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1 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DA ÁFRICA AULA 4 Prof. Edmar Almeida De Macedo 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, veremos mais alguns povos e Estados que marcaram a história africana. Iniciamos com o Reino de Axum, com sua cultura singular, sua língua e cultura tão particulares, que deixaram marcas e influências na região até os dias de hoje. Veremos ainda os impérios do Mali e do Songai, que representaram poderosas formações estatais na margem do Saara, em diferentes alturas do Rio Niger e que impressionaram o mundo árabe e mediterrâneo por sua riqueza, sendo também fortemente influenciadas pela penetração do islamismo. Aliás, sem compreender o islamismo é impossível compreender a África, ao menos em sua porção norte. A expansão dessa religião do vizinho Oriente Médio para o continente africano trouxe consigo a cultura árabe, que em alguns lugares se impôs de maneira decisiva e em outros sofreu mais resistências, mas em todos esses lugares mesclou-se em maior ou menor medida com a cultura local, dando origem a formações culturais singulares. A introdução do islamismo também representou mudanças políticas e de relações exteriores, como veremos. Discutiremos também a escravidão, essa instituição milenar presente também no continente africano. Temos presente que este é um conteúdo na mira do “revisionismo” histórico, esse tipo de negacionismo presente em nosso campo do conhecimento. Esse revisionismo tenta justificar a escravidão a partir da constatação da sua pré-existência no continente africano, anterior ao momento das Grandes Navegações europeias e da colonização das Américas. Veremos aqui que quantidade faz toda a diferença na qualidade do fenômeno, de modo que a proposição revisionista não possui o menor sentido. Por fim, daremos um sobrevoo na história de outras regiões africanas não tão exploradas até aqui, demonstrando que a civilização humana se fazia presente em todo o continente. Se não exploramos mais profundamente a história de todas as regiões do continente, isso se deve ao diversificado acúmulo historiográfico sobre as diversas regiões, assim como às escolhas que devem ser feitas para fins didáticos, considerando o tempo e a extensão de uma aula. 3 TEMA 1 – AXUM Nessa região desenvolveu-se o Império de Axum, que floresceu entre os séculos I e VII d.C. Sua economia transitou de uma rudimentar agricultura de subsistência para uma complexa civilização que cunhava moedas de ouro, prata e cobre, que praticava a metalurgia e comercializava com o Mediterrâneo, o mundo árabe e o sul da Ásia (Índia e Sri Lanka), principalmente pelo porto de Adulis, no Mar Vermelho. No entanto, a agricultura e a pecuária sempre se mantiveram como a atividade econômica fundamental, ao lado das atividades comerciais próprias dos três grandes centros urbanos: Axum, Adulis e Matara. Com relação à sua organização política: o rei de Axum, chamado basileus, era o chefe supremo do Estado axumita, seguido pelos reis (basiliscoi) de regiões e cidades que caíram sob o domínio axumita. O corpo administrativo de funcionários do reino axumita era composto da população submetida que, geralmente, era rebaixada de seus status anteriores à dominação de Axum. (Silva, 2019, p. 62) Inicialmente politeísta, “veneravam a natureza e as formas celestiais e terrestres (o Sol, a Lua e as estrelas, os campos e a terra)” (Silvério, 2013a, p. 229), mas, sob o governo do rei Ezana (335 a 356), o cristianismo passa a ser a religião oficial da corte, por influência dos contatos com a corte de Constantinopla (Silvério, 2013a, p. 229), mesmo que as cresças politeístas, o judaísmo e o islamismo sejam tolerados e componham um mosaico religioso. É nesse período também que Axum invade parte do império Kush. A dominação axumita assumia a forma de cobrança de impostos e submissão de governantes vizinhos. Em sua máxima expansão, o império axumita chegou a nomear governantes para o sul da península Arábica (Silvério, 2013a, p. 224), ao mesmo tempo que dominava boa parte do nordeste africano. 