÁocÁ)cuó!. era eleito democraticamente pelos pró-
riri.)s i`()ssacos. Podia ser destituído a qualquer momento, também por
ii`i`it>ri.i de votos, se cometesse algum crime ou se fosse considerado um
ii`i``i i`()mandante. (N. do T.)
22 No original, Á#7f.é#. Essa palavra designava uma divisão adminis-
•l'arás Bulba
39
Com isso termínava toda a cerímônia. E toda a Siétch
rezava numa só ígreja e estava pronta para defendê-1a até a
última gota de sangue, embora não quisesse nem ouvir falar
sobre jejum e abstinêncía. Apenas os judeus, armênios e tár-
taros, induzídos por uma forte cobiça, ousavam víver e co-
mercializar nos arrabaldes, porque os zaporogos nunca gos-
taram de pechinchar e pagavam a quantia de dinheíro que a
mão tirasse do bolso. Entretanto, o destino desses comercían-
tesganancíososeralamentável.Eramparecidoscomaqueles
que moravam ao pé do Vesúvio, pois logo que acabava o di-
nheiro dos zaporogos, estes bravos destruíam suas barracas
e tomavam tudo de graça. A Siétch era constituída de sessenta
e poucos batalhões, que se assemelhavam a repúblícas sepa-
radas, índependentes, ou mesmo a uma escola ou a um semi-
nário de alunos ínternos. Nínguém acumulava nem guarda-
va nada consigo. Tudo ficava nas mãos do atamã23 do bata-
lhão, que era por isso chamado habitualmente de paizínho.
Ele guardava dínheiro, roupas, víveres, farinha de aveía e de
milhoeatécombustível;entregavam-lhetodoodinheiropa-
ra que guardasse. Não raro, ocorríam disputas entre os bata-
lhões. Nesses casos, a coísa descambava para brigas de ver-
dade. Os batalhões cobríam a praça e trocavam socos entre
sÍ até que alguns não resistiam e deixavam de avançar con-
traosoutros;daícomeçavaumafestança.AssimeraaSiétch,
que tinha tantos atrativos para os i.ovens.
ÓstapeAndrííatiraram-secomtodooardordajuven-
tude naquele mar de badernas e esquecerain de ímediato a
trativadaSíétch,podendosertraduzidatambémporacampamento.Como
unidade tática em combate, o Á#7J.c'# assemelha-se a um batalhão, sendo
divid[do em sóí#« (centúrias ou esquadrões). (N. do T.)
23 Possivelmente a palavra %mã tem a mesma origem de bémz
0 termo era usado para designar o comandante do cxército ou de um ba-
talhãocossaco.Nesteúltímocaso,empi-egava-seaforma¢f4mõÁz#7jewou
apenas Á#7!`e#i.. (N. do T.)
40
Nikolai Gógol
i.asa do pai, o seminário e tudo o que outrora lhes preocupa-
va a alma; e daí se entregaram à nova vida. Tudo os atraía:
(is costumes baderneiros da Siétch, a administração descom-
iilii`ada e as leis que, às vezes, lhes pareciam até bastante se-
vi`r.`s no interior de uma república tão indisciplinada. Se um
i.(}ssaco cometesse um roubo, se furtasse uma bagatela qual-
•iiii`r, isso era considerado uma infâmia para todos os cos-
\.`i`()s; então, o infame era amarrado ao pelourinho e a seu
l.iilti era colocado um porrete, com o qual todos que pas-
`.```cm por ali estavam obrigados a desfechar-lhc um golpe,
`it`` que morresse. 0 devedor que não pagava era acorrenta-
`lu `` um canhão, onde tinha de permanecer até que algum
\lti` scus companheiros resolvesse resgatá-lo, pagando sua
`Ii`vida. Porém, o que mais causou impressão a Andríi foi a
i`i`m estabelecida para assassinato. Nesse caso, abria-se uma
i twa na frente do assassino, colocavam-no vivo ali dentro e
i`()r cima dele o caixão que guardava o corpo de sua vítima;
i`m seguida cobriam a ambos com terra. Muito tempo de-
i`tn` Andríi ainda tinha a visão daquele terrível ritual de su-
i`li'i it) e daquele homem enterrado vivo junto com um caixão
ll,lll.l,roso.
Em pouco tempo os dois jovens já eram bem vistos pe-
li}` t)utros cossacos. Frequentemente eles saíam para a este-
i`(. i()m alguns companheiros, às vezes até com todo o bata-
lli.iti e com seus vizinhos, para caçar um sem-número de es-
i`{`.iii`s de aves, cervos e cabritos; ou então iam para os lagos,
i.it)` i` canais, que eram desviados para cada batalhão, e daí
ii iHi`vam redes e levavam ricas pescarias para alimentar a to-
`lti`. Embora nessas situações não houvesse ciência em que
uiii i`()ssaco pudesse ser colocado à prova, eles se destacavam
i.iirri` os outros jovens pela audácia direta e pela sorte em tu-
`li}. ^tiravam no alvo com desenvoltura e de modo certeiro,
i i.`il.wam no Dniepr contra a correnteza, ato pelo qual um no-
v,iiu i`ra aceito solenemente nos círculos de cossacos.
Mas o velho Tarás lhes preparava outra atividade. Não
1.irÁs Bulba 41
lhe agradava uma vida tão ociosa - ele queria ação de ver-
dade. Ficava imaginando como levantar a Siétch para uma
ação de valor, onde pudessc se divertir como cabe a um ca-
valeiro. Finalmente um dia ele foi até o Áoc4evóg. e disse de
forma direta:
-E então, Á:ocbért/ój., não é hora dos zaporogos se diver-
tirem?
-Não há onde se divertir -respondeu o Áoc4ez/óÇ., ti-
rando da boca um pequeno cachimbo e cuspindo para um
lado.
--Como não há? Podemos ir para Turiéschina ou para
a Tatarva.
-Não podemos ir nem para Turiéschina e nem para a
Tatarva - respondeu o Áocbeyóí., colocando tranquilamen-
te seu cachimbo na boca outra vez.
-Como não podemos?
- É isso mesmo. Nós prometemos paz ao sultão.
- Mas ele é muçulmano; e Deus e as Sagradas Escritu-
ras mandam combater os muçulmanos.
-.-- Não temos o direito. Se não tivéssemos jurado por
nossa fé, então podia ser; mas não foi assim. Agora não po-
demos.
-Como não podemos? Por que você diz: não temos o
direito? Pois eu tenho dois filhos, ambos são jovens. Nem um
nem outro estiveram sequer uma vez numa guerra, e você diz
que não temos o direito? Você diz que os zaporogos não po-
dem ir?
-Bem, as coisas não são mais desse jeito.
•- Pois então é assimque a força dos cossacos desapa-
reça em vão, que o homem pereça como um cachorro, sem ter
feito uma obra boa, e para que nem a pátria nem o Cristia-
nismo tirem dele qualquer proveito? Então para que nós vi-
vemos, para que diabo nós vivemos? Explique-me isso! Você
é um homem inteligente, não foi em vão que o escolheram
como ÁocÁ}evóz.; explique-me: para que nós vivemos?
42 Nil(olai Gógol
( ) Á:ocb€vóÍ. não deu resposta a essa pergunta. Era um
` ii``{`i`ti teimoso. Ele ficou calado por um instante e depois
'l',hl,:
- Apesar de tudo, não vai haver guerra.
-Então não vai haver guerra? -perguntou de novo
l arás.
- Não.
-Então não se deve nem pensar nisso?
- Não se deve nem pensar nisso.
"F,spere só, seu filhote do Cão!" ~ disse Bulba para si
inc`iiit). "Você vai ver só!" E decidiu se vingar do Áoc47evóz'.
l)epois de conversar com uns e outros, ofereceu a todos
iin`.i l)ebedeira, e os cossacos embriagados, num certo nú-
nit.i.(} de homens, foram direto para a praça, onde estavam
iiiii.u.rados num poste os tambores em que batiam para reunir
u itmselho. Como não encontraram as baquetas, que eram
h``ii`pre guardadas pelo tamboreiro, eles pegaram uma acha
(. i`()meçaram a bater nos tambores. 0 primeiro a correr pa-
i.,i .` pancadaria foi o tamboreiro, um homem alto, caolho,
tiiie apesar de tudo parecia terrivelmente sonolento.
-Quem se atreve a bater nos tambores? -gritou ele.
- Cale-se! Pegue suas baquetas e toque quando lhe
ii`.`iidarem! -responderam os comandantes que se aproxi-
''':\Vam.
0 tamboreiro tirou imediatamente do bolso as baquetas
`iui` trazia consigo, pois conhecia muito bem o desfecho de
\t.iiielhantes ocorrências. Os tambores troaram -e logo ban-
`li>` negros de zaporogos se ajuntaram na praça como marim-
l`{indos. Todos se reuniram em pequenos círculos, e depois da
i t.rl`cira pancadaria, finalmente chegaram os comandantes: o
A.Í)t.Á7eL;óz' com a maça na mão, sinal de sua autoridade, o juiz
i`(m o sinete do exército, o escrivão com o tinteiro e o css4zí/
i.()m um cetro. 0 kocbevóí. e os comandantes tiraram os gor-
rt)s e saudaram a todos os cossacos, que permaneciam de pé
i.()m as mãos na cintura.
l'.`rás Bulba 43
-0 que significa essa reunião? 0 que desejam, senho-
res? -disse o ÁocbÉ'tJóÍ'. Injúrias e gritos não o deixaram fa-
lar.
-Largue a maça! Largue a maça agora mesmo, filho do
Cão! Não queremos mais você! -gritavam da turba os cos-
Sacos.
Parecia que alguns que estavam sóbrios queriam se opor;
mas os batalhões, tanto os bêbados como os sóbrios, parti-
ram para a briga. Foi uma gritaria e uma barulheira geral.
0 ÁocbctJó/. queria falar, mas sabia que a turba livre,
uma vez furiosa, podia surrá-lo até a morte por causa disso,
coisa que sempre acontecia em semelhantes situações; então
ele fez uma profunda reverência, largou a maça e sumiu na
multidão,
-Senhores, desejam que nós também larguemos estas
insígnias de autoridade? -disseram o juíz, o escrivão e o
c'ss¢zé/, já se preparando para largar o tinteiro, o sinete do
exército e o cetro.
- Não, vocês ficam! - gritaram da turba. - Precisá-
vamos apenas expulsar o Áocbevóz., porque ele é um maricas;
precisamos de um homem no comando.
- E quem vocês vão escolher para kocbevóí? - disse-
ram os comandantes.
-Escolhemos Kukubienko! -gritava uma parte.
-Não queremos Kukubienko! -gritava outra parte.
-É cedo para ele, ainda está cheirando a leite!
-Que Chilo seja o atamã! -gritavam alguns. -Va-
mos colocar Chilo no comando!
-Uma sovelada24 na sua cabeça! -gritava a turba
com iima injúria. --0 que vale um cossaco assim, se esse fi-
24 Há aqui um jogo de palavras intraduzível. A palavra "chilo" (so-
vela, espécie de agulha grossa de sapateiro) é empregada por Gógol co-
mo iiome próprio e como substantivo comum. (N. do T.)
44 Nikolai Gógol
lhn ilt` um cão rouba como um tártaro! 0 diabo que carregue
iiiM`i `.ii`() esse bêbado do Chilo!
- Borodati, vamos pôr Borodati no comando!
-Não queremos Borodati! Que Borodati vá pro infer-
„('1
-Gritem "Kirdiága"! -sussurrou Tarás Bulba para
"h,,,".
-Kirdiága! Kirdiága! -gritava a turba. -Borodati!
l\(w.tiil{iti! Kirdiága! Kirdiága! Chilo! Ao diabo com Chilo!
N,.,li;iga!
Quando ouviram seus nomes sendo pronunciados, todos
•i` i ,uididatos saíram imediatamente da turba, a fim de não
•lin i\i.nhum pretexto para que pensassem que eles estavam
` ( n`i i.il)uindo para sua própria eleição.
-Kirdiága! Kirdiága! -ressoava mais forte que os de-
ii`i`i``. -Borodati!
A questão foi resolvida pela contagem das mãos, e Kir-
illi{Hi` venceu.
-Tragam Kirdiága! -começaram a gritar.
l``,ntão uma dezena de cossacos se separou da multidão;
iilpuns deles mal se mantinham em pé, de tanto que tinham
lu.hi(l(), e foram logo atrás de Kirdiága informá-lo sobre sua
.l,.i\.iio.
Kirdiága, embora velho, era um cossaco inteligente; já
iinh` se recolhido ao seu batalhão, fingindo não ter a míni-
" ideia do que estava se passando.
-Pois não, senhores, o que desejam? -perguntou ele.
-Venha, você foi escolhido como kocbecJóí.!...
-Tenham dó, senhores! -disse Kirdiága. -Desde
\iwmdo sou digno de tanta honra? Como posso ser Áocbeyó¢?
N.iti tenho juízo bastante para o exercício dessa função. Será
`iui` não havia ninguém melhor em toda a tropa?
-Vamos, estão chamando você! -gritaram os zapo-
i.(i*()s. Dois deles pegaram-no pelo braço; embora tivesse re-
`i`tido com unhas e dentes, ele foi finalmente arrastado para
l'.`rás Bulba 45
a praça, acompanhado de injúrias e impelido por exortações,
socos e pontapés. - Não recue, fílho do Cão! Aceíte a hon-
ra que lhe deram, seu cachorro!
Dessa forma é que Kirdiága foi levado ao círculo de cos-
Sacos.
-E então, senhores? -exclamaram aqueles que o ti-
nhamtrazido.-Vocêsestãodeacordoqueestecossacosei.a
o nosso kocheuói?
-Todos de acordo! -começou a grítar a turba, e o
grito ecoou por todo o campo.
Um dos comandantes pegou a maça e a ofereceu para o
recém-eleito kocbevóí.. Seguíndo a tradição, Kirdiága a re-
cusou. 0 comandante ofereceu outra vez. Kirdiága recusou
denovo,esónaterceíravezaaceitou.Umgrítoencorajador
ressoou por toda a multidão, e novamente começou a ecoar
por todo o campo o grito dos cossacos. Então saíu do meio
do povo o quarteto de cossacos mais velhos, de topetes e bi-
godes grisalhos (não havia homens muito velhos na Siétch,
poisnenhumzaporogomorriademortenatural),edepoísde
cada um pegar um punhado de terra, que na ocasião tinha
virado lama por causa de uma chuva recente, puseram-no na
cabeça do Áoc6evój.. A terra molhada escoi-reu de sua cabe-
ça, atingiu os bigodes e as faces e lambuzou todo o seu ros-
to. Mas Kírdiága permaneceu imóvel e agradeceu aos cossa-
cos pela honra concedida.
Assim terminou a barulhenta eleição, que não se sabe se
tinha agradado aos outros tanto quanto a Bulba: dessa for-
ma ele tínha se víngado do Áoc¢eoóç. anteríor e, além disso,
Kirdiága era seu velho companheiro e tinha estado a seu lado
em campanhas por terra e por mar, dividíndo a dureza e as
dificuldades da vida guerreíra. A turba se dispersou para co-
memorar a eleição, e foi organizada uma farra como até en-
tão Óstap e Andríi nunca tinham vísto. As tavernas foram
arrebentadas5ohidromel,aaguardenteeacervejaforamsim-
plesmente apanhados, sem pagamento; e os taverneiros ainda
46
Níkolai Gógol
li` ;`r.iin felizes por terem saído ilesos. A noite passou inteira
i.iii ri. gritos e canções que celebravam proezas. A lua que sur-
ii,u .`iiida contemplou por muito tempo os grupos de músicos
`iHi. ii.issavam pelas ruas com bandurras, pandeiros e balalai-
` .i` ."redondadas, e de cantores de igreja, os quais eram man-
iiilti` na Siétch para os cantos religiosos e de louvores aos
li`ir()s dos zaporogos. Finalmente a embriaguez e o cansaço
` t)iiicçaram a vencer aquelas cabeças duras. E via-se aqui e
.` li um cossaco caindo ao chão. Um companheiroabraçava o
i.iitro, comovido e até em prantos, e caía junto com ele. Aqui
ui`` bando se deitava formando um monte, ali um outro pro-
i urava o melhor lugar para se deitar, terminando por se en-
i.t)çtar logo num tronco de árvore. 0 último, que era mais
`tirte, ainda pronunciava umas palavras sem nexo; por fim,
i t()rça da embriaguez o abateu, e ele desabou - e toda a
`ii`.tch adormeceu.
'l`arás Bulba 47
No outro dia, Tarás Bulba já consultava o novo kocbe-
iJi;/. sobre como levantar os zaporogos para alguma ação. 0
Aw t..bcoóf. era um cossaco inteligente e astucioso, conhecia os
/.`itorogos em todos os aspectos, e começou dizendo: "Não
wttli`mosquebrarojuramento,issonãopodemosdeieitone-
i`liui`i". E depois de um silêncio, acrescentou: "Não faz mal,
iwMli`mos fazer algo, sim; não vamos quebrar o iuramento,
iu.`` imaginaremos alguma coisa. Só precisamos que o povo
`t. i.t'úna, mas não por minha ordem, e sim por vontade pró-
w Você já sabe como £azer isso. Depois eu irei imediata-
"m com os comandantes para a praça, como se não sou-
l``.ssc de nada".
Não se passou nem uma hora depois dessa conversa, e
mtamboresjácomeçaramasoar.Oscossacosapareceramde
i.t`pente,bêbadosetresloucados.Ummilhãodegorrossurgiu
`iiliitamentenapraça.Levantou-seummurmúrio:"Quem?...
m quê?... Por que convocaram essa reunião?". Ninguém
i`.`pondia. Finalmente ouviu-se num canto e no outro: "A
loi.çacossacaestáseperdendoemvão:nãohámaisguerra!...
`)`comandantesficarammolengasdevez,estãoatédeolhos
uichados!... Pelo ieito, não existe justiça nesse mundo!". Os
t)utros cossacos ouviram esse começo e depois eles m.esmos
i)usei.am-se a falar: "Realmente não existe nenhuma iustiça
i`cssemundo!''.Oscomandantespareciamassombradoscom
.`quelas palavras. Finalmente o kocbevóg. avançou e disse:
- Permitam que eu lhes fale, senhores zaporogos!
- Fale!
49
Tarás Bulba
- 0 que está em discussão, nobres senhores, e talvez
saibam dísso melhor do que eu, é que muitos zaporogos es-
tão devendo tanto nas tavernas dos judeus e para seus pró-
príos írmãos que nem mesmo um díabo concederá maís cré-
dítoaeles.Alémdisso,oquetambémestáemdíscussãoéque
há muitos rapazes que aínda nem sabem o que é uma guer-
ra; e os senhores sabem muito bem que um jovem não pode
fícar sem guerra. Que zaporogo vai ser ele, se nenhuma vez
bateu num muçulmano?
"Ele fala bem", pensou Bulba.
-Todavia,senhores,nãopensemqueeudígoissopara
quebrar a paz, Deus me lívre! Estou apenas falando. Além
disso, temos um templo divíno. É até pecado dizer, mas a
Siétchexistehátantosanos,graçasaDeus,eatéhojenãohá
scquer um adorno nem do lado de fora e nem nas imagens!
QuiseraDeusquealguémselembrassedeforjarumamoldura
para elas! Elas só receberam o que foi deíxado em testamen-
toporalgunscossacos.Eodonativodeleserapobre,porque
tínham gastado quase tudo em bebidas. Assím, eu faço este
discursonãoparacomeçarumaguerracomosmuçulmanos:
prometemos.paz ao sultão, e seria um grande pecado para
nós, porque iuramos por nossos mandamentos.
"Quetramaéessaqueeleestáarmando?"-disseTarás
para si mesmo.
- Então, como veem, senhores, não podemos começar
uma guerra. A honra de cavaleiro não permite. Mas, em meu
pobre i.uízo, eu penso o seguinte: podemos permítír que al-
guns jovens, em canoas, vasculhem um pouco as costas da
Anatólia. 0 que acham, senhores?
-Mande todos, mande todos! -a multidão começou
a. gritar por toda parte. - Pela fé estamos prontos para ar-
riscar nossas cabeças!
0 Áocbeú se assustou; ele não queria de modo algum
lev?ntaroZaporójíeínteiro:nestecaso,romperapazlhepa-
recia uma coisa incorreta.
50
Nikolai Gógol
-Permitam-me, senhores, dizer mais uma coisa!
-Basta! -gritaram os zaporogos. -É melhor não di-
i,rr iii:`is nada!
- Então, que assim seja! Sou um servo da vontade de
v()i`ês. É sabido por todos, e sabe-se pelas Escrituras, que a
vw ilo povo é a voz de Deus. É impossível imaginar algo mais
ii`ii`hi'nte do que aquilo que é imaginado por todo o povo.
M.`` há um porém: os senhores sabem que o sultão não dei-
wi`rii iiiipune o deleite desses jovens. Mas nesse ínterim, nós
|Á t``t:`ríamos preparados, nossas forças descansadas, e não
ii`iut`ríamos a ninguém. E durante essa ausência, os tártaros
iwul"` atacar; os cães dos turcos não vão se atirar à nossa
1 i {.i`ti. c nem ousarão invadir a casa na presença do dono: vão
uioi.tlcr no calcanhar, e a mordida será dolorosa. E para di-
/i`i. .` verdade, nós nem temos canoas de reserva, e a pólvora
i i n `i'il;i não é suficiente para que todos possam partir. Mas sou
ii.Iv .m ser um servo da vontade dos senhores.
0 astucioso kocbc'c/óí. se calou. Os bandos começaram a
i.tHwi`rsar, os atamanes dos batalhões deliberavam: os bêba-
tlm, t-clizmente, eram poucos, e foi decidido que seguiriam o
` t ii``clho prudente.
Na mesma hora alguns homens lançaram-se à margem
()iiti`ta do Dniepr, ao depósito das tropas, onde, em esconde-
i iim inacessíveis, sob a água e no meio de juncos, estavam
i.`i`t]tididos os tesouros e parte das armas tomadas do inimi-
Hu Todos os outros lançaram-se às canoas para examiná-las
i` i"pará-[as para a viagem. Num instante a margem ficou
` lim de gente. Alguns carpinteiros apareceram com macha-
`lm nas mãos. Velhos zaporogos queimados de sol, de om-
hrti` largos e pernas robustas, bigodes negros e meio grisa-
ll`()s, com as bombachas arregaçadas, estavam na água até os
ii ).`lhos e puxavam as canoas da margem com cabos resisten-
i`.`. Outros carregavam troncos secos e todo tipo de madei-
i .`. Aqui revestiam uma canoa com tábuas; ali viravam-na de
i`.`beça para baixo e a vedavam; acolá, seguindo um costume
1 arás Bulba 51
cossaco, prendíam feíxes de juncos comprídos às bordas de
outrasembarcaçõesparaqueestasnãofosseminundadaspe-
lasondasdomar;portodaacostaarmaramfogueirasefer-
verampícheemcaldeirõesdecobreparaacoberturadoscas-
cos.Osvelhoseosveteranosdavamconselhosaosjovens.As
batídaseagritaríadostrabalhadoresseestenderamportoda
a redondeza; a margem ínteira ficou víva e agítada.
Nessahora,umagrandebalsacomeçouaseaproximar
damargem.Nelahavíaummontedegenteacenandodelon-
ge. Eram cossacos de cafetãs rasgados. Sua vestímenta esta-
va.emdesordem-muítosnãotinhamnadaalémdeumaca-
misaeuincachimbodecanocurtonaboca-,indicandoque
elestínhamescapadodeumadesgraçaqualquer,ouentãoti-
rihamfarreadotantoquegastaramaténãosobrarnadaso-
breocorpo.Umcossacobaíxoteedeombroslargos,deuns
cinquenta anos, destacou-se do meío deles e parou à frente.
Elegrítavaeagjtavaamãocommaísforçadoquetodos,mas
por.causa das batídas e dos gritos dos trabalhadores não se
ouviam suas palavras.
-0quetrazemdenovo.)-perguntouoÁocÁepój.quan-
do o barco chegou à margem.
Todos os trabalhadores, ínterrompendo suas tarefas e
mantendoerguidososmachadosefomões,fícaramatentos.
-Uma desgraça! -gritou da balsa o cossaco baixote.
- Como.?
-Senhores zaporogos, permítam que eu lhes fale.?
- Fale!
-Ou talvez queiram reunir o conselho.?
- Fale, estamos todos aquí.
0 povo se ajuntou num úníco bando.
-Acasonãoouvíramnadasobreoqueestáacontecen-
do na Hetmánschina.)25
25 Estado autônomo dos cossacos que ociipou a parte central do
atualterritóríodaUcrânia,incluindo,entKoutras,ascídadesdcKíev,
52
Nkolai Gógol
-0 que foi? -exclamou um dos atamanes.
-Como assim "o que foi?"! Pelo jeito, os tártaros ta-
r®rí`m seus ouvidos com cola para que não ouvissem nada.
-Fale logo: o que está acontecendo por lá?
- 0 que está acontecendo nós nunca vimos desde que
n..ccm()s e fomos batizados.
- Diga-nos logo o que está acontecendo, filho de um
•`lí}l -gritou alguém do meio do povo, pelo visto já sem
p"`.,ê.ncia.
-Chegou um tempo em que as santas igrejas não são
mi`is nossas.
-Como não são nossas?
-Agora são arrendadas pelos judeus. E se o pagamen-
t{} iião é feito com antecedência, então não se pode celebrar
l''issa.
-0 que você está dizendo?
-E se o cão judeu não puser sinais comsua mão imun-
d,i m santa ceia pascal, então não se pode celebrar a Páscoa.
-Ele está mentindo, irmãos, não é possível que um ju-
dw imundo coloque sinais na santa ceia pascal!
-Escutem!... ainda não terminei: agora os padres cató-
lic()s andam de charrete por toda a Ucrânia. Mas a desgraça
nã() é o fato de andarem nas charretes, a desgraça é que eles
®rri.lam não os cavalos, e sim os cristãos ortodoxos. Escutem
Õt'>! Ainda não terminei: dizem que as judias estão fazendo
8:`iiis com as casulas dos popes. Vejam só o que está aconte-
ci`iido na Ucrânia! E os senhores ficam aí passeando em Za-
rM7rójie! Sim, pelo jeito os tártaros lhes botaram tanto medo
(iw já não têm nem olhos e nem ouvidos; não têm mais nada,
c não escutam o que está se passando no mundo.
-Pare, pare! -interrompeu o kocbevóí., que até então
estivera imóvel, de olhos voltados para o chão, como todos
l}ratislav e Tchernigov, e que era governado por um 4c'fmcí72. 0 primeiro
Hovcrnador desse estado foi Bogdan Khmiélnitski. (N. do T.)
Tarás Bulba 53
os zaporogos, que, nos assuntos importantes, nunca se dei-
xavam levar pelo primeiro ímpeto, mas mantinham-se cala-
dos enquanto reuníam em silêncio uma terrível força de in-
dignação.-Pare!Voudizeralgumaspalavras.Evocês,que
o diabo lhes carregue o pai!, o que vocês fizeram.) Por aca-
so não tinham sabres, é.) Como é que permítiram tamanha
arbitrariedade?
-Ora, como permitimos tamanha arbítraríedade!? Vo-
cês tentariam algo contra cínquenta mil polacos? Além dís-
so, não há por que esconder o pecado -entre os nossos ha-
via também uns cães que adotaram a fé alheia.
-E o seu Zie'Zm", e os coronéis, o que fízeram?
- Os coronéis fízeram umas coísas que Deus nos livre
a todos.
-0 que foi?
- Ora, o Áézmo7z jaz agora em Varsóvia, assado num
touro de cobre; e as mãos e as cabeças dos coronéis foram
conduzidas pelas feiras à vista de todo o povo. Aí está o que
fizeram os coronéis!
Toda a multidão fícou agitada. Primeiro transcorreu um
sílêncio por toda a margem, semelhante àquele que ocorre
ante uma tempestade violenta; em seguida, palavras se eleva-
ram de repente, e toda a margem começou a falar.
-Como assim!? Os judeus arrendam igrejas cristãs? Os
padres católicos atrelam cristãos ortodo`xos a carruagens?
Como assím? E tolerar na terra russa os suplícios desses mal-
ditos ínfiéis? Aqueles que procederam dessa forma com os
coronéís e o atamã? Isso não vai ficar assim, não vai!
Essas palavras voaram por todos os confíns. Os zapo-
rogos começaram a fazer barulho e sentiram um fervor. Já
não era a agitação de um povo leviano: agitava-se por com-
pleto uma natureza pesada e vigorosa, que não se incendia-
va rapídamente, mas, uma vez íncendiada, conservava o ar-
dor dentro de si de forma obstinada e duradoura.
-Vamos enforcar todos os judeus! -ouviu-se do meio
54 Nikolai Gógol
ilw iiii.h`. -Que não façam mais saias para suas judias com
•i i.i```il,`s dos popes! Que não ponham mais sinal nas ceias
P.Mi`! Vamos afogar todos no Dniepr, esses canalhas!
l.`,``as palavras, pronunciadas por alguém do meio da
iui lm passaram como um raio pela cabeça de todo mundo,
• w ii``iltidão precipitou-se para o arrabalde com o desejo de
ilr+.,t il:`r ()s judeus.
Os pobres filhos de lsrael, perdendo a coragem que já
•m i`oiica, esconderam-se nos barris vazios de aguardentf e
nn` t.stufas, e se meteram até debaixo das saias de suas ]u-
ilw inas os cossacos encontraram-nos em toda parte.
-Ilustríssímos senhores! -gritava um judeu alto e
``iMui)ridocomoumavara,quedomeiodeummontedecom-
i`iml`eirosseusmostrousuacaradeplorável,deformadapelo
i`wor.-Nobilíssímossenhores!Deixem-nosdizeraomenos
`iti`.` palavra, só uma palavra! Vamos dizer algo que nunca
(tiwiram,algoquenempodemosdizeroquantoéimportante!
-Poisquefa[em!-disseBulba,quesempregostavade
nwm um condenado.
-Ilustres senhores! -exclamou o judeu. -Nunca se
viu homens como os senhores! Juro por Deus que nunca se
vl`i! Nunca existiu no mundo senhores tão bondosos e valen-
it.`! ...- sua voz sumia e tremia de pavor. -Como podería-
ii`o` pensar em algo de mal para os zaporogos? Aqueles que
t``üo fazendo arrendamentos na Ucrânia não são dos nossos!
|m por Deus, não são dos nossos! Não são judeus de for-
i"alguma:odiaboéquesabeoquesãoeles!Sãodeumjei-
m que devia-se apenas cuspir neles e jogá-los fora! E estes
i`qiii dirão a mesma coisa. Não é verdade, Chlióma? Não é,
( ;hmul?
- Sim, por Deus, é verdade! - responderam do meio
•li` multidão Chlióma e Chmul, ambos brancos como argila,
vt`stindo levitas esfarrapadas.
- Nunca tivemos relações com os inimigos - conti-
i`iiou o iudeu comprido. -E dos católicos nós não queremos
•l'i`r`is Bulba 55
nem saber: eles que sonhem com o diabo! Nós e os zaporogos
somos como irmãos de sangue...
-Como?! Vocês e os zaporogos são irmãos? -excla-
mou alguém da multidão. -Nem pensem nisso, judeus mal-
ditos! Ao Dniepr com eles, senhores! Afoguem todos esses
canalhas!
Essas palavras foram um sinal. Eles agarraram os j.udeus
pelos braços e começaram a jogá-los na água. Um grito do-
loroso ressoou de todos os lados, mas os severos zaporogos
apenas riam, vendo os pés dos judeus calçados com botinas
e meias se agitando no ar. 0 pobre orador, que tinha sido o
causador de sua própria desgraça, soltou-se do cafetã pelo
qual o seguravam, atirou-se aos pés de Bulba vestindo um
camisão estreito e malhado e, com voz lastimosa, implorou:
-Grande senhor, ilustríssimo senhor! Eu conheci o seu
irmão, o falecido Doróche! Era um guerreiro para a glória de
toda a cavalaria! Dei-lhe oitocentas moedas de ouro quando
foi preciso resgatá-lo do cativeiro turco.
-Você conheceu meu irmão? -perguntou Tarás.
-Juro por Deus que o conheci! Era um magnífico se-
nhor.
