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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ LÍDIA AUGUSTO GOMES DA SILVA Crime de estupro e as relações de gênero: A culpabilização da vítima e a teórica imparcialidade do judiciário. Rio de Janeiro, RJ 2017 LÍDIA AUGUSTO GOMES DA SILVA Crime de estupro e as relações de gênero: A culpabilização da vítima e ateórica imparcialidade do judiciário. Artigo Científico Jurídico apresentado à Universidade Estácio de Sá, Curso de Direito, como requisito parcial para a conclusão da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso. Orientador: Prof. RONALDO FIGUEIREDO BRITTO. Rio de Janeiro 2017 A violência contra as Mulheres é talvez a mais vergonhosa violação dos direitos humanos. Não conhece fronteiras geográficas, culturais ou de riqueza. Enquanto se mantiver, não poderemos afirmar que fizemos verdadeiros progressos em direção a igualdade, ao desenvolvimento e à paz. Kofi Annan ex- Secretário Geral das Nações Unidas Crime de estupro e as relações de gênero: A culpabilização da vítima e a teórica imparcialidade do judiciário. Lídia Augusto Gomes da Silva RESUMO Este trabalho de conclusão de curso tem a proposta de analisar o crime de estupro sob a perspectiva de gênero, ressaltando que este crime é advindo de uma cultura patriarcal, das relações desiguais que existe entre homens e mulheres. Observando também a forma de atuação do sistema de justiça, que não acolhe a vitima apropriadamente expressando e reproduzindo as desigualdades de gênero duplicando então seu sofrimento. PALAVRAS CHAVE: Estupro, relações de gênero, cultura patriarcal, violência contra mulher. Sumário 1. INTRODUÇÃO; 2. O CONCEITO DE GÊNERO 2.1. O CONCEITO DE GÊNERO NO ÂMBITO JURIDÍCO; 3. HISTORIA DO CRIME DE ESTUPRO E O DIREITO; 3.1. ESTUPRO NO BRASIL: DO PERIODO PRE-COLONIAL AO CODIGO PENAL DE 1940; 4. ANALISE DO DISCURSO JUDICIAL E A CONSTRUÇÃO DA VERDADE NOS PROCESSOS DE ESTUPRO; 5. CONCLUSÃO; 1. INTRODUÇÃO De acordo com a nova redação da Lei nº 12.015/2009, foram unificados os antigos crimes de estupro e atentado violento ao pudor. O novo delito de estupro incrimina a conduta de constranger a vítima para a prática da conjunção carnal ou de qualquer outro ato libidinoso. Encontra-se elencado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, e tem como descrição: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena-reclusão, de 6 ( seis) a 10 (dez) anos. “Definido no capitulo I - “Dos Crimes contra a liberdade sexual”, do Titulo VI - “ Dos crimes contra a dignidade sexual" Com a nova redação ocorrida em agosto de 2009, que revogou o atentado violento ao pudor se uniu ao crime de estupro este pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive a mulher. Ampliando também as condutas tipificadas ao crime, incluindo: o sexo oral e anal.¹ Antes da nova redação da Lei n°12.015/2009, o atentado violento ao pudor estava previsto no artigo 214 do Codigo Penal Brasileiro com a seguinte descrição: " Constranger alguém , mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal" ²Antes da nova redação da Lei n°12.015/2009, o crime de esturpro estava previsto no artigo 213 do Codigo Penal Brasileiro com a seguinte redação: " Constranger alguém , mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal" No tocante deste trabalho de conclusão de curso, o estupro a ser analisado será aquele praticado por homem tendo como vítima a mulher, criticando o sistema de justiça que desde a instauração do processo até seu julgamento se mostra insuficiente na resolução dos conflitos de gênero, já que passam examinar os envolvidos inclusive a vítima, e tal exame é feito com base em estereótipos, preconceitos e descriminações presentes na nossa cultura patriarcal muito visível na sociedade atual e inerente a nossa construção social e histórica. Portanto, pretende-se com o presente trabalho, analisar como este discurso de cubabilização da vitima, está inserido entre os operadores do sistema de justiça penal. Tem como objetivo, verificar se ao julgar processos que envolvam o crime de estupro, os magistrados tão somente analisam os fatos, ou se estas discriminações, preconceitos e estereótipos que acentuam as desigualdades de gênero são reproduzidas, naturalizando e até mesmo justificando a violência sexual. É de extrema importância a discussão e o combate deste discurso de culpabilização, principalmente no âmbito jurídico, impedindo que seja reproduzido as discriminações