4 Figura 1 – Obelisco de Axum Crédito: Hecke71/Adobe Stock. Axum produziu uma forma de escrita, baseada na língua geês, utilizada até hoje na Etiópia. Desenvolveram também uma arquitetura monumental e uma estatuaria notável. É incerta a narrativa acerca do declínio do Império de Axum. O certo é que as disputas com os muçulmanos do outro lado do Mar Vermelho cobraram seu preço, resultando na destruição do porto de Adulis. Também é certo que um povo belicoso, os beja, vindos do norte, pelo vale do rio Barka, também desalojaram o governo axumita do controle de vastas áreas. Assim, no século VII, o que antes era um grande império já não existia mais, em que pese sua cultura e tradições, assim como a religião cristã, tenham deitado firmes raízes na região. 5 TEMA 2 – O ISLAMISMO A religião islâmica possui grande importância na história africana, em especial na porção norte do continente. O cristianismo havia penetrado no continente mais ou menos concomitantemente ao domínio romano, mas com contatos também na Núbia e Etiópia, cujos governantes adotaram a nova religião, em especial a partir do contato com Bizâncio e seu império. As religiões possuem importância na história. Mais ainda, do ponto de vista político, aquelas religiões unificadas e que combinam a expansão de ideias religiosas com a expansão do domínio político dão a este uma das bases de sua existência. É exatamente esse o caso do islamismo no seu surgimento. Significou politicamente a unificação dos povos árabes e depois de uma grande comunidade internacional, em que estava incluso o norte da África. Mas para entendermos o islamismo, comecemos por sua história e princípios religiosos. O islamismo começou com as pregações de Maomé, que teria recebido revelações divinas de que era o último profeta de Deus (depois de Abraão, Moisés e Jesus, entre outros). Iniciando sua pregação na cidade de Meca, começou a reunir seguidores e foi perseguido pela elite local, ciosa em manter a tradicional religião politeísta árabe, em que Meca era o centro. Perseguidos, Maomé e seus seguidores fugiram/migraram (Hégira) para a cidade de Medina em 622, sendo posteriormente esse acontecimento tomado como ponto inicial do calendário muçulmano. Paulatinamente unindo pregação religiosa, habilidade política e força militar, Maomé obtém o controle de Medina, pacificada por volta de 627. Estabelecendo alianças e conquistando territórios, Maomé pôde tomar a cidade de Meca, quase sem resistência, em 630. O livro sagrado da religião muçulmana é o Corão, composto de 114 suratas (capítulos), que seriam fruto das revelações recebidas pelo profeta. À semelhança da Bíblia, os “ensinamentos do Corão são de natureza global e visam guiar o homem em suas relações com Deus, assim como com os outros membros da sociedade” (Silvério, 2013a, p. 290). Os princípios da religião muçulmana são: o monoteísmo, as cinco orações diárias, o jejum durante o mês do Ramadã, a doação aos pobres e a peregrinação à Meca. 6 A religião muçulmana se expandiu pela península arábica juntamente com a dominação política nos séculos VII e VIII. Já no século VII, o islamismo converte fiéis no Egito e esse território se tornará majoritariamente muçulmano no século XVI. No Magreb (o noroeste da África, da atual Argélia ao Marrocos), a conversão foi acompanhada do domínio político e as diversas tribos berberes foram paulatinamente convertidas, mesmo que não ao ramo predominante do Islã, que se apresentava dividido após a morte de Maomé. Tal pluralismo no interior do islamismo vai ser um fator a mais que, combinado com a exploração da dominação árabe na região, acabou por desencadear frequentes revoltas. Ainda assim, no século X, o Magreb já era majoritariamente muçulmano. Aosul do Saara, a nova fé veio acompanhando as rotas comerciais (Silvério, 2013a, p. 298-299). Houssas (no que hoje é a Nigéria), dioulas e os diakhanke (ambos na África ocidental), que praticavam intenso comércio, foram os primeiros a abraçar o islamismo. A conversão avançou a passos rápidos por razões externas e internas. As externas estavam ligadas ao comércio com os povos no norte africano. Este lado comercial das conversões ao islamismo no Sahara e na África ocidental é explicado por El Fasi e Hrbek, tendo em vista que a própria religião islâmica nasce no seio da sociedade comercial de Meca e pregada por um