-E como você sc-chama?
- Iánkel.
- Está bem -- disse Tarás; e depois de refletir um ins-
tante, virou-se para os cossacos e falou assim: -Sempre ha-
verá tempo de enforcar um judeu quando for preciso, mas
hoje entreguem este a mim. -Dito isso, Tarás o levou até o
comboio onde estavam seus cossacos. -Bem, entre debaixo
da telega, fique ali e não faça barulho; e vocês, irmãos, não
deixem esse judeu escapar.
Depois de dizer isso, ele se dirigiu à praça, onde a mul-
tidão estava reunida há algum tempo. Num instante todos
tinham abandonado a margem e o conserto das canoas, pois
agora tinham pela frente uma jornada terrestre, e não marí-
tima, e precisavam de telegas e cavalos, não de barcos e gai-
56 Nikolai Gógol
V()im i.t>ssacas. Agora todo mundo queria ir para a expedi-
`iiii` i.`iito os velhos quanto os jovens; por decisão dos co-
iiiiiii`l.mtes, dos atamanes dos batalhões e do kocbcvóí, e por
vi)i`i.`ili. do exército zaporogo, todos resolveram ir direto pa-
r;i .` l'{ilt^inia, a fim de vingar a maldade e a humilhação da fé
i` tl.i lit)nra cossaca, e também para tomar os bens das cida-
ili'`, iiii`cndiar aldeias e colheitas e espalhar sua glória pelas
i'`ic`i`..s. Todos estavam se reunindo e se preparando. 0 ko-
i /JÍ`n ;/ tinha crescido mais de meio metro. Já não era mais o
inuiilu executor dos desejos levianos de um povo teimoso,
iii.i` uin senhor com plenos poderes. Era um déspota que sa-
lw in,`ndar muito bem. Enquanto o ÁocÁ)c#óí. falava, aque-
lm i .` valeiros insubordinados e farristas permaneciam alinha-
`ln`, de cabeça baixa em sinal de respeito, sem ousar levan-
iiw. (}s olhos; e[e distribuía os afazeres com calma, sem gritar
r `cin se apressar, mas de modo ordenado, como um cossaco
v(.lh() e experiente que não estava comandando pela primei-
rn vez a execução de tarefas cuidadosamente planejadas.
-Examinem bem tudo isso! -assim falava ele. -Re-
i`.u.mi as carroças e as latas de graxa, testem as armas. Não
lt.\i`iii muita roupa consigo: basta um camisão e duas bom-
li.`i`h.is, e também um pote de farinha de aveia e de milho
" )íJo. Que ninguém leve mais nada! Em caso de necessida-t 1``, iios potes haverá tudo de que precisam. Um par de cavalos
i\.` r.` cada cossaco. Peguem duzentas parelhas de bois, porque
iv i`i`isaremos deles nos baixios e nos lugares lamacentos. Mas
.uiri`s de tudo, senhores, mantenham a ordem. Sei que entre
vt icc`s há aqueles que, tão logo tenham oportunidade, já vão
lu*() agarrando os tecidos caros e brocados. Larguem esse
` ti`tume do diabo, joguem fora todas as saias; peguem so-
n`\.iite uma arma que estiver em bom estado, e também as
in( )i`das de ouro ou prata, pois elas são de ampla utilidade e
vJo servir em qualquer situação. E lhes aviso de antemão, se-
i ih()res: se alguém se embriagar durante a marcha, não have-
m iienhum julgamento para ele. Mandarei amarrá-lo no com-
r.ir.is Bulba 57
boiopelopescoçocomoumcachorro,quemquerquesejaele,
mesmo que seja o maís bravo cossaco de toda a tropa. Ele
será fuzilado como um cachorro no mesmo lugar e abando-
nadosemsepultura,paraservirdecomidaparaasaves,pois
quem se embriaga durante uma marcha é indigno de um se-
pultamento cristão. Jovens, escutem os velhos! Se levarem um
tíroouforemfefidosporumsabrenacabeçaouemqualquer
outra parte, não deem grande importância a isso. Misturem
uma carga de pólvora num cálice de aguardente,26 bebam de
uma só vez, e tudo vai passar. Não terão nem febre; e se o
ferimento não for grande, coloquem bastante terra, amas-
sando-aantescomsaliva,edaíelevaicícatrizar.Eagora,ra-
pazes, ao trabalho, ao trabalho; mas sem pressa, preparem-
-se bem!
Assim falou o Áocbevój., e logo que terminou seu discur-
so, todos os cossacos começaram imediatamente a trabalhar.
Toda a Síétch voltou a si, e era impossível encontrar bêbados
onde quer que fosse; era como se eles nunca tivessem exísti-
do entre os cossacos„. Uns consertavam os aros das rodas e
trocavam os eixos das telegas, outros carregavam sacos de
víveresearmasparaascarroças;havíaaindaoutrosquecon-
duziamcavaloseboís.Detodososladosressoavamotropel
dos cavalos, os disparos de espingardas sendo testadas, o ti-
lintar dos sabres, o mugido dos bois, o rangido das carroças
que se movímentavam, o ruído das vozes e os grítos fortes de
íncitação-elogoacolunacossacaseestendeuaolonge,por
todo o campo. E quem quisesse percorrê-la de um extremo ao
outro teria de se esforçar muito. Na pequena ígreja de madei-
ra o sacerdote celebrou um Te-Deum e aspergíu água benta
nos cossacos; estes beíjaram uma cruz. Quando a coluna se
pôs em marcha e se arrastou para £ora da Siétch, os zaporo-
gos olharam para trás.
26Noorigínal,s/v#ÁhTrata-sedeumtipodeaguardentedecereais
mal destilada. (N. do T.)
58
Nikolai Gógol
- Adeus, nossa mãe! - disseram eles quase a uma só
v.)Í. -Que Deus a proteja de toda desgraça!
^o passar pelo arrabalde, Tarás Bulba viu que seu judeu,
l"iLi.l, já tinha armado uma barraca com um toldo e vendia
in.ilu.neiras, pólvora e todo tipo de apetrechos militares que
`,\i ) iii`i`essários para a jornada, inclusive rosquilhas27 e pães.
"M:`` que diabo de judeu!" -pensou Tarás consigo mes-
i`i(), depois aproximou-se dele e disse:
-Imbecil, o que você está fazendo? Por acaso quer que
i) Í`i;ilem como um pardal?
F.m resposta a isso, Iánkel chegou bem perto de Tarás e,
`lt.rMiis de fazer um sinal com ambas as mãos como se quises-
it. i.()municar algum segredo, disse:
- 0 senhor fique calado e não diga nada a ninguém:
i`nti.i. as carroças cossacas há uma carroça que é minha; car-
i `.H() todo o estoque necessário para os cossacos e, durante a
in.`i.i`ha, vou fornecer todo tipo de víveres por um preço tão
l`,`ix() como nenhum judeu nunca vendeu. É isso, juro por
1 )t`iis que é isso.
Tarás Bulba encolheu os ombros, impressionado com a
wi`guidade da natureza judaica, e se dirigiu à coluna.
27 No original, Ác]/Áfc¢;., pães de trigo em forma de meia-lua. (N. do
1.irás Bulba 59
1.t)go todo o sudoeste polonês foi tomado pelo terror. Os
i uin()res correram por toda parte: "Os zaporogos!... Os za-
i.(H.tigos chegaram!...". Os que podiam, fugiram. Todos se
i`i.`.i`.`ravam e fugiam, como era costume naquele século des-
i.t`Hmdo e desordenado, no qual não se construíam nem for-
i:`l.`/.`s, nem castelos; o homem erguia sua habitação de pa-
llm tli` qualquer maneira, e apenas por certo tempo. Ele pen-
`,.`v`w "Não vale a pena gastar dinheiro e trabalho numa isbá,
in iiiie ela vai mesmo ser destruída por incursões tártaras!".
1 'tiilo mundo estava agitado: uns trocavam bois e arados por
i ivdlos e espingardas e ingressavam num regimento; outros
`i: escondiam, levando gado e carregando tudo o que era pos-
`i.vi.l. Havia também aqueles que iam de armas em punho de
i.iii`tintro aos visitantes, mas a maioria deles fugia antecipa-
ili`nicnte. Todos sabiam que era difícil lidar com a multidão
}.,ui.rreira e violenta conhecida pelo nome de exército zapo-
i ti*t), o qual, em sua aparente desordem, encerrava uma or-
r.,{`iii7.ação bem preparada para os tempos de batalha. Os ca-
vi`li`iros seguiam sem fustigar nem irritar os cavalos, os in-
l.uitcs iam prudentemente atrás dos bois, e toda a colum se
il`.`lt)cava apenas à noite, descansando durante o dia e esco-
ll`t`iido para isso os descampados, os lugares desabitados e os
l`i }`iiues, que então ainda existiam em abundância. Batedores
{` wpiões eram enviados na frente para fazerem um reconhe-
\ imento do terreno e averiguarem o que estava se passando.
1.: cra sempre nos lugares onde menos se podia esperá-los que
l..rás Bulba 61
eles apareciam de repente; então ali todo mundo ia se despe-
dindo da vida. Incêndios envolviam os povoados; o gado e os
cavalos que a tropa não levava eram abatidos ali mesmo. Pa-
recia até que eles faziam banquetes, e não uma campanha.
Hoje ficaríamos de cabelo em pé por aqueles terríveis sinais
de crueldade, daquele século semisselvagem, e qu€ foram le-
vados a toda parte pelos zaporogos. Crianças foram mortas,
mulheres tiveram os seios cortados, os que eram deixados em
liberdade tinham as pernas esfo[adas até os joelhos -numa
palavra: os cossacos pagavam com juros as dívidas contraí-
das. 0 prelado de um mosteiro, quando soube da aproxima-
ção dos cossacos, enviou dois monges para dizer que não fi-
zessem com ele aquilo que costumavam fazer, que havia um
acordo entre os zaporogos e o governo, que eles estavam vio-
lando seu dever para com o rei e, ao mesmo tempo, o direito
do povo inteiro.
-Diga ao bispo, de minha parte e da parte de todos os
zaporogos -disse o kocbc#óÍ. -, para que ele não tema na-
da. Estes cossacos ainda estão apenas acendendo e fumando
seus cachimbos.
E logo a majestosa abadia foi envolvida por chamas des-
truidoras, com suas colossais j.anelas góticas se mostrando,
severas, por entre as labaredas. As multidões que fugiam, for-
madas por monges, judeus e mulheres, encheram de repente
as cidades onde havia alguma esperança na guarnição e na
força policial. A demorada ajuda enviada pelo governo, e
constituída por pequenos regimentos, não conseguia encon-
trá-los ou então se acovardava, recuando ao primeiro en-
contro e fugindo em seus cavalos afoitos. Por vezes, muitos
chefes do exército real, que tinham triunfado em batalhas
anteriores, decidiam reunir suas forças para se levantar con-
tra os zaporogos. E foi justamente isso que experimentaram
os nossos jovens cossacos, que não estavam interessados em
pilhar e tii.ar proveito de um inimigo indefeso; eles estavam
loucos para se mostrar perante os velhos, para se testarem
62 Nikolai Gógol
frente a frente com um polaco desenvolto e fanfarrão, que
brilhava sobre um cavalo altivo e com as mangas da capa28
dobradas flutuando no vento. Era uma ciência divertida. Eles
já haviam conseguido muitos arreios de cavalo, sabres va-
líosos e espingardas. Em um mês, os frangotes que tinham
acabado de emplumar se transformaram por completo, fica-
ram robustos e tornaram-se homens. Os traços de seus ros-
tos, nos quais até pouco tempose via uma certa ternura de
juventude, eram agora firmes e terríveis. Para o velho Tarás
era um prazer ver que ambos os seus filhos estavam entre os
primeiros. Óstap parecia destinado à carreira militar e à di-
fícil arte de conduzir os negócios da guerra. Nem uma única
vez ficou desorientado ou confuso com qualquer situação;
com um sangue-frio quase sobrenatural para alguém de vin-
te e dois anos, ele podia avaliar num instante todo o perigo e
o estado das coisas e encontrar imediatamente uma forma de
escapar, mas escapar para depois vencer com mais certeza.
Seus movimentos já tinham começado a expressar uma con-
fiança experimentada, e neles era impossível não perceber o
talento de um futuro chefe. Seu corpo inspirava firmeza, e
suas qualidades de cavaleiro iá tinham adquirido a enorme
força de um leão.
-Oh! Com o tempo, esse será um bom coronel! -di-
zia o velho Tarás. -Realmente vai ser um bom coronel, tan-
to que vai superar até o pai!
Andríi tinha mergulhado inteiramente na encantadora
música das balas e das espadas. Ele não sabia o que signifi-
cava pensar, calcular ou mesmo avaliar com antecedência a
força dos outros e a sua própria. Ele via na batalha um êxta-
se e uma volúpia raivosa: parecia-lhe algo como uma festança
naqueles momentos em que a cabeça de um homem começa
a se inflamar, quando nos olhos tudo aparece e se mistura,
28 No original, cp4#jcÁ74', antiga capa de chuva comprida e larga. (N.
do T.)
Tarás Bulba 63
cabeças voam e cavalos desabam no chão com estrondo; e ele
se atirava como um ébrio em meio ao silvo das balas e do
brilho dos sabres, assestando golpes em todos e sem perceber
os que recebia. Mais de uma vez o pai também ficou admi-
rado com Andríi, ao ver como ele, instigado apenas por uma
paixão violenta, precipitava-se contra aquilo que alguém ajui-
zado e de sangue-frio jamais se atreveria, e também por ter
realizado, graças a seu impulso raivoso, proezas tais que nem
os veteranos de batalha podiam deixar de ficar assombrados.
Admirado, o velho Tarás dizia:
-Esse também é bom; que o inimigo jamais o pegue!
É valente. Não é como Óstap, mas é muito bom e valente!
0 exército decidiu ir direto para a cidade de Dúbno, on-
de, segundo rumores, havia moradores ricos e muitos tesou-
ros. A marcha foi realizada em um dia e meio, e os zaporogos
apareceram diante da cidade. Os habitantes decidiram se de-
fender até suas últimas forças e limites, considerando que era
melhor morrer nas praças e nas ruas, em frente às soleiras de
suas casas, do que permitir que o inimigo entrasse nelas. Uma
grande trincheira de terra circundava a cidade; onde a trin-
cheira era baixa, despontava um muro de pedra ou uma casa
que servia de bateria, ou mesmo uma paliçada de carvalho.
A guarnição era poderosa e sentia a importância de sua fun-
ção. Os zaporogos começaram a subir com ímpeto na trin-
cheira, mas foram recebidos por uma forte rajada de tiros.
Pelo visto, a pequena burguesia e os habitantes da cidade não
queriam permanecer ociosos, e então se colocaram aos mon-
tes na trincheira da cidade. Em seus olhos podia-se ler uma
resistência desesperada; também as mulheres tinham resolvi-
do participar: sobre as cabeças dos zaporogos voaram pedras,
barris, vasos de barro, piche fervente e até sacos de areia que
[hes cegaram os olhos. Os zaporogos não gostavam de enfren-
tar fortalezas; promover cercos não era com eles. 0 ÁocÁJcyóí.
ordenou que recuassem, dizendo:
- Não faz mal, senhores irmãos, vamos recuar. Mas
64 Nikolai Gógol
que eu seja um tártaro asqueroso e não um cristão se deixai.-
mos escapar um só deles! Que morram de fome esses cães!
Depois de recuar, o exército sitiou a cidade, e por não ter
nada para fazer, ocupava-se com a devastação dos arredores,
queimando as aldeias próximas, os montes de cereais desor-
denados e lançando tropas de cavalos sobre os campos de
trigo ainda não ceifados, onde, como se fosse de brincadeira,
balançavam-se espigas grossas, fruto de uma safra excepcio-
nal que naquela época recompensava generosamente os la-
vradores. Os habitantes viam com horror os seus meios de
subsistência sendo destruídos. Enquanto isso, tendo já es-
tendido suas telegas em duas fileiras ao redor de toda a cida-
de, os zaporogos se instalavam em acampamentos como na
Siétch, fumavam cachimbos, trocavam entre si as armas apa-
nhadas, brincavam de pula-sela, de par ou ímpar, e ainda vi-
giavam a cidade com o sangue-frio de um assassino. À noite
acendiam fogueiras. Os cozinheiros preparavam papas pa-
ra todos os batalhões em enormes caldeirões de cobre. Per-
to das fogueiras ardentes permaneciam sentinelas acordadas
durante toda a noite. Mas pouco a pouco os zaporogos co-
meçaram a se aborrecer com a falta de atividade e a prolon-
gada moderação que não estava relacionada a coisa alguma.
0 kocÁ7etJóg. mandou até duplicar a porção de vinho, o que era
costume no exército quando não havia manobras e operações
difíceis. Os jovens, principalmente os filhos de Tarás Bulba,
não gostavam de uma vida assim. Andríi estava visivelmente
aborrecido.
- Você é um cabeça-dura - dizia-lhe Tarás. - Tenha
paciência, cossaco, e será um atamã! Um bom guerreiro não é
apenas aquele que não perdeu a coragem numa operação im-
portante, mas também aquele que não se aborrece no ócio, que
suporta tudo e que, haja o que houver, consegue prevalecer.
Mas um jovem impetuoso não combina com um velho.
Ambos têm uma natureza distinta e veem a mesma coisa com
olhos diferentes.
Tarás Bu[ba 65
Enquanto isso, o regimento de Tarás se aproximou sob
o comando de Tóvkatch; com ele estavam dois cssazí/es, um
escrivão e outros oficiais; reuniram-se ao todo mais de qua-
tro mil cossacos. Havia entre eles uns poucos voluntários
que, tão logo souberam do que se tratava, levantaram-se por
sua própria vontade, sem precisar de uma convocação. Os
ess4cí/c's trouxeram para os filhos de Tarás a bênção da ve-
lha mãe e um ícone de cipreste do mosteiro kievano de Meji-
górie para cada um deles. Os dois irmãos colocaram as san-
tas imagens no pescoço e involuntariamente começaram a
refletir, tão logo se lembraram da velha mãe. Aquela bênção
prenunciava alguma coisa? Seria uma bênção de vitória so-
bre o inimigo, seguida de um feliz retorno à pátria com des-
pojos e a glórja que serviria para as eternas canções dos ban-
durristas? Ou será que... Mas o futuro é desconhecido; ele
fica diante do homem semelhante à névoa de outono que se
levanta dos pântanos. Nele as aves voam loucamente, para
cima e para baixo, rasando com as asas e sem que umas per-
cebam as outras - a pomba não vê o gavião, o gavião não
vê a pomba - e ninguém sabe a que distância está voando
de sua perdição...
Óstap já estava ocupado com suas coisas e há tempos
havia se dirigido aos acampamentos. Andríi, embora não sou-
besse por quê, sentia um aperto no coração. Os cossacos ti-
nham terminado sua ceia, a tarde já havia desaparecido e uma
maravilhosa noite de julho abraçara o ar; mas Andríi não se
dirigiu aos acampamentos e nem foi se deitar; ficou olhando
involuntariamente para o quadro que se apresentava diante
de si. Uma infinidade de estrelas aparecia no céu com um bri-
lho vivo e suave. 0 campo estava repleto de carroças que tra-
ziam latas de graxa penduradas e sujas de breu e toda sorte
de bens e provisões tomadas do inimigo. Em toda parte se
viam zaporogos espalhados na relva - ao lado, embaixo e
até distante das telegas. Todos eles dormiam em posições pi-
torescas: uns tinham colocado um saco embaixo da cabeça,
66 Nikolai Gógol
outros um gorro, e outros empregavam simplesmente o flan-
co de seus companheiros. 0 sabre, o mosquete, o cachimbo
de cano curto com chapa de cobre e o fuzil de pederneira es-
tavam sempre ao lado de cada cossaco. Os bois pesados es-
tavam deitados com as pernas dobradas, em forma de gran-
des massas esbranquiçadas que, de longe, pareciam pedras
cinzentas espalhadas pelo declivedo campo. De todos os la-
dos já tinha começado a se levantar o ronco grosso do exér-
cito adormecido, ao qual respondiam com um relincho so-
noro os garanhões que estavam revoltados por terem as per-
nas amarradas. Enquanto isso, algo majestoso e terrível se
misturava com a beleza da noite de julho. Eram os clarões
longínquos dos arredores em chamas que iam se extinguin-
do. De um lado as labaredas se estendiam calma e majestosa-
mente pe[o céu; de outro, quando encontravam alguma coi-
sa quente, elas subiam de imediato em turbilhão, silvando e
voando para o céu, bem abaixo das estrelas, e as mechas que
lhes eram arrancadas iam desaparecendo nos pontos mais dis-
tantes da abóbada celeste. Num ponto, um mosteiro negro e
queimado permanecia rígido, como um severo monge car-
tusiano, mostrando a cada clarão a sua grandeza sombria.
Noutro ponto, ardia o jardim do mosteiro. Parecia que se
estava ouvindo as árvores sibilando enquanto se enroscavam
com a fumaça, e quando o fogo aparecia, ele subitamente cla-
reava com uma luz púrpura e fosfórica os cachos maduros de
ameixas, ou então transformava aqui e ali as peras amarela-
das em ouro fino; e daí, pendurado num galho ou numa pa-
rede do prédio, negrejava em meio às árvores o corpo de um
monge ou de um pobre judeu, que perecera junto com o edi-
fício em chamas. Acima do fogo voavam pássaros, que se as-
semelhavam a um monte de cruzes pequenas e escuras num
campo chamejante. A cidade sitiada parecia ter adormecido.
As torres, os telhados, a paliçada e as paredes estavam aver-
melhadas por causa do reflexo dos incêndios distantes. Andríi
deu uma volta pelas fileiras cossacas. As fogueiras estavam
Tarás Bulba 67
prestes a se apagar, e j.unto a elas dormiam os próprios vigias,
depois de terem saciado seu apetite cossaco com farinha de
aveia e gc7/úcÁÁí..29 Ele ficou um pouco admirado com tanto
desleíxo, e pensou: "Ainda bem que não há nenhum inimigo
forte por perto e nem nada para temer". Finalmente ele se
aproximou de uma das telegas, subiu nela e se deitou de cos-
tas, colocando as mãos cruzadas sob a cabeça; mas não con-
seguiu adormecer e ficou muito tempo olhando para o céu.
0 ar estava claro e limpo, e o céu todo aberto à sua frente.
0 borrão de estrelas que constituía a Via Láctea, em forma
de uma faixa cruzando o céu, estava inundada de luz. De vez
em quando Andríi cochilava, e uma suave névoa de sonolên-
cia encobria o céu, que depois se desvencilhava dela e se tor-
nava visível de novo.
Nesse momento, teve a impressão de que uma estranha
imagem, de um rosto humano, havia aparecido à sua frente.
Pensando que era uma simples imagem criada pelo sono e que
logo se dissiparia, Andríi abriu bem os olhos e viu que, de
fato, um rosto pálido e seco estava inclinado sobre ele, olhan-
do-o diretamente nos olhos. Os cabelos compridos e negros
como carvão, desalinhados e despenteados, saíam de sob um
véu escuro jogado sobre a cabeça. 0 brilho estranho do olhar
e a palidez cadavérica do rosto, que era coberto de traços bem
salientes, faziam pensar de imediato que se tratava de um fan-
tasma. Ele agarrou de forma involuntária o mosquete e excla-
mou quase convulsivamente:
-Quem é você? Se é um espírito imundo, suma da mi-
nha frente! Se é um ser vivo, isso não é hora de brincadeira:
vou matá-lo no primeiro tiro!
Em resposta a isso, a aparição levou um dedo aos lábios,
parecendo implorar por silêncio. Ele abaixou a mão e come-
çou a olhá-1a mais atentamente. Pelos cabelos compridos, o
29 Pedacmhos de massa que são preparados com leite ou algum tipo
de caldo. (N. do T.)
68 Nikolai Gógol
pescoço e o busto moreno e seminu, ele reconheceu uma mu-
lher. Mas ela não era natural dali. 0 rosto era moreno, exte-
nuado por alguma enfermidade; os pômulos se sobressaíam
nas faces emagrecidas; os olhos estreitos subiam num risco
em forma de arco; quanto mais Andríi examinava os traços
dela, mais encontrava neles algo familiar. Finalmente ele per-
deu a paciência e perguntou:
--. Diga, quem é você? Parece-me que já a conheço, ou
já a vi em algum lugar.
- Dois anos atrás, em Kíev.
-Dois anos atrás... em Kíev ...- repetiu Andríi, esfor-
çando-se para recordar tudo que sobrevivera em sua memó-
ria sobre a vida de seminarista de outrora. Ele olhou fixa-
mente para ela mais uma vez e, de repente, deu um grito com
toda força:
-Você é tártara! É a criada da filha do voz.ez/ocJ4!...
-.-Psiu! -exclamou a tártara, depois de juntar as mãos
com uma aparência suplicante, toda trêmula e virando ao
mesmo tempo a cabeça para trás, a fim de ver se alguém ha-
via acordado por causa do forte grito dado por Andríi.
-Diga, diga: por que está aqui? -dizia Andríi quase
sufocado, num sussurro, interrompendo-se a cada instante
por causa da emoção. -Onde está sua senhorinha? Ainda
está viva?
- Está aqui, na cidade.
-Na cidade?! -exclamou ele, quase gritando outra
vez, e sentiu que todo seu sangue aflui'ra ao coração. - Mas
por que ela está na cidade?
-Porque o pai dela está aqui. Já faz um ano e meio que
ele é o yoí.e#od4 de Dúbno.
-Pois bem, e ela se casou? Vamos, diga; como você es-
tá estranha! Como ela está?
-Há dois dias que não come nada.
-Como?...
-Há tempos que nenhum dos habitantes da cidade tem
Tarás Bulba 69
sequer um pedaço de pão, faz tempo que todos comem só
terra.
Andríi ficou petrificado.
- A senhorinha o viu do muro da cidade entre os za-
porogos. Ela me disse: "Vai, díga isso ao cavaleíro: se ele lem-
bra de mim, que venha até aqui; mas se não lembra, que dê
um pedaço de pão para uma velha, pafa minha mãe, pois eu
não quero vê-la morrer em meus braços. É melhor que eu
morra primeiro, e ela, depoís de mim. Peça-1he, fíque de joe-
1hos. Ele também tem uma velha mãc. Que dê o pão em no-
me dela! " .
Diversos sentimentos despertaram e se ínflamaram no
peito do jovem cossaco.
-Mas como você está aquí? Como chegou?
-Por uma passagem subterrânea.
-E há uma passagem subterrânea.)
-Há.
-Aqui?
-Você não vaí denuncíar, não é, cavaleiro?
-Juro pela santa cruz!
-Descendo pela encosta e cruzando o regato, alí, onde
está o canavial.
-E sai na cidade?
- Díreto no mosteiro da cídade.
-Vamos, vamos agora!
-Mas, pelo amor de Deus e de Santa Maria, um peda-
ço de pão!
-Está bem, dareí. Fique aqui, perto da carroça, ou me-
1hor, deíte-se nela; ninguém a verá, todos estão dormindo.
Voltarei logo.
Ele se dirigiu às carroças onde estava guardado o esto-
que pertencente ao batalhão. Seu coração palpítava. Tudo
queerapassado,tudoqueestavasufocadopelosacampamen-
tos cossacos do momento, pela severa vída de guerreiro, veio
à tona de uma vez, afogando, por seu turno, o presente. De
70
Níkolai Gógol
novo emergiu diante dele uma mulher soberba, como se fosse
ili` um tenebroso turbilhão marinho. Novamente cintilaram
i'm sua memória os braços formosos, os olhos, a boca sorri-
clente, os densos cabelos cor de noz que caíam em cachos so-
bre o busto e todos os membros firmes de um corpo de don-
zela, criados numa harmoniosa combinação. Não, eles não
[inham se apagado, não tinham desaparecido em seu peito;
foram apenas colocados de lado para dar vazão, por certo
tempo, a outros impulsos vigorosos, mas sempre perturba-
vam o sono profundo do j.ovem cossaco, e este, após desper-
tar, ficava deitado no leito, insone, sem atinar com a razão de
tudo isso. Ele seguia, e as batidas do coração tornavam-se
ainda mais fortes ante a ideia de que a veria de novo; as per-
nas do jovem tremiam. Ao se aproximar das carroças, ele já
se esquecera completamente do que tinha ido fazer ali: levou
a mão à testa e a esfregou por bastante tempo, tentando re-
cordar o que precisava fazer. Fina[mente estremeceu, ficou to-
do assustado: lembrou-se de repente que ela estava morren-
do de fome. Ele se lançou na carroça e agarrou alguns pães
pretos; mas logo ficou pensando se aquela comida, adequa-
da para um zaporogo robusto e modesto, não seria grosseira
e inconveniente para a compleição delicadada jovem. Então
se lembrou de que, na véspera, o Áocbe#óí. havia repreendi-
do os cozinheiros por terem gastado de uma só vez uma quan-
tidade de farinha de trigo suficiente para três refeições. Com
plena certeza de que encontraria bastante papa nos caldei-
rões, apanhou a marmita de campanha do pai e se dirigiu ao
cozinheiro do acampamento, que estava dormindo ao lado de
dois caldeirões de dez litros, sob os quais ainda brilhavam
fracamente algumas brasas. Depois de olhar nos caldeirões,
ele ficou pasmo ao ver que ambos estavam vazios. Era preci-
so uma força sobre-humana para comer tudo aquilo, princi-
palmente porque naquele batalhão havia menos homens do
que nos outros. 0lhou nos caldeirões dos demais batalhões:
não havia nada em lugar nenhum. Veio-lhe à mente, a con-
Tarás Bulba 71
tragosto, um provérbío: "Os zap`orogos são como crianças:
se há poiico, comem tudo; se há muito, não deíxam nada".
0 que fazer.) Contudo, parece que em algum lugar na carro-
ça de seu pai havía um saco de pão branco, que tínham en-
contrado durante o assalto à padaría do mosteíro. Ele foí di-
reto para a carroça do pai, mas o saco não estava lá: Óstap
o havía colocado sob a cabeça, e agora dormia esticado no
chão, roncando para todo o campo. Andri'i segurou o saco e
ges:aupTqpu:xs:o,et;aon:::sá:rqmu,enie.ze:asteenrt::.c,hdãeo.a|hc:sb:::h::
dos,começouagritarcomforça:"Peguem,peguemessepola-
co dos diabos! Segurem o cavalo, segurem o cavalo! ". "Cale-
-se, ou vou matá-lo!" -gritou Andríi assustado, ameaçan-
do bater nele com o saco. Mas Óstap já tinha parado de fa-
1ar, acalmara-se, e roncava tanto qiie sua respíração fazia
balançar a relva onde estava deitado. Andríi olhou timida-
mente para todos os lados, para saber se algum dos cossacos
tinha despertado por causa do pesadelo de Óstap. De fato,
num acaTpamento próximo, uma cabeça com topete se er-
gueu, revirou os olhos e caíu no chão outra vez. Depois de
aguardar doís minutos, ele finalmente prosseguiu com seu
fardo. A tártara estava deitada, quase sem respírar.
-Levante-se, vamos! Todos estão dormindo, não tenha
medo! Pode levar pelo menos um destes pães, caso eu não
consiga carregar tudo?
Ditoisso,elejogouosaconascostas;aopassarpertode
uma carroça, furtou aínda mais um saco de painço, pegou
tambémospãesquequeríaqueatártaracarregassee,curva-
do por causa do peso, seguíu intrépido por entre as filas de
zaporogos adormecidos.
-AndriH -disse o velho Bulba no momento ein que
o filho passava por ele.
Seu coração parou. Ele se deteve, todo trêmulo, e excla-
mou baixinho:
-0 que foi?
72
Nikolai Gógol
-Você está com uma mulher! Juro que se eu me levan-
tar daqui, lhe darei uma surra! As mulheres não vão levá-lo
a nada que preste! - Dito isso, ele se apoiou num cotovelo
c começou a examinar com atenção a tártara envolta num
manto.
Andríi ficou parado, mais morto do que vivo, sem ter
coragem de olhar no rosto do pai. Depois, quando ergueu os
()lhos e olhou para ele, viu que o velho Bulba estava dormin-
do com a cabeça apoiada na mão.