e estereótipos em relação a mulher, garantindo que a vitima tenha voz e um espaço, onde possa sentir-se segura e acolhida, e não constrangida ou violada novamente ao denunciar uma agressão sexual. A motivação para escolha deste tema foi o interesse pessoal pela condição feminina e a forma pela qual o Direito Penal a enxerga e a reproduz em suas instituições. E a permanência dos estereótipos e preconceitos em relação ao comportamento feminino no sistema jurídico é preocupante e atual Para elaboração desta pesquisa, foi feito um levantamento bibliográfico, baseado em livros, artigos e trabalhos acadêmicos que abordam o tema. Valendo ressaltar que a internet foi uma ferramenta muito útil, por possuir diversos materiais sobre o assunto. É relevante falar sobre a violência sexual pois persiste em nossa sociedade a maneira violenta de se tratar as mulheres, bem como a aceitação deste tratamento. E relevante também, a analise e discussão do quadro em que mulheres e homens estão inseridos quando se trata do crime de estupro, observando os elementos importantes pelo sistema de justiça para atribuir a culpa pelo fato. Nesse sentindo no primeiro capítulo será feita considerações preliminares a cerca do conceito de gênero, os papéis construídos pela sociedade e a importância dos movimentos feministas e suas teóricas da década de 70, que questionou a ideologia da superioridade masculina, analisando os papeis atribuídos a homens e mulheres. 2. O CONCEITO DE GÊNERO Tecendo algumas considerações preliminares acerca do conceito de gênero. As feministas das décadas de 60 e 70 introduziram o conceito de gênero em seus estudos e começaram a questionar a ideia da superioridade masculina, e os papeis estabelecidos para homens e mulheres. ¹ MANFRÃO, Caroline Colombelli. Estupro: prática jurídica e relações de gênero. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito). Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2009, p. 20 Para conceituar gênero podemos citar Andrade: ( QUEM É ANDRADE ????) ANO DA PUBLICAÇÃO PAGINA Gênero é um símbolo que se tornou teórica e politicamente relevante desde a década de 1970, quando, sob o influxo do movimento feminista e de expressiva revolução de paradigmas nas ciências, estendeu seu significado original de uma classe de algo (música, literatura) ou de seres (animais, vegetais), para designar uma classe de seres humanos (pessoas), configurando-se doravante como um conceito de grande valor para a compreensão da identidade, dos papeis e das relações entre homens e mulheres na modernidade. ¹ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sexo e gênero: a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de Justiça Criminal. Boletim IBCCRIM. São Paulo: v. 11, n. 137, abr. 2004, p. 01 Portanto gênero basicamente é conceituado como as concepções de masculinidade e feminilidade não é natural ou biológico, mas sim uma construção sociocultural, que revela características representativas e valorizadas em determinada sociedade e em um específico momento histórico. A expressão “gênero” foi inicialmente utilizada pelas feministas norte-americanas para enfatizar o caráter primordialmentesocial das distinções fundamentadas no sexo, indicando uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de vocábulos como “sexo” ou “diferença sexual” como explica Soihet. Já o termo "sexo" limita-se a explicar as diferenças biológicas entre homens e mulheres, mas segundo Sabadell, essas diferenças não se restringem a aspectos biológicos, pois também são o resultado da forma de socialização e controle social e mudam em função do período histórico, de modo que as identidades de “sexo” são construídas socialmente e podem ser modificadas. O termo gênero, portanto, permite analisar a identidade feminina e masculina sem reduzi-las ao plano biológico, indicando que elas estão sujeitas a variações determinadas pelos valores dominantes em cada período histórico.³SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 265[footnoteRef:1] [1: SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 265. 2 IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004, p. 84. 3 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987, p. 08. 4 ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Sexo..., p. 01-02 .