profeta que foi por um longo período também um comerciante. Esta, portanto, apresentaria um conjunto de preceitos morais e práticos estreitamente ligados às atividades comerciais. Este código moral, por sua vez, ajudava a controlar as relações comerciais e oferecia de forma supra-étnica uma ideologia unificadora em favor da segurança do crédito e das transações comerciais entre parceiros comerciais distantes de si. (Silva, 2012, p. 22) Os fatores internos estavam ligados ao papel que a fé islâmica desempenhava como um cimento da autoridade de Estados que envolviam originalmente povos com os mais diversos cultos politeístas. Na região da Núbia, no alto Nilo, o islamismo também penetrou pelas mãos dos comerciantes. Ainda assim, nessa região o sucesso foi menor, já que o cristianismo estava solidamente implantado em alguns povos. Mesmo com esse entrave, a nova religião foi ganhando adeptos, avançando também pelo litoral do Mar Vermelho. Em muitos lugares, como na Somália, a islamização não significou a absorção da cultura árabe pela população, que continuou com suas tradições, adaptando-as à nova religião. 7 Figura 2 – Grande mesquita de Djenné, no Mali, construída em 1280 e reconstruída em 1906. Declarada patrimônio da humanidade pela Unesco Crédito: Regis Doucet/Adobe Stock. No geral, na África subsaariana os preceitos corânicos de comportamento penetraram em grupos específicos de cada sociedade (os comerciantes, por exemplo), mas terão uma difusão menos aderente em outros grupos. Mesmo os governantes convertidos adotarão versões “híbridas” da religião. Assim (Silvério, 2013a, p. 307), as regras matrilineares de sucessão, as regras de propriedade da terra, a maior liberdade dos comportamentos femininos, a ausência do véu, a nudez dos adolescentes e entre outras questões eram pontos de atrito entre o que pregavam os entendidos na religião e o que praticavam os povos africanos ao sul do Saara. A expansão do Islã na África e todas as mudanças políticas, culturais e religiosas que causou tiveram início, como já vimos, ainda no século VII, e continua ocorrendo, com avanços e recuos, até os dias de hoje. Os séculos XVI e XVII marcaram um ressurgimento de religiões tradicionais em alguns lugares 8 em oposição ao Islã, em especial por este ter se identificado com a expansão da escravidão ocorrida nesse período. Mas os séculos seguintes marcaram a consolidação dessa religião, em especial no norte da África, que se viu, além de islamizado, também aderente à cultura árabe, enquanto mais ao sul do continente a religião expandiu-se com menos penetração dessa cultura do Oriente Médio. Grosso modo, temos dois caminhos de penetração do Islã: no norte, pela espada, e no sul, de forma pacífica. No sul, podemos ainda dividir a expansão em três momentos, identificados por seus atores (Silva, 2012): (a) pelos comerciantes, (b) pelas elites políticas e (c) pela população em geral. Não é possível apontar marcos temporais claros separando esses períodos para todo o sul da África, mas em geral é essa ordem de conversões que se observa na região. TEMA 3 – MALI E SONGAI O Império Songai (ou Songhai, ou ainda Reino de Gao), localizava-se no médio Rio Niger, na África Ocidental. Centralizado como Estado por volta do século VII, ocupava uma zona fronteiriça entre o Sudão e o Sahel, o que fez com que sua capital, Gao, se transformasse em um centro comercial cosmopolita. Logo no início (entre 1285 e 1300) de sua história, foi invadido pelos mandem, que permaneceram dominando a região intermitentemente até o século XIV e acabaram deixando um legado administrativo no império. Com a nova independência, o próprio império Songai passa a pilhar os povos vizinhos, até abandonar essa política na segunda metade do século XV, quando passaram a efetivamente dominar os territórios conquistados, expandindo seus domínios. Tendo se expandido por todo o rio Niger, o império era dividido em províncias governadas por koy (ou mondzo), formando um grande império patriarcal e consuetudinário (Silvério, 2013a, p. 455) com capital em Gao. 9 Figura 3 – Mapa do atual país Mali com a identificação da localização de Gao, as margens do rio Niger Crédito: Peter Hermes Furian/Adobe Stock. Gao e outras cidades contavam