Ele se benzeu. 0 susto desapareceu subitamente de seu
coração, mais rápido do que tinha vindo. Quando se virou
para olhar a tártara, esta permanecia diante dele, semelhante
a uma estátua de granito escura, coberta com o manto, e o
reflexo de um clarão distante que se acendera iluminou ape-
nas um de seus olhos, que estavam turvos como os de um de-
funto. Ele a puxou pela manga e ambos prosseguiram, sem-
pre olhando para trás; finalmente desceram até uma baixa-
da em declive - era quase uma encosta, ou barranco, como
é chamada em alguns lugares -, aos pés da qual rastejava de
forma negligente um regato encoberto por espadanas e mon-
tículos de terra. Quando desceram toda a baixada, eles fica-
ram completamente fora da vista do acampamento zaporogo.
Pelo menos, quando Andríi olhou para trás, ele viu erguer-se
apenas uma inclinação semelhante a uma muralha íngreme,
mais alta do que um homem. No topo dela balançavam-se
alguns caules de relva do campo, e acima deles a lua se levan-
tava no céu em forma de uma foice de ouro brilhante e aver-
melhada. A brisa que se desprendia da estepe anunciava que
j.á restava pouco tempo para o amanhecer. Mas em lugar ne-
nhum se ouviam gritos de galos distantes: nem na cidade e
nem nas cercanias devastadas tinha sobrado um galo sequer.
Eles atravessaram o regato por um pequeno tronco; do outro
lado erguia-se a margem oposta, que parecia mais alta do que
a outra, formando um verdadeiro precipício. Parecia que na-
quele lugar estava o ponto mais forte e seguro da fortaleza da
Tarás Bulba 73
cídade; pelo menos a trincheíra era maís baixa, e não se vía
nenhumaguarníçãoportrásdela.Todavía,maísadianteer-
guia-seomurocompactodeummosteiro.Amargemescar-
pada era coberta de ervas danínhas, e na pequena baíxada
entreelaeoregatohaviaumcanavíal,quasedaalturadeum
homem.Notopodoprecipíciovíam-seosrestosdeumacerca
deramos,querevelavamumaantigahorta.Nafrentehavía
folhaslargasdebardana;portrásapareciamumquenopódio,
U"rí=Sai:nnhhe:-o,,s_íl.v_eÀst_r_ee^rrgír,asioL,ir:_é[-çrLrus-r:V.Paug.:`çui
maísaltodoquetodos.Aquiatártaratírouassandáhaseen-
troudescalça,arregaçandocuidadosamenteovestído,porque
aquelelugareralamacentoecheíodeágua.Aoadentrarno
canavíal, eles pararam díante de um amontoado de ramos
secos e gravetos. Depois de removê-Ios, encontraram uma
espécíedeabóbadadeterra-umaaberturaumpoucomaíor
que a boca de um forno. A tártara entrou primeiro, com a
cabeça ínclínada; atrás dela seguiu Andríj, inclinando-se o
máxímopossívelparaquepudessepassarcomossacos,elo-
go ambos se encontraram numa completa escuridão.
Nikolai Gógol
74
VI
Andríi mal conseguia se mover no escuro e estreito cor-
redor de terra, seguindo a tártara e carregando os sacos de
iiães nas costas.
-Logo poderemos ver -disse a guia. -Já estamos
perto do lugar onde deixei o lampião.
E de fato, as paredes escuras de terra começaram a se
iluminar pouco a pouco. Eles chegaram a um lugar onde pa-
recia ter existido uma capela; pelo menos havia uma mesinha
estreita servindo como mesa de altar, e acima dela via-se uma
imagem católica de Nossa Senhora, desbotada e quase apaga-
da. A imagem era iluminada de forma tênue por uma peque-
na lamparina prateada que pendia diante dela. A tártara se
inclinou e apanhou no chão um lampião de cobre com pé fino
e alto, ao redor do qual, pendurados em correntes, havia pin-
ças, um aparador de pavio e um apagador de chama. Depois
de apanhá-lo, e[a o acendeu com o fogo da lamparina. A luz
ficou mais forte, e eles, enquanto seguiam juntos, ora ilumi-
nados com mais intensidade, ora engolidos por uma sombra
escura como carvão, lembravam os quadros de Gerardo della
Notte.3° 0 rosto do cavaleiro, fresco e cheio de saúde e j.uven-
tude, contrastava fortemente com o rosto exausto e pálido de
sua companheira de jornada. A passagem ficou um pouco
3° Gerrit van Honthorst ( 1590-1656), pintor holandês. Ganhou a al-
cunha "della Notte" em razão das cenas noturnas com iluminação de can-
deeiros retratadas em seus quadros. (N. do T.)
Tarás Bulba 75
mais larga, de forma que Andri'i pôde se endíreítar. Ele fíta-
va com curíosídade aquelas paredes de terra, que o faziam
lembrar-se das cavernas de Kíev. Tal como nas cavernas de
Kíev, víam-se nichos nas paredes e caixões aqui e acolá; em
algunslugaresdepafavam-seatécomossoshumanosque,por
causa da umidade, tinham amolecido e se desfazíam em pó.
Via-se que alí também havia homens santos, que se escon-
díamdastormentas,amargurasetentaçõesdomundo.Aumi-
dadeemalgunslugareseramuitoíntensa:sobseuspéshavia
por vezes água de verdade. Andríi tinha de parar a todo ins-
tante, a fím de deixar descansar a sua companheira, cui.a fa-
diga retornava continuamente. Um pequeno pedaço de pão
que a mulher havía engolido provocou-1hc apenas dor no es-
tômago, devido ao fato de estar desacostumada à comida, e
a todo instante elaficava imóvel por alguns minutos no mes-
mo lugar.
Fínalmenteapareceudiantedelesumapequenaportade
ferro. "Bem, graças a Deus, chegamos.' -disse a tártara com
voz fraca; ela ergueu a mão para bater na porta, mas não teve
forças. Andríi bateu em seu lugar; ressoou um ruído surdo,
como se atrás da porta houvesse uma imensa vastidão. Esse
ruído mudou, ao que parece, por ter se encontrado com abó-
badas altas. Daí a uns doís minutos, chaves começaram a ti-
lintar, e parecia que alguém vinha descendo uma escadaría.
Afinalaportaseabríu;elesforamrecebídosporummonge,
que estava de pé numa escada estreita, com chaves e uma ve-
la nas mãos. Involuntariamente, Andríi deteve-se ao ver um
monge católico, o qual suscitava um desprezo cheio de ódio
nos cossacos e era tratado por estes de maneira ainda mais
desumana do que um judeu. 0 monge também recuou um
pouco ao ver o cossaco zaporogo, mas uma palavra dita de
forma desartículada pela tártara tranquilizou-o. Ele alumiou-
-lhes o caminho, trancou a porta e os conduziu pela escada;
eles pararam sob as abóbadas altas e sombrias da igreja de
um mosteiro. Junto a um altar repleto de castiçais e velas, um
76
Nikolai Gógol
sacerdote ajoelhado rezava em silêncio. Perto dele, de ambos
os lados, estavam também de joelhos dois jovens coristas com
mantos lilases, sobrepelizes brancas e rendadas e incensórios
nas mãos. 0 sacerdote rezava pela concessão de um milagre:
que a cidade se salvasse, que fosse revitalizado o espírito que
sucumbia, que fosse concedida a paciência e que fosse repe-
1ido o tentador, aquele que inspira lamentos e prantos teme-
rosos e covardes diante das desgraças terrenas. Algumas mu-
lheres, parecidas com fantasmas, estavam de joelhos, tendo
as cabeças desfalecidas totalmente apoiadas nas costas de ca-
deiras e bancos de madeira escura; alguns homens, encosta-
dos nas colunas e pilastras que sustentavam as abóbadas la-
terais, pcrmaneciam tristes e também de joelhos. Uma janela
de vidros coloridos, a mais alta acima do altar, foi ilumina-
da pelo rubor rosado do amanhecer, e dela caíram círculos de
luz azul, amarela e de outras cores, iluminando subitamente
a igreja escura. Todo o altar, em seu recôncavo, apareceu de
repente cheio de esplendor; a fumaça dos incensórios perma-
necia no ar em forma de uma nuvem irisada. De seu canto
escuro, Andríi observava com surpresa a maravilha produzi-
da pela luz. Nessa hora, o ronco majestoso do órgão encheu
toda a igreja. Ele foi se tornando mais e mais denso, aumen-
tando, e transformou-se no estrondo pesado de um trovão;
depois, subitamente, tornou-se uma música celestial, propa-
gando-se bem alto sob as abóbadas na forma de sons canta-
dos, que lembravam suaves vozes femininas, e depois se trans-
formou de novo num ronco denso, num trovão, e por fim
cessou. Os estrondos de trovões ainda permaneceram muito
tempo vibrando sob as abóbadas; Andríi ficou boquiaberto,
admirado por aquela música majestosa.
Nesse momento, ele sentiu que alguém o puxara pela
aba do cafetã. "Está na hora! " -disse a tártara. Eles cruza-
ram a igreja sem que fossem notados por ninguém e daí saí-
ram numa praça que ficava diante dela. A aurora já roseava
no céu há muito tempo: tudo anunciava o nascer do sol. A
Tarás Bulba 77
praça, que tinha um formato quadrangular, estava comple-
tamente deserta; no meío dela restavam ainda umas mesinhas
de madeira, mostrando que ali, talvez apenas uma semana
antes, havia uma mercearía. A rua, que então não era paví-
mentada, tinha se transformado num monte de lama seca. A
praça era rodeada por pequenas casas de um só andar, feitas
de pedra e de barro, com estacas e colunas de madeira bem
vísíveis e também com vigas trançadas, tal como os habítan-
tes costumavam construir naquela época e que até hoje aín-
da se pode ver em alguns lugares na Lituânia e na Polônia.
Todas eram cobertas por telhados bem altos com frestas e
claraboias. De um lado, quase ].unto à igreja, erguia-se um
prédio maís alto e completamente díferente dos demais, de-
certo o conselho municipal ou qualquer outro órgão do go-
verno. Era de dois andares e encimado por um belvedere em
dois arcos, onde havía uma sentínela; um grande relógio es-
tava cravado no telhado. A praça parecía morta, mas Andríi
teve a impressão de ouvir um gemido fraco. 0lhando atenta-
mente, percebeu no outro lado um grupo de duas ou três pes-
soas deitadas no chão e quase imóveis. Ele fixou o olhar com
mais atenção para ver se elas estavam adormecídas ou mor-
tas, e nesse momento tropeçou em algo que estava junto a
seu.s pés. Era o cadáver de uma mulher, pelo visto judía. Pa-
recia ser jovem, embora seus traços macilentos e deformados
não permítissem determínar sua idade. Tinha na cabeça um
lenço de seda vermelho; dois colares de pérolas ou de contas
adornavam-1he as orelhass duas ou três madeíxas encaracola-
dasecompridascaíamemseumirradopescoçodeveíasrete-
sadas. A seu lado jazia uma críança, convulsivamente agar-
rada ao seio magro da mulher e apertando-o com os dedos
numafúríainvoluntáriasemterencontradooleíte;elajánem
chorava, e apenas pelo movímento de seu ventre deduzia-se
queaíndanãotinhamorrído,ouqueaíndasepreparavapara
exalar seu último suspiro. Eles viraram para a rua e foram de
repente detidos por um homem enfurecido que, ao ver Andríi
78
Nikolai Gógol
com o precioso fardo, atirou-se sobre ele como um tigre e o
agarrou gritando: "Pão!". Mas suas forças não eram como
sua raiva; Andríi o empurrou e ele desabou no solo. Movido
pela piedade, Andríi jogou-[he um pão, sobre o qual ele se
atirou feito um cão raivoso, roendo e mordendo, e ali mes-
mo na rua expirou em terríveis convulsões provocadas pelo
]ongo período sem ingerir alimento. Praticamente a cada pas-
so eles eram surpreendidos pelas terríveis vítimas da fome.
Parecia que muitos já não suportavam os martírios dentro de
casa, e então corriam de propósito para a rua, na esperança
de que caísse algum alimento do céu. Junto ao portão de uma
casa, estava sentada uma velha; era impossível dizer se esta-
va adormecida, morta ou apenas distraída: pelo menos ela
não via nem ouvia nada; com a cabeça inclinada sobre o pei-
to, permanecia sentada, imóvel, no mesmo lugar. Do telha-
do de outra casa, um corpo esticado e seco pendia numa cor-
da. 0 coitado não pôde suportar o martírio da fome e quis
antecipar o seu fim com o suicídio.
Ao ver aqueles fulminantes testemunhos da fome, Andríi
não conseguiu deixar de perguntar à tártara:
- Mas será que eles não encontraram nada com que
pudessem prorrogar a vida? Se um homem chega ao último
extremo, então não há nada a fazer: vai ter de comer aquilo
que antes lhe dava nojo. Ele pode se alimentar com as cria-
turas proibidas pelos mandamentos; tudo pode virar comida.
- Já comemos tudo - disse a tártara -, todos os re-
banhos. Em toda a cidade você não achará nem cavalo, nem
cachorro e nem mesmo um rato. Nós nunca tivemos reservas
na cidade, tudo era trazido dos campos.
-Mas padecendo de uma morte tão cruel, como é que
ainda pensam em defender a cidade?
-Sim, talvez o cJoj.eyocJcz já tivesse se rendido, mas on-
tem de manhã, um coronel que está em Budjaki enviou um
falcão com uma mensagem para que não entregasse a cidade;
ele está vindo em socorro com um regimento e apenas espera
Tarás Bulba 79
iim outro coronel para que venham juntos. E agora espera-
mos por eles a qualquer momento... Bem, chegamos a casa.
Já de longe Andríi avistou uma casa diferente das outras
e que parecia construída por um arquiteto italiano. Era de
doís andares e composta de belos tijolos finos. As janelas do
andar de baíxo eram cercadas por corníjas de granito que se
destacavam; o andar de címa era todo constituído de peque-
nos arcos que formavam uma galeria; entre eles havia grades
com brasões. Também havía brasões nos cantos da casa. Uma
ampla escada exterior, feita de tijolos pintados, dava direto
na praça. Embaixo, de cada lado das escadas, havia sentíne-las, que, com uma das mãos, seguravam as alabardas junto
aocorpodeformasimétricaepitoresca,ecomaoutra,apoia-
vam suas cabeças inclinadas; desse modo, assemelhavam-se
mais a estátuas do que a seres vivos. Não estavam dormindo
nem cochilando, mas pareciam indíferentes a tudo: eles não
prestaram atenção nem mesmo em quem estava subindo a es-
cada. No alto, encontraram um guerreiro ricamente adorna-
do, armado dos pés à cabeça e segurando na mão um livro de
orações. Ele tinha erguido seus olhos fatígados, mas a tártara
lhe disse uma palavra e ele tornou a baixá-1os para as pági-
nas abertas de seu livro. Eles entraram no primeíro cômodo,
que era bastante espaçoso e servia como sala de visita ou sim-
plesmente antessala. Estava cheia de guardas sentados em di-
ferentesposiçõespertodasparedes,alémdecríados,cachor-
reiros, copeíros e outros serviçais indíspensáveis para indicar
a dignidade de um grão-senhor polonês, tanto como militar
quanto como proprietário de latifúndios. Sentía-se o cheíro
das velas que tínham se apagado. Outras duas ainda ardiam
em castiçaís enormes, que eram quase da altura de um ho-
mem e estavam colocados bem no meío, embora há muito
tempo a manhã já aparecesse na ampla j.anela gradeada. An-
dríi queria ir direto para uma grande porta de carvalho ador-
nadaporumbrasãoemuitosoutrosornamentosentalhados,
mas a tártara o segurou pela manga e apontou para uma pe-
80
Nikolai Gógol
{iuena porta na parede lateral. Por a[i eles entraram num cor-
t.i'dor e depois num cômodo que Andríi começou a examinar
itentamente. A luz que passava pela fresta da persiana tocou
i.m algumas coisas: uma cortina carmim, uma cornija doura-
ila e uma pintura na parede. A tártara fez sinal para que An-
ilríi ficasse ali e abriu a porta de outro cômodo, do qual bri-
lhou a luz de uma chama. Ele ouviu um sussurro e uma voz
haixa que o fez estremecer. Através da porta semiaberta ele
viu passar rapidamente uma esbelta figura feminina com uma
trança comprida e exuberante, que caía sobre um braço esti-
cado para cima. A tártara retornou e disse-lhe que entrasse.
Ele não se deu conta de como tinha entrado e nem de como
a porta se fechara atrás de si. No cômodo ardiam duas velas;
uma lamparina brilhava de forma débil diante de uma ima-
gem; sob ela havia uma mesinha alta que, seguindo um cos-
tume católico, possuía degraus para que se pudesse ajoelhar
na hora da oração. Mas não era isso que seus olhos procura-
vam. Ele se virou para outro lado e viu uma mulher, que pa-
recia gelada e petrificada num movimento rápido. Era como
se aquela figura tivesse tentado se atirar para ele e de repen-
te se detivesse. E ele também ficou pasmo diante dela. Não
imaginava vê-la assim: não era ela, não era aquela que ele
conhecera anteriormente; em nada se parecia com a outra,
porém agora estava duas vezes mais bela e admirável do que
antes. Naquela ocasião, ela tinha algo de inacabado, incom-
pleto, mas agora era uma obra na qual o artista havia dado
o último toque de pincel. Aquela era uma moça encantadora
e fútil; esta era uma beldade, uma mulher que tinha se desen-
volvido em todo seu encanto. No olhar que lançava expres-
sava-se um sentimento completo, não fragmentos e indícios
de um sentimento, mas um sentimento inteiro. As lágrimas
ainda não tinham secado e anuviavam seus olhos na forma de
um líquido brilhante que atravessava a alma. 0 busto, o pes-
coço e os ombros se encerravam dentro daqueles maravilho-
sos limites estabelecidos para a beleza; os cabelos, que antes
Tarás Bulba 81
se espalhavam em suaves madeixas pelo seu rosto, agora ha-
viam se transformado numa trança densa e magni'fíca, que
tinha uma parte presa e outra esparramada em toda a exten-
são do braço, caindo sobre o peito em fios comprídos, finos
e maravílhosamente tortuosos. Parecia que todos os seus tra-
ços havíam mudado. Em vão ele se esforçava para encontrar
neles ao menos um daqueles traços que guardava na memó-
ria -mas não havia um sequer! Era grande a sua palidez,
mas esta não ofuscava os seus magníficos encantos; ao con-
trário, parecia acrescentar-1hes algo de ímpetuoso, de írresís-
tivelmente triunfante. Andríi sentiu na alma um temor reve-
rente e ficou imóvel diante dela. E parecia que também ela
estava admirada com a aparência do cossaco, que se apresen-
tava com todo o encanto e o vigor da coragem juvenil e que,
mesmo imóvel, já revelava uma agílídade desenvolta; os olhos
dele brilhavam com niítida firmeza, suas sobrancelhas ave-
1udadas se arqueavam de forma intrépida, as faces queima-
das pelo sol brílhavam com todo o esplendor de uma chama
vírgina[, e o bigode negro e jovem reluzia como a seda.
-Não, eu não tenho como lhe agradecer, generoso ca-
valeíro-disseela,evibroutodoosomprateadodesuavoz.
-Só Deus pode lhe agradecer; não eu, uma frágil mulher...
Ela baíxou os olhos; desceram sobre eles, em forma de
belos semicírculos de neve, as pálpebras ornadas por longos
cílios parecídos com flechas. Seu rosto magnífico se ínclinou
e foí coberto p?r um delicado rubor. Andríi não sabia o que
dizer. Ele queria exprimir tudo o que tinha na alma, queria
exprimírtudocomomesmoardorquetinhanaalma,porém
não consegüa. Sentiu que algo [he tapava os lábios: o som
das palavras estava paralisado; sentiu que ele, educado no
semínáríoenavidanômadedeguerreiro,nãopodiarespon-
der àquelas palavras, e daí se revoltou contra sua natureza
cossaca.
Nessemomento,atártaraentrounoquarto.Elajátinha
cortado em pedacinhos o pão trazido pelo cavaleíro e o co-
82
Nikolai Gógol
locou diante de sua senhora numa bandeja de ouro. A bela
moça olhou para a tártara, para o pão e para Andríi - ha-
via muita coisa naqueles olhos. Aquele olhar comovido, que
manifestava impotência e fraqueza para expressar os senti-
mentos que a envolviam, era mais acessível a Andríi do que
todas as palavras. De repente sua alma ficou leve; parecia que
tudo tinha se separado dele. Os movimentos da alma e os
sentimentos que até então pareciam presos por um freio duro
agora se sentiam livres, à vontade, e já queriam se expandir
em torrentes indomáveis de palavras, quando a bela moça
virou-se para a tártara e perguntou preocupada:
-E minha mãe? Já levou para ela?
- Ela está dormindo.
-E para o meu pai?
-Levei. Ele disse que virá agradecer ao cavaleiro.
Ela pegou o pão e o levou à boca. Andríi olhava com
indizível deleite a moça quebrando o pão com seus dedos bri-
lhantes e comendo-o; e de repente lembrou-se do homem en-
louquecido de fome, que tinha morrido diante de seus olhos
após engolir um pedaço de pão. Ele ficou pálido, e depois de
segurá-la peLa mão, disse:
-Chega! Não coma mais! Faz tanto tempo que não co-
me que agora o pão vai ser um veneno para você.
Ela soltou a mão, colocou o pão na bandeja e, como uma
criança obediente, olhou bem nos olhos dele. Se uma palavra
pudesse expressar aquilo... mas nem o cinzel, nem o pincel e
nem a palavra de alto vigor são capazes de expressar aquilo
que às vezes se vê no olhar de uma donzela, ou sequer aque-
le sentimento enternecido que envolve a pessoa que estiver
mirando esse olhar.
-Minha rainha! -gritou Andríi com todos os exces-
sos da alma e do coração. -Do que você precisa? 0 que vo-
cê quer? Ordene! Dê-me a tarefa mais impossível que hou-
ver no mundo, e eu vou realizá-la! Diga-me para fazer aqui-
lo que nenhum homem é capaz de executar, e eu farei, eu me
Tarás Bulba 83
sacrificareí. Vou me sacrificar! Vou me sacríficar por você,
iuropelaSagradaCruz,paramimseráumprazer...masnão,
eu não sei como dizer isso! Tenho três sítios; metade dos re-
banhosdemeupaíinepertence;tudoqueminhamãedeuem
dote para meu pai, e mesmo o que ela escondeu dele, tudo
ísso é meu. Hoje nenhum cossaco tem uma arma como a mí-
nha: só pela empunhadura do meu sabre me dariam a me-
lhor tropa de cavalos e três mil ovelhas. Mas renunciareí a
tudo Ísso, vou largaL i.ogar fora, quebrar, tocar fogo ein
tudo;bastaquevocêpronuncieumapalavra,ousímplesmen-te mova sua sobrancelha negra e fina! Mas sei que, talvez,
euestejadizendopalavrastolaseforadepropósitoequenão
se deva tratar dísso aqui; talvez, por ter passado a vída no
semínárioeemZaporójie,eunãosaibafalarcomogeralmen-
te se fala nos lugares frequentados por reis, príncipes e pelo
quehádemelhornumacavalarianobre.Vej.oquevocêéuma
criação de Deus melhor do que todos nós, e que está à fren-
te de todas as outras filhas e esposas dos boíardos. Não ser-
vimosnemcomoseusescravos;somenteosanjosdocéupo-
dem servi-la.
Com um assombro crescente, prestando muita atenção
e sem perder uma palavra, a moça escutava aquele discurso
sincero e afetuoso, no qual, como num espelho, refletia-se
uma alma jovem e cheia de forças. E cada uma daquelas pa-
lavras simples, pronuncíadas por uma voz que brotava do
fundo do coração, estava revestida de vigor. Então ela íncli-
nouseubelorostoparafrente,jogouoscabelosparatráscom
ímpacíência, abríu os lábios e ficou olhando assím durante
um longo tempo. Depoís quis dízer algo, mas de repente se
deteveelembrou-sequeocavaleirotinhaoutrodestíno,que
opaí,osirmãosetodasuapátriaestavamportrásdelecomo
víngadores implacáveis, que os terríveis zaporogos sitiavam
a cidade, e que esta, juntamente com seus habítantes, estava
condenada a uma morte cruel... De repente seus olhos se en-
cheram de lágrímas; ela tirou rapidamente o lenço de seda
84
Nikolai Gógol
ht)rdado, colocou-o sobre o rosto, e num instante ele ficou
i()do molhado; a polonesa permaneceu sentada algum tempo,
i`t>m sua bela cabeça inclinada para trás, apertando com os
ilentes o lábio inferior, como se, de súbito, tivesse sentido a
riicada de um réptil venenoso, mas sem tirar o lenço do ros-
io, para que Andríi não visse a sua tristeza demolidora.
-Diga-me uma palavra! -disse Andríi e tomou sua
inão macia. Um fogo cintilante percorreu suas veias por causa
ilaquele contato, e ele apertou a mão que jazia insensível en-
tre as suas.
Mas ela ficou ca[ada, imóvel e sem tirar o lenço do rosto.
-Por que está tão triste? Diga-me, por que está tão tris-
te?
Ela jogou o lenço, afastou os longos cabelos de sua tran-
ça que lhe caíam sobre os olhos e se desmanchou em palavras
de lamento, falando com uma voz bem baixa, igua[ à brisa
que se levanta num lindo anoitecer e corre de repente por um
denso caniçal: sons finos e desolados começam a murmurar
e vão ressoando e se propagando, e então um viandante para
e apanha-os com iima tristeza incompreensível, sem sequer
perceber a tarde que vai sumindo, as alegres canções entoa-
das pelo povo que volta da ceifa e do trabalho no campo, ou
mesmo o ruído distante de alguma telega que vai passando.
-Será que não mereço esse eterno pesar? Não será des-
graçada a mãe que me trouxe ao mundo? Não será bem amar-
ga a minha sina? Não será você, cruel destino, o meu carras-
co feroz? Voc.ê trouxe todos aos meus pés: os melhores fidal-
gos de toda a nobreza, os mais ricos proprietários, condes e
barões estrangeiros e a mais fina flor da nossa cavalaria. To-
dos eles me amariam de boa vontade, qualquer um conside-
raria uma honra ter o meu amor. Bastaria que eu movesse a
mão, e qualquer um deles, o mais formoso e de mais bela li-
nhagem, se tornaria meu esposo. E você, cruel destino, não
permitiu que nenhum deles cativasse meu coração, mas o con-
sentiu, perante os nossos melhores guerreiros, a um estranho,
Tarás Bulba 85
a um inimigo nosso. Por que, Imaculada Mãe de Deus, por
quaís pecados e crímes graves você me castiga de forma tão
implacável e impíedosa? Meus dias se passaram na fartura e
na abundância luxuosa; os melhores e mais caros pratos e
os vínhos maís doces eram meu alimento. E tudo ísso para
quê? Para que tudo ísso? Para no fínal padecer uma morte
cruel, como não padece nem mesmo o último míserável do
reino.?Nãobastaqueeuestejacondenadaaumasortetãoter-
rível;nãobastaqueantesdomeufimtenhadevermorrerem
mçioainsuportáveistormentosomeupaieaminhamãe,por
cuia salvação eu estaría pronta a entregar vinte vezes a pró-
pría vida; tudo isso é pouco: é preciso que antes do meu fim
eu p.ossa ver e sentir as palavras e o amor que nunca vi. É
preciso que esse homem parta meu coração com suas pala-
vras, que minha sina seja ainda mais amarga, que me seja
aíndamaislastímávdaperdademinhajovemvída,quemi-
nha morte pareça aínda mais terrível e que, ao morrer, eu
acuse ainda maís a você, meu destino cruel, e a você -per-
doe meu pecado -, Santa Mãe de Deus!
Equandoelasecalou,umsentímentodetotaldesespe-
ro se re.velou em seu rosto; todos os seus traços falavam com
uma tristeza surda e dolorosa, e tudo, desde sua fronte me-
lancolicamenteinclinadaeseusolhosbaixos,atéaslágrímas
que secavam e se enríjeciam em suas faces ardentes, tudo,
tudoparecíadizer:"Nãoexistemaisfelícidadenesterosto!".
-NuncasevÍualgoassim!-dísseAndríí.-Nãopo-
deser,nãoépossívelqueamelhoremaisbeladasmulheres
carregue uma sina tão amarga, quando na verdade ela nasceu
paraque,comoumasanta,fossereverenciadaportudooque
hádemelhornomundo.Não,vocênãovaimorrer!Vocênão
podemorrer!Juroporminhavida,eportudoquemaispre-
zonestemundo,quevocênãovaimorrer!Sechegarmosaum
ponto em que nada -nem a força, nem a oração e nem a co-
ragemTpossarechaçaressedestínoamargo,entãonósmor-
reremos juntos; e antes que eu morra, vou morrer à sua fren-
86
Nikolai Gógol
te, j.unto aos seus magníficos pés, e aí sim, morto, é que me
separarão de você.
- Cavaleiro, não engane a mim e nem a si mesmo -
disse ela, balançando em silêncio a sua bela cabeça. -Eu sei,
e para minha grande agonia, eu sei muito bem que você não
pode me amar; conheço seus deveres e mandamentos: seu pai,
seus companheiros e sua pátria o chamam, e nós somos os
seus inimigos.
- E o que me importam o pai, os companheiros e a pá-
tria? -disse Andríi, depois de sacudir rapidamente a cabeça
e endireitar o corpo como um álamo negro. -Mas se tem de
ser assim, então que seja: não tenho mais ninguém! Ninguém,
ninguém! -Ele repetiu isso com a mesma voz, e acompanha-
do dos mesmos gestos com que um cossaco forte e invencível
expressa sua decisão de partir para uma aventura inaudita e
impossível a qualquer outro homem. - Quem disse que mi-
nha pátria é a Ucrânia? Quem me deu a Ucrânia como pátria?
A pátria é aquilo que busca a nossa alma, aquilo que é mais
caro para ela. Minha pátria é você! Aí está a minha pátria! E
levarei esta pátria em meu coração enquanto eu tiver vida, e
veremos se algum cossaco vai tirá-la daqui! Por esta pátria eu
vou vender, entregar e destruir tudo que tenho!
Depois de ficar petrificada por um instante, tal como
uma estátua magnífica, ela o olhou nos olhos e de repente se
desmanchou em prantos; e com o admirável ímpeto femini-
no, do qual só é capaz uma mulher de alma elevada e feita pa-
ra os gestos afetuosos e belos, a polonesa se atirou em seu pes-
coço soluçando, envolvendo-o com seus braços alvos e boni-
tos. Nesse momento ressoaram gritos incompreensíveis na
rua, acompanhados do som de tambores e corneta. Mas An-
dríi não os ouvia. Ele sentia apenas os lábios magníficos co-
brindo-o com um calor perfumado, as lágrimas da moça que
escorriam em forma de regato pelo rosto e os cabelos perfu-
mados que iam deslizando e envo[vendo-o como se fossem
uma seda escura e brilhante.
Tarás Bulba 87
Nessa hora, a tártara entrou correndo com um grito de
alegria,
-Estamos salvos, estamos salvos! -gritava ela fora de
sí. - Os nossos entraram na cidade, trouxeram pães, trigo,
farinha e zaporogos amarrados.
Mas nenhum deles entendeu quem eram os "nossos" que
tinhamentradonacidade,oquetinhamtrazidoconsigoequc
zap.orogos eles tinham apanhado. Cheio de sentimentos ja-
mais experimentados neste mundo, Andríi beii.ou os lábios
perfumadosqueseaconchegavamemsuafaceequenãoper-
maneceram calados. Aqueles lábios responderam, e num bei-
jo molhado e recíproco, os jovens experimentaram algo qiie
ao ser humano é permitído sentir apenas uma vez na vida.E o cossaco estava morto! Perdcu-se defínitivamente da
cavalaría cossaca! Ele não mais veria o Zaporójie, nem os sí-
tíos do pai e nem a Santa lgreja! Também a Ucrânia não tor-
naria a ver um dos maís corajosos filhos que se empenharam
em defendê-1a. E o velho Tarás arrancaria um tufo de cabe-
los grisalhos de seu topete e amaldiçoaria o dia e a hora em
que, para sua vergonha, gerou um filho assím.
