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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck Objetivos 1- Discutir a epidemiologia, etiologia e fatores de risco da malária; 2- Debater a fisiopatologia e manifestações clínicas da malária; 3- Explicar o diagnóstico e o tratamento da malária. Malária ↠ Pode ser caracterizada como doença febril, não contagiosa, com acometimento de múltiplos órgãos e sistemas, de evolução potencialmente grave, quando não tratada precocemente (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). O termo provém do italiano medieval e significa “maus ares” (mala aire), pois havia a crença de que a malária era advinda dos pântanos e locais alagados, de tal modo que o nome atribuído à doença era, à época “febre do pântano” (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). EPIDEMIOLOGIA ↠ A malária é uma das principais doenças parasitárias da atualidade, com cerca de 216 milhões de casos e 445.000 mortes anuais (FERREIRA, 2020). ↠ Mais de 90% dos casos ocorrem na África, especialmente nas extensas áreas de savana e floresta equatorial ao sul do Saara, onde a malária é uma das principais causas de morte entre crianças com menos de 5 anos de idade e gestantes (FERREIRA, 2020). ↠ O Brasil, que contribui com 39% dos casos de malária registrados no continente americano, tem suas principais áreas endêmicas na Amazônia Legal. Registram-se no país quase 200.000 novos casos a cada ano (FERREIRA, 2020). ↠ A malária no Brasil é endêmica na região Norte, principalmente nos estados da Amazônia legal (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima), com casos raros em áreas de mata atlântica da região Sudeste (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Porém, é possível catalogar esparsas ocorrências em outros estados, o que se explica pelo fluxo contínuo de pessoas entre as várias localidades do país, facilitado pelos meios de transporte - como aviões, carros e caminhões - que cobrem longas distâncias em poucas horas (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ETIOLOGIA ↠ O Plasmodium falciparum (a causa da malária severa) e os outros quatro parasitas causadores de malária que infectam o homem (P. vivax, P. ovale, P. malariae e P. knowlesi) são transmitidos por fêmeas dos mosquitos do gênero Anopheles, os quais são amplamente distribuídos por toda a África, Ásia e América Latina (ROBBINS & COTRAN). PROTOZOÁRIO ↠ O protozoário causador da malária, do gênero Plasmodium, pertence ao filo Apicomplexa, classe Aconoidasida, ordem Haemosporida, família Plasmodiidae, gênero Plasmodium (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Há quase 100 espécies de plasmódios (REY, 4ª ed.). As espécies que habitualmente parasitam o homem são quatro: (REY, 4ª ed.). ➢ Plasmodium falciparum, responsável pela febre terçã̃ maligna, com acessos febris a intervalos de 36 a 48 horas; ➢ Plasmodium vivax, agente da febre terçã̃ benigna, com ciclo de 48 horas; ➢ Plasmodium ovale, com distribuição limitada ao Continente Africano e responsável por outra forma da febre terçã̃ benigna (ciclo de 48 horas); ➢ Plasmodium malariae causa a febre quartã, que se caracteriza pela ocorrência de acessos febris a cada 72 horas. ↠ As causadoras de infecções maláricas no Brasil são: P. vivax (mais de 80% dos casos), P. falciparum (próximo de 20% dos casos) e P. malariae (alguns poucos casos). Já foram documentados alguns casos de P. ovale no Brasil, todos importados do continente africano. A doença causada por P. vivax é a mais comum, por P. malariae é a mais leve e por P. falciparum é a mais grave (SIQUEIRA- BATISTA, 2020). VETOR ↠ A malária humana é transmitida exclusivamente por mosquitos do gênero Anopheles (FEREIRA, 2020). ↠ Os machos alimentam-se exclusivamente de néctares vegetais, e apenas as fêmeas se alimentam de sangue, cujas proteínas são necessárias à maturação dos ovos, APG 19 – “BAGAGEM EXTRA” 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck em um processo que se designa por ciclo gonotrófico (FEREIRA, 2020). ↠ Os comportamentos de picada e repouso são de importância epidemiológica, dado que as principais medidas de controle de vetores de malária baseadas em inseticidas (i. e., mosquiteiros tratados com inseticida e borrifação com inseticida residual) são de aplicação intradomiciliar (FEREIRA, 2020). FATORES DE RISCO ↠ A transmissão vetorial se dá pela picada da fêmea do mosquito do gênero Anopheles. Para tanto, as condições ambientais devem ser favoráveis, com temperatura ambiente entre 20 e 30ºC e alta umidade do ar (SALOMÃO, 2017). OBS: Não ocorre transmissão em temperaturas inferiores a 16 ou superiores a 33ºC, ou em altitudes acima de dois mil metros. Embora as chuvas favoreçam a formação de criadouros do vetor, quando muito fortes podem levar a perda de larvas e pupas (SALOMÃO, 2017). ↠ A capacidade vetorial dos anofelinos (ordem Diptera, família Culicidae, gênero Anopheles) de transmitir a doença é bastante variável. No Brasil, têm importância epidemiológica algumas espécies com características distintas em relação a seu habitat e comportamento (SALOMÃO, 2017). Na Região Amazônica, destaca-se o An. darlingi, cujos criadouros se estabelecem em grandes coleções hídricas, como rios, lagos e igarapés. Na faixa litorânea brasileira, predomina o An. aquasalis, em coleções de água salobra, enquanto na faixa remanescente de Mata Atlântica da região Sudeste são encontrados o An. bellator e o An. cruzi, que se reproduzem em pequenos volumes de água acumulados nas folhagens de bromélias. A maior atividade dos vetores se concentra nos períodos crepuscular e noturno, com autonomia de deslocamento variável de até sete mil metros (SALOMÃO, 2017). ↠ A intensidade de transmissão da malária influencia a imunidade protetora adquirida e o perfil clínico da doença. Em áreas com transmissão estável, com indivíduos frequentemente expostos e taxa de inoculação pelo vetor superior a 10 picadas/ano, a imunidade adquirida na infância leva à diminuição do risco de malária grave em adultos semi-imunes, que podem albergar parasitos de modo assintomático (SALOMÃO, 2017). ATENÇÃO: As pulverizações para a eliminação em massa dos mosquitos vetores foi inicialmente bem-sucedida, porém, ultimamente não tem dado certo, pois o DDT foi removido do mercado devido às questões ambientais. Os esforços da saúde pública em todo o mundo para controlar a malária, hoje, encaram os desafios dos mosquitos resistentes aos inseticidas e as espécies de Plasmodium resistentes aos fármacos (ROBBINS & COTRAN). ↠ Sabe-se que