com uma aristocracia muçulmana que acabou assumindo o poder por volta de 1500. Foi durante o reinado muçulmano de Dawud (1549-1583) que Songai atingiu seu apogeu. Sua morte é seguida de uma guerra civil pelo poder que desorganiza o império. O desmoronamento definitivo veio com o domínio marroquino em 1591, em que as armas de fogo destes últimos deram a eles uma vantagem não superada pelos locais. O caráter moderno do reino de Gao foi marcado pela rigorosa centralização administrativa e uma espécie de “absolutismo” real. Dotado de um sistema de administração central robusto, um sistema provincial funcional e uma 10 administração indireta sobre outros Estados que lhe eram tributários (como Agadez, Mali e outros), o império Songai “conseguiu organizar as populações do Sudão nigeriano, manter bens e pessoas em segurança e alcançar grande desenvolvimento” (Silvério, 2013a, p. 456). O exército local, de caráter permanente, possuía cavalaria e infantaria, além de contar com 2 mil embarcações. O império Songai possuía uma vasta agricultura, para a qual o rio Niger era fundamental, e uma rede de cidades voltadas ao comércio, aproveitando-se da localização estratégica em que estava. Ouro, sal e cobre eram usados como moeda e as trocas comerciais envolviam o norte da África, podendo chegar até a Europa mediterrânea. Sua sociedade era fortemente hierarquizada, formada por nobreza, homens livres, castas de ofícios e escravos. Nas cidades, a sociedade era mais complexa, agregando comerciantes, artesão e religiosos. A escravidão tinha como origem a guerra e foi aumentando à medida que os laços comerciais com o restante do mundo muçulmano foram se estreitando, sem, no entanto, produzir qualquer impacto populacional significativo, pois seu volume não era tão alto e os cativos eram provenientes de vastas áreas (Zanoto, 2008), de modo que nenhuma área específica teve que suportar um peso muito grande. Em uma região próxima ao império Songai, mas anterior a este, floresceu o Império do Mali entre os séculos XIII ao XVI. Mais precisamente, localizou-se na região inicial do Rio Niger, chegando a ultrapassar sua grande curva, mas sem se aproximar de sua foz. Com boa parte de sua história baseada em fontes orais, é provável que o primeiro governante de grande expressão foi Sundiata Keita, que, entre 1220 e 1235, lutou contra a cidade de Sosoe, estabelecendo o domínio do Mali sobre a região estabelecendo a unidade do Sudão Ocidental (Silvério, 2013a, p. 444). As conquistas efetuadas por Keita resultaram de uma “estratégia espacial deste Império Territorial em controlar pontos do Espaço que permitiram-lhe pleitear a tutela de um emaranhado de rotas de comércio” (Waldman, 1998, p. 224). As conquistas realizadas garantiram também acesso a terras férteis e a fartas reservas de ouro, que movimentavam a subsistência e o comércio do império. A agricultura era movida pelas culturas do arroz, milhete, feijão e11 variados outros legumes. No séc. XIV, a criação de ovinos, bovinos e caprinos diversificou a economia agrícola e, no final do século XV, o algodão também passou a ter importância. O ouro, a noz-de-cola e o sal também eram produtos importantes na economia do Mali. O Império do Mali na verdade mais se assemelhava a uma federação de reinos. Aqueles reinos que haviam se submetido, desde o início, mantinham seus governantes. Já aquelas conquistadas à força mantinham seu rei, mas acrescentavam um enviado do mansa (título dos reis do Mali) à sua estrutura administrativa. Após Sundiata Keita, outro imperador a gozar de grande prestígio foi Mansa Musa I (1307-1332). Desde cedo convertidos ao Islamismo, em que pese a permanência entre a população de crenças tradicionais anteriores, o Mansa Musa realizou em 1325 a peregrinação tradicional e obrigatória à Meca. Sua caravana em direção a cidade sagrada carregava consigo muito ouro, que foi distribuído no caminho, e a permanência da suntuosa comitiva na cidade do Cairo causou espécie. A quantidade de ouro distribuída chegou a fazer baixar a cotação do metal. Egito, Magreb, Portugal e cidades italianas passaram a ter grande interesse no relacionamento com o rico Império do Mali. 12 Figura 4 – Antigo mapa Espanhol de 1375 retrata o Império