88
Nikolai Gógol
No acampamento dos zaporogos havia barulho e agita-
ção. Inicialmente ninguém sabia explicar com exatidão como
o exército tinha entrado na cidade. Depois, soube-se que todo
o batalhão de Pereiaslav, que estava colocado em frente aos
portões laterais da cidade, tinha bebido até cair; então, não
é de se admirar que metade estivesse morta e a outra metade
ámarrada, antes mesmo que pudessem descobrir o que esta-
va acontecendo. Até que os batalhões próximos, despertados
pelo barulho, conseguissem pegar as armas, o exéri`ito j.á es-
tava cruzando os portões; as últimas fileiras ainda se defen-
deram atirando nos zaporogos sonolentos e meio embriaga-
dos que se precipitavam de forma desordenada. 0 kocbcyóí.
deu ordens para que se reunissem; e quando todos estavam
em círculo, calados e de gorro na mão, ele disse:
-Aí está, senhores irmãos, o que aconteceu esta noite.
Vejam até onde chegou a embriaguez! Vejam a que vexame
o inimigo nos submeteu! Pelo visto, vocês têm esse costume:
se recebem permissão para dobrar a dose, ficam tão bêba-
dos que o inimigo do exército de Cristo não só lhes tira as
bombachas, mas também lhes cospe na cara sem que vocês
percebam.
Todos os cossacos ficaram de cabeça baixa, reconhecen-
do a culpa; apenas Kukubienko, o atamã do batalhão de Nie-
zamáikov, respondeu:
-Espere, paizinho! -disse ele. -Embora esteja na lei
que não se pode fazer objeção quando o Áocbcc/óÍ. está falan-
Tarás Bulba 89
do diante de toda a tropa, as coisas não sucederam bem as-
sim, e é preciso que se fale. Você não foí totalmente justo ao
repreendertodooexércitocristão.Oscossacosseriamculpa-
dos e mereceríam a morte se tivessem se embríagado duran-
te a marcha, na guerra ou num trabalho duro e pesado. Mas
nós não tínhamos nada para fazer, estávamos à toa diante da
cidade. Não era tempo de jejum, nem de qualquer outra abs-
tinênciacristã:comoéqueumhomemnoóciopodeficarsem
beber.) Não exíste nenhum pecado aquí. 0 melhor a fazer é
mostrar a eles o que significa atacar homens índefesos. Até
agora fomos bonzinhos, mas daqui para frente vamos bater
de um jeíto que não sobrará nem meia dúzia deles.
Os cossacos gostaram do discurso do atamã do bata-
Ihão. Eles ergueram as cabeças que tinham mantido abaixa-
das, e muitos acenavam concordando e exclamavam: "Kuku-
bienko falou bem!". E Tarás, que estava perto do Áocóevóí.,
disse:
-E então, Áoczievój? Pelo visto Kukubíenko falou a ver-
dade. 0 que vai dizer a respeito?
- 0 que vou dizer? Eu vou dizer Ísto: bem-aventurado
o pai que gerou um filho assim! Não é muita sabedoria dízer
palavrasdecensura;agrandesabedoriaédizerpalavrasque,
sem tocar na desgraça do homem, incentívam-no e dão âni-
mo a seu espíríto, tal como as esporas animam o espírito de
umcavaloqueserefrescounumafonte.Eumesmoqueríadí-
zer depois umas palavras de conforto, mas Kukubíenko adi-
vinhou antes.
"Também o ÁocÃeüóG. falou bem!" -responderam as
fileiras de zaporogos. "Boas palavras!" -repetiram outros.
Etambémosmaisvelhos,queestavamdepécomopombos,
balançavamacabeçaemsinaldeaprovaçãoediziam,moven-
do os bigodes grisalhos: "Foram dítas boas palavras!".
~ Escutem, senhores! -continuou o ÁocbevóJ.. -To-
mar fortalezas escalando murallias ou escavando, como fa-
zem os mestres alemães e estrangeiros, é uma indecêncía. Os
90
Níkolai Gógol
inimigos que o façam! Isso não é coisa de cossaco. Mas a jul-
gar pelo modo como tudo se deu, o inimigo não entrou na
cidade com muitas provisões; ele devia ter poucas carroças.
0 povo na cidade está faminto, isto quer dizer que comerão
tudo de uma só vez; e os cavalos também precisam de feno...
não sei se algum santo vai lhes atirar alguma coisa lá do céu...
isso só Deus sabe; e quanto aos padres, esses são bons ape-
nas com as palavras. Por essas e outras, eles logo terão de sair
da cidade. Separem-se em três grupos e fiquem nos três cami-
nhos de acesso aos portões. Ficarão cinco batalhões no por-
tão principal, e três nos demais. Os batalhões de Diádkiv e
Korsun vão ficar de tocaia! 0 coronel Tarás com seu regi-
mento também! Os batalhões de Titariev e Timochev ficarão
de reserva, à direita do comboio! Os de Scherbínov e Stié-
blikiv, à esquerda! Os jovens de língua afiada devem sair das
fileiras para provocar o inimigo! Os polacos têm a cabeça
oca: não suportam ser xingados; por isso, talvez hoje mesmo
todos saiam da cidade. Comandantes, passem seus batalhões
em revista; se faltar alguém, comp[etem com o que sobrou do
de Pereiaslav. Confiram tudo novamente! Permitam que cada
cossaco coma um pão e tome um cálice de vinho! Apesar que
todos ainda devem estar fartos pela refeição de ontem, pois,
a bem da verdade, se empanturraram tanto que é de admirar
que ninguém tenha explodido durante a noite. E mais uma re-
comendação: se alguém, um taverneiro ou um judeu, vender
uma dose que seja de aguardente a um cossaco, eu vou pre-
gar uma orelha de porco bem na testa desse cachorro e pen-
durá-lo de pernas para cima! E agora, ao trabalho, irmãos!
Ao trabalho!
Assim ordenou o Á:ocÁJc#ój.; todos lhe fizeram reverência
e, sem colocar os gorros, voltaram para suas carroças e acam-
pamentos; e só cobriram a cabeça quando já estavam bem
longe. Eles começaram a se preparar: testavam os sabres e as
espadas longas, enchiam os polvorinhos, faziam as carroças
andarem e separavam os cavalos.
Tarás Bulba 91
Enquanto se dirigia ao seu regimento, Tarás pensava e
não conseguia imaginar aonde Andríi teria se metido: será
que havia sido capturado e amarrado junto com os outros en-
quanto dormia? Isso não; Andríi não era desses que se entre-
gam vivos. Também não fora visto entre os cossacos mortos.
Tarás seguia pensativo diante do regimento, sem perceber que
há tempos alguém o chamava pelo nome:
-Quem está precisando de mim? -disse ele, que final-
mente despertara.
Diante dele estava o judeu lánkel.
-Senhor coronel, senhor coronel! -disse o judeu com
voz afoita e entrecortada, como se quisesse dizer alguma coisa
de grande importância. - Eu estive na cidade, senhor coro-
nel!
Tarás olhou para o judeu e ficou admirado por ele ter
conseguido entrar na cidade.
-Qual foi o inimigo que o levou para lá?
-Já vou contar -disse lánkel. -Ao amanhec€r, logo
que ouvi um barulho e os cossacos começaram a atirar, eu
peguei meu cafetã e corri para lá sem tê-lo vestido; já no ca-
minho é que o vesti, pois queria logo saber que barulho era.
aquele e por que os cossacos estavam atirando tão cedo. Daí
cheguei correndo aos portões bem na hora em que a última
tropa estava entrando na cidade. À frente de um destacamen-
to estava o alferes Galiándovitch. É meu conhecido: já faz três
anos me deve cem ducados. Fui atrás dele, fingindo que que-
ria cobrar a dívida, e entrei na cidade junto com os outros.
-Como é? Entrou na cidade e ainda queria cobrar uma
dívida? -disse Bulba. -E ele não mandou enforcar você
como um cachorro?
-Por Deus, queria enforcar, sim -respondeu o judeu.
-Seus criados já tinham me agarrado e passado uma corda
em meu pescoço, mas eu implorei, disse que esperaria por
quanto tempo ele quisesse e ainda prometi lhe fazer emprés-
timos se me ajudasse a receber as dívidas dos outros cavalei-
92 Nikolai Gógol
ros; pois o alferes, vou dizer tudo ao senhor, não tem um du-
cado no bolso. Embora seja dono de sítios, plantações, qua-
tro castelos e terras de planícies que vão até Chklov, ele tem
tanto dinheiro quanto um cachorro -não tem absolutamen-
te nada. Agora mesmo, se os judeus de Breslau não o tives-
sem equipado, ele não teria com oque sair para a guerra. Por
isso ele nunca integrou o Parlamento...
-Mas o que você fez na cidade? Você viu os nossos por
Lá?
- Ora, se vi! Lá estão muitos dos nossos: Ítska, Ra-
khum, Samúilo, o arrendatário Khaivalokh...
-Que se danem esses cães! -gritou Tarás, irritado. -
Por que fica aí falando dessa sua raça judaica? Eu estou per-
guntando dos nossos zaporogos.
- Os nossos zaporogos eu não vi. 0 único que vi por
lá foi o senhor Andríi.
-Você viu Andríi? -gritou Bulba. -Como assim,
onde você o viu? Num porão? Num calabouço? Desonrado?
Amarrado?
-E quem se atreveria a amarrar o senhor Andríi?! Ago-
ra ele é um cavaleiro tão importante... Juro que nem o reco-
nheci! Dragonas de ouro, manguitos de ouro, armadura de
ouro, gorro de ouro, e ouro pelo cinturão; é ouro em todo
lugar, tudo de ouro. Tal como o sol despontando na prima-
vera, quando os passarinhos piam e cantam nas hortas e as
plantas exalam perfume, assim está ele brilhando, vestido de
ouro. E o voí.evodcz lhe deu o melhor cavalo para montaria;
um cavalo de duzentos ducados.
Bulba ficou petrificado.
-Mas por que ele vestiu roupas estrangeiras?
-Vestiu porque são melhores... Ele vai para lá e para
cá, e os outros também; ele ensina aos outros, e estes também
o ensinam. Está igual a um riquíssimo senhor polonês!
- E quem o forçou a isso?
- Mas eu não disse que alguém o forçou. Acaso o se-
Tarás Bulba 93
nhornãosabequepassouparaoladodelesporvontadepró-
pria?
les.
-Quem passou?
- Ora, o senhor Andríi.
-Passou para onde?
-Para o outro lado; agora o senhor Andríí já é um de-
-Está mentindo, seu orelha de porco!
-Como podería mentir? E eu sería besta de mentir? Ar-
riscaríaminhacabeçamentindo?Acasonãoseique,seumi.u-
deu mentír ao seu senhor, vão enforcá-lo como um cachorro.)
-Quer dizer então que ele traiu sua pátría e sua fé?
-Maseunãodíssequeeletraiu;eudisseapenasqueele
tinha passado para o outro lado.
-Está mentindo, judeu dos díabos! Nunca houve uma
coisa dessas em terra cristã! Você está me enganando, seu ca-
chorro!
T Que o mato cresça na entrada da minha casa, se eu
o estiver enganando! Que todo mundo cuspa no túmulo do
meu paí, da minha mãe, do meu sogro, do paí do meu pai e
do pai da mínha mãe, se eu o estíver enganando! Se o senhor
quiser, dírei até por que ele passou para o outro lado.
-E foi por quê?
be]aí-°"°`ez'°d¢temUmabelafilha.SantoDeus,comoé
Aquiojudeuseesforçouoquantopôdeparaexpressar,
em seu rosto, a beleza da moça: abriu os braços, apertou os
olhos e torceu a boca para um lado como se tívesse experí-
mentado alguma coisa.
-Ora, e o que tem isso?
-Foi por ela que ele fez tudo ísso. Quando um homem
se apaíxona, ele fica ígual à sola molhada: pode-se dobrá-la
como quiser.
Bulba ficou profundamente pensativo. Lembrou que é
grandeopoderdeumafrágilmulher,queelei.áarruinoumui-
94
Nikolai Gógol
tos homens fortes e que a natureza de Andríi é vulnerável por
esse lado; e então ele permaneceu ali pregado no mesmo lu-
gar durante algum tempo.
-Escute, senhor, eu vou lhe contar tudo -disse o ju-
deu. - Logo que ouvi o barulho e vi que estavam cruzando
os portões da cidade, eu apanhei, em todo caso, um colar de
pérolas, pois ali há moças nobres e belas; e onde há moças
nobres e belas, eu disse a mim mesmo, talvez não tenham na-
da para comer, mas comprarão as pérolas de qualquer jeito.
E assim que os criados do alferes me soltaram, eu corri ao pa-
lácio do #o;.cvoc!4 para vender as pérolas e perguntei tudo às
servas tártaras. "0 casamento será logo, assim que expulsa-
rem os zaporogos. 0 senhor Andríi prometeu expulsá-los."
-E você não o matou ali mesmo, aquele filho do Cão?!
- gritou Bu[ba.
-Mas matar para quê? Ele foi de boa vontade. 0 ho-
mem é culpado de quê? Ele acha que lá é melhor, então foi
embora.
-E você o viu frente a frente?
-Juro por Deus, frente a frente! Que guerreiro extraor-
dinário! 0 mais formidável de todos! Que Deus lhe dê saú-
de; reconheceu-me imediatamente, e quando me aproximei,
foi logo dizendo...
-0 que foi que e[e disse?
-Ele disse... antes me chamou com um gesto, e então
disse: "Iánkel!". E eu: "Senhor Andríi!". "Iánkel, diga a meu
pai, ao meu irmão, aos cossacos, aos zaporogos. Diga a to-
dos que agora meu pai não é mais meu pai, que meu irmão
não é meu irmão, que meu companheiro não é meu compa-
nheiro, e que eu vou lutar contra todos eles. Vou lutar con-
tra todos! "
-Está mentindo, ]udas do Diabo! -gritou Tarás, fora
de si. -Está mentindo, cachorro! Você crucificou Cristo,
maldito! Eu vou matá-lo, satanás! Suma daqui ou vou matá-
-lo agora mesmo! -E ao dizer isso, Tarás puxou o sabre.
Tarás Bulba 95
0 assustado judeu fugíu com toda pressa, o mais rápí-
do que podiam suas canelas finas e secas. Ele correu muito
tempo entre os acampamentos cossacos, sem olhar para trás,
e continuou correndo ainda bem ao longe, por todo o cam-
po aberto, embora Tarás não o tivesse perseguido, achando
que sería uma ínsensatez descarregar a raiva sobre o prímei-
ro que aparecesse.
Então Bulba se lembrou de que, na noíte anterior, víra
Andríi atravessando o acampamento com uma mulher; ele
baixou sua cabeça grisalha, mas ainda sem querer acredítar
que pudesse ter acontecído uma coisa tão vergonhosa e que
seu próprio filho tivesse traído a fé e a alma.
Finalmente, Tarás levou seu regímento para preparar a
emboscada e se escondeu com ele num bosque, o úníco que
não fora queimado pelos cossacos. Os zaporogos, a pé e a
cavalo, dirigíam-se para os três camínhos de acesso aos por-
tões. Os batalhões seguiam uns atrás dos outros: os de Úman,
Popóvitch, Kániev, Stiéblikív, Níezamáíkov, Gurgúzív, Ti-
tariev e Timochev. Faltava apenas o batalhão de Pereiaslav.
Seus cossacos haviam se descuidado e tiveram de enfrentar
suasina.Unsacordaramamarradosnasmãosdoinímigo;ou-
tros, sem sequer despertar, passaram para o outro mundo, e
o próprio atamã Khlib viu-se no acampamento polaco sem
bombachas e sem as roupas de cima.
A movimentação dos cossacos foi percebida na cidade.
Todos se precípitaram até o baluarte, e diante dos cossacos
apareceu um quadro vivo: ali haviam se colocado os valen-
tes guerreiros poloneses, um mais belo que o outro. Elmos de
cobre,encimadosporplumasbrancascomocisnes,brilhavam
como o sol. Outros trazíam gorrinhos leves, rosados e azuis,
com a parte de cima inclinada para um lado; vestiam cafetãs
com as mangas dobradas, bordados a ouro e ornados com
cordões; tinham espingardas e sabres com guamições valío-
sas, que deviam ter custado muito caro, e diversos outros ti-
posdeadornos.NomeíoestavaumcoroneldeBudi.ak,usan-
96
Nkolai Gógol
do um gorro vermelho com adornos de ouro. Esse coronel era
pesado, mais alto e mais gordo do que todos, e a custo con-
seguia vestir um cafetã largo e valioso. No outro lado, quase
nos portões laterais, estava um outro coronel, um homem pe-
queno e bastante mirrado; porém seus olhos miúdos e pers-
picazes olhavam vivamente por baixo das sobrancelhas gros-
sas, e ele ia com rapidez de um lado para outro, apontando
de forma habilidosa com sua mão fina e seca e dando ordens;
via-se que, apesar de seu corpo pequeno, ele conhecia bem a
arte da guerra. Perto dele estava o alferes, bem comprido,
com bigode grosso e, ao que parecia, sem nenhum defeito no
rosto corado: esse senhor gostava de hidromel forte e de uma
boa farra. E atrás deles havia muitos polacos, uns armados
por seus próprios recursos, outros pelo tesouro real, e outros
ainda pelo dinheiro dos judeus, a quem tinham empenhado
iudo que havia nos castelos de seus avós. Havia também um
bocado de parasitas, que os senadores levavam consigo aos
banquetes a fim de realçar sua pompa e que roubavam taças
de prata das mesas e dos bufês; depois, no dia seguinte, sen-
tavam-se nas boleias para conduzir os cavalos de algum se-
nhor. Havia todo tipo de gente ali. Às vezes não tinham nem
o que beber, mas para a guerra todo mundo se ajeitava.
As fileiras cossacaspermaneciam em silêncio diante dos
muros. Não traziam nada de ouro consigo, e só às vezes o
metal brilhava aqui e a[i nas empunhaduras dos sabres e nas
guarnições das espingardas. Os cossacos não gostavam de se
enfeitar para as batalhass vestiam cotas de malha e cafetãs
simples; e ao longe, apenas seus gorros negros com topo ru-
bro escureciam e se avermelhavam.
Dois cossacos avançaram das fileiras de zaporogos. Um
deles era bem jovem, o outro mais velho; ambos tinham lín-
gua afiada, e na batalha também eram bons cossacos; chama-
vam-se Okhrim Nach e Mikita Golokopitienko. Atrás deles
saiu também Demid Popóvitch, um cossaco atarracado, que
tinha aparecido na Siétch há bastante tempo e passara por
Tarás Bulba 97
maus bocados perto de Adrianopol: quando já estava sendo
queimado, ele escapou para a Siétch com o bigode sapecado
e a cabeça enegrecida e chamuscada. Mas Popóvitch se res-
tabeleceu outra vez; deixou então crescer um tufo de cabelos
que se enrolava atrás da orelha e também o bigode espesso e
negro como azeviche. Esse Popóvitch era terrível com as pa-
1avras mordazes.
-Ah, que belas casacas3] tem a tropa! Mas gostaria de
saber se a força da tropa também é assim!
-Vocês vão ver! -gritou lá de cima o coronel tron-
cudo. -Vou amarrar todos vocês! Devolvam os cavalos e as
espingardas, seus lacaios! Viram como já amarrei seus com-
panheiros? Tragam os zaporogos até o baluarte!
te.ÀEfr:itzeag:,re:geos:aav:akài,db:sof::::ãledvoaá::aa|àéã:,bs:l:aar:
bombachas e sem as roupas de cima, tal como o haviam apa-
nhado quando estava bêbado. 0 atamã baixou a cabeça, en-
vergonhado de sua nudcz perante seus próprios cossacos e de
ter caído prisioneiro como um cão enquanto dormia. Em uma
noite, sua cabeça tinha ficado grisalha.
-Não se aflija, Khlib! Vamos salvá-1o! -gritavam-lhe
os cossacos.
-Não se aflij.a, amigo! -gritou o atamã Borodati. -
Não é sua culpa que o tenham apanhado nu. A desgraça pode
acontecer com qualquer um; eles é que deviam se envergo-
nhar de o exporem a esse vexame, sem cobrir a sua nudez.
-Pelo jeito, vocês são valentes apenas com homens
adormecidos! -disse Golokopitienko, olhando para o ba-
luarte.
-Pois esperem só! Nós vamos cortar seus topetes! -
gritaram lá de cima.
- Ah, eu gostaría de ver como vão cortar nossos tope-
`" No original, /#P4 cafetã curto usado antigamente por polone-
ses e ucranianos. (N. do T.)
98 Nikolai Gógol
tes! -disse Popóvitch, virando-se para eles em seu cavalo. E
depois de olhá-los, disse: -E então? Talvez os polacos digam
a verdade. Se é aquele pançudo ali que os comanda, então eles
têm uma boa defesa.
-Por que você acha que eles têm uma boa defesa? -
disseram os cossacos, sabendo que Popóvitch já se prepara-
va para acrescentar alguma coisa.
- Ora, porque atrás dele pode se esconder a tropa in-
teira, e daí uma ova que vamos acertar alguém atrás daquela
pança!
Os cossacos começaram a rir. E muitos deles ainda per-
maneceram algum tempo balançando a cabeça e dizendo:
``Esse Popóvitch! Se dispara uma palavra contra alguém,
aí...". Mas os cossacos não chegaram a dizer o que era esse
"aí,,.
-Afastem-se das muralhas, afastem-se, rápido! ---- gri-
tou o kocbeyóí., pois parecia que os polacos já não suporta-
vam mais nenhuma palavra, e o coronel fez um sinal com o
braço.
Mal se afastaram os cossacos, e uma rajada de tiros res-
soou. Houve uma correria no baluarte, e o próprio cJo;.et/ocJ4,
grisalho, apareceu num cavalo. Os portões se abriram e o
exército avançou. À frente saíram hussardos numa formação
regular de cavalaria. Atrás deles, soldados vestindo cotas de
malha; depois, soldados com armaduras e lanças, que eram
seguidos por outros com elmos de cobre; atrás de todos, iso-
lados, iam os fidalgos poloneses, cada um vestido a seu modo.
Esses orgulhosos fidalgos não queriam se misturar com os
outros nas fileiras, e não tinham comando; cada um ia sozi-
nho com seus criados. Em seguida vinham outras fi[eiras, e
atrás destas apareceu o alferes; e depois mais fileiras e o co-
ronel troncudo; e finalmente, por trás de todo o exército, vi-
nha o coronel mirrado.
- Não deixem que eles entrem em formação, não dei-
xem! -gritava o kocÁiÉ'vój.. - Que todos os batalhões avan-
Tarás Bulba 99
cem ao mesmo tempo sobre eles! Deixem os outros portões!
0 batalhão de Titariev atacará por um flanco! 0 de Díádkiv,
pelo outro! Kukubienko e Palivoda, avancem sobre a reta-
guarda! Vamos confundi-los, vamos separá-los!
E os cossacos atacaram por todos os lados, confundin-
do e atrapalhando os poloneses, e eles próprios acabaram se
misturando. Não os deixaram sequcr atirar; a luta se deu com
espadas e lanças. Todos se amontoaram numa turba, e cada
um teve oportunidade de mostrar seu valor. Demid Popóvitch
matou três polacos e derrubou dois nobres de seus cavalos,
dizendo: "Que belos cavalos! Há tempos eu queria ter cava-
los assim! ". E espantou os animais para bem longe, gritando
aos cossacos que estavam na retaguarda para que os amarras-
sem. Depois mergulhou de novo naquela turba, avançou con-
tra os polacos que tinha derrubado dos cavalos e matou um
deles; o outro foi laçado pelo pescoço, amarrado à sela e ar-
rastado por todo o campo, depois que lhe fora tirado o sabre
com valiosa empunhadura e um saco de ducados que trazia
no cinturão. Kobita, um cossaco bom e ainda jovem, atracou-
-se com um dos mais valentes do exército polonês; e os dois
ficaram lutando por muito tempo. Travavam um corpo a cor-
po. 0 cossaco venceu, e depois de derrubar o adversário, des-
fechou-Ihe um golpe no peito com um afiado punhal turco.
Porém ele se descuidou, e um tiro certeiro arrebentou sua
têmpora. Quem o abateu foi um dos mais ilustres senhores
poloneses, um formoso cavaleiro de uma antiga linhagem de
príncipes. Ele galopava em seu cavalo pardo como um álamo
esbelto. E já havia demonstrado muito da sua coragem épica
de boiardo: partiu dois zaporogos ao meio, derrubou Fiódor
Korj, um bravo cossaco, juntamente com sua montaria, ati-
rando no cavalo e atingindo com a lança o guerreiro que esta-
va por trás do animal; arrancou a cabeça de muitos outros e
abateu o cossaco Kobita, cravando-lhe uma bala na têmpora.
-Aí está um homem com quem eu queria medir forças!
-gritou Kukubienko, o atamã do batalhão de Niezamáikov.
100 Nikolai Gógol
Ele esporeou o cavalo e avançou direto para a retaguarda do
polonês, gritando com tanta força que todos os que estavam
próximos estremeceram por causa daquele grito desumano.
0 polaco quis virar logo o seu cavalo a fim de ficar de frente
para ele, mas o animal não obedeceu: assustado com aquele
grito horrível, ele saltou para um lado, e Kukubienko atingiu
o cavaleiro com iim tiro de espingarda. 0 tiro certeiro entrou
na espádua, e ele caiu do cavalo. Porém, mesmo assim o po-
laco não se entregou; tentou ainda desfechar um golpe no
inimigo, mas seu braço fraquejou e caiu junto com o sabre.
Kukubienko apanhou com ambas as mãos a sua espada pe-
sada e enterrou-a bem na boca pálida do polonês. A espada
arrancou dois dentes alvos, cortou a língua ao meio, partiu
a vértebra do pescoço e penetrou bem fundo na terra. E as-
sim ele a deixou, cravada ali na terra úmida para sempre. 0
s-angue nobre e vermelho como os frutos de um viburno es-
guichou em forma de uma fonte, tingindo todo o cafetã ama-
relo e ornado em ouro do polonês. Kukubienko o abandonou
e abriu caminho com seus cossacos em outra turba.
-Ei, deixaram abandonado um traje tão valioso! -
disse Borodati, atamã do batalhão de Úman, afastando-se dos
seus e chegando ao lugar onde jazia o polaco morto por Ku-
kubienko. -Eu já matei sete polacos com minhas mãos, e
não vi um traje assim com nenhum deles.
E Borodati se deixou tentar pela ganância: inclinou-se
para tirar aquela valiosa armadura, pegando logo a faca tur-
ca com cabo adornado de pedras preciosas; em seguida desa-
tou o saco de ducados preso ao cinturão e apanhou um a[forje
que continha prata, roupa-brancafina e um cacho de cabe-
los femininos, guardado cuidadosamente como recordação.
Poi-ém, Borodati não percebeu que, às suas costas, avançava
o alferes com o nariz vermelho, que já havia sido derrubado
da sela por ele mesmo e levara uma boa mossa como lem-
brança. 0 alferes ergueu os braços e desfechou um golpe de
sabre no pescoço inclinado. A ganância do cossaco não lhe
Tarás Bulba
trouxe o bem: a cabeça robusta saltou, e o corpo degolado
caiu encharcando de sangue a terra em redor. A rude alma
cossaca foi para as alturas, carrancuda, indignada e, ao mes-
motempo,espantadaportersedesprendidotãocedodaquele
corpo forte. Mas o alferes nem chegou a agarrar a cabeça do
atamã pelo topete para amarrá-1a na sela: seu feroz vingador
já estava bem ali.
Como um abutre que flutua no céu dando muítas voltas
com suas asas poderosas, e de repente se detém estirado no
mesmo lugar e parte como uma flecha sobre a codorniz que
grita perto da estrada, Óstap, o filho de Tarás, avançou con-
tra o alferes e o laçou pelo pescoço com uma corda. 0 rosto
vermelho do alferes ficou ainda mais rubro quando um vio-
lento nó apertou sua garganta; ele agarrou a pistola, mas a
mão contrai'da de forma convulsíva não conseguiu dirigir o
tíro, e a bala voou inutilmente para o campo. Óstap desatou
um cordão de seda da própria sela do polonês, que o levava
consígo para amarrar os prísioneiros, e atou-1he as mãos e os
pés;depoisprendeuacordanaselaeoarrastoupelocampo,
gritando a todos os cossacos do batalhão de Úman para que
prestas:::d:mo:::::::::ràeh3=eannas::ceabgroar:dqa:|;seuata-
mã j.á não estava entre os vívos, abandonaram o campo de
batalha e correram para recolher seu corpo; ali mesmo delí-
beraram sobre a escolha do novo comandante. Finalmente
disseram:
-Para que deliberar? Não se pode escolher um coman-
dante melh.or do que Óstap, o filho de Bulba. É verdade que
ele é mais iovem do que todos nós, mas tem o i.uízo de um
velho.
Depois de tírar o gorro, Óstap agradeceu a seus com-
panheiros pela honra e nem tentou se esquivar alegando ser
]ovem e de pouco juízo, pois sabía que aquele momento de
guerra não era para ísso; conduziu-os diretamente para a tur-
ba e mostrou a todos que não fora em vão que o elegeram
102
Níkolai Gógol
atamã. Os polacos sentiram que a coisa já tinha ficado bas-
tante quente e recuaram, atravessando o campo para se reu-
nir mais ao longe. 0 coronel baixinho acenou para o quarteto
de esquadrões reservas que permaneciam separados, junto
aos portões, e eles dispararam uma rajada de tiros no bando
de cossacos. Porém, atingiram poucos: as balas acertaram os
bois dos cossacos que olhavam espantados para a batalha. Os
animais assustados mugiram, viraram-se para os acampa-
mentos, derrubaram carroças e pisaram em muitos cossacos.
Mas nessa hora, Tarás saiu da tocaia com seu regimento e
avançou gritando. 0 rebanho enlouquecido voltou para trás,
assustado com os gritos, e se lançou contra os regimentos
polacos, afugentando a cavalaria e esmagando os que eram
derrubados.
-Oh, obrigado, boiada! -gritaram os zaporogos. -
Já tinha nos servido durante a marcha e agora ajudou na guer-
ra! -E os cossacos atacaram com força renovada.
Mataram muitos inimigos. E muitos cossacos mostra-
ram do que são capazes: Metiélitsia, Chilo, ambos os Pissa-
rienko, Vovtuzienko e tantos outros. Os polacos viram afinal
que a situação piorava, levantaram seu estandarte e gritaram
para que fossem abertos os portões da cidade. Os portões se
abriram com um rangido de ferro e receberam os cavaleiros
exaustos e cobertos de poeira, que voltavam em tropel como
ovelhas indo para o redil. Muitos zaporogos correram atrás
deles, mas Óstap deteve seus comandados, dizendo: "Afas-
tem-se dos muros, senhores irmãos, afastem-se! Não devemos
nos aproximar deles". E disse a verdade, pois de cima dos
muros ressoavam estrondos e caía de tudo, e muitos cossacos
foram atingidos. Nesse momento, o kocbez/ó!' se aproximou
e elogiou Óstap, dizendo: "Aí está o novo atamã, e já conduz
a tropa como um veterano! ". 0 velho Bulba olhou em volta
para ver quem era o novo atamã; então viu Óstap em seu
cavalo à frente dos cossacos de Úman, com o gorro de lado
e segurando a maça de comandante. "Ora, vejam só!" -dis-
Tarás Bulba 103
se Bulba olhando para ele; o velho ficou felíz e começou a
agradecer aos cossacos de Úman pela honra oferecída a seu
filho.
Oscossacosrecuaramdenovo,preparando-separavol-
tar aos acampamentos, mas os polacos apareceram mais uma
vez no baluarte da cídade, com as capas j.á rasgadas. 0 san-
gue tinha secado nos ricos ca£etãs, e os belos elmos de cobre
estavam cobertos de poeira.
-Eentão,).ánosamarraram.)-gritaramoszaporogos
lá de baixo.
-Vocês vão ver só! -gritou do alto o coronel gordo,
mostrando uma corda.
Eosguerreírosexaustoseempoeiradosnãoparavamde
fazer ameaças, e aqueles que eram mais atrevidos trocavam
palavras afiadas.