¹(4) IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004, p. 84 ] Pois então como explica Izumino, o termo “sexo” refere-se às diferenças biológicas e anatômicas entre homens e mulheres , enquanto “gênero” ocupa-se em designar as diferenças sociais e culturais que definem os papeis sexuais destinados a homens e mulheres em cada sociedade.2 Aduz Saffioti, a identidade do homem e da mulher e construída com atribuições de diferentes papéis que a sociedade anseia ver cumpridos. Assim delimita-se, com precisão os terrenos que se pode operar a mulher e o homem.3 Com isso as atribuições masculinas e femininas são dicotômicas e hierarquizadas de requisitos dos sexos, colocando as qualidades masculinas como opostas as femininas, sendo estas inferiorizadas e vistas como negativas. Segundo Andrade, esse simbolismo estereotipado e estigmatizante de gênero apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais ou biologicamente determinadas, bem como representa as pessoas do sexo feminino como membros de um gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades, assim como o acesso a certos papeis e esferas, são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico e não ao outro.4¹ (6) ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Sexo..., p. 01-02 13 Ibid., p. 02 Assim, as representações de gênero, em sua absoluta maioria reproduzidas de forma a perpetuar estereótipos e estigmas, objetivam, ainda que não explicitamente, continuar a representar as características dos gêneros como duais e antagônicas, naturalmente opostas devido à predeterminação biológica, sempre reforçando a mensagem de que as mulheres são seres inferiores aos homens.5 Mesmo que a construção social afete a liberdade dos gêneros masculino e feminino, é irrefutável que a opressão sexual é maior e mais forte sobre a realidade feminina, que não tem domínio sobre seu próprio corpo e sua sexualidade, elementos centrais da dominação patriarcal. ¹(8) LIMA, Marina Torres Costa, op. cit., p. 10 A relações de gênero são substancialmente relações de poder na medida que, ao se determinar acepções dos indivíduos, são desenvolvidos preconceitos e estereótipos dicotômicos, para o exercício do controle do masculino sobre o feminino, o que para Pimentel, Schritzmeyer e Pandjiarjian, é o que relacionado as questões sexuais, que estes preconceitos e estereótipos sociais são mais axiomáticos para estre controle6 Em relação ao controle o corpo e da sexualidade da mulher, Lima reitera: Os homens do mundo patriarcal devem pautar-se de forma sexualmente livre – e até libertina – devido à posição de superioridade e independência que lhes cabe. Devem ser, portanto, rígidos, másculos e dominadores. Por sua vez, às mulheres resta a necessidade de resguardar sua moral sexual, agindo de forma efetivamente recatada. Suas vestimentas, seus diálogos e seus comportamentos devem revestir-se da cautela necessária a ensejar o respeito do seio social. Seu corpo não é considerado sua propriedade, senão verdadeiro objeto de controle da sociedade. (LIMA, Marina Torres Costa, op. cit., p. 09) [footnoteRef:2] ¹(10) 19 LIMA, Marina Torres Costa, op. cit., p. 09 [2: 5 MACHADO, Flora Barcellos de Valls. Gênero, violência e estupro: definições e consequências. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013, p. 12. 6 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”? Abordagem sociojurídica de gênero. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1998, p. 26.¹(9) PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”? Abordagem sociojurídica de gênero. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1998, p. 26¹(7) MACHADO, Flora Barcellos de Valls. Gênero, violência e estupro: definições e consequências. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013, p. 12] Portanto é imprescindível utilizar o conceito de gênero nas analises do crimes sexuais praticados por homens tendo vitimas mulheres, pois possibilita a análise critica dos papéis atribuídos a vitimas e agressores, discutindo-se a construção das verdades jurídicas em processos judiciais e como essa discussão e reflexo das discriminações presentes no senso comum. 2.1. O Conceito de Gênero No Âmbito Jurídico O conceito de gênero deu origem a várias contribuições importantes. Principalmente a quebra da invisibilidade feminina, em um mundo de dominância masculina, onde a perspectiva masculina era tomada como medida para todas as coisas inclusive no Direito de tal maneira que as próprias mulheres o reproduziam aplicando à realidade esquemas de pensamentos que eram frutos da incorporação deste principio.7 COULOURIS, Daniella Georges. Gênero e discurso jurídico: possibilidades para uma análise sociológica. In: CARVALHO, Marie Jane Soares; ROCHA, Cristianne Mª Farmer (organizadoras). Produzindo Gênero: IV Encontro Nacional da Rede Brasileira de Estudo e Pesquisas Feministas. Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 62-63.A segunda foi demonstrar que a superioridade masculina asseguradas pelos estereótipos de gênero das ciências sociais eram camufladas sob um manto de aparente neutralidade BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 20. e ignorando as distinções de gênero. Isto se manteve relacionado ao fato de que no senso comum o homem era visto padrão humano pois ao se referir "o homem " estava se referindo a humanidade.8 Finalizando com a questão do feminino fosse transferida só espaço privado tradicional para o espaço publico, onde determinados conflitos antes vistos como particulares recebessem atenção das instituições publicas no que Andrade denominou “politização do espaço doméstico.9 [footnoteRef:3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Domesticação da violência doméstica: politizando o espaço privado com a positividade constitucional. Mesa redonda sobre a criminalização da violência doméstica. Brasília: Cfêmea, 1997, p.1. [3: 7 COULOURIS, Daniella Georges. Gênero e discurso jurídico: possibilidades para uma análise sociológica. In: CARVALHO, Marie Jane Soares; ROCHA, Cristianne Mª Farmer (org.). Produzindo Gênero: IV Encontro Nacional da Rede Brasileira de Estudo e Pesquisas Feministas. Porto Alegre:Sulina, 2004, p. 62-63. 8 BARATTA, Alessandro, op. cit., p. 20. 9 MACHADO, Flora Barcellos de Valls, op. cit., p. 17. ] Assim, a visão das mulheres foi ampliada para a possibilidade de serem sujeitos de direitos, atuando no polo ativo das relações judiciais e demandando do Estado na resolução de conflitos. Fazendo os debates sobre as questões envolvendo as mulheres serem problemas públicos requerendo o envolvimento das instituições publicas e também da sociedade. Estabelecendo assim um novo paradigma nas ciências sociais a partir da construção do conceito de gênero que são: Em primeiro lugar, porque se está diante da afirmação compartilhada da ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social de gênero. Em segundo lugar, porque se está diante da afirmação dos privilégios metodológicos das relações de gênero, sobre qualquer substancialidade das categorias de mulher e homem ou de feminino e masculino. Em terceiro lugar, porque se está diante da transversalidade de gênero, isto é, do entendimento de que a construção social de gênero perpassa as mais diferentes áreas do social. 10 Por consequência é admissível afirmar que o conceito de gênero tem duas perspectivas uma politica e a outra teórica, possibilitando a compreensão das desigualdades entre homens e mulheres, como instrumento metodológico. E na pratica discursiva, as pesquisas que viabilizam acerca deste tema atuam no sentindo de criticar, analisar e modificar as relações sociais que produzem efeitos tão indesejáveis como o crime de estupro, o abuso sexual infantil, a discriminação nas famílias, escolas, no trabalho, na sociedade e também no sistema de justiça.11 COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia, dominação e discurso de gênero: reflexões possíveis sobre a discriminação da vítima em processos judiciais de estupro. Disponível em < http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/pdf/mneme11/093.pdf> Acesso em Março de 2017. [footnoteRef:4]Está claro que o Direito foi influenciado pela elaboração da perspectiva de gênero, consequência disto é a criação da disciplina Direito das Mulheres em que se estuda por exemplos, as relações de trabalho e as relações familiares sob a ótica feminina enfatizando os papéis das mulheres e suas posições. [4: 10 MACHADO, Lia Zanotta. Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo? In: Sociedade Brasileira de Sociologia (Ed.) Simpósio Relações de Gênero ou Patriarcado Contemporâneo, 52ª Reunião Brasileira para o Progresso da Ciência. Brasília: SBP, 2000. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wp>MACHADO, Lia Zanotta. Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo? In: Série Antropologia. Brasília: 2000, n. 284, p.6. Disponível em < http://www.unb.br/ics/dan/Serie284empdf.pdf> Acessado Março 2017. 