a ocorrência de desmatamento e inúmeras mudanças na utilização do território se constituem como impactos ambientais antropogênicos significativos, que possibilitaram um ressurgimento da malária nas últimas década (ROSA et. al., 2020). A malária é um grave problema de saúde pública que aumentou em decorrência do elevado fluxo migratório presente no projeto de Belo Monte, em decorrência disso criou-se o Programa de Controle da Malária (PCM). Esse programa visava a implementação de ações estratégicas, como: medidas de controle de vetores (pulverização interna de inseticidas e uso de mosquiteiros), bem como diagnóstico e tratamento adequado e imediato. Segundo Ladislau et. al., a efetivação dessas estratégias promoveu a diminuição dos casos de malária, indo de 6.275 casos em 2011 para 79 casos em 2015, nos municípios localizados na área de influência da hidrelétrica de Belo Monte (LADISLAU et. al., 2016). FISIOPATOLOGIA Protistas do gênero Plasmodium possuem diferentes formas evolutivas, encontradas no ciclo biológico do protozoário, e cuja morfologia microscópica, na maioria das vezes, é espécie-específica. As formas evolutivas estão descritas a seguir. (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ➢ Esporozoítos. Formas infectantes para o H. sapiens, inoculadas pela fêmea do mosquito Anopheles, responsável pela invasão dos hepatócitos. Os esporozoítos são delgados, curvos, com aproximadamente 11 μm, com membranas externa e interna, cujas organelas principais(núcleo e mitocôndrias) e enzimas de natureza proteolítica se acumulam em um dos polos do protozoário. Essa região é denominada complexo apical e está envolvida no processo de penetração na célula hospedeira. Ao entrar nos hepatócitos, eles se tornam criptozoítos e iniciam o processo de multiplicação por esquizogonia, produzindo os esquizontes hepáticos, os quais originarão a milhares de merozoítos hepáticos, que rompem o hepatócito e alcançam a circulação, onde invadirão os eritrócitos. ➢ Merozoítos hepáticos. São formas evolutivas menores do que os esporozoítos, de padrão ovoide e que penetram nos eritrócitos. No interior dessas células, tais formas evolutivas se diferenciam e se transformam em trofozoítos e, posteriormente, em esquizontes sanguíneos. Nessa etapa, é possível realizar a diferenciação entre as espécies do gênero Plasmodium. No P. falciparum, os trofozoítos apresentam citoplasma compacto com pigmentação escura e granulações de Maurer, e os esquizontes maduros dão origem a um total de 8 a 24 pequenos merozoítos sanguíneos. No P. vivax, os trofozoítos têm citoplasma grande com formato ameboide, pigmentação marrom- amarelada e granulações de Schüffner. Os esquizontes do P. vivax são maiores do que os do P. falciparum e podem originar de 12 a 24 merozoítos. No P. malariae, os trofozoítos têm cromatina grande, com granulações de Ziemann, e os esquizontes originam de 6 a 12 merozoítos com núcleo largo. Os esquizontes de Plasmodium agrupam- se, formando estruturas chamadas rosáceas. ➢ Merozoítos sanguíneos. Advêm da desagregação da rosácea; são formas evolutivas menores do que os 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck merozoítos hepáticos, compartilhando com estes últimos a capacidade de invadir os eritrócitos. ➢ Gametócitos. Os merozoítos sanguíneos passam por diferenciação, tornando-se trofozoítos imaturos, os quais dão origem aos gametócitos. Os femininos são denominados macrogametócitos, e os masculinos, microgametócitos. No P. falciparum, o macrogametócito tem cromatina e pigmentos centrais, e o microgametócito tem cromatina difusa. Ambos apresentam formato de lua crescente. No P. vivax, o macrogametócito tem pigmento azul e cromatina periférica, enquanto o microgametócito é arredondado com cromatina central; no P. malariae, o macrogametócito tem cromatina periférica e pigmentos escassos, e o microgametócito possui cromatina mais difusa. ➢ Oocinetos e oocistos. Após repasto sanguíneo em um hospedeiro infectado, dentro do estômago do mosquito do gênero Anopheles ocorre a união entre microgametócitos e macrogametócitos, originando o zigoto, que é móvel, longo e denominado oocineto (ovo móvel). Este aloja-se na parede intestinal do mosquito, desenvolvendo-se em oocisto, que cresce e matura, produzindo os esporozoítos, que migram para as glândulas salivares do vetor, recomeçando o ciclo. CICLO BIOLÓGICO ↠ Plasmodium spp. apresenta dois ciclos: um que ocorre no hospedeiro, o ser humano (forma assexuada do parasito, na qual a reprodução ocorre por esquizogonia); e outro que ocorre no vetor, fêmeas do mosquito do gênero Anopheles (forma sexuada do patógeno, na qual a reprodução ocorre por esporogonia) (SIQUEIRA- BATISTA, 2020). ↠ O ciclo no ser humano tem dois estágios principais: o exoeritrocítico (ou pré-eritrocítico), no fígado; e o eritrocítico, no sangue (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). NO HOSPEDEIRO ↠ A infecção humana inicia-se com a inoculação no tecido subcutâneo, durante o repasto sanguíneo, de 15 a 200 esporozoítos provenientes das glândulas salivares de mosquitos fêmeas do gênero Anopheles (FERREIRA, 2020). OBS.: Após cerca de 45 minutos, essas formas desaparecem do sangue circulante, nesse estágio, os parasitas encontram-se recobertos por um polipeptídeo chamado proteína circunsporozoíta, que tem sido utilizada como um dos alvos das vacinas antimaláricas (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ Do subcutâneo, os esporozoítos atravessam diferentes tipos celulares, incluindo fibroblastos e fagócitos, até chegarem à corrente sanguínea ou linfática. Se alcançarem os vasos sanguíneos, chegam ao fígado cerca de 30 minutos após a inoculação, onde são capturados por células de Küpffer e atravessam as células endoteliais dos capilares hepáticos e diversos hepatócitos até se estabelecerem em um deles (FERREIRA, 2020). Embora os mecanismos moleculares que possibilitam ao parasito atravessar diferentes tipos celulares ainda não sejam completamente conhecidos, demonstrou-se recentemente o papel essencial de duas proteínas de esporozoítos nesse processo, SPECT (do inglês, sporozoite microneme protein essential for cell traversal)-1 e SPECT- 2, esta última também conhecida como PLP (perforin-like protein)-1 (FERREIRA, 2020). ↠ Ao chegar no parênquima do fígado, forma-se uma grande célula multinucleada, o esquizonte hepático. Após essa etapa (ao final de 8 a 15 dias), as células que se encontravam parasitadas são rompidas, e o esquizonte origina os merozoítos, envoltos em uma vesícula conhecida como