Por fim se dispersaram. Uns, esgotados pelo combate,
ajeítaram-se para descansar; outros passavam terra em seus
ferimentos e faziam curativos com lenços e roupas caras to-
madasdeinímígosmortos.Ehaviaaindaoutrosque,pores-
taremmenosfatigados,começaramarecolheroscorpospara
prestar as derradejras homenagens. Cavaram as sepulturas
com espadas e lanças; limparam a terra com abas e gorros;
arrumaram os corpos dos cossacos de maneira respeítosa e
cobriraT~noscomterrafresca,paraqueoscorvoseaságuias
carníceiras não conseguíssem arrancar seus olhos. Já os cor-
posdospolacosforamamarradosàsdúzíasnascaudasdeca-
valosselvagens,osquaisforamsoltosedepoísperseguídose
açoitadosporlongotempo.Oscavalosfuriososvoarampor
valas, morros, ríachos e valetas, batendo no chão os cadáve-
res polacos despedaçados e cobertos de sangue.
Depois, os cossacos se sentaram em círculos para cear;
ficaramconversandopormuítotemposobreasaçõeseproe-
zas que cada um realizou e que se tofnariam um conto eter-
no para os forasteiros e a posteridade. Eles demoraram a se
deitar.0velhoBulbademoroumaísdoquetodos;meditava
104
Nikolai Gógol
profundamente sobre o fato de Andríi não estar entre os guer-
reiros inimigos. Aquele Judas teria se envergonhado de sair
contra os seus, ou será que o judeu o enganara, e Andríi ti-
vesse sido apenas capturado? Mas daí ele se lembrou de que
o coração de Andríi tinha uma inclinação desmedida para o
discurso feminino; então ficou angustiado e prometeu vin-
gança contra a polaca que havia enfeitiçado seu filho. E ele
haveria de cumprir sua promessa: nem olharia para sua be-
leza, iria apenas agarrá-la pela trança grossa e exuberante e
a arrastaria por todo o campo entre os cossac.os. Ensanguen-
tados e cobertos de poeira, seus belos seios e seus ombros pa-
recidos com a neve eterna que encobre o pico das montanhas
se chocariam contra o chão; seu corpo maravilhoso e exube-
rante seria despedaçado. Mas Bulba não sabia o que Deus
preparava para o dia seguinte, e foi se deixando levar pelo so-
no até que adormeceu.
Os cossacos ainda ficaram conversando entre si, e o sen-
tinela permaneceu a noite toda perto do fogo, olhando aten-
tamente para todas as direções, sóbrio e sem pregar os olhos.
Tarás Bulba 105
0 sol ainda não tinha chegado ao centro do céu quan-
do os zaporogos se reuniram em círculos. Da Siétch chegara
a notícia de que, durante a ausência dos cossacos, os tártaros
saquearam tudo, desenterraram as coisas que estavam escon-
didas, surraram e prenderam todos os que haviam permane-
cido lá e se encaminharam diretamente para Periekop, levan-
do todas as manadas e rebanhos apanhados. Apenas um cos-
saco, Maksim Golodukha, escapou das mãos dos tártaros no
caminho; depois de apunhalar um escriba, ele desatou-lhe uma
sacola com moedas de ouro e, usando o cavalo e as roupas
do tártaro, fugiu da perseguição durante um dia e meio e mais
duas noites; fatigou o animal até a morte e na estrada passou
para outro, que também ficou extenuado; por fim, montado
num terceirocavalo, chegou ao acampamento dos zaporogos,
depois de saber que estes se encontravam nos arredores de
Dubno. Ele conseguiu dizer apenas que essa desgraça tinha
acontecido; porém, como ela sucedera, se os zaporogos, como
é costume entre os cossacos, haviam se embriagado e foram
aprisionados enquanto estavam bêbados, e como os tártaros
descobriram o lugar onde estava guardado o espólio de guer-
ra -nada disso ele contou. 0 cossaco estava fatigado de-
mais, todo inchado, com o rosto ardendo e queimado pelo
vento; ele caiu ali mesmo e adormeceu num sono profundo.
Em semelhantes situações, os zaporogos se lançariam
atrás dos raptores no mesmo instante, tentando alcançá-los
no caminho, pois os prisioneiros poderiam acabar nos mer-
Tarás Bulba 107
cados da Ásía Menor, de Smirna, da llha de Creta, e sabe
Deus onde mais os topetes cossacos seriam vistos. Foi por is-
so que os zaporogos se reuniram. Todos permanecíam de pé
com o gorro na cabeça, porque tinham vindo até ali não pa-
ra ouvir uma ordem do atamã, mas para deliberâr entre si
como iguais.
- Que os mais velhos falem primeiro! -disseram na
multidão.
- Que fale o ÁocÀcz/óí.! - disseram outros.
E o koc¢ecJÓJ. tirou o gorro, não como chefe, mas sim
como companheiro; agradeceu a todos os cossacos pela hon-
ra e disse:
- Entre nós há muita gente mais velha e de opinião mais
sensata, mas i.á que me deram esta honra, eis a minha opinião:
não percamos tempo, companheiros, e vamos atrás dos tár-
taros. Vocês mesmos sabem que tipo de gente é essa. Eles não
vão ficar com os bens roubados esperando a nossa chegada;
vão fazê-1os desaparecer num instante, e não acharemos nem
sinal deles. Esta é minha opinião: vamos partir. Já nos diver-
timos por aqui. Os polacos sabem quem são os cossacos; vin-
gamos a nossa fé com toda a força; já não há muito o que
tirar dessa cidade faminta. Assim, é esta a minha opinião: va-
mos partir.
-Vamos partir! -ressoou nos batalhões de zaporogos.
Mas essas palavras não agradaram a Tarás Bulba, e ele
franziu ainda mais as suas sobrancelhas carregadas e grisa-
1has, que se pareciam com moítas crescídas no alto de mon-
tanhas escuras, cujo topo fora coberto pela geada cortante do
norte.
-Não, Ác)cbcc/óÍ., sua opinião não está correta! -disse
ele. -Você não deve falar assim. Pelo jeito você se esqueceu
de que muitos dos nossos permanecem na prisão, capturados
por poloneses. Pelo jeito você quer que desrespeitemos o pri-
meiro e sagrado mandamento do companheirismo: será que
vamos abandonar nossos colegas para que sejam esfolados
108 Nikolai Gógol
vivos, ou para que seus corpos cossacos sejam esquartejados
e depois espalhados por cidades e aldeias, como fizeram com
o Á7éf77¢cz77 e os melhores guerreiros russos na Ucrânia? Será
que os poloneses ofenderam pouco as nossas coisas sagradas?
0 que somos nós, então? Eu pergunto a todos vocês. 0 que
vale um cossaco que abandona um companheiro na desgra-
ça, que o abandona como um cachorro para morrer em ter-
ra estrangeira? Se chegamos ao ponto de qualquer um man-
char a honra cossaca sem mais nem menos, permitindo que
cuspam em nossos bigodes grisalhos e nos dirijam palavras
ofensivas, então ninguém vai me censurar. Eu ficarei sozinho!
Os zaporogos hesitaram.
-E você por acaso se esqueceu, bravo coronel - disse
então o ÁocÁ7c>c/ó; -, de que os nossos companheiros também
estão nas mãos dos tártaros e que, se não os salvarmos ago-
ra, serão vendidos aos pagãos para um cativeiro eterno, pior
do que a morte mais cruel? Será que se esqueceu de que eles
estão agora com todo o nosso tesouro, obtido à custa de san-
gue cristão?
Todos os cossacos ficaram pensativos e não sabiam o
que dizer. Nenhum deles queria ganhar má fama. Então avan-
çou Kassián Bovdiúg, o mais velho de todos no exército za-
porogo. Ele era respeitado por todos os cossacos; fora esco-
lhido duas vezes como Áoc4Jez/óÇ., e nas guerras também ha-
via sido um cossaco muito bom, mas já tinha idade avançada
e não participava mais das campanhas; também não gostava
de dar conselhos a ninguém; esse velho valentão preferia ficar
de lado nas rodas de cossacos, ouvindo histórias sobre cam-
panhas e acontecimentos passados. Jamais se metia em suas
conversas; ficava apenas ouvindo enquanto apertava com o
dedo a cinza em seu cachimbo de cano curto, o qual nunca
tirava da boca; depois permanecia sentado por longo tempo,
de olhos semicerrados, e então os cossacos não sabiam se ele
estava dormindo ou se ainda escutava tudo. Nas outras cam-
panhas tinha ficado em casa, mas desta vez algo despertou
Tarás Bulba 109
dentro do velho. Ele fez um gesto ao estilo cossaco e disse:
"Ah, que se dane! Eu também vou; talvez ainda seja útil aos
cossacos ! " .
-Chegou a minha vez de tomar a palavra, senhores ir-
mãos! -começou ele. -Escutem este velho, meus filhos. 0
ÁocZJcvo'í. falou sabiamente, e como chefe do exército cossa-
co, está obrigado a preservá-lo e também a cuidar de suas coi-
sas; ele não poderia dizer nada mais sensato. É isso! Esta é a
primeira parte da minha fala! E agora escutem a segunda.
Aqui vai ela: também o coronel Tarás disse uma grande ver-
dade; que Deus lhe permita viver mais de um século, e que na
Ucrânía haja mais coronéis assim! Preservar o companheiris-
mo é o primeíro dever e a maior honra de um cossaco. Vivo
neste mundo há bastante tempo, e nunca ouvi que um cossa-
co tenha abandonado ou traído seu companheiro de alguma
forma. Tanto estes como aqueles são nossos companheiros;
haja poucos ou muitos deles, é tudo a mesma coisa; todos são
companheiros, todos são caros para nós. Eis o que tenho a di-
zer: aqueles que têm amigos aprisionados pelos tártaros, que
partam atrás destes; e os que têm amigos capturados por po-
1acos e não querem largar uma causa justa, devem perma-
necer. 0 ÁocZJevóç. tem o dever de ir com metade do exércíto
atrás dos tártaros; a outra metade escolherá um atamã inte-
rino. E se quíserem ouvir este cabeça branca, não há outro
mais apto para ser um atamã ínterino do que Tarás Bulba.
Nenhum de nós se compara a ele em bravura.
Assim falou Bovdiúg, e depoís se calou; e os cossacos
ficaramfelizespelo.velhoterlhesdadojuízo.Todosjogaram
os gorros para cima e começaram a gritar:
-Obrigado, paizinho! Ficou calado por muito, muito
tempo, mas falou afinal. Não foi por acaso que, quando se
preparava para a campanha, disse que seria útil aos cossacos:
foi dito e feito.
-E então, todos estão de acordo? -perguntou o Áo-
cheuói.
110 Nikolai Gógol
-Todos de acordo! - gritaram os cossacos.
-Quer dizer que a reunião acabou?
-Sim, acabou! -gritaram eles.
-Então agora escutem estas ordens, meus filhos! -
disse o kocÁ7ecJóÍ., avançando e colocando o gorro, e os zapo-
rogos tiraram os seus e permaneceram com a cabeça desco-
berta, de olhos vo[tados para o chão, como sempre aconte-
cia entre os cossacos quando o superior ia falar.
-Agora separem-se, senhores irmãos! Quem quiser par-
tir, ponha-se à direita; quem quiser ficar, à esquerda! Para
onde for a maior parte do batalhão, para lá irá também o
atamã; a parte menor se juntará a outras unidades.
E todos começaram a se mexer: uns para a direita, ou-
tros para a esquerda. Para onde ia a parte maior do batalhão,
lá ia também o seu atamã; a parte menor se juntava a outras
unidades; e por pouco não se dividiram em partes iguais. As-
sim, decidiram ficar: quase todo o batalhão de Niezamáikov,
mais da metade do de Popóvitchev, todo o de Úman, todo o
de Kániev e a maioria dos de Stiéblikiv e de Timochev. Os de-
mais se apresentaram para ir no encalço dos tártaros. De am-
bos os lados havia cossacos valentes e robustos. Entre aqueles
que decidiram partir atrás dos tártaros estavam Tcherievati,
um bom e velho cossaco, Pokotipolie, Liemich e Khomá Pro-
kopóvitch; Demid Popóvitch também estava ali, pois era um
cossaco de caráter entusiasmado demais e não conseguia per-
manecer por muito tempo no mesmo lugar; ele já tinha ex-
perimentadoa luta com os polacos, e agora queria experi-
mentar com os tártaros. Estavam ali os atamanes Nostiugan,
Pokrichka e Nievilitchki; e muitos outros cossacos valentes e
famosos quiseram testar a espada e o braço forte num com-
bate contra os tártaros. Também eram muitos, e igualmente
fortes, os cossacos que quiseram ficar: os atamanes Demitró-
vitch, Kukubienko, Viertikhvist, Balaban e Óstap Bulba. E
ainda ficaram muitos outros cossacos famosos e robustos:
Vovtuzienko, Tcherievitchenko, Stiepán Guska, Okhrim Gus-
Tarás Bulba Íl fl "
ka, Mikola Gústi, Zadórojni, Metiélítsia, Ivan Zakrutigubá,
Mossí Chilo, Diogtiarienko, Sidorienko, Pissarienko, um ou-
tro Píssarienko, e ainda outro Píssarienko, e tantos outros
bons cossacos. Todos eram muito viajados: tinham andado
pelo litoral da Anatólía, pelas salinas e estepes da Crímeia,
por todos os pequenos e grandes riachos que deságuam no
Dniepr e por todos os seus embarcadouros e ilhas; estiveram
nas terras da Moldávia, da Valáquía e da Turquia; percorre-
ramtodooMarNegrocomsuasembarcaçõesdelemeduplo;
lançaram-se numa frota de cinquenta barcos contra navios
enormes e luxuosos, afundaram várias galeras turcas e gas-
taram muíta pólvora nessa vida. Mais de uma vez eles rasga-
ram veludos e tecídos de valor para usar como calçados. Di-
versas outras vezes encheram as calças com moedas de ouro
bi.ílhantes. Não é possível calcular o que cada um deles tinha
gastado com farras e bebedeíras; era um montante que, se
fora com outro, duraria a vida toda. Gastaram tudo ao esti[o
cossaco, chamando a todos e contratando músícos para que
se alegrassem como em nenhum outro lugar do mundo. Mes-
mo agora, era raro que um deles não tivesse bens enterrados:
jarros,canecasdeprataepulseiras,tudoembaixodosi.uncos
nasilhasdoDniepr,paraqueostártarosnãopudessemachá-
-los se, por desgraça, atacassem a Síétch de surpresa; mas se-
riadifícílumtártaroencontraressesbens,poisoprópríodo-
nologoesqueciaolugarondeoshaviaenterrado.Assimeram
os cossacos que quiseram ficar e se vingar dos poloneses pe-
los companheíros leais e pela fé cristã! 0 velho cossaco Bov-
díúg também quís ficar com eles, dizendo: "Ho).e não tenho
mais idade para perseguir os tártaros, mas aquí é o lugar de
um cossaco padecer uma boa morte. Há muito pedi a Deus
que, se minha vida tivesse de tei-minar, que fosse numa guer-
ra pela santa causa cristã. E assím foi. Não haverá em outro
lugar um fínal mais glorioso para um velho cossaco".
Quando todos se separaram e se posicionaram dos doís
lados, em duas fileíras, o Áocbez/ó2 passou entre eles e disse:
112
Nikolai Gógol
- E então, senhores irmãos, estão satisfeitos uns com os
outros?
-Todos satisfeitos, paizinho! -responderam os cos-
Sacos.
- Então, beijem-se e se despeçam uns dos outros, pois
só Deus sabe se teremos a sorte de nos encontrar de novo nes-
ta vida. Obedeçam ao seu atamã, mas façam o que vocês mes-
mos sabem: vocês sabem o que a honra cossaca determina.
E todos os cossacos que ali estavam começaram a se bei-
).ar. Os atamanes foram os primeiros; depois de passar a mão
nos bigodes grisalhos, eles se beijaram e trocaram fortes aper-
tos de mão. Um queria perguntar ao outro: "Bem, será que
ainda nos veremos, meu irmão?". Mas não perguntaram, per-
maneceram ca[ados, e suas cabeças grisalhas ficaram pensa-
tivas. Todos os cossacos se despediram, sabendo que tanto
uns como outros teriam muito trabalho; no entanto, decidi-
ram não se separar imediatamente, e sim esperar pelo anoi-
tecer, a fim de não permitir que o inimigo visse a diminuição
do exército cossaco. Depois todos se dirigiram às suas unida-
des para almoçar.
Após o almoço, os que tinham a estrada pela frente se
deitaram para descansar e dormir um sono longo e profundo,
como se pressentissem que, talvez, esse fosse o último sono
que desfrutariam com tanta liberdade. Dormiram até o cre-
púsculo; e logo que o sol se pôs, quando escureceu um pou-
co, começaram a engraxar as telegas. Quando se pi.epararam,
puseram as carroças em movimento; e depois de se despedi-
rem dos companheiros mais uma vez, seguiram eles mesmos
atrás das carroças. A cavalaria seguia de modo solene, sem
gritos nem assobios, troteando suavemente atrás da infan-
taria; e logo desapareceram todos na escuridão. Ressoavam
apenas o trote surdo dos cavalos e o rangido de uma roda des-
conjuntada, ou que não fora bem engraxada por causa da
escuridão da noite.
Os companheiros que tinham ficado ainda continuaram
Tarás Bu[ba 113
acenando para eles durante muito tempo, de longe, embora
nadamaisfossevisto.Masquandopararamevoltaramaseus
lugares, quando viram, sob as estrelas que brílhavam inten-
samente, qiie metade das telegas não estava mais ali, e que
muitos e muitos deles também não, surgiu uma tristeza no co-
ração de cada um, e todos, involuntaríamente, ficaram pen-
satívos, com suas cabeças voltadas para o chão.
Tarás víu como as tropas tinham fícado angustiadas, e
também como o desânimo, que é incomum a um bravo, ia
envolvendosilenciosamenteacabeçadoscossacos;porémele
ficoucalado:queriadartempoparaqueseacostumassemao
desânimotrazidopeladespedidadoscompanheiros;enquan-
to isso, preparava-se em sílêncío para despertá-los de forma
súbitaedefinitiva,dandoumgrítoaoestilocossaco,afimde
que o ânimo retornasse à alma de cada um com uma força
maíor do que antes, algo de que só a raça eslava é capaz -
uma raça enorme e poderosa que, perante as outras, é como
o mar diante de pequenos rios. Se o tempo está agitado, ele
setransformaemrugidosetrovões,erguendoequebrandoas
ondascomoosríosfracosnãopodemfazer;masseotempo
está calmo e silencioso, ele estende sua superfícíe ínfinita e
cristalína com maís clareza do que todos os rios, num eterno
deleite para os olhos.
Tarás mandou que seus criados descobrissem uma car-
roça que estava ísolada. Era a maior e mais forte de todas no
comboío cossaco: suas rodas pesadas eram revestídas com
aroduploeresistente;estavabastantecarregada,cobertacom
xaíréis e peles bovínas e bem amarrada com cordas embebi-
das em pez. A carroça estava cheia de cantís e barris de um
velhoebomvinho,quetinhapermanecidolongotemponas
adegasdeTarás.Eleohaviareservadoparaumaocasiãosole-
ne,quandosurgisseumgrandemomentoetodostivessempe-
la frenü uma tarefa dígna de ser transmítida aos descenden-
tes;cadacossacodeveríaentãotomardessevalíosovinhopa-
ra que, nessa ocasião, o homem fosse dominado por um sen-
114
Nikolai Gógol
timento de grandeza. Ao ouvir a ordem do coronel, os cria-
dos lançaram-se às carroças, cortaram as cordas resistentes
com as espadas, tiraram os xairéis e as pesadas peles bovinas
e pegaram os cantis e barris.
-Tragam tudo -disse Bulba -, tudo que houver por
aí. Tragam o que cada um tiver: uma caneca, um caldeirão de
dar água aos cavalos, uma luva, um gorro, ou simplesmente
juntem as mãos fazendo uma cuia.
E todos os cossacos foram com o que tinham: uns com
canecas, outros com caldeirões de dar água aos cavalos, ou-
tros com luvas, outros com gorros, e outros ainda com as
mãos em forma de cuia. Passando entre as fileiras, os criados
de Tarás iam enchendo tudo com os cantis e barris. Mas Ta-
rás não os deixou beber antes de seu sinal, a fim de que to-
dos bebessem d€ uma só vez. Pelo visto, ele queria dizer algo.
Tarás sabia que o bom e velho vinho, por mais forte que fos-
se, não seria capaz de fortalecer o espírito de um homem; mas
se a ele fosse acresccntada a palavra certa, então seria duas
vezes maior a força do vinho e do espírito.
- Eu os convidei, senhores irmãos - disse Bulba -,
não pela honra de terem feito de mim o seu atamã, embora
seja essa uma grande honra; também não foi pela despedida
de nossos companheiros; não, em outra época as duas coisas
seriam oportunas, mas não é esse o momento que temos dian-
te de nós. 0 trabalho à nossa frente exige um grande esforço
e a grande bravura dos cossacos! Assim, bebamos, compa-
nheiros, bebamostodos juntos, e antes de mais nada, pela
santa fé ortodoxa: que chegue afinal aquele momento em que
ela se espalhará por todo o mundo e será a fé sagrada e úni-
ca em todo lugar, e todos os muçulmanos que existirem se
tornarão cristãos! Bebamos também pela Siétch: que ela seja
a perdição de todo o lslamismo, e que a cada ano, dela saiam
jovens mais belos e melhores. E bebamos igualmente por nos-
sa própria glória: que nossos netos e os filhos de nossos ne-
tos digam que, um dia, existiram aqueles que nunca envergo-
Tarás Bulba 115
nharam os companheiros e nem traíram os seus. Pela fé, se-
nhores irmãos, pela fé!
-Pela fé! -com voz grossa começaram a bradar os
que estavam nas fileiras maís próximas.
-Pela fé! -continuaram os que estavam distantes; e
todos ali presentes, os velhos e os jovens, beberam pela fé.
-Pela Siétch! --disse Tarás, e ergueu o braço bem alto.
-Pela Siétch! --. ecoou densamente nas primeiras filei-
ras. ``Pela Siétch!", disseram os velhos num tom baixo, mo-
vendo os bigodes grisalhos; e os moços, estremecendo como
jovens falcões, repetiram: "Pela Siétch!".
E o campo longínquo ouviu os cossacos celebrando a sua
Siétch.
-Agora um último gole, companheiros, pela glória e
por todos os cristãos que vivem no mundo!
E todos os cossacos, até o que estava mais distante no
campo, tomaram uma última caneca pela glória e por todos
os cristãos que existissem no mundo. E em todas as fileiras,
por todos os batalhões, ainda se repetiu durante longo tempo:
-Por todos os cristãos que existirem no mundo!
As canecas ].á estavam vazias, mas os cossacos ainda con-
tinuavam com os braços erguidos. Embora os olhos de todos
brilhassem radiantes pelo vinho, eles estavam bastante pen-
sativos. Não era em ganância e nem no espólio de guerra qiie
eles pensavam agora; tampouco em quem teria a sorte de apa-
nhar ducados, armas valiosas, cafetãs bordados e cavalos cir-
cassianos; estavam pensativos como águias sentadas no pico
de montanhas altas e escarpadas, de onde se vê ao longe o
mar se estendendo infinitamente, repleto de galeras, navios e
barcos semelhantes a pequenas aves, e cercado nos flancos
pela costa delicada e quase invisível com suas cidades litorâ-
neas parecendo mosquitos e os bosques inclinados como ca-
pim fino. Como as águias, eles olhavam para o campo em
redor e para o destino que se enegrecia bem adiante. Todo
aquele campo com estradas e terras incultas seria coberto por
116 Nikolai Gógol
seus ossos brancos e salientes, depois de banhar-se fartamen-
te com o sangue cossaco e encobrir-se de carroças despedaça-
das, lanças e sabres partidos. As suas cabeças com bigodes
desgrenhados e topetes torcidos e cheios de sangue resseca-
do se espalhariam ao longe. As águias avançariam para tirar,
para arrancar seus olhos cossacos. Mas há um grande bem
nessa pousada de morte que se esparrama com tanta ampli-
tude e liberdade! Uma ação magnânima jamaís vai perecer,
e a glória cossaca não desaparecerá como o pequeno grão de
pólvora do cano de uma espingarda. Haverá um bandurrista
de barba grisalha sobre o peito, ou talvez um velho de cabe-
ça branca, mas ainda cheio de coragem madura e sábio de es-
pírito, que dirá sobre eles palavras densas e vigorosas. E sua
glória seguirá por todo o mundo, e depois, tudo que nascer
falará deles. Pois as palavras vigorosas ressoarão bem longe,
como o cobre de um sino a badalar, no qual um artífice te-
nha lançado bastante prata pura e valiosa, para que seu belo
retinir se propague por cidades, casebres, palácios e aldeias,
convocando a todos igualmente para uma oração sagrada.
Tarás Bulba 117
IX
Na cidade ninguém soube que metade dos zaporogos ti-
nha saído em perseguição aos tártaros. Da torre do conse-
lho municipal, as sentinelas notaram apenas que parte das
carroças havia se arrastado para o bosque; mas pensaram
que os cossacos se preparavam para fazer uma emboscada;
o mesmo pensava um engenheiro francês. Entretanto, não fo-
ram vãs as palavras do kocbcyóí., pois na cidade houve falta
de alimentos. Como era costume de séculos, as tropas não
tinham feito o cálculo de quanto precisavam. Tentaram fa-
zer um ataque surpresa, mas metade dos bravos foi extermi-
nada pelos cossacos ali mesmo, e a outra foi enxotada de
volta para a cidade sem nada. Porém, os judeus se aprovei-
taram do ataque e apuraram tudo: para onde os zaporogos
haviam se dirigido e por quê, com quais comandantes, quais
batalhões, quantos tinham ido, quantos ficaram e o que pen-
savam fazer; numa palavra: em alguns minutos, já se sabia
de tudo na cidade. Os coronéis se animaram e se prepararam
para travar o combate. Tarás logo percebeu isso pela movi-
mentação e pelo barulho na cidade; então tomou providên-
cias com desenvoltura, pondo as tropas em formação e dan-
do ordens e instruções; colocou os batalhões em três acam-
pamentos, cercando-os com carroças em forma de forta[ezas,
um tipo de combate em que os zaporogos eram invencíveis;
ordenou que dois batalhões ficassem de tocaia, fincou esta-
cas pontiagudas, armas quebradas e pedaços de lanças numa
parte do campo, para o caso de a cavalaria inimiga avançar
Tarás Bulba 119
para lá. E quando tudo estava feito como é necessário, Tarás
fez um discurso aos cossacos, mas não para incentivá-los e
reavivá-los, pois sabia que, mesmo sem isso, já eram fortes
de espírito; ele queria simplesmente expressar o que tinha no
coração.
- Quero lhes dizer, senhores, o que é o nosso compa-
nheirismo. Vocês ouviram dos pais e avós a consideração que
todos tinham por nossa terra: ela mostrou aos gregos do que
era capaz e tomou ducados de Constantinopla; suas cidades
eram magníficas, e também os templos; e seus príncipes eram
russos de nascimento, e não infiéis católicos. Tudo foi toma-
do pelos muçulmanos, tudo se perdeu. Só restamos nós, ór-
fãos; e como a viúva que perdeu o marido vigoroso, está órfã
a nossa terra, tal como nós! Aí está, companheiros, cm que
época estendemos as mãos em fraternidade! É aí que está o
nosso companheirismo! Não há laços mais sagrados que os
do companheirismo! 0 pai ama seu filho, a mãe ama seu fi-
lho, e o filho ama o pai e a mãe. Mas não é a mesma coisa,
irmãos: também uma fera ama seu filho. Porém, estabelecer
parentesco pela alma, e não pelo sangue, é algo de que só o
homem é capaz. Em outras terras também havia companhei-
ros, mas não como na Terra Russa; 1á não existiram compa-
nheiros assim. Já aconteceu a muitos de vocês de se aventu-
rarem no exterior; e viram que lá também há gente! Também
são filhos de Deus, e vocês conversam com eles como se fos-
sem dos nossos; mas quando chegam a dizer uma palavra sin-
cera, vejam só: são pessoas sensíveis, mas não, não é a mes-
ma coisa; são pessoas também, mas não é a mesma coisa!
Não, irmãos; amar desse jeito, como a alma russa, é amar não
só com a razão ou com qualquer outra coísa, mas com tudo
que Deus ofereceu, com o que existe dentro de cada um! Ah...
- disse Tarás; depois agitou a mão, balançou a cabeça gri-
salha, mexeu o bigode e continuou. -Não, ninguém pode
amar assim! Sei que a infâmia já apareceu em nossa terra; há
os que pensam apenas em ter montes e montes de cereais,
120 Nikolai Gógol
irt)pasdecavalosehidromellacradoemsuasadegas.0dia-
lméquesabequaiscostumesmuçulmanoselesimitam;des-
•l..iiham sua língua, não querem falar com sua própria çente;
vc`ndem os da própria raça como se vendessem uma criatura
`c`m alma no mercado. Para qualquer um deles, a benevolên-
mdeumreiestrangeiro,queneméadeumrei,massimabe-
ncvolência miserável de um magnata polonês que lhes chuta
à` cara com suas botas amarelas, vale mais do que a fraterni-
dade. Mas até o último dos canalhas, ainda que tenha se em-
porcalhado na fuligem e na bajulação, mesmo esse, irmão:,
tem um grãozinho de sentimento russo. E um dia esse senti-
mento vai despertar, e então o desgraçado csmurrará o pró-
priopeito,agarraráacabeçaamaldiçoandosuavidainfame,pronto para redimir sua ação vergonhosa através de martí-
rios. Que todos eles saibam o que significa na Terra Russa o
companheirismo! E se £or para morrer, então que nenhum
deles possa morrer assim!... Nenhum, nenhum!... Sua natu-
reza dc rato não lhes permitirá isso!
Assim falou o atamã; e quando ele terminou o discurso,
aindacontinuoubalançandoacabeça,queficaraprateadaem
suas atividades cossacas. Aquele discurso atingiu a todos que
ali estavam, tocou no fundo, no próprio coração. Os mais
velhos nas fileiras permaneceram imóveis, com as cabeças
grisalhasvoltadasparaochão;umalágrimarolavaemsilên-
cio nos olhos envelhecidos, e eles a secaram lentamente com
a manga. Depois, como se tivessem combinado, agitaram as
mãos ao mesmo tempo e balançaram as cabeças veteranas.
Pelo visto, o velho Tarás os fize[a lembrar muito do que há
de melhor e conhecido no coração de um homem instruído
por infortúnios, trabalho, audácia e toda sorte de percalços
da vida, ou mesmo no daquele que não os conhecia, mas que
podia sentir tudo com sua alma jovem e pura, para eterna
alegria dos pais que o geraram.
No entanto, o exército inimigo já saía da cidade tocan-
do tambores e cornetas; saíam também os fidalgos, com as
121
Tarás Bulba
==n°pS==.CÀ£=tÀU=?._e_[°Pead°_S.Porlncontáveísserviçaisoco.ronel gordo dava ordens. Eles começaram a avançar contra
osacampamentoscossacos,ameaçando,apontandocanhões,
com os olhos faiscantes e brílhando em suas armaduras de
cobre.Logoqueoscossacosviramqueelesestavamaoalcan-
cedostiros,fizeramretumbaroscanhõesdesetepolegadas
deumasóvezecontínuaramdisparandosemdartrégua.Um
forteestrondosepropagoubemlonge,peloscamposetrigais
dasredondezas,místurando-senumroncosurdoeincessan-
te;ocampofoítomadopelafumaça,eoszaporogosatiravam
semcessar:osqueestavamatrásapenascarregavamasarmas
e p:s:av.am para quem estava na frente, causando assombro
no inimigo, que não conseguia entender como os cossacos
atiravamsemcarregarasespingardas.Portrásdaenormefu-
maça.quecobriaosdojsexércítosnãosevíamasbaixasque
ocoirm nas fileíras de um lado e de outro; mas os polacos
sentiam que as balas voavam em abundâncía e que a coisa
estavaficandoqueiite,equandorecuaramparaseafastarda
fumaçaeseorientar,£altavammuitosdelesemsuasfileíras.