do Mali Crédito: Cc/Av Abraham Cresques/Bibliothèque Nationale De France/PD. A decadência do Império Mali relaciona-se com a expansão dos tuaregues ao norte, que privaram o Mali de importantes rotas comerciais. Simultaneamente, o Império Songai ao sul apresentava-se cada vez mais belicoso, pressionando seus vizinhos. Por outro lado, o estabelecimento de relações comerciais com Portugal, a partir do século XV, deu algum alívio para a situação. Mas o que de início era um alívio demonstrou-se ser uma armadilha: os portugueses passaram a incentivar rivalidades entre os soberanos submetidos ao mansa, bem como a prática do cristianismo ajudou a desorganizar os valores do Mali. Some-se a isso as guerras que o império teve que sustentar contra novos inimigos, como os denianke, governados por Tenguella. No século XVII, o império do Mali desagregou-se, dando origem a outras organizações políticas. 13 TEMA 4 – TRÁFICO DE ESCRAVOS A escravidão é uma instituição antiguíssima na humanidade. Sem pretender fazer aqui uma narrativa de sua evolução, cabe-nos ainda assim lançar um olhar para a sua primeira manifestação socialmente estruturante, na Antiguidade europeia, apenas para traçarmos contrastes com o que ocorreu na África pós-1500. Na Antiguidade europeia, a escravidão se deu de diversas formas: por dívida, por apreensão em guerras e de modo permanente ou temporário. E os escravos eram empregados nas mais diferentes funções. Mas naquele momento em que a escravidão se tornou um elemento estruturante da sociedade romana, por exemplo, ela se caracterizava, sobretudo, pela apreensão de escravos em guerras. Não se tratava de uma escravidão com base racial, conceito que só surgiria muito tempo depois. De modo semelhante à Europa, na África a escravidão é também uma instituição bastante antiga. Foi mais ou menos importante na estruturação do fornecimento de mão de obra em diversos Estados africanos durante vários séculos. Foi também fruto principalmente da conquista guerreira. Eventualmente, excedentes de escravos eram comercializados, inclusive para fora do continente, para a Europa e para o Oriente Médio. Esse processo se acelerou com a islamização do norte da África e o estreitamento de laços com o mundo árabe. Mas esse processo ganhou dimensões dramáticas com o estabelecimento de contato com os europeus no curso da Grandes Navegações e com a demanda de mão de obra das colônias europeias nas Américas, alimentada pelo tráfico transatlântico. 14 Figura 5 – A escravidão atingiu seu ápice para atender a necessidade de mão de obra e o empreendimento colonial europeu nas Américas Crédito: Erica Guilane-Nachez/Adobe Stock. Estimativas dão conta que, de 1500 a 1890, aproximadamente 22 milhões (Silvério, 2013b, p. 39) de indivíduos foram vendidos da África para o resto do mundo como escravos, sendo 15,4 milhões para a América, quase 4 milhões no tráfico transaariano, em direção ao Oriente Médio e Europa, e quase 3 milhões pelo Oceano Índico e Mar Vermelho. Isso causou, entre 1650 e 1850, a diminuição a população da África em termos absolutos (Silvério, 2013b, p. 44). O que explica esse brutal deslocamento populacional? A resposta se encontra, principalmente, fora da África, nas Américas e na Europa. O algodão, o tabaco, a cana-de-açúcar e a exploração de metais preciosos na América demandava uma mão de obra que a Europa não possuía e que a América, com sua população indígena dizimada pelas guerras e doenças, não podia dar. Esse arranjo de uma América que produzia em vastos latifúndios, exportando (em condições coloniais de comércio) seus produtos para a Europa, que, por sua vez, organizava o tráfico de seres humanos da África para as Américas, para 15 sustentar esse sistema, resultou em um desastre demográfico, econômico, político e social para a África, no estabelecimento das bases do subdesenvolvimento crônico da América Latina e no enriquecimento da Europa. O início do contato atlântico com os europeus representou alguma dinamização das relações comerciais entre os dois continentes, com a África passando a exportar pimentas, ouro e tecelagem. Mas logo que as necessidades de mão de obra da América se fizeram sentir, o escravizado passou a ser a mercadoria de maior