merossomo, na luz de sinusoides hepáticos (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). OBS.: Esquizogonia é o processo de reprodução assexuada que resulta na formação do esquizonte, que, por sua vez, dará origem aos merozoítos. A esquizogonia que ocorre em hepatócitos é conhecida como esquizogonia hepática, tecidual, pré-eritrocitária ou exoeritrocitária, para distingui-la dos ciclos esquizogônicos que posteriormente ocorrem nas hemácias (FERREIRA, 2020). IMPORTANTE: Nas infecções devidas ao P. falciparum e ao P. malarie, os esquizontes teciduais se rompem todos ao mesmo tempo e nenhum persiste no interior dos hepatócitos. Já naquelas decorrentes do P. ovale e do P. vivax, algumas formas exoeritrocíticas, denominadas hipnozoítas, permanecem latentes no fígado por meses ou anos, e parecem ser responsáveis pelas recidivas tardias observadas nas infecções causadas por essas duas espécies (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). Os mecanismos que levam à reativação dos hipnozoítos são desconhecidos; especula-se que a febre, causada pela própria malária ou infecções bacterianas, possa estimular a reativação (FERREIRA, 2020). ↠ Posteriormente, os merozoítos liberados no sangue dos sinusoides hepáticos invadem os eritrócitos (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). Os merozoítos são estágios extracelulares de formato ovoide, com 1 a 3 µm de comprimento, que invadem exclusivamente hemácias. O Hipnozoítos e a esquizogonia exoeritrocitária em Plasmodium vivax e P. ovale. Os esporozoítos que penetram hepatócitos podem multiplicar-se intensamente ao longo dos próximos 8 a 15 dias, originando milhares de merozoítos a serem liberados na corrente sanguínea (esquizogonia exoeritrocitária), ou podem permanecer dormentes no interior da célula hospedeira, por semanas ou meses, sob a forma de hipnozoítos. 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck processo de invasão dessa célula hospedeira por merozoítos de P. falciparum, que leva 1 a 2 minutos, envolve as cinco etapas (FERREIRA, 2020). ↠ Nesse processo desempenham papel fundamental as estruturas que formam o chamado complexo apical, as roptrias, os micronemas, os grânulos densos e o anel polar (FERREIRA, 2020). ↠ Ocorre inicialmente o reconhecimento de receptores da superfície da hemácia. Acredita-se que essa interação inicial seja mediada por componentes da superfície dos merozoítos, as merozoite surface proteins (MSPs). Algumas MSPs são ancoradas na membrana do parasito por uma estrutura de glicosilfosfatidilinositol (GPI), como MSP-1, 2, 4, 5, 8 e 10; outras são solúveis, como MSP-3, 6, 7 e 9 (FERREIRA, 2020). ↠ A MSP-1 parece interagir com a banda 3, uma proteína abundante na membrana da hemácia, mas o papel dessa interação no processo de invasão não está plenamente estabelecido. A etapa seguinte consiste na reorientação do merozoíto. O parasito posiciona seupolo apical em contato com a membrana da hemácia. No interior de roptrias e micronemas, encontram-se diversas outras moléculas, especialmente proteases, que serão secretadas durante o processo de invasão celular, facilitando a formação de um poro entre o merozoíto e a hemácia e a invaginação da membrana da hemácia (FERREIRA, 2020). OBS.: Receptores específicos na superfície dos eritrócitos: Glicoforina A, uma proteína que é provavelmente o receptor para o P. falciparum; o ácido siálico, na membrana do eritrócito, pode também funcionar como receptor de entrada para este plasmódio. Um antígeno das hemácias, o fator Duffy, constitui o receptor específico necessário para a invasão dessas células pelos merozoítos do P. vivax (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ Inicia-se então a etapa de entrada do merozoíto na hemácia, dependente da interação de uma proteína integral da membrana, a apical membrane protein (AMA)- 1, produzida pelos micronemas, com proteínas de roptrias da família RON, especialmente RON-2. Segundo a hipótese mais aceita, RON-2 é translocada para a membrana da célula hospedeira e serve como ponto de ancoragem de AMA-1, que se conecta aos feixes de actina e miosina do parasito. Deste modo, o merozoíto é impulsionado para a frente, formando um vacúolo à medida que penetra a célula. Finalmente, o merozoíto descarta suas moléculas liberadas durante sua interação com a membrana da hemácia, tornando possível o fechamento do vacúolo que se formou durante a invasão (FERREIRA, 2020). OBS.: Plasmodium vivax parasita exclusivamente reticulócitos, hemácias jovens que ainda expressam o receptor de transferrina-1 (TfR-1), também conhecido como CD71. Em contraste, P. falciparum invade hemácias de todas as idades, ainda que apresente preferência por hemácias jovens. P. malariae não mostra preferência por algum tipo de hemácia (FERREIRA, 2020). ↠ No interior dos eritrócitos, os merozoítos transforma- se em trozoítas jovens, conhecidos como forma em anel, que crescem, tornam-se irregulares (trozoítas ameboides) e, em determinado momento, mostram sinais de divisão no núcleo, eles se convertem, então em esquizontes hemáticos, que, por divisão do núcleo e posterior segmentação, originam um número variável de merozoítos hemáticos (6 a 36). Esse processo de multiplicação assexuada se chama esquizogonia eritrocítica e, nessa fase, os parasitas metabolizam a hemoglobina da hemácia, originando um produto denominado hemozoína (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). A hemozoína é um pigmento escuro composto de 65% de proteínas, 16% de hematina, 6% de carboidratos e pequenas quantidades de lipídeos e ácidos nucleicos; este pigmento irá depositar-se em vários órgãos durante a evolução clínica da doença (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ A saída dos merozoítos da hemácia exige a ruptura do vacúolo parasitóforo em que o parasito se instalou e da membrana celular da célula hospedeira. Primeiro Representação esquemática do processo de invasão de hemácias por merozoítos de plasmódios. 1. Reconhecimento, a distância, de receptores da superfície da hemácia. 2. Reorientação da posição do merozoíto, de modo a colocar seu polo apical em contato direto com a membrana da hemácia. 3. Invaginação da membrana da hemácia. 4. Interações de alta afinidade de moléculas do merozoíto com receptores da hemácia, inicialmente em seu polo apical e estendendo-se até seu polo posterior, facilitando a penetração do merozoíto, que forma um vacúolo à medida que penetra célula. 5. Descarte das moléculas que interagem com a membrana da hemácia, possibilitando o fechamento do vacúolo que se formou durante a invasão, com o merozoíto em seu interior. 