Entreoscossacos,talvezdoisoutrêstinhamsídomortosem
cadaesquadrão.Econtínuavamatirandocomoscanhões,
semdarummínutodetrégua.0próprioengenheíroestran-
geiro ficou muito impressionado com aquela tátíca que )a-
maís tínha vísto, e disse: "Vejam que bravos zaporogos! É
assim que se deve lutar nas outras terrast Depoís aconse-
ü que vírassem os canhões para o acampamento. Os ca-
nhõesdeferrorugíramcomsuasbocaslargas;aterraestre-
meceu zunindo bem longe, e o campo foi tomado por uma
fumaçaduasvezesmaísdensa.Sentia-seocheírodepólvora
no meio das praças e ruas das cidades próxímas e dístantes.
Masosartílheirostinhamapontadomuitoparacima:asba-
lasíncandescentesdescreveramumacurvaaltademaís.Ede-
poisderugíremnoar,elaspassaramporsobreascabeçasde
todooacampamentoeafundaramnochão,bemlonge,ex-
plodindoejogandoterrapretaparacíma.0engenheirofran-
122
Níkolai Gógol
cês agarrou os cabelos ao ver tamanha falta de habilidade,
então ele mesmo foi apontar os canhões, sem ligar para o fa-
to de os cossacos continuarem a sua saraivada de balas sem
interrupção.
Tarás viu de longe que a desgraça ameaçava os batalhões
de Niezamáikov e Stiéblikiv, e então gritou com força: " Saiam
de trás das carroças, rápido, e montem nos cavalos!". Mas os
cossacos não teriam conseguido fazer nem uma coisa nem
outra, se Óstap não tivesse atacado bem pelo meio; ele arran-
cou os pavios de seis artilheiros e quase pegou os de outros
quatro, mas os polacos o repeliram. Enquanto isso, o próprio
capitão estrangeiro agarrou um pavio para disparar um ca-
nhão maior, que nenhum dos cossacos tinha visto até então.
0 canhão o[hava de modo terrível com sua boca enorme, e
dela espiavam centenas de mortes. E logo que ele troou, foi
seguido por outros três, fazendo a terra estremecer quatro
vezes numa resposta surda - e quanta desgraça eles trouxe-
ram! Haveria mais de uma velha mãe a chorar por um cossa-
co, batendo no peito decrépito com suas mãos ossudas. Ha-
veria mais de uma viúva em Glukhov, Nemirov, Tchernigov
e em outras cidades. As pobrezinhas haveriam de correr todo
dia até a feira, agarrando-se aos que passavam, examinando
bem a todos para ver se entre eles não estaria um que era o
mais amado. Mas muitas tropas cruzariam a cidade sem que
jamais no meio delas estivesse aquele ser amado.
Foi como se metade do batalhão de Niezamáikov não
tivesse existido! Como uma chuva de granizo derruba de repen-
te todo o trigal onde cada espiga brilhava semelhante a uma
pesada moeda de ouro, assim foram derrubados os cossacos.
Mas como os cossacos reagiram! Como se engalfinha-
ram! Como se enfureceu o atamã Kukubienko, ao ver que a
melhor parte de seu batalhão já não existia mais! Ele se en-
fiou bem no meio da batalha com o restante de seus homens.
Furioso, cortou em pedacinhos o primeiro que apareceu, der-
rubou muitos poloneses de suas montarias, varando com a
Tarás Bulba 123
lança tanto o cavaleíro quanto o cavalo, avançou contra os
artilheiros e destruiu um canhão. Então viu que logo adíante
estava lutando o atamã do batalhão de Úman, e que Stiepán
Guska j.á estava destruindo o canhão principal. Ele deíxou os
outros cossacos e virou-se com os seus para o centro das tro-
pas inimigas. Por onde passavam seus homens, era aberta
uma estrada; para onde se viravam, abriam uma víela! As fí-
leiras iam ficando ralas, e os polacos caíam em feíxes! Bem
perto das carroças estava Vovtuzienko, e à frente, Tcherievi-
tchenko; junto às carroças mais distantes estava Diogtíaríen-
ko, e atrás dele, o atamã Viertíkhvist. Diogtiarienko ergueu
dois polacos em sua lança, e em seguida atacou um terceíro,
bem robusto. Esse polaco era forte e ágil, usava um adorno
magníficoetraziaunscinquentacriados.0polonêsfezDiog-
tiarienko se curvar, i.ogou-o no chão e brandiu o sabi.e con-
tra ele, gritando:
- Entre vocês, cães cossacos, não há ninguém que se
atreva a me enfrentar!
-Pois há, sím! -disse Mossí Chílo, avançando. Chilo
era um cossaco forte, que mais de uma vez tínha sido atamã
em missões no mar e passara por todo tipo de desgraça. Certa
vez, os turcos capturaram os cossacos bem perto de Trebi-
zondaelevaramtodoscomocativosparaasgaleras;prende-
ram-nos com correntes nos pés e nas mãos, sem lhes dar co-
midadurantesemanasínteiraseobrigando-osabeberaágua
noi.enta do mar. Os pobres catívos suportaram tudo apenas
para não renegar a fé ortodoxa. Mas o atamã Mossi Chilo
não suportou: acabou pisando no sagrado mandamento, en-
rolousuacabeçapecadoracomumturbanteasqueroso,con-
quistou a confiança do paxá e tornou-se o carcereiro do na-
vio, sendo responsável por todos os prisioneiros. Os pobres
catívos ficaram bastante aflitos por causa disso, poís sabíam
que, se um dos seus trair a fé e se juntar ao opressor, então a
mão dele será mais pesada e dolorosa do que a de qualquer
outro ínfiel. E assim foi. Mossi Chilo pôs os cossacos em cor-
124
Nikolai Gógol
rentes novas, em filas de três; amarrava-os com tanta cruel-
dade que lhes cortava até os ossos brancos, e ainda lhes dava
pancadas na nuca. Um dia, felizes por terem conseguido um
criado como aquele, os turcos fizeram um banquete e se em-
briagaram, esquecendo-se de seu mandamento; então ele le-
vou todas as sessenta e quatro chaves e distribuiu aos cativos
para que se libertassem e jogassem as correntes e os grilhões
ao mar, e também para que pegassem os sabres e degolassem
os turcos. Os cossacos recolheram então um grande espólio
e retornaram gloriosos à pátria; e durante muito tempo os
bandurristas enalteceram Mossi Chilo. Teriam-no escolhido
para Áocbé!vó£., mas ele era um cossaco muito esquisito. Às
vezes realizava ações que nem o mais sábio dos homens po-
deria imaginar; outrasvezes era tomado pela doidice. Gastava
tudo com bebedeiras e farras, tinha dívidas com todos na Sié-
tch, e além disso, entregava-se ao roubo como um ladrão de
rua: certa noite, furtou os arreios cossacos de um outro ba-
talhão e os empenhou com um taverneiro. Por essa ação ver-
gonhosa, amarraram-no em um poste na feira e deixaram ao
lado um porrete, para que todos lhe desfechassem um golpe
tão forte quanto pudessem. Mas entre todos os zaporogos
não houve nenhum que levantasse o porrete contra ele, por
se lembrarem de seus méritos passados. Assim era o cossaco
Mossi Chilo.
-Existe, sim, alguém para combatê-lo, seu cachorro! -
disse ele, atirando-se conti.a o polonês. E como se atracaram!
As ombreiras e armaduras de ambos se dobravam, de tantos
golpes. 0 inimigo polaco cortou-lhe a cota de malha, che-
gando a tocar seu corpo com a lâmina. Mas Chilo não se im-
portou com isso; brandiu seu musculoso braço (e era pesado
aquele braço vigoroso) e deixou o adversário atordoado com
um golpe na cabeça. 0 elmo de cobre voou em pedaços; o
polaco cambaleou e desabou; mas Chilo ainda quis cortar e
esquartejar aquele homem caído. Cossaco, não acabe logo
com o inimigo; é melhor olhar para trás! Mas esse cossaco
Tarás Bulba 125
não olhou para trás, e então um dos críados do morto deu-
-lhe uma facada no pescoço. Chílo virou-se e quase atíngiu
aquele atrevido, mas ele desapareceu na fumaça de pólvora.
De todos os lados ressoou o estrondo de mosquetes. Chilo
cambaleouesentiuqueoferímentoeramortal.Elecaíu,pôs
a mão sobre o ferimento e disse, vírando-se para seus com-
panheiros: "Adeus, senhores írmãos, companheiros! Que a
RússiaOrtodoxaseperpetuçesejaeternaasuaglória!".Ele
semicerrou seus olhos debilitados, e a alma cossaca saiu da-
quele corpo rude. Logo adíante, Zadorójni prosseguia com
seus homens, o atamã Víertíkhvíst destruía as fileiras inimi-
gas e Balaban avançava.
-E então, senhores.) -dísse Tarás, dirigíndo aos ata-
mane§dosbatalhões.-Vocêsaindatêmpólvora.'Nossafor-
ça não está debílitada? Os cossacos não estão se curvando.)
-Ainda temos pólvora, paizinho. A força cossaca não
está debílitada; os cossacos não estão se curvando!
E os cossacos atacaram coin mais força: desarrumaram
completamente as fileíras inimigas. 0 coronel baixinho deu
um sinal e mandou erguer oito bandeíras manchadas, a fim
de reunir os homens espalhados por todo o campo. Os po-
lacos correram para as bandeiras, mas não consegujram se
alinhar,poíslogooatamãKukubíenkoinvestiudenovocom
seus guerreiros e avançou direto para o coronel barrigudo.
E:`t€:=.ã,p^su_p.=:tou,Tírouocav€L:e£=á;=.£::p=3Q=+a6su#Uu:kubienko .o perseguiu através do campo todo, sem permitír
queeleseiuntasseaoregimento.Aoverissodeumbatalhão
queestavanumflanco,StiepánGuskapartiuparainterceptá-
-1o,comumlaçonamãoeacabeçaínclinadapertodacrina
docavalo;aproveítandoomomento,elelaçouopescoçodo
polonês na primeira tentatíva. 0 coronel ficou todo verme-
lho,agarrandoacordacomambasasmãosetentandoque-
brá-1a; mas um movímento enérgíco enfiou-lhe uma lança
desastrosabemnoestômago.Ealificouele,cravadonochão.
Mas Guska também acabou maH Os cossacos não tíveram
126
Nikolai Gógol
nem tempo de piscar, e logo viram Stiepán Guska levantado
por quatro lanças. 0 infeliz conseguiu apenas dizer: "Que
morram todos os inimigos, e que a Terra Russa se rejubile
cternamente!".
Os cossacos olharam ao redor; e logo adiante, num flan-
co, Metiélitsia dava o troco nos polacos, golpeando uns e ou-
tros; em outro flanco, o atamã Nievilitchki avançava com
seus homens; perto das carroças, Zakrutigubá lutava e recha-
çava o inimigo; e ao lado das carroças mais distantes, um
terceiro, Pissarienko, afugentava uma tropa inteira. E mais
adiante, outros lutavam e se atracavam em cima das próprias
carroças.
-E então, senhores? -perguntou o atamã Tarás, pas-
sando à frente de todos. -Vocês ainda têm pólvora? Nos-
sa força continua vigorosa? Os cossacos ainda não estão se
curvando?
-Ainda temos pólvora, paizinho; nossa força continua
vigorosa e os cossacos ainda não estão se curvando!
Então Bovdiúg caiu de uma carroça. Uma bala o atingiu
diretamente no peito, mas o ve[ho reuniu toda sua força e
disse: "Não lamento abandonar este mundo. Que Deus con-
ceda um fim como esse a todos! Que a Terra Russa seja glo-
riosa até o fim dos séculos!". E a alma de Bovdiúg subiu às
a[turas, para contar aos velhos que já tinham partido há mui-
to tempo como eles sabiam morrer na Terra Russa e, o me-
lhor de tudo, como sabiam morrer nela pela fé sagrada.
Logo depois dele, o atamã Balaban também desabou no
chão. Ele sofreu três ferimentos mortais: de lança, de bala e
de uma espada pesada. Era um dos cossacos mais valentes;
realizou muitos feitos quando era atamã de expedições marí-
timas, porém a mais célebre de todas foi uma expedição à cos-
ta da Anatólia. Na ocasião, tinham juntado muitas moedas
de ouro, tecidos, valiosos objetos turcos e todo tipo de ador-
nos; mas sofreram um infortúnio no caminho de volta: os
pobrezinhos caíram sob os canhões turcos. Bastou um dispa-
Tarás Bulba 127
ro do navio, e metade dos barcos rodopiou e virou, e muitos
deles ficaram cheios de água; porém os juncos presos às bor-
das evítaram que afundassem. Balaban se afastou com rema-
das fortes, seguindo na direção do sol, a fim de não ser visto
pelo navio turco. Os cossacos passaram a noite retirando a
água com caldeirões e gorros e remendando os lugares per-
furados; depois fizeram ve[as de suas calças e fugiram apres-
sados do navio turco, que era muito veloz. E não bastasse te-
rem chegado sãos e salvos à Siétch, ainda trouxeram uma ca-
sula com adornos de ouro para o arquimandrita do mosteiro
de Mejígórie, em Kíev, e um ornamento de prata para a igre-
ja da lntercessão de Nossa Senhora, que ficava em Zaporójie.
Agora, Balaban tinha inclinado a cabeça, sentindo os tormen-
tos que antecedem a morte, e disse baixinho: "Eu me rendo,
senhores irmãos, padecendo uma boa morte: matei sete com
a espada e furei outros nove com a lança. Esmaguei muitos
com meu cavalo; mas não vou me lembrar de quantos acer-
tei com balas. Que a Terra Russa floresça eternamente!". E
sua alma partiu.
Cossacos, cossacos! Não entreguem a fina flor do seu
exército! Kukubienko já estava cercado; restavam apenas se-
te homens do batalhão de Niezamáikov, que se defendiam a
muito custo, com as roupas cobertas de sangue. Ao ver aquela
desgraça, o próprio Tarás partíu em seu socorro. Mas os cos-
sacos chegaram tarde: uma lança foi cravada em seu coração
antes que fossem afugentados os inimigos que o cercavam.
Ele tombou silenciosamente nos braços de seus comandados;
o sangue jovem escorreu em torrentes, semelhante a um vinho
caro trazido da adega por criados descuidados, que escorre-
gam na estrada e quebram a valiosa garrafa: o vinho todo se
derrama no chão, e o patrão que chega correndo se desespe-
ra, pois o tinha guardado para a melhor ocasião de sua vida,
para que, se Deus lhe concedesse encontrar na velhice um
companheiro de juventude, pudesse recordar com ele os tem-
pos idos, quando o homem se divertia mais e melhor... Kuku-
128 Nkolai Gógol
bienko passou os olhos em redor e exclamou: "Agradeço a
Deuspormedeixarmorrerperanteosseusolhos,companhei-
ros! Que depois de nós se possa viver ainda melhor, e que a
Terra Russa, amada por Cristo, brilhe etemamente!". E sua
iovem alma partiu. Os anjos a tomaram nos braços e a leva-
ram às alturas. Lá ele ficará bem. "Sente-se à minha direita,
Kukubíenko!" -dirá Jesus Cristo -"Você não traiu seus
companheiros, não fez nada desonesto, não abandonou o seu
próximo na desgraça, guardou e protegeu a minha igreja". A
morte de Kukubienko entristeceu a todos. As fileiras cossa-
cas iá estavam bastante ralas, faltavam muitos e muitos bra-
vos, mas ainda continuavam firmes.
-E então, senhores? -perguntou Tarás aos batalhões
restantes. -Vocês ainda têmpólvora? Os sabres ainda estão
afiados? Nossa força não diminuiu? Os cossacos não estão
cedendo?
-A pólvora ainda é suficiente, paizinho! Os sabres ain-
da estão bons! Nossa força não diminuiu! Os cossacos não
estão cedendo!
E eles avançaram novamente, como se não tivessem so-
frído nenhuma baixa. Restavam somente três atamanes ain-
da vivos. Jorravam rios vermelhos por toda parte; formavam-
-se pontes altas com corpos de cossacos e de inimigos. Tarás
olhou para o céu; lá já tinha se formado um bando de abu-
tres. Bem, alguém vai lucrar com tudo isso! Então Metiélitsia
foi erguido numa lança. A cabeça do outro Pissarienko rodo-
piou e cerrou os olhos. Okhrim Guska caiu dilacerado no
chão. "Agora!" -disse Tarás, e acenou com um lenço. Ós-
tap entendeu aquele sinal e saiu da tocaia, investindo violen-
tamente contra a cavalaria. Os polacos não suportaram ta-
manha pressão, e Óstap os perseguiu até o lugar onde havia
estacas e pedaços de lanças fincados na terra. Os cavalos co-
meçaram a tropeçar e cair, e os polacos voaram por cima da
cabeça dos animais. Nesse momento, os homens do batalhão
de Korsun, que eram os últimos por trás das carroças, viram
Tarás Bulba
129
os inimigos ao alcance dos tiros e dispararam seus mosquetes.
Os poloneses ficaram perdidos, desnorteados, ao passo que
os cossacos se animaram. "A vitória é nossa!" -ressoaram
de todos os lados as vozes dos zaporogos, que tocavam cor-
netas e hasteavam a bandeira da vitória. Os polacos derrota-
dos corriam e se escondiam em qualquer lugar. "Não, esta
ainda não é a vitória definitiva! " -disse Tarás, olhando pa-
ra os portões da cidade; e era verdade o que dizia.
Os portões se abriram, e de lá saiu um regimento de hus-
sardos, a fina flor de todos os regimentos de cavalaria. Os ca-
valeiros montavam alazões, muito parecidos entre si. À fren-
te vinha um paladino, mais animado e mais belo do que to-
dos. Os cabelos negros voavam sob o elmo de cobre; em seu
braço ondulava uma va[iosa echarpe, bordada pelas mãos da
mais bela moça da cidade. Tarás ficou pasmo quando perce-
beu que era Andríi. Mas este, tomado pelo Ímpeto e pelo ca-
lor da batalha, ávido por merecer o presente atado a seu bra-
ço, avançava como um jovem cão galgo, o mais belo, mais
veloz e mais vigoroso de todos no bando. Basta que um ex-
periente caçador o atice, e ele avança com as pernas jogadas
no ar em linha reta e o corpo inclinado, revolvendo a neve e
ultrapassando dez vezes a própria lebre no ardor de sua cor-
rida. 0 velho Tarás deteve-se e ficou olhando como ele lim-
pava o caminho à sua frente, destruindo, massacrando e des-
fechando golpes à direita e à esquerda. Tarás não suportou e
gritou: "Como?... Contra os seus?... Filho do Cão, você está
lutando contra os seus?...". Mas Andríi não reconhecia quem
estava à sua frente, se eram os seus ou se eram outros; ele não
via nada. Madeixas e mais madeixas: era só isso que ele via;
só madeixas bem compridas, um peito alvo como um cisne no
lago, um pescoço branco, uns ombros e tudo mais que havia
sido criado para os beijos apaixonados.
"Ei, rapazes! Atraiam-no sozinho para o bosque, atraiam-
-no sozinho! " -gritou Tarás. Imediatamente, os trinta cos-
sacos mais velozes se ofereceram para atraí-lo. Depois de cor-
130 Nikolai Gógol
rigirem os gorros altos, eles avançaram em seus cavalos cor-
tando o caminho dos hussardos. Invcstiram contra o f[anco
dos que estavam na frente, confundiram-nos, fizeram-nos se-
parar-se dos demais atacando uns e outros; Golokopitienko
deu uma pancada nas costas de Andríi, e no mesmo instante
todos fugiram dali o mais rápido possível. Como Andríi se en-
fureceu! Como seu sangue jovem começou a ferver nas veias!
Dando um golpe no cavalo com as esporas afiadas, ele par-
tiu velozmente atrás dos cossacos, sem olhar para trás e sem
perceber que apenas vinte homens tinham conseguido acom-
panhá-1o. Os cossacos iam a toda velocidade em seus cava-
los e viraram diretamente para o bosque. Andríi embalou e
já estava quase alcançando Golokopitienko, quando de re-
pente a mão poderosa de alguém segurou a rédea de seu ca-
valo. Andríi virou-se: diante dele estava Tarás! Seu corpo es-
tremeceu, e ele ficou pálido.
Um aluno que machuca outro sem querer, e recebe des-
te último uma reguada na face por causa disso, fica ardendo
como fogo e salta enfurecido da carteira para perseguir o seu
colega assustado, pronto para fazê-lo em pedaços; mas de
repente ele esbarra no professor que entrava na classe: num
instante o ímpeto de fúria se abranda e a raiva impotente di-
minui. Da mesma forma, a ira de Andríi desapareceu como
se nunca tivesse existido. Agora, ele via diante de si apenas o
seu terrível pai.
-Bem, o que vamos fazer agora? -disse Tarás, olhan-
do-o bem nos olhos.
Mas Andríi não sabia o que dizer, e ficou imóvel, de olhos
voltados para o chão.
-E então, filho, seus polacos o ajudaram?
Andríi permanecia calado.
-Então você traiu? Traiu a fé? Traiu os seus? Vamos,
desça do cavalo!
Docilmente como uma criança, ele desceu do cavalo e
ficou na frente de Tarás, mais morto do que vivo.
Tarás Bulba 131
-Fique aqui e não se mova! Fui eu que o gerei, e sou
eu quem vai matá-lo! -disse Tarás; em seguida recuou um
passo e tirou a espingarda do ombro.
Andríi estava pálido como uma tela; notava-se que seu
bigode se movia em silêncio e que ele pronunciava o nome de
alguém, mas não era o nome da pátria, da mãe ou dos irmãos
-era o nome da bela polaca. Tarás atirou.
Como uma espiga de trigo cortada pela foice, como um
carneirinho que sentiu no coração a lâmina mortal, assim ele
inclinou a cabeça e desabou sobre a relva, sem ter dito uma
palavra.
0 fi[icida permaneceu [ongo tempo olhando para aque-
le corpo inanimado. Mesmo morto, ele ainda era belo: seu
rosto enérgico, até pouco tempo cheio de força e de encanto
irresistível para a§ mulheres, ainda expressava uma beleza
original; as sobrancelhas negras como veludo fúnebre acen-
tuavam suas feições pálidas.
-0 que faltava para ser um cossaco? -disse Tarás. -
Era alto, de sobrancelhas negras, rosto de fidalgo e braço for-
te na batalha! E caiu sem glória, como um cão miserável!
-Paizinho, o que você fez? Foi você que o matou? -
disse Óstap, que chegava naquele momento.
Tarás confirmou com a cabeça.
Óstap olhou fixamente para os o[hos do morto. Teve
pena do irmão, e exclamou:
-Vamos sepultá-lo de forma digna, paizinho, para que
os inimigos não possam ultrajá-lo e nem as aves carniceiras
o devorem.
-Eles que o enterrem! -disse Tarás. -Não faltará
quem chore e se lamente por ele!
Bulba ficou pensando durante alguns minutos se devia
abandoná-lo à voracidade dos lobos ou reverenciar sua cora-
gem de cavaleiro, a qual um bravo deve respeitar em quem
quer que seja. Então ele percebeu Golokopitienko vindo a ga-
lope em sua direção:
132 Nikolai Gógol
-Uma desgraça, atamã! Os polacos ganharam refor-
ços; chegaram novas forças para ajudá-los!...
GolokopitienkonemacaboudefalareVovtuzienkoche-
gou a galope:
-Uma desgraça, atamã! As novas forças estão vindo
em bandos!...
Vovtuzienko nem conseguiu terminar e Pissarienko che-
gou correndo, sem cavalo:
-Onde você estava, paizinho? Os cossacos estão à sua
procura. Os atamanes Nievilitchki, Zadórojni e Tcherievi-
tchenko iá estão mortos. Mas os cossacos continuam de pé,
nãoqueremmori.ersemvê-1o;queremquevocêolheparaeles
quando estiverem morrendo.
-A cavalo, Óstap! -disse Tarás, e saiu apressado para
encontrar os cossacos, a fim de olhá-1os e também permitir
que, na hora da morte, pudessem ver o seu atamã.
Mas nem chegaram a sair do bosque; as forças inimigas
já haviam cercado por todos os lados, e entre as árvores apa-
receram cavaleiros com sabres e lanças. "Óstap! ... Coragem,
Óstap!..." -gritava Tarás, e ele próprio desembainhou o
àae[:sei::a::çmo-useadaetar:àre:tsepcr::teri:oósqt:s;aiaarse,c;:iom;,::às'
atacaram na hora errada: a cabeça de um saiu voando; outro
deu meia-volta e recuou; o terceirofoi atíngido na costela por
uma lança; o quarto era mais ágil e desviou a cabeça de um
tiro, mas a bala atingiu o peito do cavalo, e o animal furioso
empinou, desabou no chão e esmagou o cavaleiro. "Muito
bem, filho! ... Muito bem, Óstap!..." -gritou Tarás. -"Es-
tou logo atrás de você!..." E continuava rechaçando os que
atacavam. Tarás lutava, desfechava golpes de sabre, atingia
a cabeça de uns e de outros, mas não deixava de olhar para
Óstap à sua frente; e viu que agora ele enfrentava oito de uma
sÓ vez. "Óstap!... Óstap, não se entregue!..." Mas Óstap foi
vencido; jogaram um laço em seu pescoço, amarraram-no e
o levaram. "Óstap, Óstap!..." -gritava Tarás, abrindo ca-
Tarás Bulba
133
minho na direção do filho e ceifando todos qiie encontrava.
-"Óstap, Óstap!..." Mas naquele exato momento foi atingi-
do por uma pedrada. Tudo à sua frente começou a girar e gi-
rar. Por um segundo, de maneira muito confusa, apareceram
diante de seus olhos cabeças, lanças, fumaça, brilho de dispa-
ros e ramos com folhas de árvores. Ele desabou no chão co-
mo um carvalho cortado. E um nevoeiro cobriu seus olhos.
134 Nikolai Gógol
-Eu dormi demais! -disse Tarás, despertando como
se fosse de uma forte ressaca e tentando reconhecer os obje-
tos que o rodeavam. Uma fraqueza terrível se apoderava de
seus membros. As paredes e os cantos de uma sala desconhe-
cida praticamente se moviam diante dele. Por fim percebeu
que à sua frente estava sentado Tóvkatch, que parecia escutar
atentamente a sua respiração.
"Sim" -pensou Tóvkatch consigo mesmo -, "quase
que você adormece para sempre!" Mas não disse nada e fez
um sinal com o dedo para que ficasse calado.
-Mas, diga-me, onde estou? -perguntou Tarás, for-
çando a memória para tentar lembrar o que tinha acontecido.
-Cale-se! -gritou seu companheiro em tom severo. -
0 que mais você quer saber? Não vê que está todo cortado?
Já faz duas semanas que estamos cavalgando sem descanso,
e você delirando, com febre e dizendo tolices. Esta foi a pri-
meira vez que dormiu tranquilo. Cale-se, se não quiser fazer
o maL a si mesmo.
Mas Tarás continuava tentando organizar seus pensa-
mentos e lembrar o que tinh<acontecido.
-Mas eu não fui cercado e agarrado pelos polacos? Eu
não tinha nenhuma chance de escapar daquele bando, não é?
-Cale-se, já disse, filho do Cão! -gritou Tóvkatch,
irritado como a ama que perdeu a paciência com uma crian-
ça levada. -0 que adianta saber como escapou? 0 impor-
tante é que escapou. Apareceram pessoas que não o traíram
Ta[ás Bulba 135
-e é só isso! Ainda temos muitas noites para cavalgarmos
juntos.Vocêachaquepassouporumcossacoqualquer?Não,
ofereceram doís mil ducados por sua cabeça.
-E Óstap? -gritou Tarás, esforçando-se para se er-
guer um pouco mais, e de repente lembrou que Óstap fora
preso e amarrado diante de seus olhos e que agora estava nas
mãos dos polacos.
E a angústía tomou conta daquela cabeça velha. Ele ras-
gou e arrancou todos os curativos de seus ferimentos, atirou-
-os longe, quería dízer algo bem alto, mas em vez disso pro-
nunciou apenas tolices; a febre e o delírio se apoderaram dele
novamente, e ressoaram palavras desconexas e sem sentído.
Enquanto isso, seu fiel companheiro permanecia à sua
frente, xingando e descarregando um sem-número de censu-
ras e palavras víolentas. Por fím ele o agarrou pelas pernas e
braços, enfaixou-o como se fosse uma criança, arrumou os
curativos, enrolou-o numa pele de boi, amarrou numa tala e,
depois de prendê-lo à sela com uma corda, continuou o ca-
minho a galope outra vez.
-Nem que seja morto, hei de levá-lo! Não vou permi-
tír que os polacos zombem de sua linhagem cossaca, cortan-
do seu corpo em pedaços para depois jogá-lo na água. E se
seus olhos tiverem de ser arrancados, que seja por uma águia
da nossa estepe, e não da polaca, não uma que tenha voado
das terras polonesas. Nem que seja morto, hei de levar você
até a Ucrânia!
Assim falava o companheíro fiel. Ele cavalgou días e noi-
tessemdescansoeolevouinconscienteàSiétchdeZaporói.ie.
Alicomeçouatratá-1oincansavelmentecomervasecompres-
sas; encontrou uma sábia j.udia que preparou diferentes remé-
dios durante um mês; e afinal Tarás fícou melhor. Fossem os
medicamentos ou seu vigor férreo, o fato é que dentro de um
mês e meio ele estava de pé; as feridas tinham se fechado, e
apenas umas cicatrízes de sabre revelavam que um día o velho
cossaco havía sofrído cortes profundos. Todavia, ele estava
136 Nikolai Gógol
visivelmente sombrio e abatido. Três rugas profundas crava-
ram-se em sua testa e nunca mais saíram dali. Ele olhou ao
redor: tudo era novo na Siétch, e todos os velhos companhei-
ros tinham morrido. Não havia mais nenhum daqueles que de-
fendiam a justiça, a fé e a fraternidade. Também aqueles que
partiram com o kocbé7#óí. atrás dos tártaros já tinham desa-
parecido há tempos: todos perderam a vida, todos pereccram:
uns caíram gloriosamente em combate; outros morreram de
sede e de fome no meio das salinas da Crimeía, e outros por
não suportarem a vergonha do cativeiro; o próprio kocbevó;'
também já havia deixado este mundo, assim como todos os
seus velhos companheiros; e aquilo que fora um dia a ardo-
rosa força cossaca estava agora coberta de mato. A sensação
era a de qiie tinha havido um banquete, um grande e ruidoso
banquete; e agora a louça estava toda em pedaços, não restava
uma só gota de vinho em lugar nenhum e as taças valiosas e
outros recipientes haviam sido dilapidados por convidados e
criados, enquanto o dono da casa, aflito, pensava: "Antes não
tivesse havido banquete! " . Em vão tentavam entreter e animar
Tarás; em vão os bandurristas barbudos e grisalhos, que pas-
savam em duplas ou trios, divulgavam as façanhas daquele
cossaco. Ele olhava tudo de forma severa e indiferente, em seu
rosto imóvel transparecia uma amargura inextinguível, e ca-
bisbaixo, ficava murmurando: "Meu filho! Meu Óstap!".
Os zaporogos se prepararam para uma expedição marí-
tima. Duzentos barcos foram lançados no Dniepr, e então a
Ásia Menor viu os cossacos de cabeças raspadas e topetes
longos passarem seu próspero litoral a ferro e fogo; viu os
turbantes de seus moradores maometanos espalhados como
suas inúmeras flores pelos campos ensanguentados ou boian-
do perto da costa. Viu muitas bombachas de zaporogos man-
chadas de breu, muitos braços musculosos com veias negras.
Os zaporogos devoraram as uvas e destruíram todas as videi-
ras, deixaram montes de estrume nas mesquitas e usaram os
valiosos xales da Pérsia como cinturão, passando-os em volta
Tarás Bulba 137
de seus cafetãs manchados. Muito tempo depois disso, ainda
se encontravam cachimbos cossacos naqueles lugares. Quan-
do retornavam alegremente, foram perseguidos por um navio
turco com dez canhões; uma descarga simultânea dessas ar-
mas dispersou as frágeis embarcações cossacas como aves.