valor. A economia do continente, em especial das áreas mais ativas no comércio escravista, se viu privada do crescimento do mercado interno, já que as iniciativas econômicas se voltavam ao apresamento de escravos e sua exportação. Por outro lado, a entrada de mercadorias manufaturadas europeias, além de drenar os recursos ganhos com a venda de escravos, representava um poderoso contrapeso ao desenvolvimento de produção manufatureira própria. TEMA 5 – PANORAMA ENTRE 1500 E 1800 Ao passo que avançava o tráfico de escravos, a situação geral da África passava por mudanças. No Egito, estabeleceu-se o domínio otomano, impondo outra língua, diferente do árabe, e estimulando conflitos entre a elite mameluca local. A economia egípcia se desorganizou sob o domínio dos turcos muçulmanos. Já no Sudão, a contínua penetração islâmica provocava o duplo movimento de assimilação da cultura local e de transformação da cultura árabe e islâmica. O Reino de Alwa, conquistado pelos árabes, os sultanatos de funj e fur, e o Estado ‘abdallabi disputavam o controle do curso do Nilo. Relações de “vassalagem” estabeleciam-se entre esses estados, com o sultanato de funj geralmente no topo. Esse sultanato trocava ouro, escravos e plumas de avestruz por tecidos de algodão, joias, armas e outros artigos de luxo vindos do exterior. No que hoje é o Marrocos, as populações locais se viram invadidas pelos portugueses quando estes tomaram Ceuta em 1415. A resistência contra o invasor europeu provoca a união em torno do líder local al-Ka’im bi-‘Amr Allah, que inaugura a dinastia dos saadianos. Detidos os portugueses na batalha de Alcácer-Quibir em 1578 (onde desapareceu o rei de Portugal e morreu a nata da 16 nobreza lusa), o Marrocos conheceu grande prosperidade, em especial devido à indústria açucareira. Na região em que hoje é Angola, existia no século XV o Reino do Congo, que se abriu ao comércio com os portugueses, fornecendo-lhes escravos. Estabeleceu-se uma relação ora de conflito, ora de colaboração entre os dois reinos, até que uma crise sucessória no Reino do Congo, em 1567, possibilita sua invasão por povos rivais. Em 1575, os portugueses fundaram nesse local a colônia de Angola e a cidade de Luanda. Figura 6 – Mapa de 1775 do Caboda Boa Esperança Crédito: Picturepast/Adobe Stock. A África austral viu o primeiro europeu em 1407, quando Vasco da Gama cruzou o Cabo da Boa Esperança. No entanto, os primeiros europeus fixaram-se na região apenas em 1652, por empreendimento da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Fundada por esta companhia, a colônia do Cabo acabou sendo dominada pelos ingleses em 1795. As populações locais, diversas, 17 dedicavam-se algumas à caça e coleta, outras ao pastoreio e outras à agricultura. San, khoi, nguini, shona, sotho e tswana eram alguns desses povos. NA PRÁTICA Sobre o reino de Axum, fica a sugestão de um documentário, em inglês, que pode aprofundar os conhecimentos já trabalhados em aula. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A4OSEpexs_Q&list=PLajyiGz4JeyPq2lpEt 2skZRhQsAspIQCp&index=6>. Acesso em: 13 ago. 2021. Que tal ver um plano de aula sobre o islamismo na África? Este plano dirigido a estudantes de 7º ano, aborda esse conteúdo a partir da trajetória de Mahommah Gardo Baquaqua, ligando-a à colonização das Américas e a vinda de muçulmanos para cá nesse contexto. Disponível em: <https://novaescola.org.br/plano-de-aula/5835/o-islamismo-na-africa-e-as- relacoes-com-o-atlantico>. Acesso em: 13 ago. 2021. Ainda na área do ensino, que tal fazer um exercício? No currículo básico de história da rede estadual de São Paulo, em que ano está previsto o estudo de Estados africanos, como o do Mali e do Songai? Disponível em: <https://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/236.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2021. Aprofunde seus conhecimentos sobre a escravidão lendo um artigo que discute a demografia da população de Angola durante o domínio português. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/122490/140178>. Acesso em: 13 ago. 2021. Uma dissertação de mestrado apresentada na Universidade do Porto discute a Batalha de Alcácer-Quibir e sua importância na memória nas culturas marroquina e portuguesa. Vale a leitura. Disponível em: <https://repositorio- aberto.up.pt/bitstream/10216/87474/2/166946.