5 Júlia Morbeck – @med.morbeck rompe-se o vacúolo parasitóforo, como resultado da ação de proteases do parasito. Consequentemente, os merozoítos ficam livres no citosol da hemácia ainda intacta. A seguir, eleva-se subitamente a pressão intracelular e ocorre degradação do citoesqueleto da hemácia. Sua membrana celular rompe-se, liberando os merozoítos (FERREIRA, 2020). ↠ Os merozoítas liberados voltarão a parasitar outros glóbulos vermelhos e repetir o ciclo (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). ↠ O intervalo entre os picos febris corresponde à duração da esquizogonia sanguínea em cada espécie. Os merozoítos que invadem novas hemácias podem transformar-se em trofozoítos e posteriormente em esquizontes, ou alternativamente podem diferenciar-se em formas de reprodução sexuada, os gametócitos, infectantes para os mosquitos vetores (FERREIRA, 2020). ↠ Após um período de 3 a 10 dias do início dos sintomas clínicos, alguns parasitas diferenciam-se em gametócitos femininos (macrogametócitos) e masculinos (microgametócitos) (FOCACCIA et. al., 5ª ed.). NO VETOR ↠ A próxima fase do ciclo vital, conhecida como esporogonia, ocorre no mosquito. Os gametócitos ingeridos durante o repasto sanguíneo, diferentemente dos demais estágios eritrocitários do parasito, não são digeridos no estômago dos mosquitos. Em poucos minutos o gametócito masculino sofre a exflagelação, desencadeada pela mudança de temperatura na passagem do ser humano para o mosquito, que resulta na formação de seis a oito gametas masculinos ou microgametas, enquanto os gametócitos femininos transformam-se em macrogametas (FERREIRA, 2020). ↠ O zigoto formado pela fusão de microgametas e macrogametas transforma-se, em poucas horas, em um estágio móvel chamado oocineto. Ao penetrar a parede do estômago do mosquito, o oocineto transforma-se em oocisto, uma estrutura esférica que se aloja entre o epitélio e a membrana basal, em cujo interior se formam esporozoítos. Com a ruptura do oocisto, milhares de esporozoítos liberam-se e migram para as glândulas salivares dos mosquitos. A cada repasto sanguíneo, dezenas de esporozoítos são inoculadas no hospedeiro vertebrado (FERREIRA, 2020). ↠ O ciclo no vetor dura, em geral, de 7 a 21 dias (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). IMUNOLOGIA E PATOLOGIA ↠ Quando da inoculação de esporozoítos, após a picada do mosquito vetor, pode haver ativação da imunidade inata na derme, envolvendo mastócitos, neutrófilos, células natural killer (NK), células NKT e células gama-delta. Entretanto, não se observa resposta inflamatória local de importância, o que justifica o silêncio clínico desse período e a impossibilidade de conter a infecção nessa fase. O mesmo ocorre no fígado: após a invasão e o desenvolvimento parasitário, a liberação de merozoítos não apresenta qualquer importância clínica (embora possa haver morte celular de hepatócitos infectados) e não provoca aparecimento de qualquer sintoma na fase pré- eritrocítica (SALOMÃO, 2017). ↠ A falta de uma resposta robusta da imunidade inata ou adaptativa no período pré-eritrocítico parece estar relacionada ao tempo fugaz de permanência do parasito na pele e ao pequeno número de hepatócitos infectados, embora isto se dê por mecanismo ainda não completamente elucidado (SALOMÃO, 2017). ↠ Na etapa de desenvolvimento parasitário nos ciclos sanguíneos, ao contrário, ocorre intensa ativação celular, com fenômeno inflamatório sistêmico considerável, dependente da acentuada liberação de citocinas, à semelhança do que se observa na sepse bacteriana (SALOMÃO, 2017). Representação esquemática do processo de saída dos merozoítos da hemácia infectada. 1. Esquizonte maduro com merozoítos já formados. 2. Ruptura do vacúolo parasitóforo, com liberação dos merozoítos no citosol da hemácia intacta. 3. Aumento do diâmetro da hemácia como resultado da elevação da pressão intracelular e da degradação de seu citoesqueleto. 4. Ruptura da membrana celular da hemácia liberando os merozoítos. 6 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ A ruptura de hemácias infectadas na circulação sistêmica leva à liberação de citocinas pro-inflamatórias e quimiocinas, tais como interleucina(IL)-1β, IL-6, IL-8, IL-12, fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e IFN-γ, responsáveis pelo aparecimento da síndrome febril, característica da malária. A ativação dessa resposta parece depender da interação (PAMP/PRP) de diversos padrões moleculares associados ao patogéno (PAMP) e seus respectivos receptores de reconhecimento de padrões (PRR) (SALOMÃO, 2017). ↠ Desencadeia-se então a resposta imune adaptativa aos parasitos no ciclo sanguíneo, com participação das imunidades humoral e celular. Embora o papel protetor dos anticorpos nessa fase tenha sido demonstrado há mais de 50 anos por Cohen, ao verificar que a transferência passiva de anticorpos IgG obtidos de adultos com história prévia de malária é capaz de induzir remissão rápida da febre e redução da parasitemia em crianças com infecção aguda, até o momento não se sabe exatamente quais antígenos parasitários induzem à produção desses anticorpos, de que maneira os anticorpos induzem proteção e, tampouco, por que razão tal proteção demora muitos anos para se estabelecer. Acredita-se que a diversidade genética parasitária e o polimorfismo antigênico das proteínas expressas na superfície das hemácias infectadas sejam responsáveis pela incapacidade de o hospedeiro estabelecer imunidade esterilizante, ou mesmo duradoura (SALOMÃO, 2017). ↠ Além disso, a resposta humoral participa da patogênese da doença, ao provocar ativação policlonal de células B e, consequentemente, a produção de autoanticorpos, capazes de contribuir para o desenvolvimento de anemia, de plaquetopenia na infecção, causada pelas diferentes espécies, e de glomerulonefrite por deposição de imunocomplexos na membrana basal glomerular, em alguns casos de infecção por P. malariae (SALOMÃO, 2017). ↠ Mecanismos efetores relacionados à imunidade celular são importantes também na defesa do hospedeiro contra o ciclo sanguíneo dos plasmódios. A resposta imunológica nesse aspecto depende do reconhecimento de antígenos parasitários por linfócitos T CD4+ e do desencadeamento de resposta específica com acentuada produção de IFN- γ, que ativa macrófagos e induz intensa fagocitose de hemácias parasitadas e, até mesmo, de hemácias não infectadas, particularmente no baço. A produção de IFN- γ e de TNF-α, por outro lado, induz