Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
10 Módulo 5 - Didática aplicada à Matemática fazer as compras de madeira. Apesar de dotado de instrução adequada para o cargo, ele percorreu a Europa para aprender a dominar o cálculo, naquela época feito em tábuas de fichas, uma espécie de ábaco. Quando finalmente vence sua dificuldade, ele resolve ensinar para a sua esposa o que aprendera e, em 1663, escreve em seu diário: “minha mulher agora é capaz de efetuar sem dificuldades adições, subtrações e até multiplicações. Mas não ouso perturbá-la com a prática das divisões.” As grandes transformações sociais e econômicas pelas quais passaram a sociedade na Idade Moderna fizeram com que, paulatinamente, a escola se institucionalizasse. A mudança do modo de produção, com a crescente industrialização, exigiu um contingente cada vez maior de pessoas que soubesse ler, escrever e, minimamente, operar com conceitos básicos da matemática. Em nosso país, o longo processo de colonização retardou a institucionalização da escola. Para se ter uma idéia, apenas em 1837, após a vinda da família real portuguesa para o Brasil, é que foi criada a nossa primeira escola secundária pública. Trata-se do Colégio Pedro II, que ainda hoje existe no Rio de Janeiro. Nós queremos conversar com você sobre a matemática que se ensinava no mundo a partir da Revolução Industrial e no Brasil, mais efetivamente, a partir de meados do século XIX. Queremos que você compreenda que a visão do que vem a ser a matemática e seu processo de ensino e aprendizagem tem mudado muito ao longo dos tempos e que essa visão depende muito do contexto histórico. Trabalhos de pesquisa como os de Miorim (1998) e de Valente et al (2008, 2004, 2003), nos dão conta de que, até meados dos anos 1930, tivemos o que denominamos de Matemática Tradicional. Nesse período, a organização curricular era fragmentada em diversas matemáticas: aritmética, álgebra, geometria e trigonometria, ensinadas uma em cada ano de escolaridade. O ensino era centrado na figura do professor que tinha como papel transmitir o conhecimento matemático, fundamentado no rigor dos algoritmos operatórios, na linguagem universal e na memorização de procedimentos. Segundo Miorim (1998), no início do século XX, ocorre o primeiro movimento internacional de mudança do ensino da Matemática, com as idéias do matemático Felix Klein, na Alemanha. Em 1928, Euclides Roxo, então diretor do Colégio Pedro II e defensor das idéias de Klein, juntamente com professores como Julio Cesar de Mello e Souza1 e Cecil Tirré, encampam esse movimento e realizam a reforma que unia as diversas áreas em uma única disciplina denominada Matemática. Tais mudanças não 1Mais conhecido como Malba Tahan 11Unidade I - Fundamentos da Educação Matemática eram apenas estruturais. A reforma trazia em si a discussão da necessidade de se dar significado à atividade matemática escolar, por meio de um ensino em que conceitos fossem trabalhados de maneira mais intuitiva e experimental, evitando formalizações precoces e mecânicas, interrelacionando os diversos campos da matemática e com compreensão pelo aluno. Apesar de a reforma educacional de 19312 incluir as propostas de renovação do Colégio Pedro II, elas não chegaram a se difundir pelo Brasil, em função principalmente das resistências internas daqueles que defendiam um ensino clássico (MIORIN, 1998, p.99). É bem provável, também, que a estagnação mundial que se seguiu a esse período, em um mundo que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial, tenha contribuído para que esse movimento de renovação tenha perdido fôlego. A partir de 1960, um novo movimento de reforma do ensino da matemática emergiu. No contexto da Guerra Fria, da corrida espacial e da corrida armamentista pós-Segunda Guerra, nasceu o movimento denominado Matemática Moderna. Esse movimento foi caracterizado pela intenção de se aproximar a matemática escolar da matemática acadêmica. A teoria de conjuntos passou a fazer parte do currículo escolar como forma de se introduzir uma linguagem lógica e universal na matemática. Além disso, privilegiaram-se os estudos de propriedades estruturais formais em detrimento de aplicações práticas. Nesse período, o ensino da álgebra ganhou evidência e o ensino de aritmética e geometria perderam espaço no currículo. A matemática escolar ganhou, então, a cara de matemática pura e científica, perdendo-se, assim, o seu sentido prático (PIRES, 2000). Já no início dos anos 70, professores de matemática do mundo inteiro começaram a apontar os problemas advindos do Movimento Matemática Moderna. As críticas consubstanciadas em reformas curriculares apontavam a necessidade de ressignificar o ensino da matemática e, consequentemente, o papel do professor e do aluno. As propostas e recomendações convergiam para um ensino centrado na resolução de problemas. De maneira geral, essas propostas apontavam para a necessidade de direcionar o ensino para o desenvolvimento de competências e não apenas para estudos posteriores, para a importância de o aluno tornar-se sujeito de sua aprendizagem, para a busca de um ensino mais holístico e menos fragmentado e para a utilização de novas tecnologias (BRASIL, 1998, p. 20). Essas propostas se reuniram em torno de um movimento que, a partir do início dos anos 1980, tem sido chamado no Brasil de Educação Matemática. 