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2021. No documentário a seguir, é possível saber mais sobre a África pré- colonial. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MtdQ1CGEQ84>. Acesso em: 13 ago. 2021. Por fim, um filme produzido na França e em Burkina Faso, “Keita, o legado do Griot”, discute ancestralidade, história oral e memória em uma ficção que 18 possui ligações com a história do reino do Mali. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EHeGi1l9nCg>. Acesso em: 13 ago. 2021. Você também pode ler um artigo sobre esse filme. Disponível em: <http://periodicos.uesc.br/index.php/litterata/article/view/871>. Acesso em: 13 ago. 2021. FINALIZANDO Conhecer a história de Axum, Mali e Songai recoloca para nós a discussão acerca da existência de grandes “reinos” e “impérios”, isto é, formações estatais de grande monta na África pré e pós-contato com os europeus, no contexto das viagens que empreenderam em direção ao Oriente. E não custa lembrar, mais uma vez, que além dessas formações estatais que estudamos, existem diversas outras, mas que não é possível incluí-las todas por razões de tempo e espaço. A seleção dos conteúdos em história é sempre uma escolha. Assim, escolhemos aqui apresentar alguns dos povos africanos em detrimento de outros, pelos critérios que já explicitamos anteriormente. Da mesma forma, o silêncio que sempre recaiu sobre a história desses povos na historiografia brasileira e nos currículos escolares era também uma escolha. Tratamos nessa aula de um período de intensas transformações do continente africano. A penetração do islamismo no norte do continente marcou a África. Junto com a nova religião veio uma nova cultura – a árabe – com sua escrita, suas vestimentas, seus códigos de comportamento social e de organização da vida comunitária. Esse encontro das culturas ancestrais africanas com a cultura e religião árabe foi diferente em cada região e para cada população. A mescla das culturas que se encontraram geraram novas culturas, singulares, portadoras de mais ou menos elementos daquelas duas que se fundiram. Depois ainda os otomanos islamizados também se fizeram presentes no continente, inserindo uma cultura e uma dominação islâmica não árabe em uma parte do continente com características culturais já muito singulares, como o Egito. Não devemos esquecer que, nesse mesmo período, mas em outros espaços, também cresceu o cristianismo no continente. E ainda o período que estudamos foi aquele que viu explodir o fenômeno social da escravidão, não no interior do continente, mas como prática econômica 19 voltada para a exportação. Foi a dinâmica da economia mundial que drenou populações inteiras para o exterior, principalmente para a América, provocando a desorganização da vida de inúmeros povos e um desastre demográfico. 20 REFERÊNCIAS SILVA, B. R. O Islã na África do Norte e Ocidental: recepção e reinvenção (séc. VII-XIV). Cadernos de História UFPE, 2012, n. 9, p. 16-38. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/cadernosdehistoriaufpe/article/viewFile/1100 84/22007>. Acesso em: 13 ago. 2021. SILVA, É. C. Os impérios africanos do Mundo Antigo: Kush e Axum. In: CAMPOS, A. P. C. O espelho negro de uma nação: a África e sua importância na formação do Brasil. Vitória: EDUFES, 2019, pp. 43–71. SILVÉRIO, V. R. Síntese da Coleção História Geral da África: Pré-história ao século XVI. Brasília: Unesco, Ministério da Educação, UFSCAR, 2013a. SILVÉRIO, V. R. Síntese da Coleção História Geral da África: História Geral da África: Século XVI ao XX. Brasília: Unesco, MEC, Ufscar, 2013b. WALDMAN, M. Africanidade, espaço e tradição: a topologia do imaginário espacial tradicional africano na fala “griot” dobre Sundjata Keita do Mali. África, 1998, p. 119-268. Disponível em: <doi: https://doi.org/10.11606/issn.2526- 303X.v0i20-21p219-268>. Acesso em: 13 ago. 2021. ZANOTO, D. S. A escravidão entre os povos do Sudão Ocidental: séculos VII- XVI. In: MACEDO, J. R. Desvendando a história da África. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 69-84.
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