a produção de óxido nítrico e de outros radicais tóxicos para o parasito em seu desenvolvimento no ciclo sanguíneo (SALOMÃO, 2017). CITOADERÊNCIA E PRODUÇÃO DE ROSETAS ↠ A malária por P. falciparum é a mais grave devido a dois fenômenos importantes: a citoaderência e a produção de rosetas (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ O primeiro fenômeno ocorre porque, à medida que o parasito amadurece no interior dos eritrócitos, envia proteínas para a superfície deles, as quais são incorporados à membrana celular. Consequentemente, o eritrócito passa a apresentar “botões” protuberantes, ou knobs, com propensão particular a aderirem a moléculas do endotélio (citoaderência). Assim, esses botões começam a obstruir a circulação, principalmente a microcirculação nos capilares sanguíneos do cérebro, dos rins, pulmões e da placenta (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Nesse processo de adesão celular, os knobs se conectam aos diferentes receptores endoteliais do hospedeiro, que podem ser molécula de adesão intercelular 1 (ICAM-1), molécula de adesão leucocitária ao endotélio 1 (ELAM-1) e molécula de adesão vascular 1 (VCAM-1); no cérebro, o principal ligante é o ICAM-1. Além disso, os glóbulos vermelhos infectados passam a aderir aos glóbulos vermelhos normais, formando aglomerados celulares, ou “rosetas” (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). OBS.: Esses dois fatores em conjunto podem causar a grave interrupção do fluxo sanguíneo, levando a hipoxia e efeitos metabólicos deletérios, como a acidose láctica e a hipoglicemia, ou a disfunções orgânicas graves, se o local afetado for o cérebro, o fígado ou os rins (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). OBS.: O baço é comumente afetado nas infeções pelo parasito, e está relacionado à proteção e à gravidade da doença, considerando sua participação na resposta imune e, ainda, as observações de maior gravidade da moléstia nos pacientes esplectomizados. A malária cursa, normalmente, com esplenomegalia, e os resultados demonstram, fortemente, a relação da resposta inflamatória ocorrida nesse órgão e o controle da carga parasitária (ou seja, atua substantivamente no controle da parasitemia) (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). 7 Júlia Morbeck – @med.morbeck A resistência do hospedeiro ao Plasmodium pode ser intrínseca ou adquirida. A resistência intrínseca resulta de alterações herdadas, que reduzem a suscetibilidade dos eritrócitos às infecções produtivas pelo Plasmodium. A resistência também pode ser adquirida, após a exposição repetida ou prolongada às espécies de Plasmodium, as quais estimulam uma resposta imune parcialmente protetora (ROBBINS & CONTRAN). Vários tipos de mutação que afetam os eritrócitos são altamente prevalentes em partes do mundo nas quais a malária é endêmica e não estão presentes em outros locais. A maioria dessas mutações é deletéria na forma homozigótica, sugerindo que são mantidas nas populações devido à vantagem seletiva para os portadores heterozigóticos contra a malária. As mutações são classificadas em quatro grandes classes: (ROBBINS & CONTRAN). ➢ Mutações pontuais nos genes das globinas: anemia falciforme (HbS) e doença da HbC (hemoglobinopatias). ➢ Mutações que resultam em deficiências de globina - talassemia-α e β. ➢ Mutações que afetam as enzimas dos eritrócitos - deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). ➢ Mutações que causam defeitos na membrana dos eritrócitos - falta de DARC (grupo sanguíneo de superfície Duffy), banda 3, espectrina O P. vivax entra nos eritrócitos através da ligação ao antígeno do grupo sanguíneo Duffy, e a maioria da população da África Ocidental não é suscetível à infecção pelo P. vivax, porque eles não possuem este grupo sanguíneo (ROBBINS & CONTRAN). Indivíduos que vivem onde o Plasmodium é endêmico frequentemente ganham resistência imunomediada parcial à malária, evidenciada pela reduzida doença, apesar da infecção. Anticorpos e linfócitos T específicos para o Plasmodium reduzem as manifestações da doença, embora o parasita tenha desenvolvido estratégias para escapar da resposta imune do hospedeiro. O P. falciparum utiliza a variação antigênica para escapar das respostas dos anticorpos à PfEMP1. Cada genoma haploide do P. falciparum tem cerca de 50 genes var, cada qual codificando uma variante de PfEMP1. O mecanismo da regulação var não é conhecido, porém pelo menos 2% dos parasitas mudam os genes PfEMP1 a cada geração. Células T citotóxicas também podem ser importantes na resistência contra o P. falciparum (ROBBINS & CONTRAN). OBS.: Em áreas endêmicas, os neonatos podem ser protegidos pela transferência de IgG através da placenta ou, ainda, pela presença de hemoglobina fetal nos eritrócitos (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). No Brasil, há evidência de aquisição de imunidade clínica em populações da Amazônia, após vários anos de exposição ao parasito, embora os níveis de transmissão de malária sejam substancialmente inferiores aos observados na África (FERREIRA, 2020). MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS O período de incubação (entre a picada do mosquito e o aparecimento das primeiras manifestações) varia conforme a espécie do plasmódio: 14 dias para o P. vivax, 30 dias para o P. malariae e 12 dias para o P. falciparum (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ As manifestações clínicas da malária têm início na fase eritrocítica, quando hemácias infectadas se rompem, liberando merozoítos e pirógenos endógenos na circulação sistêmica. Inicia-se, assim, o sintoma mais sugestivo da doença, o acesso malárico ou acesso palúdico (SALOMÃO, 2017). ↠ Esse quadro paroxístico de febre tem início com tremores e intensasensação de frio, em período de 15 a 60 min, que coincide com a rápida elevação da temperatura corporal, até que se atinjam valores máximos bastante elevados (acima de 40ºC) (SALOMÃO, 2017). ↠ A febre costuma ser acompanhada de intensa cefaleia, podendo também ocorrer mal-estar, mialgias, artralgias, náuseas e vômitos. Atingido esse patamar de temperatura elevada, o quadro clínico se modifica, passando o paciente a relatar sensação de muito calor. Os sintomas gerais podem persistir nessa fase, que dura cerca de 2 a 6 h. Finalmente, o acesso malárico costuma encerrar-se na terceira fase (que pode durar de 2 a 4 h), na qual se observa sudorese profusa acompanhando a remissão da febre. De modo didático, pode-se resumir o acesso malárico como composto de três fases sucessivas: a de tremor, a de calor e a de suor. Após o paroxismo febril, são frequentes os relatos de cansaço acentuado e sonolência (SALOMÃO, 2017). OBS.: Os acessos palúdicos se sucedem periodicamente, visto que decorrem da ruptura de hemácias a cada ciclo de esquizogonia sanguínea. Assim, sua periodicidade depende da duração da esquizogonia eritrocitária, sendo conhecida como febre terçã (em intervalos de 48 h) nas infecções por P. vivax, P. falciparum e P. ovale, e febre quartã (intervalos de 72 h) nas infecções causadas por P. malariae. É importante ressaltar que na primeira semana de doença a febre pode ser contínua, até que se instale sincronismo no desenvolvimento parasitário intraeritrocítico. Particularmente na malária falciparum, a febre pode não ter periodicidade nítida. (SALOMÃO, 2017). 