11 COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia, dominação e discurso de gênero: reflexões possíveis sobre a discriminação da vítima em processos judiciais de estupro. Disponível em < http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/pdf/mneme11/093.pdf> Acesso em 10 de dez. 2016.] No Direito Penal a elaboração teórica do gênero e o movimento feminista afetaram as ciências criminais, questionando as relações de gênero entre criminalidade, sistema de justiça e mulher/feminino. 12ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sexo e gênero: a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de Justiça Criminal. Boletim IBCCRIM. São Paulo: v. 11, n. 137, abr. 2004, p. 2. Dessa forma, temas como a falta de proteção das mulheres no sistema de justiça penal frente à violência masculina, a baixa taxa de incriminação feminina, bem como suas formas específicas de criminalidade (aborto e infanticídio) começaram a sair da marginalidade acadêmica. 13 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 19. Com todas estas contribuições supracitadas trazidas pela elaboração do conceito de gênero ao Direito, há ainda um longo caminho de alterações a ser percorrido, pois na pratica é claro que a discriminação contra a mulher se faz presente, principalmente no crime de estupro. Podemos afirmar que a violência sexual contra as mulheres é fruto da visão patriarcal, que vislumbra a mulher como um mero objeto de propriedade do homem, e essa objetificação e reiterada no discurso dos operadores do sistema de justiça criminal durante toda a fase de colheita de provas, culminando em sentenças que em sua maioria revelam que o que está em julgamento não é fato criminoso, mas a conduta moral da vítima e do autor do crime. 1466 SILVA, Danielle Martins, op. cit., p. 06 6 Se faz necessário observar como as relações de gênero e de poder se manifestam , para podermos ter a possibilidade de descontruir os estereótipos ligados ao feminino e masculino , assim como a ideia de interiorização do gênero feminino e o controle do seu corpo e sua sexualidade e a consequente culpabilização da vítima nos crimes sexuais 3. Historia do Crime de Estupro e o Direito Os crimes são definidos e julgados pelos interesses próprios da sociedade, o que não os torna imunes a mudanças de um universo coletivo com o passar do tempo. Segundo Michel Foucault, “é a sociedade que define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado como crime".(FOUCAULT,Michel. Vigiar e punir , p. 87) Neste capitulo, serão apresentadas a evolução histórica e legal do crime de estupro e a percepção sobre esse delito que se alterou ao longo dos anos, a fim de entender como a chamada "lógica da honestidade" foi desenvolvida e vem sendo aplicada até hoje. Desde a Antiguidade existe repressão à relação sexual forçada, especialmente quando a vítima é mulher, e a esse tipo de conduta convencionou-se chamar estupro. Os contornos desse de crime foram delimitados ao longo dos séculos, “assim como as formas de compreendê-lo e tratá-lo pelo sistema de justiça penal.15 MANFRÃO, Caroline Colombelli, op. cit., p. 10Entretanto, sempre lhe foi peculiar a controvérsia, pois seu julgamento mobiliza a interrogação sobre o possível consentimento da vitima, a analise de suas decisões e sua autonomia.16 “Por muito tempo o estupro era visto, como uma “premiação”, sequer era condenável moral ou criminalmente, exemplo maior disso era época de guerras, as mulheres da parte derrotada tinham o “ privilégio" de ter relações sexuais com os homens da parte vencedora, independentemente de qualquer consentimento. Sendo relevado pelos juízes, pois representava uma espécie de "posse de território”.17 Com o decorrer do tempo, o estupro passou a ser condenado social e penalmente, mas era considerado um crime contra o patrimônio, esta visão classificava a mulher e o corpo feminino propriedade privada do homem a quem a mulher violentada era subordinada, esta visão teve inicio no antigo testamento até o período medieval. Como explica Vilhena e Zamorra: "roubar ou raptar uma mulher de seus proprietários de direito, normalmente pai ou marido, destruía o seu valor de propriedade principalmente em casos de virgens.” (VILHENA, Junia de. ZAMORA, Maria Helena. Além do ato: os transbordamentos do estupro. Revista Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 12, 2004, p. 115”) VILHENA, Junia de. ZAMORA, Maria Helena. Além do ato: os transbordamentos do estupro. Revista Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 12, 2004, p. 115 Sendo então a mulher definida como um mero objeto