Um terço delas foi para o fundo do mar, porém as outras se
reuniram de novo e chegaram à foz do Dniepr com uma dú-
zia de barris cheios de moedas de ouro. No entanto, nada
disso animava Tarás. Ele saía para os prados e estepes como
se fosse caçar, mas sua munição permanecia intacta. Então
largava a espingarda e sentava-se na beira do mar, cheio de
tristeza. Ali permanecia por longo tempo, cabisbaixo, e sem-
pre dizendo: "Meu Óstap! Meu Óstap!". À sua frente se es-
tendia o brilhante Mar Negro; uma gaivota gritava num ca-
navial distante; seu bigode branco tornava-se prateado, e as
lágrimas escorriam uma atrás da outra.
E finalmente Tarás não suportou mais. "Aconteça o que
acontecer, eu vou descobrir o que houve com ele. Estará vivo?
Sepultado? Ou nem sepultura ele teve? Custe o que custar, eu
vou descobrir!" Uma semana depois, Tarás apareceu na ci-
dade de Úman; ele estava armado, a cavalo, com lança, sabre,
cantil de viagem na sela, potes de campanha com farinha de
aveia, cartuchos de pólvora, correias para montaria e outros
equipamentos. Ele foi direto para uma casinha suja e mancha-
da, quetinha janelas pequenas, quase invisíveis e enegrecidas
por alguma coisa; a chaminé estava tapada com um trapo, e
o telhado esburacado coberto de pardais. Havia um monte de
lixo bem na frente da porta. Na janela apareceu a cabeça de
uma judia, que usava uma touca com pérolas negras.
-Seu marido está? -disse Bulba, desc.endo do cavalo
e prendendo a rédea num gancho de ferro que ficava próxi-
mo à porta.
-Está -disse a judia, que saiu imediatamente com
uma tigela de trigo para o cavalo e um copo de cerveja para
o cavaleiro.
138 Nikolai Gógol
- Onde está ele?
-Está na outra sala, rezando -exclamou a judia, fa-
zendo uma saudação e desejando saúde no momento em que
Bulba levou o copo aos lábios.
-Fique aqui e dê água e comida ao meu cavalo; eu vou
conversar com ele sozinho. Tenho um negócio a propor.
Esse judeu era o conhecido lánkel. E[e já tinha se tor-
nado arrendatário e estalajadeiro; pouco a pouco, estendera
suas garras sobre todos os proprietários e fidalgos po[oneses
dos arredores, sugando completamente o dinheiro deles e dei-
xando sua forte marca judaica naquele país. Num raio de três
milhas, não restava nenhuma isbá inteira: tudo estava desa-
bando e se deteriorando, tudo era consumido na bebida, res-
tando apenas miséria e farrapos; como depois de um incên-
dio ou de uma peste, a região inteira tinha desaparecido. E se
lánkel tivesse permanecido ali por mais dez anos, certamen-
te teria feito desaparecer aquele território todo. Tarás entrou
na sala. 0 judeu estava rezando, coberto por um sudário bas-
tante sujo, e virou-se para cuspir pela última vez, seguindo um
costume de sua fé; então, de repente seus olhos encontraram
Tarás, que estava de pé atrás dele. Aos olhos de lánkel, an-
tes de mais nada, apareceram os dois mil ducados oferecidos
pela cabeça do cossaco; mas ele se envergonhou de sua ganân-
cia e se esforçou para reprimir aquela ideia fixa de riqueza
que, como um verme, corrói a alma do judeu.
-Ouça, Iánkel! -disse Tarás ao judeu, que o saudou
com uma reverência e trancou a porta cuidadosamente para
que não os vissem. - Eu salvei a sua vida; os zaporogos o
teriam feito em pedaços como um cachorro. Agora é sua vez;
agora me faça um favor!
0 rosto do judeu ficou meio franzido.
-Quefavor?SeforalgoqueeupossaÍazer,porquenão?
-Não diga nada. Leve-me a Varsóvia.
-A Varsóvia? Como a Varsóvia? -disse lánkel, erguen-
do as sobrancelhas e os ombros de espanto.
Tarás Bulba 139
-Não me diga nada. Leve-me a Varsóvia. Aconteça o
que acontecer, eu quero vê-lo mais uma vez e lhe dizer ao
menos uma palavra.
--Dizer uma palavra a quem?
- A ele, a Óstap, o meu filho.
-Mas o senhor não soube que...
-Sei, sei de tudo: ofereceram dois mil ducados por mi-
nha cabeça. Aqueles idiotas sabem o quanto ela vale! Eu lhe
dareí cinco mil ducados. Tome, aquí estão doís mil - Bulba
despej'ou dois mil ducados de uma bolsa de couro. - Darei
o restante assim que eu voltar.
0 judeu agarrou logo uma toalha e cobriu os ducados
com ela.
-Ai, que moeda maravilhosa! Ai, que moeda boa! -
dizia ele, girando um ducado entre os dedos e mordendo-o.
- Eu acho que o homem de quem o senhor tirou estes du-
cados não sobreviveu nem uma hora: deve ter ido imediata-
mente até o rio e se atirou lá dentro.
-Eu não queria lhe pedir isso. Talvez eu mesmo pudes-
se encontrar o caminho para Varsóvia, mas os malditos po-
lacos poderiam me reconhecer de algum modo e me prender,
pois não tenho muita criatividade. Mas vocês, judeus, nasce-
ram para isso. Vocês enganam até o diabo, conhecem todo
tipo de truques; foi por isso que vim até aqui! Além disso, so-
zinho eu não conseguiria nada em Varsóvia. Agora atrele a
carroça e me leve para lá!
- 0 senhor está pensando que é só pegar a égua, o en-
gate e dizer: "Eía, vamos lá, rucilha!". Acha que é possível
levar o senhor assim, sem tê-lo escondido?
- Bem, então me esconda como quiser. Que tal num
barril vazio?
-Ai, ai! 0 senhor acha mesmo que é possível escondê-
-lo num barril? 0 senhor não sabe que qualquer um vai pen-
sar que o barril tem aguardente?
- Ora, deixe que pensem.
140 Nikolai Gógol
-Como? Deixar que pensem que é aguardente? -dis-
se o judeu, que agarrou os cabelos e depois jogou as mãos
para o alto.
- Ora, por que ficou tão espantado?
-0 senhor não sabe que Deus criou a aguardente para
quetodomundoexperímentasse?Alisãotodosgulosos,glu-
tões: um fidalgo polaco correria umas cinco verstas atrás do
barril, faria um buraquinho e vei.ia logo que dali não escorre
nada; e então diria: "Um judeu não carregaria um barril va-
zio; há alguma coisa ali, sem dúvida. Agarrem o judeu, pren-
dam o judeu, peguem todo o dinheiro do judeu, coloquem Ç
judeunacadeia!".Poistudoqueacontecederuimsemprecai
em cima do iudeu; todo iudeu é tomado por um cachorro;
todo mundo pensa que, se é judeu, então não é gent.e.
-Bem, então me coloque numa carroça de peixes!
-Não pode ser, senhor, juro por Deus que não pode
ser. Agora, em toda a Polônia, as pessoas estão famintas co-
mo cães: vão roubar o peixe e descobrir o senhor.
-- Então me leve em cima do diabo, mas me leve!
-Escute, escute, senhor! -disse o judeu, arregaçando
as mangas e aproximando-se de Bulba com os braços aber-
tos.-Eisoquefaremos.Agoraestãoconstruindofoi.talezas
e castelos em todo lugar; da Alemanha chegaram engenhei-
ros franceses, e por isso estão carregando muitas pedras e ti-
iolospelasestradas.0senhorsedeitaránofundodeumacar-
roça,eeucolocareitijolosporcima.0senhoréforteesaudá-
vel, então não faz mal se a carga ficar um pouco pesada; eu
farei um buraquinho embaixo da carroça para alimentá-lo.
-Faça o que quiser, mas me leve!
Uma hora depois, a carroça com tiiolos saiu de Úman
atrelada a dois cavalos magros. 0 comprido lánkel montava
um deles; suas madeixas longas e encaracoladas balançavam
embaixo do solidéu judaico à medida que ele, alto como um
poste colocado na estrada, sacolejava em cima do cavalo.
Tarás Bulba
141
Na época em que sucederam os acontecimentos aqui
contados, nas fronteiras ainda não havia fiscais e guardas, o
tei.rordosempreendedores,porissoqualquerumpodiatrans-
portaroquelhedessenatelha.Sealguémfaziaumabusca
ouumarevista,istosedava,emlargamedida,parasuapró-
priasatisfação,principalmentesenacarroçahouvesseobie-
tos atraentes e se ele tivesse poder e força para isso. Mas os
tijolosnãotinhampretendentesechegaramsemnenhumobs-
táculoatéosportõesprincipaisdacidade.Emsuaiaulaa?er-
tada,Bulbasóconseguiaouvirbarulho,gritosdecarroceiros
emaisnada.Saltitandoemseutrotadorpequenoecobertode
poeira,Iánkeldeualgumasvoltasevirouparaumaruaescura
eestreita,queerachamadadeRuaSujaouRuadosJudeus
poisalirealmenteencontravam-seosiudeusdequasetoda
Varsóvia. Essa rua era extraordinariamente parecida com o
interiordeumpátiodosfundos.Pareciaqueosolnuncache-
gavaali.Ascasasdemadeirapreteiadas,comjanelascheias
devarasestendidas,aumentavamaindamaisaescuridão.De
vezemquandoseavermelhavaentreelasummurodetijolos,
mas, em muitos lugares, também este ficava completamente
negro.Àsvezes,apenasoaltodealgumpedaçorebocadodo
muroeratocadopelosol,eentãobrilhavacomumabrancura
queencandeavaosolhos.Tudoalieramuitogrosseiro:tubos,
trapos,cascasdefrutasetinasquebradas.Qualquercoisaque
não prestava era jogada na rua, deixando aos transeuntes o
prazerdeexperimentartodotipodesentimentosporaquele
143
Ta[ás Bulba
monturo. Um cavaleiro em sua montaria quase alcançava
com a mão as varas estendidas por cima da rua, entre as ca-
sas, e que serviam para pendurar meias judaicas, calças cur-
tas e até ganso defumado. Às vezes, aparecia numa janela
decrépita a carinha bem bonita de uma judia, adornada por
uT colar de contas escuras. Um bando de crianças judias,
sujas, maltrapilhas e de cabelos encaracolados, gritava e ro-
lava na imundície. Um judeu ruívo, com o rosto cheio de sar-
das que o fazíam parecer um ovo de pardal, espiou de uma
janela e começou a falar com lánkel na sua língua indecífrá-
vel. Iánkel entrou num pátio.Pela rua passava um outro ju-
deu, que parou e também entrou na conversa; quando Bulba
finalmente saiu debaixo dos tii.olos, ele viu três iudeus conver-
sando acaloradamente.
Iánkel virou-se para Tarás e disse que tudo seria feito,
que seu Óstap estava numa prísão da cidade e que, embora
fosse difícíl persuadir os guardas, ele daria um jeito de con-
seguir uma visita.
Bulba entrou numa casa com os três i.udeus.
Os i.udeus começaram outra vez a conversar entre si na-
quela língua incompreensível. Tarás olhou para cada um de-
les. Parecia que algo o deíxara muito comovido: em seu ros-
to rude e índiferente inflamou-se a chama demolidora da es-
perança, aquela esperança que às vezes visita uma pessoa
no último grau do desespero, e seu velho coração começou a
bater como se fosse o de iim jovem.
-Escutem, i.udeus! -disse ele, e em suas palavras ha-
via alguma coisa exaltada. -Vocês são capazes de fazer tudo
neste mundo, mesmo que tenham de escavar o fundo do mar;
um antígo provérbio já diz que, se um judeu quiser roubar,
ele roubará até a si mesmo. Libertem meu filho Óstap! Per-
mitam que ele escape das mãos do díabo. Eu já prometi doze
mil ducados a este homem; pois vou acrescentar mais doze.
Venderei tudo que tenho -taças valiosas, o ouro enterrado,
a casa e até a última peça de roupa - e fírmarei um contra-
144 Nikolai Gógol
to vitalício, pelo qual tudo que eu conseguir numa guerra se-
rá dividido com vocês.
-Oh, é impossível, caro senhor, é impossível! -disse
lánkel, num suspiro.
-Não, é impossível! -disse outro judeu.
Os três iudeus o[haram uns para os outros.
-E se tentássemos? -disse o tei.ceiro, olhando timi-
damente para os outros dois. - Talvez, Deus permita.
Os três judeus começaram a falar em alemão. Embora
Bulba tivesse apurado o ouvido, não conseguia compreender
coisa alguma; ele entendeu apenas a i)alavra "Mardoqueu",
que era sempre repetida, e mais nada.
-Escute, senhor! -disse lánkel. -Precisamos do con-
selho de um homem sem igual neste mundo. Ui, ui! É tão sál
bio quanto Sa[omão, e se ele não puder fazer uma coisa, en-
tão ninguém no mundo pode! Fique aqui, tome a chave, e não
deixe ninguém entrar!
Os judeus saíram para a rua.
Tarás trancou a porta e, através de uma janelinha, es-
piou aquela avenida iudaica imunda. Os três judeus pararam
no meio da rua e começaram a conversar de maneira acalo-
rada;aelesiuntou-seumquarto,eafinal,umquinto.Eleou-
viu repetirem outra vez: "Mardoqueu, Mardoqueu". Os ju-
deus olhavam constantemente para um lado da rua; por fim,
umapernausandosapatojudaicosaiudetrásdeumacasade-
ploráveleapareceramasabasdeumcafetãcurto."Ah,Mar-
doqueu, Mardoqueu!" -gritaram os judeus a uma só voz.
Umjudeumagro,umpoucomaisaltoquelánkel,porémmui-
to mais enrugado, com o lábio superior enorme, aproximou-
-sedaquelegrupoimpaciente;todosseapressaramalhecon-
tar o que se passava, interrompendo uns aos outros, enqu.anto
Mardoqueu olhava de vez em quando para a pequena iane-
la; então Tarás adivinhou que a conversa era sobre ele. Mar-
doqueu agitava os braços, ouvia, interrompia a conversa, cus-
pia de lado a todo instante e, arregaçando as abas do cafetã
Tarás Bulba
145
cui-to, enfiou a mão no bolso e tirou algumas bugigangas,
mostrando ainda suas calças esfarrapadas. Por fim, fizeram
tanta balbúrdia que um deles, que estava vigiando, teve de
fazer um sinal de silêncio; Tarás começou a temer por sua se-
gurança, mas depois se acalmou, ao lembrar-se de que os ju-
deus não podem discutir senão na rua, e que nem mesmo o
demônio entende a língua deles.
Passados uns dois minutos, os judeus entraram juntos na
casa. Mardoqueu aproximou-se de Tarás, deu um tapinha em
suas costas e disse: "Quando Deus e nós queremos fazer algo,
tudo dá certo".
Tarás olhou para aquele Salomão sem igual neste mun-
do e obteve alguma esperança. De fato, sua aparência podia
incutir alguma confiança: seu lábio superior era simplesmen-
te monstruoso; a espessura dele, sem dúvida, fora aumenta-
da por razões desconhecidas. Na barba daquele Salomão ha-
via apenas quinze fios, e todos do lado esquerdo. Seu rosto
tinha tantas marcas de surras recebidas por causa de sua au-
dácia que, certamente, ele perdera a conta e passou a consi-
derá-las como sinais de nascença.
Mardoqueu saiu junto com os companheiros cheios de
admiração por sua sabedoria. Bulba ficou sozinho. Ele esta-
va numa condição estranha, incomum: pela primeira vez na
vida, sentia-se apreensivo. Sua alma entrara num estado fe-
bril. Ele não era o mesmo de antes, inflexível, rígido e forte
como um carvalho; agora era um fraco, sem ânimo. Ele es-
tremecia a cada ruído, a cada vulto judaico que aparecia no
fim da rua. E foi nesse estado que Tarás passou o dia todo:
não comeu nem bebeu, e seus olhos não se despregaram da
janelinha nem por um instante. Finalmente, tarde da noite
apareceram Mardoqueu e lánkel. 0 coração de Tarás parou.
-E então? Tudo certo? -perguntou ele, com a impa-
ciência de um cavalo selvagem.
Mas antes mesmo que os judeus tomassem coragem para
responder, Tarás percebeu que Mardoqueu já não tinha aque-
146 Nikolai Gógol
1as últimas madeixas que, embora bastante desagradáveis,
enrolavam-seemformadeanéisporbaixodosolidéu.Nota-
va-se que ele queria dizer algo, mas falou tanta coisa absur-
da que Tarás não entendeu nada. 0 próprio lánkel levava
constantemente a mão à boca como se estivesse sofrendo de
um resfriado.
-Oh,carosenhor!-disselánkel.-Agoraécomple-
tamenteimpossívenPorDeus,éimpossível!Essagenteétão
ruimquemerecelevarumacuspidanacara.Mardoqueudirá
issotambém.Mardoqueufezoquenenhumhomemnomun-
dofaria,masDeusnãoquisquefosseassim.Hátrêsmilsol-
dados, e amanhã vão executar todos os prisioneiros.
Tarás olhou nos olhos dos judeus, com paciência e sem
cólera.
-Mas se o senhor quiser vê-lo, é preciso que seja ama-
nhã bem cedo, antes do sol nascer. As sentinelas concorda-
ram,eochefedaguardaprometeu.Masqueelesnãoalcan-
cem a graça no outro mundo! Meu Deus! Que gente ganan-
ciosa! Nem entre nós existe gente assim: dei cinquenta du-
cados a cada um, e ao chefe...
-Está bem. Leve-me até ele! - exclamou Tarás, deci-
dido, e toda a firmeza retornou à sua alma.
Ele concordou com a proposta de lánkel de se disfarçar
de conde estrangeiro que chegava da Alemanha, usando um
traje previamente arrumado por aquele judeu perspicaz. Já
eranoite.0donodacasa,oconhecidojudeuruivo.esa[den-
to,pegouumcolchãosurradocobertoporumaesteiraeoco-
locousobreumbancoparaBulba.Iánkelsedeitounochão,
sobre um colchão idêntico. 0 iudeu ruivo tomou um: peque-
na dose de licor, tirou seu cafetã curto e ficou de meias e sa-
patos, parecendo um frango; depois meteu-se com sua espo-
sa numa espécie de armário. Duas crianças judias, iguais a
doiscachorrinhosdomésticos,deitaram-seaoladodoarmá-
rio,nochão.MasTarásnãodormiu;permaneceusentadoe
imóvel, tamborilando suavemente na mesa; mantinha o ca-
147
Tarás Bulba
chimbo na boca e soltava fumaça, em razão da qual o judeu
espírrava meio acordado e cobria o nariz com o cobertor. 0
céu mal tínha sido tocado pelo anúncio pálido da aurora, e
Tarás já cutucou lánkel com o pé.
-Levante-se, judeu, e me dê a roupa de conde.
Ele se vestíu num ínstante; tingiu de negro o bígode e as
sobrancelhas e pôs um pequeno gorro escuro no alto da ca-
beça; nenhum dos cossacos mais próximos poderia reconhe-
cê-1o. Ele parecia não ter maís do que trinta e cinco anos.
Uma cor saudável tocava suas faces, e até as cicatrízes lhe
conferiam um certo ar soberano. A roupa, decorada a ouro,
caía-lhe muito bem.
As ruas ainda dormiam. Nenhum comercíante ainda ha-
via aparecido na cidade com uma caixa de mercadorias nas
mãos. Bulba e lánkel chegaram a um edifício que tinha o as-
pecto de uma garça sentada. Era baixo, largo, enorme e es-
curo., e de um lado, semelhante ao pescoço de uma cegonha,
precipitava-se uma torre estreita, no alto da qual desponta-
va um pedaço do telhado.Esse edifício se prestava a uma va-
ríedadedefunções:serviacomoquartel,prísãoeatétribunal
penal. Os nossos víandantes entraram pelo portão e viram-
-se no meio de uma sala espaçosa ou de um pátio coberto.
Cerca de mil homens dormíam juntos. À frente havia uma
porta baixa, e ao lado dela estavam sentados dois sentínelas
disputando um jogo qualquer, que consístia em bater um na
mãodooutrocomdoisdedos.Elesprestarampoucaatenção
aos visitantes, e só viraram as cabeças quando lánkel disse:
-Somos nós. Estão ouvíndo, senhores? Somos nós.
-Entrem! -dísse um deles, abrindo a porta com uma
mão e oferecendo a outra ao companheíro para receber os
golpes.
Elesentraramnuincorredorestreitoeescuro,queosle-
vou de novo a uma sala igual à anterior, com janelinhas pe-
qiienas no alto.
-Quemvemlá?-gritaramalgumasvozes;eTarásviu
148
Nikolai Gógol
uma considerável quantidade de heiduques bem armados. -
Não podemos deixar ninguém entrar.
-Somos nós! -gritou lánkel. -Por Deus, somos nós,
ilustres senhores.
Mas ninguém lhe deu ouvido. Felizmente, nessa hora
aproximou-se um gordão, que dava indícios de ser o chefe,
pois xingava com mais força do que os outros.
-Somos nós, o senhor já nos conhece. E o senhor con-
de vai agradecer ainda mais.
- Com mil demônios, deixem-nos passar! E mais nin-
guém! E que ninguém tire o sabre nem fique brigando pelo
chão como cachorro! ...
Nossos viandantes já não ouviram a continuação daque-
la ordem eloquente.
-Somos nós... sou eu... somos dos seus! -dizia lánkel
a qualquer um que encontravam.
-E então, podemos entrar agora? -perguntou ele a
um dos guardas, quando finalmente chegaram ao final do
corredor.
-Podem, só não sei se deixarão vocês entrarem na pri-
são. Ian não está mais lá; há um outro no lugar dele -res-
pondeu o sentinela.
-Ai, ai, ai! -exclamou baixinho o judeu. -Isso é
mau, caro senhor!
-Vamos! -exclamou Tarás obstinadamente.
0 judeu obedeceu.
Ao lado das portas do subsolo, que terminavam em for-
ma de uma ponta para o alto, havia um heiduque com bigo-
de dividido em três partes: a de cima ia para o alto, a segun-
da para frente e a terceira para baixo, o que o deixava bas-
tante parecido com um gato.
0judeuencolheu-setodoechegoubempertodoguarda:
-Vossa Excelência! Ilustríssimo Senhor!
-Está falando comigo, judeu?
- Sim, Ilustríssimo Senhor!
Tarás Bulba
149
-Hum... Mas sou apenas um heiduque -disse o bigo-
dudo, com os olhos mais animados.
-Pois juro por Deus que eu pensava que era o próprio
voí.ezJod4. Ai, ai, ai! ...- nisso o judeu virou a cabeça e esti-
cou os dedos. -Ai, que aparência imponente! É um coronel,
juro por Deus, um perfeito coronel! Bastava mais uma ou
outra coisinha e seria um coronel! Seria preciso apenas que
o senhor montasse numa égua veloz como uma mosca e saís-
se comandando regimentos!
0 heiduque corrigiu a parte inferior do bigode, enquan-
to seus olhos ficavam bem alegres.
-Que gente são os militares! -continuou o judeu. -
Oh, Deus, que gente boa! Alamares, insígnias... Eles brílham
como o sol! E quando as moças veem os militares... aí, ai,
aí!...
0 judeu balançou a cabeça de novo.
0 heiduque alisou a parte superior do bigode e emitiu
por entre os dentes um som meio parecido com o relincho de
um cavalo.
-Peço que o senhor me faça um obséquio! -conti-
nuou o judeu. -Este príncipe chegou do exterior e deseja ver
os cossacos. Ele nunca viu que tipo de gente é essa.
A presença de barões e condes estrangeiros era bastan-
te comum na Polônia; não raro, eram atraídos unicamente
pelo desejo de ver aquele recanto semiasiático da Europa, pois
consideravam que a Moscóvia e a Ucrânia estavam locali-
zadas na Ásia. Por isso, depois de fazer uma profunda reve-
rência, o heiduque achou conveniente acrescentar algumas
palavras:
-Não sei por que Vossa Excelência desei.a vê-1os -
disse ele. - Os cossacos são cães, e não gente. E eles têm uma
religião que ninguém respeita.
-Está mentindo, seu filho do Cão! -dísse Bulba. -
Você, sim, é um cachorro! Como se atreve a dizer que não
respeitam nossa fé? É a sua fé herege que não respeitam!
150 Nikolai Gógol
-Eh, eh! -disse o heiduque. -lá sei queiii t` vocc`,
amigo: você é um daqueles que estão presos aqui. Esp.`rt. "`,
que eu vou chamar os guardas.
Taráspercebeusuaimprudência,masairritaçãoeatc`i-
mosia o impediam de pensar num modo de corrigi-1a. Feli/,-
mente, Iánkel interveio naquele exato momento.
- Ilustríssimo senhor! Como é possível que um fonde
sejaumcossaco?Seelefosseumcossaco,ondearraniariaesse
traie e essa aparência de conde?
-Deixe de histórias! ...- e o heiduque já tinha aberto
a boca para gritar.
-Cale-se,VossaRealMaiestade!Cale-se,pelagraçade
Deus!-gritoulánkel.-Cale-se!Nóslhepagaremosdeum
jeitoqueosenhornuncaviu:vamoslhedardoisducadosde
Ouro.
-Ora essa! Dois ducados?! Dois ducados não servem
para nada: isso eu dou ao barbeiro para fazer apenas meta-
de da minha barba. Dê aqui cem ducados, iudeu! -Então o
heiduquetorceuapartesuperiordobigode.-Senãomeder
cem ducados, vou gritar agora mesmo!
-Mastantoassim?!-disseojudeupálidoeangustia-
do, desamarrando sua sacola de couro. Contudo, ele ficou
feliz por não trazer um valor maior na sacolinha e pelo hei-
duque não saber contar acima de cem. -Senhor, senhor!
Vamos embora! Está vendo como essa gente é ruim? -dis-
se lánkel ao perceber que o heiduque examinava o dinheiro
na mão como se lamentasse não ter pedido mais.
-Eentão,heiduquedosdiabos?-disseBulba.-Pe-
gouodinheiroenãovainosdeixarpassar?Não,vocêtemde
deixar.Sejáaceitouodinheiro,entãonãopodenosimpedir.
-Ora,vãoparaodiabo!Senãovoudenunciá-losagora
mesmo,eaívocêsvãover...Vãoembora,eujádisse,rápido!
-Senhor,senhor!Vamos!PorDeus,vamos!Queodia-
bo o carregue! Tomara que tenha um sonho que lhe dê von-
tade de cuspir! -gritou o pobre lánkel.
151
Tarás Bulba
Lentamente, de cabeça baixa, Bulba virou-se e foi andan-
do, seguido pelas broncas de lánkel, que era devorado pelo
desgosto ao pensar nos ducados perdidos.
-Por que foi ofendê-lo? Deixe aquele cachorro xingar!
Essa gente é assim mesmo, não consegue viver sem xingar!
Oh, díacho, quanta felicidade Deus dá aos homens! Cem du-
cados só para nos enxotar! Mas de um judeu arrancam até as
madeixas, socam-lhe tanto a cara que dá pena de ver, mas
ninguém vai lhe dar cem ducados. Oh, meu Deus! Senhor mi-
sericordioso!
Mas aquele revés teve muita influência sobre Bulba, e
foi expresso numa chama devoradora em seus olhos.
-Vamos! -disse ele de repente, como se tivesse se ani-
mado. ~ Vamos para a praça. Quero ver como vão torturá-
-1o.
-lo.
-Ai, senhor! Para que ir até lá! Já não podemos aj.udá-
-Vamos! -disse Bulba, obstinado; e o i.udeu, como
uma ama, seguiu atrás dele.
Não foi difícil encontrar a praça onde deveria ser reali-
zada a execução: o povo ia em massa para lá. Naquele século
rude, as execuções constituíam um dos mais notáveis espetá-
culos, e não apenas para a ralé, mas também para as classes
mais elevadas. Uma multidão de velhas, das mais devotas, e
um sem-número de moças jovens e mulheres, daquelas mais
medrosas, que depois ficam sonhando a noite inteira com ca-
dáveres ensanguentados e gritando durante o sono como um
hussardo bêbado, não deixavam de espiar esses acontecimen-
tos. "Ai, que suplício! " -gritavam muitas delas com uma
febre histérjc.a, cobrindo os olhos e virando o rosto, embora
às vezes ficassem olhando bastante tempo. Havia aquelas pes-
soas que, de boca aberta e de braços estendidos para frente,
desejavam se ].ogar por cima da cabeça dos outros para ver
melhor. Naquela multidão de cabeças estreitas, pequenas e
ordinárias, sobressaía o rosto gordo de um açougueiro, que
152 Nikolai Gógol
observava todo o processo com ar de um perito no assunto
e conversava em monossílabos com um mestre de armas, a
quemchamavadecompadre,pois,nosdiasdefesta,embria-
gava-se com ele na mesma taverna. Algumas pessoas discu-
tiam aca[oradamente, outi.as até faziam apostas; mas a maio.rparte era daqueles que olham para o mundo e seus acontecL
mentos cutucando o nariz com o dedo. No primeiro plano,
ao lado dos mais bigodudos, que formavam a guarda mu-
nicipal, estava um jovem fidalgo polaco, ou pelo menos as-
sim parecia; usava um traje militar e decerto trazia sobre si
tudo que possuía, a ponto de em sua casa restarem apenas
uma camisa esfarrapada e umas botas velhas. Em seu pesco-
ço,umasobreaoutra,pendiamduascorrentescommoedas.
E[e estava com sua amada, Iuzissia, e olhava em volta o tem-
potodoparaqueninguémsujasseoseuvestidodeseda.0jo-
vemlheexplicavatudotãobemquenãoseriapossívelacres-
ccntar mais nada. "Essa gente que você está vendo, qTerida
luzissia" -dizía ele -, "veio para ver como os criminosos
são executados. Aquele que você vê ali, querida, segurando
um machado e outros instrumentos, é o carrasco; é ele quem
vai executar. Quando começar o suplício da roda e outras
torturas, o criminoso ainda estará vivo; mas quando for del
capitado,querida,elemorreránahora.Anteselevaigritare
se debater, mas logo que o decapitarem, não poderá gritar,
nem comer e nem beber, querida, pois não terá mais a cabe-
ça."Eluzissiaouviatudocompavorecuriosidade.Ostelha-
dos das casas estavam cobertos de gente. Umas caras estra-
nhas, usando bigode e algo parecido com touquinhas, espia-
vam das claraboias. Nas sacadas, embaixo dos baldaquinos,
estavam sentados os aristocratas. A bela mão de uma senho-
rinharisonhaebrilhantecomoaçúcarrepousavanopeitoril.
Os senhores ilustres, bastante encorpados, olhavain com ar
de importância. Um lacaio, vestindo um traje brilhante com
as mangas dobradas, servia diferentes bebidas e iguarias. A
todo momento, uma menina travessa agarrava doces e frutos
Tarás Bulba
153
e os atirava no povo. Uma multídão de cavaleiros famíntos
seaproximavaestendendoseusgorros,eumfidalgocompri-
do, cuja cabeça despontava acíma dos demais, usando um
cafetã vermelho e desbotado com cordões dourados e ene-
grecidos,agarravaaiguaríaantesdetodos,graçasàaj.udade
seusbraçoslongos;depoiselebejjavaapresaobtida,aperta-
vaúcontraocoraçãoeacolocavanaboca.Umfalcão,preso
numa gaíola dourada que pendía sob a sacada, também era
um espectador: com o bico jnclínado e uma pata recolhída,
eleexaminavaopovocomatenção.Masderepente,amul-
tidão começou a murmurar, e ressoaram vozes de todos os
lados:"Estãotrazendo...estãotrazendo!Sãooscossacos!...".
Elesvinhamcomascabeçasdescobertas,ostcntandoseus
topetes longos, e com a barba crescída. Vínham sem medo,
semtristeza,mascomumaaltjvezsílenciosa;suasroupasti-
:|:::ãs:g|eíã:::deoneeialçaa||çhaavraamme^m_f:.r,Ta)d:trapo:velhos;saudaram o povo. À fren;e de ,._à_o_;
estava Ostap.
0quesentiuove"TarásquandoviuoseuÓstap?0
queteriasepassadoemseucoração?Domeiodamultidão,
eleolhavaparaofílhoenãoperdíaummovimentoseu.Eles
seaproximaramdolocaldaexecução.Óstapdeteve-se.Aele
cabíaseroprimeiroabeberdaquelecáliceamargo.Eleolhou
paraoscompanheíros,ergueuosbraçoseexclamoubemalto:
-Conceda,ohDeus,quenenhumdessesheregesdeson-
rados possam ouvír um crístão se queíxar! Que nenhum de
nós pronuncíe uma só palavra!