8 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ Outras formas clínicas que são eventualmente observadas no adoecimento por malária são a colérica e a álgida. Na primeira, há diarreia com forte desidratação; e a segunda, cujo principal mecanismo fisiopatológico é a mediação do fator de necrose tumoral (TNF), apresenta- se com cianose periférica e pele fria (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). MALÁRIA FALCÍPARA (GRAVE) ↠ As manifestações clínicas graves da malária falcipaum em indivíduos vulneráveis decorrem, fundamentalmente, do fenômeno de citoaderência das hemácias parasitadas e não parasitadas (formação de rosetas) junto ao endotélio capilar (microcirculação). Aliadas a esse fenômeno, observam-se alterações decorrentes da intensa resposta inflamatória que se estabelece na interação do parasito com o sistema imunológico do hospedeiro infectado (SALOMÃO, 2017). ↠ A malária causada por P. falciparum é grave e deve ser considerada uma emergência médica, sendo imprescindível a internação em unidade de terapia intensiva (UTI) visando à minimização de danos advindos de complicações da infecção malárica grave. Os pacientes podem evoluir com achados clínicos compatíveis com sepse, com envolvimento de diferentes órgãos e sistemas (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Nos indivíduos infectados por P. falciparum, a produção aumentada de anticorpos não interfere na reprodução de parasitos; além disso, como o protozoário invade tanto eritrócitos jovens quanto velhos, uma alteração laboratorial presente é a hiperparasitemia, podendo ter mais de 5% dos eritrócitos parasitados. As principais alterações clínicas estão descritas a seguir: (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ➢ Malária cerebral - Acometimento do sistema nervoso central (SNC): É uma das principais causas de óbito nos quadros clínicos de malária grave, com letalidade de 10 a 50%. Tem apresentação clínica com cefaleia, bruxismo, rebaixamento do nível de consciência, delírio, sonolência, torpor, convulsões e coma. Há duas teorias que buscam elucidar a imunopatologia da malária cerebral: a da inflamação e a mecânica. Esta discorre sobre o sequestro de eritrócitos e a obstrução do fluxo sanguíneo cerebral com consequente hipoxia, enquanto aquela baseia o acometimento do SNC na significativa resposta imune com liberação de citocinas. ➢ Anemia: Costumeiramente presente no quadro inicial, progride com o aumento do sequestro eritrocitário e do parasitismo. Na anemia grave, a contagem de eritrócitos é menor que 15%, e a concentração de hemoglobina reduz-se a menos que 5 g/dℓ. Estudos indicam que polimorfismos na expressão de citocinas, bem como infecções virais e parasitárias, tornam o indivíduo mais suscetível a desenvolver anemia grave. Algumas citocinas pró- inflamatórias também parecem contribuir para o agravamento da anemia, por suprimirem a atividade hematopoética da medula óssea (FEREIRA, 2020). ➢ Disfunção hepática: Na fase aguda, a principal lesão anatomopatológica é a hepatomegalia, que também é percebida na clínica do paciente, junto com icterícia e aumento discreto de aminotransferases. Podem ocorrer também modificações no funcionamento do órgão, tais como: diminuição na síntese de fatores de coagulação e mudança no processo da gliconeogênese, que pode levar a episódios de hipoglicemia e acidose láctica. Na fase crônica, o comprometimento anatomopatológico é caracterizado por congestão hepática, colestase e dilatação sinusoidal. ➢ Insuficiência renal: Os danos renais decorrentes de infecção por P. falciparum podem ser leves ou graves, podendo ocasionar necrose tubular e insuficiência renal aguda (IRA). A IRA desenvolve- se a partir dos seguintes eventos: a citoaderência e os fenômenos embólicos provocam redução sistêmica do fluxo sanguíneo, causando hipoxia tecidual e isquemia renal. Além disso, a liberação de citocinas inflamatórias leva à vasoconstrição, agravando a isquemia renal, e à liberação de catecolaminas, que são tóxicas, culminando em lesões no parênquima renal. ➢ Disfunção pulmonar: Cursa com alta letalidade, cerca de 70%. Inicia-se com alteração na frequência respiratória, podendo evoluir para síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), na qual há dano endotelial disseminado. É necessário cuidado ao estabelecer terapia hídrica, a fim de não acarretar edema pulmonar no enfermo. Além disso, é preciso analisar a possibilidade de uso de assistência ventilatória mecânica. 9 Júlia Morbeck – @med.morbeck ➢ Choque: Pode ocorrer devido à redução na pressão arterial sistólica no ortostatismo combinada a acidose metabólica, sepse e/ou hemorragia. Pode ser classificado como choque hiperdinâmico, pois não há alteração na função cardíaca, e sim associação à queda na resistência vascular periférica. É uma situação rara, mas, quando presente, perfaz a síndrome malárica álgida. ➢ Coagulação intravascular disseminada: Ocorre devido à intensificação da cascata de coagulação e do sistema fibrinolítico. ➢ Hipoglicemia: Geralmente associa-se a hiperinsulinemia, pois fatores intrínsecos a P. falciparum intensificam a atividade das células betapancreáticas. A hipoglicemia é a principal disfunção metabólica dos pacientes com malária, ocorrendo, principalmente, em crianças e mulheres grávidas, eventualmente com curso fatal. Sua etiologia ainda não foi completamente compreendida, e é provável que seja multifatorial. Essa disfunção bem como outras complicações graves da malária – insuficiência renal aguda, icterícia, acidose metabólica e sangramento espontâneo – foram observadas em pacientes infectados por P. falciparum ou P. vivax, cuja doença estava associada à trombocitopenia. Os resultados sugerem, ainda, uma possível relação