era lhe negada a humanidade e seus direitos inerentes, portanto o ato punido era o da violação à propriedade do homem, e não a agressão violenta ao corpo da mulher. Mais a frente na linha do tempo, nos séculos XVI e XVII lentamente o estupro passou a ser percebido como uma violência sexual tendo leis severas quanto à repreensão do estupro, mas ainda ligado ao conceito de “roubo da castidade e da virtude, 18 o objeto de preocupação era com a desonra da família e não com a vítima”. A repreensão brutal combinava com processos falíveis e confusos,que terminavam recusados pelas cortes da época, pela falta de queixas, investigações inconclusas, e pouco aprofundamento nos fatos. Reinava o desinteresse em examinar e averiguar os danos causados nas vitimas, existia uma certa tolerância em relação a violência. Salientando que a repressão a esse crime mudava de acordo com as "características da vítima" , o erro do acusado é acusado pela fraqueza ou inocência da vitima. A agressão contra uma jovem impúbere é mais grave do que o de uma mulher adulta. 19Ibid., p. 19 [footnoteRef:5] Assim se a violência fosse cometida contra uma jovem virgem, a punição do agente era muito mais grave, pois era visto como um ataque a honra da família e posição das famílias, o crime de estupro não era considerado uma violência contra a mulher-vitima e sim contra seu tutor, geralmente seu pai ou marido. [5: 18 VILHENA, Junia de. ZAMORA, Além..., p. 115. 19 VIGARELLO, Georges, op. cit., p. 21. ] Outro fator importante para o agravante ou atenuante do delito eram as classes sociais de vitima e agressor, quando a vítima era uma escrava ou doméstica o crime era considerado menos grave, do que cometido contra uma nobre, e a pobreza do agressor agravava o delito. 20 Portanto o crime de estupro nessa época era considerado uma enorme desonra à mulher e sua imagem perante a sociedade. Com o grande tabu criado pelo cristianismo católico sobre sexualidade e qualquer assunto atrelado, a vitima de um crime de estupro não era tratada com misericórdia, mas também classificada como pecadora, impura e indigna. Quando uma mulher vitima tornava publica uma denuncia de estupro , colocava-se em xeque a moralidade da mulher violada, seu possível consentimento ou arrependimento, o que levava a desistirem de delatar seu agressor.21 MACHADO, Flora Barcellos de Valls, op. cit., p. 24 Acreditava-se que um homem sozinho ficaria impossibilitado de violentar uma mulher, pois a crença afirmava que uma mulher teria meios para se defender, isto é, resistência física bastaria para impedir o estupro assim não havendo marcas de luta, o estupro sofrido seria encarado como uma relação sexual consentida. Portanto era analisada a reputação da vitima, o modo que ela reagiu ao ataque, bem como seu comportamento e se este amoldava-se aos padrões culturais classificados como adequados para mulheres. Uma mulher que desviava sua conduta deste perfil narrado acima, era-lhe negado a justiça e a violência sofrida era completamente ignorada pelo sistema de justiça.22 Ibid., p. 13 A partir da segunda metade do século XVIII, algumas modificações na lei penal começaram a surgir em razão da emergência de novas formas de pensamento a respeito da violência. A alteração mais significativa foi o fato de que o conteúdo da transgressão criminal começou a se dissociar das ideias de pecado e blasfêmia. Todavia, essas modificações não determinaram uma mudança imediata na abordagem cultural e na prática jurídica do estupro, que conservaram a opinião tradicional de suspeita de consentimento da mulher.23Ibid., p. 13 Então surge uma nova sensibilidade quanto a impunibilidade do estupro, a opinião publica começa aqui a questionar e criticar os casos em que homens de elevadas posições sociais, privilegiadas estupravam mulheres de classes sociais inferiores , na certeza da impunibilidade. O que de fato continuou acontecendo, pois a mudança na visão publica não influenciou em alterações nos processos judiciais, as condenações continuavam mínimas. 