Depois disso, ele se aproxímou do cadafalso.
-Muítobem,filho,muitobem!-disseBulbasilencio-
samente, e baíxou sua cabeça grísalha.
0 carrasco arrancou as roupas de Óstap; suas mãos e
pernasforamamarradasnasmáquinasespecialmenteprepa-
radase...Nãovamosperturbarosleitorescomessequadro
desuplíciosínfernaisqueosdeixaríamdecabelosempé.Eles
eramfrutosdaqueleséculorudeecruel,quandoohomemle-
1`Í4
Nikolai Gógol
vava a vida sangrenta das aventuras bélicas e nela fortalecja
a alma sem nenhum sentimento de humanidade. Alguns pou-
cos, que eram exceção naquele século, opuseram-se inutil-
mente a esses procedimentos terríveis. Em vão o rei e muitos
cavaleiros, iluminados pela razão e a sensibilidade, demons-
traram que o rigor daqueles castigos poderia atiçar a vingança
da nação cossaca. Mas o poder do rei e das opiniões sensa-
tas não era nada perante o desregramento e a vontade inso-
lente dos magnatas do Estado, que com sua insensatez, sua
incompreensível falta de perspicácia, seu pueril amor-próprio
e seu orgu[ho fútil, haviam transformado o Parlamento numa
caricatura do governo. Óstap suportava as torturas e suplí-
cios como um gigante. Não se ouviu nenhum grito, nenhum
gemido, mesmo quando começaram a quebrar seus braços e
pernas, quando o terrível rangido de ossos que se partiam foi
percebido pelos espectadores mais distantes daquela multidão
atônita e as senhorinhas viraram o rosto; de siia boca não
escapou nada parecido com um gemido, tampouco seu ros-
to se contraiu. Tarás permanecia no meio da multidão, de
cabeça baixa e, ao mesmo tempo, erguendo os olhos com or-
gulho e aprovando em voz baixa, dizendo: "Muito bem, fi-
lho, muito bem!",
Porém, quando foi levado para o suplício fina[, parecia
que suas forças o abandonavam. Ele passou os olhos ao re-
dor: Deus, todos são desconhecidos, todos são estranhos! Se
ao menos um dos seus presenciasse a sua morte! Ele não que-
ria ouvir os soluços e a aflição de uma pobre mãe, nem os
berros enlouquecidos de uma esposa arrancando os cabelos
e esmurrando o peito alvo; queria ver agora um homem fir-
me, que o animasse com palavras sensatas e o confortasse no
momento final. Então ele perdeu as forças, e num momento
de fraqueza, exclamou:
-Paizinho! Onde está você? Está me ouvindo?
-Estou ouvindo! -ressoou em meio ao silêncio geral,
e milhares de pessoas estremeceram ao mesmo tempo.
Tarás Bulba 155
Uma parte dos cavaleiros da guarda correu para exami-
nar cuidadosamente a multidão. Iánkel ficou pálido como a
morte, e quando os cavaleiros se afastaram um pouco, ele se
virou aterrofizado para ver Tarás; mas este já não estava ao
seu lado: tinha sumido sem deixar rastro.
156 Nikolai Gógol
Por fim, o rastro de Tarás apareceu. Um exército de cen-
to e vinte mil cossacos apareceu nas fronteiras da Ucrânia. Já
não era uma pequena unidade ou um destacamento saindo
para uma pilhagem ou para uma perseguição aos tártaros.
Não, a paciência do povo tinha se esgotado, e uma nação in-
teira se levantou para vingar o desrespeito aos seus direitos,
a humilhação vergonhosa de seus costumes, a ofensa à fé dos
antepassados e dos hábitos sagrados, a profanação das igre-
ias, os desmandos de senhores estrangeiros, a opressão, a
União, o domínio vergonhoso do judaísmo numa terra cristã
e tudo que desde há muito tempo alimentava e exacerbava o
ódio feroz dos cossacos. 0 jovem e corajoso 4ié£m¢7? Ostrá-
nitsa comandava aquela inumerável tropa cossaca. Ao lado
dele, estava o velho Gúnia, seu experiente camai.ada e conse-
lheiro. Oito coronéis comandavam regimentos de doze mil
homens. Dois css4úJes e o porta-maça principal iam logo atrás
do Á7é£7#¢7G. Um suboficial conduzia o pendão do exército; ao
longe, tremulavam muitas outras bandeiras e estandartes; e
seguiam também os demais porta-maças. Havia ainda muitos
outros oficiais superiores: chefes de comboio, comandantes
de tropa e escrivães, e com eles, destacamentos de infantaria
e cavalaria. Estavam reunidos tanto os cossacos registrados
quanto os voluntários. Eles haviam se levantado de toda par-
te: de Tchiguírin, Pereiaslav, Baturin, Glúkhov, da região do
baixo Dniepr e de todas as suas nascentes e ilhas. Um sem-
número de cavalos e telegas se estendeu pelos campos. E en-
Tarás Bulba 157
tre os oito regimentos cossacos, havía um que era o maís se-
leto de todos: aquele que era comandado por Tarás Bulba.
Tudo|hedavavantagemsobreosdemais:aidadeávançada,
a experíêncía, a habilidade para manobrar sua tropa e um
ódio aos inimigos maís intenso que o dos outros. A sua rigi-
dez e fúría ímplacável pareciam excessívas até para os cossa-
cos. Sua cabeça grisalha determinava apenas o fogo e a for-
ca, e nas reuniões de guerra, seu conselho respirava sempre
destruição.
Não é preciso descrever as batalhas em que os cossacos
mostraram do que são capazes, nem a marcha gradual da
campanha:tudo isso está nas páginas dos cronístas. Todos sa-
bem como é uma guerra santa em territórío russo: não exis-
te força maíor do que a fé. Ela é terrível e inabalável como um
rochedonomeiodomartempestuosoesempreinconstante,
de cui.as profundezas ele, que fora criado de uma só rocha
inteíriça, ergue até as alturas os seus muros inexpugnáveis. É
vistodetodasaspartes,eolhadiretamenteparaasondasque
o ce.rcam. Ai do navio que se chocar contra ele! Seus frágeis
equipamentos voarão em cacos, e tudo que nele houver irá se
despedaçar e afundar; e o ar atôníto se enchei.á com os gri-
tos lastimáveis dos náufragos.
Nas páginas dos cronístas foi retratado em detalhes co-
mo as guarnições polonesas fugiram das cidades reconquis-
tadas; como eram enforcados os judeus arrendatários deso-
nestos; como o Áe'£7%# real, Níkolai Potótski, junto com seu
numeroso exércíto, era impotente contra aquelas forças im-
batíveis; como ele, derrotado e perseguido, afogou num pe-
queno riacho a melhor partc de sua tropa; como foi cercado
no pequeno povoado de Polónnoíe pelos terríveis regimentos
cossacos; e como, 1evado ao extremo, o polonês jurou total
reparação da parte do rei e das autorídades do Estado, bem
comoorestabelecimentodetodososdireitoseprivilégiosan-
teriores. Mas os cossacos não eram desses que se deíxam en-
ganar: eles já sabiam o quanto valia um juramento polonês.
158
Nkola, Gógol
Potótski não brilharia mais em seu a[azão de seis mil ducados,
atraindo o olhar das senhorinhas nobres e a inveja da nobre-
za, nem faria mais alvoroço no Parlamento, organizando ban-
quetes luxuosos para os senadores, se não tivesse sido salvo
pelo clero russo que se encontrava no povoado. Quando os
popes saíram ao encontro dos cossacos com suas casulas bri-
lhantes e bordadas a ouro, levando ícones e cruzes, e tendo a
frente o próprio prelado com o báculo e a mitra sacerdotal,
eles inclinaram a cabeça e tiraram os gorros. Naquela época,
os cossacos não se curvavam a ninguém, nem mesmo ao rei,
mas jamais atentavam contra sua igreja cristã e tinham res-
peito pelo seu clero. 0 be'£77c47g e os coronéis concordaram em
libertar Potótski, após receberem dele a promessa solene de
dar liberdade a todas as igrejas cristãs, esquecer a antiga ini-
mizade e não dirigir mais nenhuma ofensa ao exército cossa-
co. Apenas um coronel não concordou com a paz: Tarás Bul-
ba. Ele arrancou um tufo de cabelos de sua cabeça e gritou:
- He'£7#47z e coronéis! Não cometam esse ato de mari-
cas! Não confiem nos polacos: esses cães vão nos trair!
Quando o escrivão do regimento apresentou as condi-
ções e o béfmcz7z assinou com sua mão poderosa, Bulba sacou
sua espada benfeita - um valioso sabre turco de ferro de pri-
meiríssima qualidade - e a partiu ao meio; depois atirou lon-
ge ambos os pedaços, em direções diferentes, e disse:
-Então, adeus! Assim como os dois pedaços daquela
espada não mais se juntarão e nem formarão um único sabre,
assim também, companheiros, não tornaremos a nos ver nes-
te mundo. Guardem minhas palavras de despedida (então a
sua voz cresceu, subiu bem alto, tomou uma força desconhe-
cida; e todos ficaram impressionados por aquelas palavras
proféticas): na hora da morte, vocês se lembrarão de mim!
Pensam que compraram a paz e a tranquilidade? Pensam que
se tornarão senhores? Pois vão se tornar senhores de outro
tipo: eles arrancarão o couro da sua cabeça, bé£77z4#, e a en-
cherão com farelo de trigo; e ela será exibida por muito tem-
Tarás Bulba 159
po em todas as feiras! E vocês também não conservarão suas
cabeças, senhores! Vão morrer em porões úmidos, enclau-
surados em paredes de pedra, isto se não os cozinharem vi-
vos em caldeirões como carneiros!
-E vocês, rapazes? -continuava ele, virando-se para
seus comandados. -Algum de vocês deseja padecer hon-
radamente, e não em cima de fornos e estrados de mulheres,
nem bêbados i.unto à cerca de uma taverna, como um animal
qualquer, mas sim ter um morte digna de um cossaco, todos
no mesmo leito, como casais de noivos? Ou, talvez, queiram
voltar para casa, tornar-se incrédulos e carregar nas costas os
padres poloneses?
-Iremos com o senhor, coronel! -gritaram todos no
regimento de Tarás, e a eles se juntaram alguns outros.
-Pois se querem vir comigo, sigam-me! -disse Tarás.
Daí enterrou bem o gorro na cabeça, lançou um olhar terrí-
vel sobre os que ficavam, endireitou-se no cavalo e gritou pa-
ra os seus: -Ninguém poderá nos censurar! E agora, rapa-
zes, vamos fazer uma visita aos católicos!
Então Bulba fustigou seu cavalo, e atrás dele estendeu-
-se um comboio de cem telegas, acompanhado de muitos ca-
valeiros e infantes; depois ele se virou e, com um olhar cheio
de ira, ameaçou os que tinham ficado. Ninguém ousou detê-
-los. 0 regimento partia diante de todo o exército, e Tarás
continuou se virando em tom de ameaça.
0 Á7e'£77m e os coronéis estavam confusos; permanece-
ram calados por longo tempo, refletindo, como se um grave
presságio os oprimisse. Tarás não havia profetizado em vão:
tudo aconteceu tal como predissera. Pouco tempo depois de
uma ação traiçoeira nos arredores de Kániev, a cabeça do
bÉ''£mcz# foi erguida numa estaca junto com muitos dos mais
altos dignitários.
E quanto a Tarás? Percorria toda a Polônia com seu regi-
mento, incendiou dezoito povoados e cerca de quarenta igre-
jas católicas, e já se aproximava da Cracóvia. Ele matou mui-
160 Nikolai Gógol
tos fidalgos e saqueou os melhores e mais ricos castelos; ()s
cossacos abriram e derramaram pelo chão o hidromel e o vi-
nho que eram guardados cuidadosamente nas adegas dos no-
bres poloneses, rasgaram e queimaram valiosos tecidos, rou-
pas e obietos encontrados nos depósitos. "Não tenham pieda-
de de nada!" -repetia Tarás. E os cossacos não respeitaram
nem as senhorinhas de sobrancelhas negras, as moças de ros-
to pálido e seios brancos; nem nos a[tares elas conseguiram
se salvar: foram queimadas ali mesmo por Tarás. Muitos bra-
ços alvos como a neve se ergueram das chamas em direção
aos céus, acompanhados por gritos lastimáveis que comove-
riam até mesmo a terra úmida e fariam cair de pena o mato
das estepes. Mas os cossacos cruéis não ouviam nada; eles
erguiam as crianças nas ruas com suas lanças e atiravam-nas
para as mães no meio das chamas. "Isto é para vocês, pola-
cos malditos, em memória de Óstap!" -dizia Tarás. E ele
assim celebrou a memória de Óstap em cada localidade, até
que o governo polonês percebeu que as ações de Tarás eram
bemmaisdoqueumapilhagemcomum;eopróprioPotótski,
com cinco regimentos, foi encarregado de capturar Tarás.
Durante seis dias os cossacos fugiram de seus perseguido-
res pelas estradas vicinais; os cavalos mal aguentavam aque-
la fuga extraordinária, mas iam salvando os cossacos. No en-
tanto,destavezPotótskifoidignodamissãoquerecebera:ele
os perseguiu incansavelmente e os alcançou na margem do
Dniestr, onde Bulba ocupou uma fortaleza deixada em ruínas
para fazer um breve descanso.
A fortaleza aparecia nas escarpas do rio Dniestr com seu
baluarte esfrangalhado e os restos despedaçados de suas mu-
ralhas. 0 topo do penhasco estava coberto de britas e tijolos
partidos, pronto para despencar a qualquer momento. Então
Bulba foi cercado por Potótski, o be'fm4# real, pelos dois la-
dos que davam para o campo. Durante quatro dias, os cos-
sacos lutaram e combateram, defendendo-se com tijolos e pe-
dras. Mas esgotaram-se as munições e as forças, e Tarás de-
Tarás Bulba
161
cidiu atravessar as fileiras inímigas. Os cossacos já tinham
atravessado e, talvez, fossem salvos novamente por seiis cava-
los velozes, quando de repente, Tarás deteve-se bem no meio
da corrida e gritou: "Alto! Meu cachímbo com o tabaco caiu;
não quero deixá-1o para os maldítos polacos!". E o velho ata-
mã inclínou-se e começou a procurar na relva o cachímbo
com tabaco, seu inseparáve[ companheiro de viagem por ma-
res e terras, nas campanhas e no lar. Nessa hora, um bando
apareceude repente e o agarrou pelos ombros fortes. Ele sa-
cudiu todos os seus membros, mas agora os heiduques que o
agarraram não caíram no chão como antes. "Ah, velhice, ve-
1hice!" -disse Bulba; e aquele cossaco velho e corpulento
começou a chorar. Mas a velhice não era a culpada: sua for-
ça era vencída por outra. Não menos que trinta homens es-
tavam agarrados aos seus braços e pernas. "0 corvo foi apa-
nhado!" -gritaram os polacos. -"Agora só precisamos
imaginar qual é melhor honra a se prestar a esse cachorro!"
E com a permissão do bc'£m47z, condenaram-no a ser quei-
mado vivo diante de todos. Ali mesmo havia uma árvore se-
ca, cuja copa fora partida por um raio. Eles o prenderam com
correntes de ferro, pregaram suas mãos e, depois de erguê-lo
bem alto para que fosse visto de todas as partes, começaram
a armar uma fogueira ao pé da árvore. Mas Tarás não olha-
va para a fogueira, nem pensava no fogo que preparavam
para queimá-1o; ele olhava ansioso na direção em que os cos-
sacos se defendiam atirando; do alto, podia ver tudo como na
palma de sua mão.
- Rapazes, rapazes - gritava ele -, ocupem logo o
morrinho atrás do bosque; eles não vão subir até lá!
Mas o vento não 1evou suas palavras até eles.
-Eles vão morrer, vão morrer a troco de nada! -dizia
ele desesperado, e olhou para baixo, onde reluzia o Dniestr.
A alegria brilhou em seus olhos. Ele viu quatro popas de bar-
cos aparecendo por trás do matorral; então juntou toda a
força de sua voz e gritou de forma retumbante:
162 Nikolai Gógol
-Para a margem! Para a margem, rapazes! Desçam pe-
lo caminho da encosta que fica à esquerda. Há barcos perto
da margem; peguem todos para quc não os persigam!
Desta vez o vento soprou do outro lado, e suas palavras
foram ouvidas pelos cossacos. Mas por causa desse conselho,
ele recebeu na cabeça um golpe com as costas do machado,
o que o fez perder os sentidos.
Os cossacos desceram o caminho da encosta em grande
velocidade, com os perseguidores já no seu encalço. Eles vi-
ram que o caminho ia se emaranhando e se dobrando de mo-
do bastante sinuoso. "Companheiros! Não temos saída!" -
disseram todos. Eles detiveram-se por um instante, ergueram
seus chicotes e assobiaram; então seus cavalos tártaros se
apartaram do chão, esticaram-se no ar como cobras e voaram
através do precipício, caindo diretamente no Dniestr. Apenas
dois deles não alcançaram o rio e desabaram sobre as pedras,
perdendo-se para sempre com seus cavalos, sem sequer emi-
tir um grito. Os cossacos já iam montados pelo rio e desamar-
ravam os barcos. Os polacos haviam se detido à beira do pre-
cipício, admirados com aquela façanha sem precedentes dos
cossacos e pensando se deviam pular ou não. Um jovem co-
ronel, de sangue vivo e ardente, irmão da bela polaquinha que
havia cativado o pobre Andríi, não pensou muito e atirou-se
com todas as forças em seu cavalo atrás dos cossacos: e[e ro-
dou três vezes no ar com sua montaria e desabou sobre as
rochas pontiagudas. 0 jovem foi despedaçado pelas rochas e
desapareceu no meio do precipício, e seu cérebro, misturado
com sangue, salpicou os arbustos que cresciam pelas paredes
do fosso.
Quando Tarás Bulba se recobrou do golpe e olhou para
o Dniestr, os cossacos já estavam nos barcos e seguiam re-
mando; choviam balas sobre eles, mas não os atingiam. E os
olhos do velho atamã se acenderam de alegria.
- Adeus, companheiros! - gritava-lhes lá de cima. -
Lembrem-se de mim, e na próxima primavera apareçam aqui
Tarás Bulba
163
de novo para um bom passeio! Então vocês me pegaram, seus
polacos do diabo? Pensam que um cossaco tem medo de al-
guma coisa no mundo? Esperem só! Virá o dia em que vocês
vão saber o que é a fé ortodoxa russa! Agora mesmo, os po-
vos distantes e próximos já estão pressentindo: da Terra Rus-
sa está se levantando o seu tsar, e no mundo não haverá for-
ça que não se submeta a ele!...
E o fogo já se levantava acima da fogueira, envolvia suas
pernas e estendia as chamas pela árvore... Mas haverá no
mundo algum fogo, martírio ou poder que possa vencer a for-
ça russa?
É pequeno o rio Dniestr, e possui muitas enseadas, jun-
cos espessos, baixios e lugares profundos; esse espelho fluvia[
brilha envolto pelo grito sonoro de cisnes; o mergulhão sober-
bo desliza rapidamente por ele, e há muitas aves brej.eiras,
galinhas d'água e tantos outros pássaros em seus canavíais e
margens. Os cossacos navegavam depressa em seus barcos de
leine duplo, remavam com força, desvíando-se cuídadosa-
mente dos baixios e espantando as aves, enquanto falavam de
seu atamã.
164 Nikolai Gógol
POSFÁcio
Niualdo dos Santos
Na primeira metade dos anos 1830, Gógol realizava uma
intensa pesquisa sobre a história e o folclore da Ucrânia, es-
tudando a fundo suas lendas, canções e ditos populares. Esse
trabalho teria como resultado a criação de obras que, poste-
riormente, estariam entre as mais importantes da literatura
russa. Uma dessas obras é a novela T4r4's B#/G4, escrita no
biênio 1833-34 e publicada em 1835, no segundo volume de
suas obras intitulado Mj'rgoroc!.
Após a primeira publicação, o autor ainda dedicaria mui-
tos anos de sua vida a essa obra, que seria reeditada em 1842.
Em sua nova versão, a novela apresentava diversas modifica-
ções estilísticas, além de passar a contar com doze capítulos,
e não apenas nove como na edição anterior.
No subtítulo de Mj'rgorod, o autor indica que essa co-
letânea funciona como uma continuação dos Serões 7zz"4
gr4#/.4 Per£o de Dj.Ácz#k4. As duas coletâneas estão 1igadas en-
tre si por diversos fatores, como o uso de expressões popu-
lares, o aspecto colorido das imagens e o tom alegre das nar-
rativas permeadas de elementos trágicos. No entanto, em T4-
rós B#/b4 Gógol lançou mão de formas provenientes do gê-
nero épico, criando uma narrativa em que sobressai, mais do
que nas outras obras do ciclo de novelas ucranianas, um for-
te teor popular e nacionalista. No herói dessa epopeia, o co-
ronel Tarás Bulba, o autor parece sintetizar o próprio povo
eslavo oriental (russos e ucranianos), exaltando sua coragem
e determinação.
166 Nivaldo dos Santos
Ambientada num período de sangrentas batalhas entre
ucranianos e poloneses, a novela apresenta os cossacos zapo-
rogos como símbolo de resistência à opressão, símbolo de
uma liberdade expansiva e quase anárquica.
De fato, os cossacos desempenharam importante papel
na luta pela emancipação da Ucrânia. No período em que
transcorreanovelaTúB#Jb4,essepaísseencontravasob
opoderdaI'olônia.Anteriormente,aUcrâniaestiverasobo
domíniodaLituânia,quenoséculoXIVhaviainiciadouma
expansãoemdireçãoaosul,abrangendoosterritóriosesla-
vosatéoMarNegro.Apósauniãomatrimonialentrenobres
da Polônia e da Lituânia, esses dois países formaram, no sé-
culoXVI,umEstadocomum,easterrasucranianaspassaram
ao controle dos poloneses.
Osreispolacosderamentãoinícioaumprocessode"po-
lonização" dos ucranianos, submetendo-os a um regime de
servidão e suprimindo o cristianismo ortodoxo em prol do
catolicismo. A investida da igreja católica da Polônia contra
areligiãoortodoxafoicertamenteoestopimdeumagrande
revolta cossaca em meados do século XVII.
OscossacoshaviamsurgidonosuldaUcrânianoséculo
XV.0termo"cossaco"édeorigemturca("kazak"significa
homem livre) e era usado para designar os homens que, oca-
sionalmente, apareciam nas estepes próximas ao rio Dniepr
para caçar e pescar. No século XVI, os cossacos formaram
uma poderosa sociedade militarizada, que muitas vezes ser-
viu aos poloneses. Na verdade, os cossacos serviam a estes
comoumabarreiradeproteçãocontraturcosetártaros,em-
boranãodeixassemdeserumaameaçaquaseconstanteàno-
breza polaca.
Com efeito, a partir do final do século XVI, os cossacos
desencadearamdiversasrevoltascontraospoloneses,culmi-
nando na sangrenta insurreição de 1648, liderada por Bog-
dan Khmiélnitski. Essa insurreição tomou as proporções de
umaguerraentrepoloneseseucranianos,eseuresultadofoi
167
Posfácio
a criaçãode um Estado cossaco autônomo. À medida que a
Ucrânia foi sendo incorporada pelo lmpério Russo, a auto-
nomia cossaca foi se perdendo, até ser definitivamente abo-
lida na segunda metade do século XVIII.
Os inúmeros conflitos que contaram com a participação
das tropas c.ossacas, entre os séculos Xvl e XVIII, desperta-
ram o interesse de muitos artistas russos e estrangeiros. Em
sua novela A /í./bcz do cczPí.íõc), por exemplo, Aleksandr Púch-
kin empregou como pano de fundo a revolta liderada pelo
cossaco Emelian Pugatchóv. Segundo seus biógrafos, quando
Púchkin realizava uma pesquisa sobre a história do lmpério
Russo, ele ficou fascinado por aquele turbulento episódio. As
batalhas e os costumes cossacos também aparecem na pin-
tura, sendo imorta[izados em obras como A c4r£cz czo szó/£Õo
Mehmed IV, de ±1iá Riépin, 0 ataque dos cossacos zaporo-
gos, de Franz Roubaud, e 0 rÉ;for#o cJos cossocos, do polo-
nês Józef Brandt.
Quando Gógol publicou T4ycís Bz//bcz, a novela logo cha-
mou a atenção dos críticos liberais. A crítica russa do século
XIX, encabeçada por Vissarion Bielínski, era de uma verten-
te mais social do que propriamente literária. Por essa razão,
os críticos tendiam a ver em Tczrós Bz¢/bcz, antes de mais na-
da, o caráter popular do levante cossaco. Para eles, tratava-
-se ali de um forte movimento de massas, e certamente não
deixaram de fazer comparações entre a Ucrânia dos séculos
XVI-XVIIl e a Rússia de sua época.
A Rússia era então governada por Nikolai 1, um dos mais
despóticos soberanos da história do país. Sob Nikolai 1, a
censura tornara-se mais rigorosa, e as execuções e deporta-
ções de inimigos do regime eram comuns. A novela de Gógol
era bem-vista pelos críticos do regime tsarista, que a inter-
pretavam como uma condenação à tirania e uma exaltação
à liberdade.
No século XX, Mikhail Bakhtin lançou um outro olhar
sobre T4rós B#/bcz, chamando a atenção para o aspecto car-
168 Nivaldo dos Santos
navalesco da obra. Se seguirmos na direção apontada por
Bakhtin,veremosque,defato,anovelaestáenvoltaporuma
atmosferafestiva.0mododevidadoscossacos,talcomoé
descritoporGógol,revela-nosummundoatípico,umasocie-
dadeanárquicacoexistindocomumsistemasocialemilitar
bem organizado.
Nesse mundo anárquico, aordem habitual está suspen-lll®J+ ^LJ\--`__ ___ +
sa;istofazcomqueascerimônias,pormaisformaisquese-
iam,transcorramnumclimadealegriadesvairada.EessecliF
mafestivotornalegítimoatémesmootratamentodispensado
aocomandanteeleitodoscossacos,queéconduzidoemmeio
asocos,pontapésexingamentos,atéser"coroado"comum
punhadodelama.Tudonaobraadquireproporçõesexager:-
das, a ponto de as personagens se afigurarem como guerreF
rosépicos.Nisso,aliás,estáumadascaracterísticasdacar
navalização concebida por Bakhtin.
AfonteparaacriaçãodeT4rós8~foramahistória
easlendasucranianas,mas,semdúvida,Gógolfoibuscarnas
epopeiasmuitosdoselementosquederamformaasuaobra.
Não seria nenhum exagero, portanto, ver nos guerreiros za-
porogososmesmoscontornosdosheróisda"edaOdís-
se4,deHomero.Assim,podemosdizerqueocoronelTarás
BulbapossuimuitodeUlisses,domesmomodoqueKuku-
bienkopodesercomparadoaAquilesouÁjax.
Masagrandezaépicadaspersonagensdanovelaapare-
cemisturadacomtermosdalinguagempopular(inclusivepa-
lavras da língua ucraniana), carregada de xingamentos, im-
precaçõesernaldições.Essecontrasteprovocaumrebaixa-
mentodasformasépicas,aomesmotempoemquefazemer-
gir,cheiasdeglória,asfigurasextraídasdomeiodopovo.
Gógol foi o primeiro dos grandes escritores russos a rç-
tirarpersonagensdomeiopopular,dascamadassociaismais
baixas,eelevá-lasàcondiçãodeheróisnumaobraliterária.
Posteriormente, sua influência se faria sentir em outros mes-
tresdaliteraturarussa,comoDostoiévski,noséculoXIX,e
169
Posfácio
SOBRE 0 AUTOR
Isaac Bábel, no século XX. Este último, também nascido na
Ucrânia, herdou de Gógol o fascínio pela linguagem popular,
a qual empregou na criação de suas narrativas mais impor-
ta,rites.. 0 Exército de Caualaria e Contos de Odessa. É sobre-
tudo nessas duas obras-primas que ressoam ecos de T#ós
B#/bcJ, a pequena epopeia criada por um gênio que, como
poucos, soube enaltecer o heroísmo de uma nação empregan-
do a fala de seu próprio povo.
170 Niva[do dos Santos
Nikolai Vassílicvitch Gógol nasceu em 1° de abril de 1809, na pro-
vínciadePoltava,atualUcrânia.ErafilhodeVassíliAfanássievitcheMa-
ria lvánovna Gógol-Ianóvski. A infância do futuro escritor e dramaturgo
transcorreu numa atmosfera mesclada de arte e misticismo. Sua mãe pos-
suía grande fe[vor religioso; seu pai, um pequeno proprietário de terras,
eraapaixonadoporliteraturaeteatro.Entre1818e1821,Gógolestudou
numa escola de Poltava, e depois no ginásio de Nieiin.
Em1829,mudou-separaSãoPetersburgo.Nessemesmoano,publi-
cou seu poema H4% K#cbeJg4y#q mal recebido pela crítica. No ano se-
giiinte,entretanto,oautorobteveseuprime[roêxitoliteráriocomoconto
"A noite de São |oão", baseado numa lenda popular ucraniana. 0 suces-
so da obra serviu de estímulo a Gógol, e no biêm 1831-32 foram pu-
blicados,emdoisvolumes,osSerõesw#m4gm~perfocJeDí`k4ri4co-
letâneadecontosigualmenteinspiradosnofolcloredesuaterranatal.Em
1835, foram publicadas mais duas coletâneas de narrativas: Ar4bescos e
M;'rgorod.Destaúltimafaziai)arteanovelaTúBM0anoseguinte
foi marcado pcla estreia de 0 !#spew ger4J, a mais famosa peça teatral
de Gógol.
Aindaem1836,oescritorviaioupelaSuíça,Françaeltália.EmPa-
i.is,recebeuanotíciadamortedopoetaeamigoAleksandrPúchkin,fato
queodeixouprofundamenteabalado.EmRoma,trabalhc>ucomafincona
composição de Ah« morf¢s, e em 1841 retornou à Rússia. A primeíra
parte de AJm4s mor}4s foi publicada em maio de 1842, ano em que o au-
tororganizouaprimeiraediçãodesuasobi.ascompletasemquatrovolu-
mes. No terceiro volume encontrava-se o conto 0 capote", qie exerce-
ria influência sobre muitos escritores russos das gerações posteriores.
No ano de 1845, em meio à grave crise espiritual que o atormenta-
ria até o fim da vida, Gógol queimou a primei[a versão da segunda parte
de AJmas morí4s, cuia redação ele retomaria entre 1848-49. Mas no iní-
ciode1852adoeceugravemente,so£rendoconstantesdelírios;nanoitede
11 para 12 de fevereiro, queimou o manuscrito da segunda parü de AJ-
mmorfasjuntameiitecomoutrospapéis-e,menosdeummêsdepois,
no dia 4 de março, faleceu.
Alegres, violentos, desregrados, corajosos, bêbados, sen-
timentais, anárquicos e implacáveis - assim Nikolai Vassílie-
vitch Gógol ( 1809-1852) descreveu os cavaleiros cossacos em
T4r4's Bz//bcz, publicado pela primeira vez em 1835. Resulta-
do de vasta pesquisa empreendida por Gógol sobre a história
e o folclore da Ucrânia, terra natal do autor de A/w4s mo7`-
}cís, esta novela de cunho nacionalista narra as sangrentas ba-
talhas entre ucranianos e poloneses no século Xvl e foi uma
das obras responsáveis pela grande popularidade alcançada
pelo escritor ainda no início de sua carreira.
Povo independente e guerreiro, os cossacos também ser-
viram de inspiração para outros grandes autores russos, co-
mo o Púchkin de A /¢.Jb¢ c!o c¢P;.£Õo, o Tolstói de Os coss¢cos
e o Bábel de 0 E#c'rcí'£o c!e C¢t/¢/#Ç.4. Foi, entretanto, apenas
com as tintas vívidas e apaixonadas de Gógol -considerado
um dos pais da literatura russa moderna - que eles recebe-
ram um colorido verdadeiramente épico.
Coleção LESTE
lsBN 978-85-7326-386-2
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editoral34

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