entre as citocinas TNF-α, (IL)-6 e IL-10 e a perturbação da produção de plaquetas. Os sinais clínicos podem abranger ansiedade, sudorese, taquicardia, dispneia e diminuição do estado geral de consciência até o coma (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ➢ Acidose metabólica: Ocorre devido a um conjunto de fatores que podem se dar concomitantemente: processo febril com consequente aumento de citocinas inflamatórias; redução e/ou congestão do fluxo sanguíneo hepático, ocasionando menor depuração do lactato;maior ação muscular em quadros convulsivos; hipoxia tecidual devido à anemia; e redução da cadeia de oxidação da glicose em eritrócitos parasitados. Em geral, a acidose está associada à resposta fisiológica de sua compensação utilizando padrão respiratório de Kussmaul (inspiração profunda, rápida e ruidosa, seguida de pausa e posterior expiração repentina), que promove alcalose respiratória. Na malária grave por P. falciparum, a acidose metabólica e a lesão renal aguda (LRA) são fatores predisponentes para um desfecho fatal, independentemente da faixa etária. Após análise da relação entre ácidos plasmáticos e urinários e função renal, as concentrações de ácido p- hidroxifenilático (pHPLA), no plasma e na urina, se correlacionam estreitamente com LRA em pacientes com malária grave. A gravidade da malária está relacionada a algumas “condições de risco”, com destaque para as seguintes: (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ➢ primo-infecção ou viajante em retorno de área endêmica (independentemente de idade ou estado imunológico); ➢ idade avançada; gestação; ➢ imunodepressão; ➢ demora no diagnóstico e na instituição do tratamento; ➢ gravidade da doença no momento da admissão hospitalar. DIAGNÓSTICO ↠ Ao avaliar um paciente com processo febril, cabe ao médico suspeitar da possibilidade de malária e, desse modo, realizar investigação direcionada à doença, questionando sobre a história epidemiológica do enfermo, viagens a áreas endêmicas ou riscos de infecção por realização de recente transfusão sanguínea ou de hemoderivados, ou ocorrência de acidentes com objetos perfurocortantes (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ANAMNESE ↠ É fundamental que seja realizada a investigação, durante a anamnese, da possibilidade de o paciente ter viajado recentemente a alguma área endêmica de malária (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). Na investigação epidemiológica da malária, empregam-se alguns conceitos básicos: (SALOMÃO, 2017). ➢ Caso autóctone: quando a transmissão ocorre no local, sem que o indivíduo tenha realizado deslocamentos para outras regiões. Supõe a existência de casos anteriores e continuidade da transmissão. ➢ Caso importado: quando a transmissão ocorre em local distinto ao de origem do indivíduo, em deslocamento realizado para área malarígena, e é detectado fora da área onde houve a infecção. ➢ Caso introduzido: quando a transmissão é local, porém não continuada, e o caso detectado se origina de outro, importado. ➢ Caso induzido: quando a transmissão ocorre sem a participação do vetor, ou seja, por transfusão sanguínea, uso compartilhado de seringas contaminadas ou por via congênita no momento do parto, em consequência de lesões nos vasos sanguíneos de mãe e filho. 10 Júlia Morbeck – @med.morbeck ➢ Recaída: quando a parasitemia sanguínea reaparece sem que o indivíduo tenha realizado novos deslocamentos para áreas com possibilidade de transmissão; o novo episódio de malária decorre de ataque primário anteriormente diagnosticado e tratado. EXAME FÍSICO ↠ Os achados mais frequentes ao exame físico incluem, além da febre, anemia e hepatoesplenomegalia de pequenas dimensões (SALOMÃO, 2017). ↠ O aumento do tamanho do fígado e do baço, por corresponder à hipertrofia e à hiperplasia do sistema fagocítico mononuclear, traduz-se semiologicamente pelo fato de se mostrarem de consistência normal ou amolecida, podendo ser discretamente dolorosos à palpação (SALOMÃO, 2017). ACHADOS CLÍNICOS (SALOMÃO, 2017) Rebaixamento do nível de consciência e/ou convulsões; Síndrome da angústia respiratória do adulto; Icterícia com sinal de outra disfunção orgânica; Hemoglobinúria; Choque; Hemorragia. EXAMES LABORATORIAIS MICROSCOPIA ÓPTICA DO SANGUE ↠ A confirmação da suspeita diagnóstica de malária baseia-se na técnica padrão: o exame da gota espessa (alta sensibilidade), no qual é puncionado o dedo do paciente para se obter uma gota de sangue, que é colocada em uma lâmina para análise microscópica. Trata- se de um método de exame rápido e simples, que possibilita a identificação de parasitos no sangue; porém, exige certa habilidade na leitura da lâmina, principalmente nos casos de baixa parasitemia e de infecções mistas (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Para se obter maior segurança no resultado, aconselha-se o uso da distensão sanguínea (alta especificidade), que possibilita não apenas a detecção dos protozoários, mas também, a identificação da espécie do Plasmodium, por meio da observação da morfologia do parasito e das alterações nos eritrócitos (SIQUEIRA- BATISTA, 2020). OBS.: O teste de diagnóstico para a infecção da malária é o exame de um esfregaço de sangue periférico corado pelo método de Giemsa, que permite que os estágios assexuados do parasita sejam identificados dentro dos eritrócitos (ROBBINS & COTRAN). ↠ Os esfregaços sanguíneos são a melhor alternativa para a distinção entre as espécies de plasmódios, já que possibilitam a avaliação da forma e do diâmetro relativo das hemácias, parâmetros essenciais para a definição da espécie infectante. No entanto, a sensibilidade diagnóstica do exame de esfregaços tende a ser inferior à da gota espessa (FEREIRA, 2020). TESTES RÁPIDOS ↠ Testes rápidos imunocromatográficos detectam antígenos parasitários e são úteis na ausência de microscopistas treinados. Entretanto são de custo mais Características morfológicas de estágios sanguíneos de Plasmodium vivax (A a D) e de Plasmodium falciparum (E e F) em esfregaços sanguíneos corados pelo Giemsa. Nas figuras A e B, observam-se trofozoítos maduros, de aspecto irregular (ameboide) (A) e um gametócito feminino (macrogametócito) (B) de Plasmodium vivax, indicados por setas. Observe a granulação de Schüffner (uma granulação fina e avermelhada) recobrindo toda a hemácia parasitada. Em C e D, observam-se esquizontes de Plasmodium vivax. O esquizonte maduro, mostrado em C, é também conhecido como rosácea. Em E e F, observam-se trofozoítos jovens; em F, são vistos dois gametócitos (um imaturo e um maduro) de Plasmodium falciparum (setas). Observe que os gametócitos têm formato de meia-lua 11 Júlia Morbeck – @med.morbeck elevado e não dispensam a realização da hematoscopia, considerando a necessidade de identificação específica para conduta terapêutica adequada (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Além disso, os testes imunocromatográficos podem manter resultados positivos, algum tempo após uso da medicação antimalárica, não sendo úteis como critério de cura (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). TESTES MOLECULARES ↠ Atualmente, devido aos limites analíticos dos exames anteriormente citados, são utilizadas técnicas alternativas, cujo princípio é a identificação do parasito com uso dos métodos moleculares de reação em cadeia da polimerase (PCR) (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ A reação em cadeia da polimerase (PCR) permite a detecção de parasitos com elevada sensibilidade, bem como sua especiação precisa, mas seu alto custo e a relativa complexidade limitam seu emprego a contextos de pesquisa. O recente desenvolvimento de métodos ultrassensíveis com base em PCR, tendo como alvo sequências repetitivas do parasito, torna possível a detecção de portadores de baixas parasitemias, muitas vezes completamente assintomáticos, que potencialmente contribuem com a manutenção da transmissão de malária nas comunidades endêmica (FEREIRA, 2020). EXAMES INESPECÍFICOS ↠ Exames complementares podem ser usados para avaliação do enfermo com diagnóstico de malária, embora sejam inespecíficos. No hemograma costuma ser identificado um quadro de anemia, achado comum nos pacientes infectados com parasitos do gênero Plasmodium (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ O leucograma apresenta-se variado, e as alterações oscilam de acordo com a evolução da doença, assim como as alterações fisiopatológicas variam de acordocom o órgão acometido. Entre os achados pode-se citar: aumento das aminotransferases e da bilirrubina, principalmente a indireta, além de hipoalbuminemia nos casos graves (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Alteração da função renal e presença de hemoglobinúria na urinálise também podem ser observadas em alguns casos. Infiltrado alveolar pode ser identificado em exames de imagem (p. ex., radiografia de tórax), na malária pulmonar (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). TRATAMENTO ↠ O tratamento da malária objetiva inviabilizar a biologia do parasito, em pontos-chave do seu ciclo evolutivo. Os fármacos utilizados, portanto, podem agir em diferentes sítios. Como primeiro objetivo terapêutico, cabe destacar a interrupção da esquizogonia sanguínea, processo extremamente importante na patogenia, na evolução, nas manifestações clínicas e nas complicações da infecção. Para tal, utilizam-se os esquizonticidas sanguíneos (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ↠ Outro elemento-chave do tratamento, segundo objetivo, diz respeito à destruição das formas latentes do parasito – em termos do ciclo tecidual (hipnozoítos) das espécies P. vivax e P. ovale –, evitando-se, assim, as recaídas. Para tal, utilizam-se fármacos hipnozoiticidas; finalmente, o terceiro objetivo – a erradicação das formas sexuadas dos parasitos, os gametócitos – é alcançado com medicamentos gametocidas (SIQUEIRA-BATISTA, 2020). ESQUEMAS RECOMENDADOS PARA A MALÁRIA NÃO COMPLICADA MALÁRIA POR P. VIVAX OU P. OVALE ↠ Apenas o P. vivax e o P. ovale têm hipnozoítos, a forma do parasito que se mantém dormente no fígado, e é responsável pelas recaídas (MS, 2020). ↠ O objetivo do tratamento de P. vivax e de P. ovale é curar tanto a forma sanguínea quanto a forma hepática (cura radical), e assim prevenir recrudescência e recaída, respectivamente. Para isso, usa-se a combinação de dois medicamentos: cloroquina e primaquina (MS, 2020). MALÁRIA POR P. MALARIAE ↠ O tratamento de P. malariae assemelha-se ao tratamento para malária vivax (apenas cloroquina por três dias), porém sem a necessidade de uso da primaquina (MS, 2020). MALÁRIA POR P. FALCIPARUM E INFECÇÕES MISTAS ↠ É recomendação da OMS o tratamento de P. falciparum com uma terapia combinada com algum derivado de artemisinina (ACT). A eficácia e a segurança de artesunato/mefloquina e artemeter/lumefantrina são bastante semelhantes (MS, 2020). 12 Júlia Morbeck – @med.morbeck PRIMAQUINA: Ainda que incompletamente compreendidos, os metabólitos da primaquina atuam como oxidantes responsáveis pela ação esquizonticida, bem como pela hemólise e pela metemoglobinemia verificadas como toxicidade (WHALEN, 6ª ed.). CLOROQUINA: Depois de atravessar as membranas do eritrócito e dos plasmódios, a cloroquina (uma base diprótica fraca) se concentra no vacúolo alimentar ácido do parasita, primariamente por sequestro iônico. No vacúolo alimentar, o parasita digere a hemoglobina celular do hospedeiro para obter os aminoácidos essenciais. Contudo, esse processo também libera grandes quantidades de heme solúvel, que é tóxico para o parasita. Para proteger-se, o parasita polimeriza o heme em hemozoína (um pigmento), que é aprisionado no vacúolo alimentar do parasita. A cloroquina liga-se especificamente ao heme, impedindo a polimerização em hemozoína. O aumento do pH e o acúmulo de heme resultam em lesões oxidativas às membranas fosfolipídicas, levando à lise do parasita e do eritrócito (WHALEN, 6ª ed.). Referências KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul; ASTER, Jon. Robbins & Cotran Patologia - Bases Patológicas das Doenças. Grupo GEN, 2016. SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo. Parasitologia - Fundamentos e Prática Clínica. Grupo GEN, 2020. FEREIRA, Marcelo U. Parasitologia Contemporânea. Grupo GEN, 2020. SALOMÃO, Reinaldo. Infectologia - Bases Clínicas e Tratamento. Grupo GEN, 2017. FOCACCIA et. al. Tratado de Infectologia, 5ª edição. São Paulo: Editora Atheneu, 2015. REY, Luís. Parasitologia, 4ª edição. Grupo GEN, 2008. BAHIA. Ministério da Saúde. Guia de tratamento da malária no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. WHALEN et. al. Farmacologia Ilustrada, 6ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2016. ROSA et. al. Epidemiologia da malária no Brasil e resultados parasitológicos, de 2010 a 2019. Brazilian Journal of health Review, 2020. LADISLAU et. al. O controle da malária, em área de construção de hidrelétricas no ecossistema amazônico, pode ter êxito? Revista Pan-Amazônica de Saúde, v. 7, 2016.
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