24 Como explica Vigarello: "para caracterizar mais os atos visados e hierarquizar mais as sentenças “ com objetivo de evitar o arbítrio dos juízes, e também a de desproporcionalidade entre a pena e o crime, pois houve a necessidade de adaptação, com a mudança de mentalidade a respeito da violência sexual. ",(VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 101.) De tal modo, o atentado violento ao pudor é construído como uma violência sexual menos grave do que o estupro. “Entretanto cabia aos juízes na analise do caso concreto para delimitar seu conteúdo, uma vez que a nova lei não foi aprendida rapidamente.” (MANFRÃO, Caroline Colombelli, op. cit., p. 15) Neste período o estupro começa a ser visto distante do conceito de pecado, retirando de foco a referência religiosa no tratamento do crime, isto é, o crime “não pertence mais ao mundo suspeito da obscenidade, não é mais condenado pela depravação que ele poderia mostrar.” 25 Porém não foi o bastante para o aumento do número de denuncias ou das condenações, muito menos para amenizar a dor e a vergonha das vitimas. Permanecendo ainda a suspeita sobre seu consentimento e a desconfiança em relação ao seu depoimento, isso baseado no argumento de que o estupro de uma mulher adulta é impossível se realizado por um homem sozinho, portanto podemos afirmar que ainda não se acreditava na mulher. Até a primeira metade do século XIX o crime de estupro era caracterizado somente com a ocorrência de violência física para a obtenção da relação sexual. Porém estava surgindo cada vez mais novos entendimentos a respeito das liberdades individuais, foram então revistas “as ameaças que pesam sobre a posse de si mesma da pessoa”, 26 possibilitando o reconhecimento da violência moral. Vale ressaltar que o reconhecimento não foi incorporado a legislação, mas construído paulatinamente pelos agentes do direito durante os processos. Tendo em vista que a coação passa a ser compreendida de forma distinta, a relação entre violência e o não consentimento é reavaliado permitindo que a supressão da vontade da vítima seja resultado de violência moral exercida mediante uma intimidação.27 Em que pese o reconhecimento da violência moral, a suspeita que recai sobre a vítima não foi abolida e a gravidade das ameaças e a dificuldade de levá-las em consideração tornaram-se um paradoxo durante os processos. Assim, continuam presentes as imagens de desonestidade da queixa e submissão voluntária da mulher. 28 Nesse sentido, Vigarello afirma:[footnoteRef:6] [6: 25 VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 97-98. 26 VIGARELLO, Georges, op. cit., p. 137. 27 MANFRÃO, Caroline Colombelli, op. cit., p.17. 28 Ibid., p. 17.] “O ato continua, assim, inexoravelmente percebido sob o ângulo do agressor, e não sob o ângulo da vítima, o não consentimento da pessoa atacada sendo inexoravelmente pensado como frágil em um episódio em que tudo poderia se inverter e a resistência tornar-se aquiescência” ( VIGARELLO, Georges, op. cit., p. 145) Por ganhar maior visibilidade o numero de queixas do crime de estupro aumenta, no século XIX e XX, com a diminuição da tolerância a este tipo de ofensa, ocupando um espaço maior no imaginário social, o acréscimo no numero de queixas se da por conta de uma nova ciência, a estatística, que foi considerada " uma maneira totalmente inédita de mencionar o crime, indicando suas flutuações, suas progressões, suas possíveis recessões.”29VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 113. Passando então a ser visto pela perspectiva psicológica com a análise do efeito do crime sobre a vítima, conforme relata Vigarello: A referência ao trauma interior, alusão psicológica mencionada por alguns eruditos no começo do século, por muito tempo ausente das declarações feitas pelas vítimas e pelos defensores ou peritos, se torna umas das referências maiores para qualificar a gravidade do crime. Não mais o peso moral ou social do drama, não mais a injúria ou o aviltamento, mas a desestabilização de uma consciência, um sofrimento psicológico cuja intensidade é medida por sua duração, ou até por sua irreversibilidade.( VIGARELLO, Georges, op. cit., p. 213).VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998, p. 213 A partir desse ponto de vista psicológico, as vítimas começam a questionar os valores de uma sociedade predominantemente masculina, uma vez que tais valores são obstáculos à apreciação do estupro.” “VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 211 , ficando claro a grande necessidade de uma nova forma de abordagem dos crimes sexuais, tendo como por objetivo ouvir as vitimas.30 3.1. Estupro no Brasil: Do Período Pre-Colonial ao Código Penal de 1940. No presente capitulo será estudado as definições do crime de estupro no Brasil, para buscar o entendimento de como a chamada "lógica de honestidade" foi constituída e usada no passado, e até mesmo na modernidade. Os