2 Reforma Francisco Campos 12 Módulo 5 - Didática aplicada à Matemática De acordo com Pires (1995, p. 55) as reformas curriculares desencadeadas a partir da década de 1980 tinham suas críticas centradas na preocupação excessiva com o treino de habilidades, com a mecanização de algoritmos, com a memorização de regras e esquemas de resolução de problemas, com a repetição e a imitação. Apontavam ainda como problemas a serem enfrentados, a priorização dos temas algébricos e a redução ou, muitas vezes, eliminação do trabalho com a Geometria. Destacavam também a tentativa de se exigir do aluno uma formalização precoce e um nível de abstração em desacordo com seu amadurecimento. É importante dizer que tais críticas aconteceram a partir do evidente fracasso que os currículos do Movimento Matemática Moderna pareciam produzir. Ao perder o sentido prático, a Matemática afastou-se cada vez mais da compreensão dos estudantes. A Educação Matemática, novo ideário que surgiu a partir dessas críticas, se contrapõe a essa perspectiva e lança-nos o desafio de ressignificar a atividade matemática escolar. Aprender e ensinar na perspectiva da educação matemática Como você pode ver, no Brasil, mais precisamente a partir de meados dos anos 1980, estamos vivendo um novo paradigma no ensino da matemática, denominado Educação Matemática. Temos o desafio de reconstruir o processo de ensino e aprendizagem da matemática sob uma lógica que nós mesmos não vivemos, em nossos tempos escolares. Se considerarmos as críticas apontadas pela autora acima, vamos ver que todos nós, de uma maneira ou de outra, vivemos uma matemática pouco significativa em sala de aula, como estudantes da escola básica. E agora, como professores, o que vamos fazer? Para compreender melhor as propostas da Educação Matemática, vamos inicialmente pensar nos papéis sociais do matemático e do educador matemático. Segundo Fiorentini (2006, p. 5), apesar de frequentemente o professor de matemática ser chamado de matemático, ambos têm papéis diferentes na sociedade. Para esse autor, o matemático tem como fim a própria matemática e trabalha para o desenvolvimento dessa área do conhecimento. Já o educador matemático trabalha para a formação humana pela matemática. Assim, a matemática é vista como “um meio ou instrumento importante à formação intelectual e social de crianças, jovens e adultos.” 13Unidade I - Fundamentos da Educação Matemática Mas quais são as mudanças que a Educação Matemática nos convida a fazer? Na perspectiva da educação matemática, o professor é muito mais do que um transmissor de conhecimentos. Ao considerar que o estudanteé ativo em sua aprendizagem e que o conhecimento matemático é sócio-historicamente produzido, cabe ao professor ser mediador da aprendizagem matemática. Isso faz com que seu papel se desloque para o de organizador de atividades matemáticas que facilitem e incentivem a expressão do pensamento matemático do estudante. Tomar a matemática como saber social e historicamente produzido nos leva a considerar que não podemos falar apenas em uma Matemática, mas em diversas matemáticas. Assim pluralizada, estamos considerando que a matemática é composta por múltiplos saberes que possuem aproximações, afastamentos e vizinhanças. Podemos falar, por exemplo, dos saberes científicos, produzidos nas academias e centros de pesquisas, também chamados de matemática pura. Há também os saberes produzidos nas mais diversas práticas sociais. Por fim, há os saberes matemáticos escolares que não são os saberes científicos puros e nem tampouco os saberes das práticas sociais. A Matemática, tal qual é produzida cientificamente, não é passível de ser aprendida e ensinada na escola. Para ser objeto de ensino e aprendizagem, a Matemática passa por um processo de transformação ou de aproximações que possibilita a sua compreensão. A esse conjunto de transformações se tem chamado de transposição didática. Segundo Muniz (2008, p. 191) “a transposição aparece como elemento de ligação entre o conhecimento científico da matemática e a matemática que o aluno, no seu nível de desenvolvimento psicológico, é capaz de aprender e de produzir”. A transposição didática realizada pelo professor revela suas concepções sobre a matemática e sobre o ato de aprender e ensinar. Se o professor acredita que a matemática é um conhecimento puro e acabado, produzido por gênios por meio de processos lógicos e universais, tenderá a realizar uma transposição comprometida com a matemática ciência. Se, por outro lado, o professor concebe a matemática como um saber sociocultural produzido pelos homens para atender às suas necessidades, a transposição didática será baseada na efetiva ação do aluno e em uma matemática com mais significado para ele. O tipo de transposição didática vai determinar ainda o conjunto de convenções que regem a relação entre professores e alunos. Esse conjunto de normas, quase sempre implícitas, é denominado contrato didático (SILVA, p. 43). A prática pedagógica em matemática tem revelado um contrato didático em que o professor é o transmissor do conhecimento. Por meio de aulas expositivas, ele registra no quadro definições matemáticas, que depois são cobradas em listas de exercícios.
Compartilhar