povos que já habitavam esta terra as tribos indígenas, encontrados pelos colonizadores portugueses, possuíam suas próprias formas de lidar com o crime de estupro, com sanções àquele que havia cometido um crime sexual, que geralmente era bastante severa. Isto foi um marco inicial importante pra analisarmos tal delito no ordenamento jurídico brasileiro, conforme explicam Santos e Prado.31 Porém essa forma de solucionar os conflitos não influenciou o Direito Penal após a colonização. Com a colonização portuguesa a legislação penais vigentes em Portugal, sendo elas as Ordenações Afonsinas, que vigoraram de 1500 a 1514, as Ordenações Manuelinas, que permaneceram vigentes entre 1514 a 1603, e as Ordenações Filipinas, passaram a ser impostas ao território brasileiro, estas legislações foram promulgadas em 1603 e valeram até 1830, muito embora algumas normas referentes ao Direito Civil tenham sido efetivamente revogadas apenas com o advento do Código Civil de 1916. [footnoteRef:7]Para Fayet, essas Ordenações eram o reflexo do Direito Penal medieval que tinha como objetivo impor o medo pelo castigo com fundamento em princípios religiosos impostos pela Igreja Católica, e a característica comum entre elas era o fato de que crime se confundia com o pecado e com a ofensa moral.32 [7: 30 VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 211. 31 SANTOS, Gabriela Gatti dos; PRADO, Florestan Rodrigo do. Do estupro: Reflexões em face das alterações da Lei nº 12.015/2009. ETIC – Encontro de Iniciação Científica – ISSN 21-76-8498, Vol. 10, nº 10, 2014. Disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2017, p. 06.] O Código Afonsino passou a vigorar no Brasil após sua descoberta, e é uma coletânea de leis promulgadas durante o reinado de Dom Afonso V, havendo duas definições diferentes do crime de estupro que são: a do estupro voluntário, caracterizado no Título VIII, do Livro V, sob a epígrafe “Do que dorme com moça virgem, ou viuva per fua voontade, bem como a do estupro violento, tratado no Título VI como “Da Molher, e como fe deve a provar a força.”33BRASIL. Ordenações Afonsinas. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5ind.htm Acesso em 24 Mar. 2017 Na primeira definição castigava-se os “pecados contra a vontade de Deus” e o delito era sancionado com o casamento ou, caso assim não desejasse a vítima, com a concessão de um dote. Na segunda, a pena de morte era aplicada, ressaltando que apenas eram consideradas vitimas as mulheres virgens, religiosas, casadas ou viúvas honestas.34 ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Especial (arts. 184 a 285). Vol. 3. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 142 Já no Código Manuelino, promulgado pelo rei Manuel I de Portugal , tratavam do estupro violento no Título XIV, do Livro V como “Do que dorme por força com qualquer molher, ou traua della, ou a leua por sua vontade”35 , e do estupro voluntário no Título XXIII como “Do que dorme com moça virgem, ou viuua honesta por sua vontade, ou entra em casa d'outrem pera com cada hua dellas dormir, ou com escraua branca de guarda. E do que dorme com molher, que anda no Paaço.36 BRASIL. Ordenações Manuelinas. Disponível em: http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas//l5ind.htm Aceso : 24 . Mar 2017 Observarmos então que houve uma ampliação significativa em relação ao polo passivo do tipo penal uma vez que mulheres escravas e prostituas passaram a ser incluídas como possíveis vítimas. As regras e condenações permaneceram as mesmas , ou seja, o estupro violento era punido com a pena capital, enquanto o estupro voluntário era sancionado com o casamento ou, se a vítima assim não desejasse, com a concessão de um dote. Na mesma visão que as anteriores, aparece as Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, promulgadas por Filipe II de Espanha, ou Felipe I de Portugal, durante o domínio castelhano, o crime de estupro voluntário de mulher virgem foi definido no Título XXIII, do Livro V como “Do que dorme com mulher virgem, ou viúva honesta por sua vontade.”37 e definia para o autor do delito o casamento com a "donzela", e não sendo possivel o casamento seria instituido um pagamento a vitima, um dote. Se o autor não possuísse bens, ele era açoitado e degredado, a não ser que fosse fidalgo ou pessoa que detinha uma posição social privilegiada, oportunidade em que recebia tão somente a pena de degredo.38 Em contra partida, o crime de conjunção carnal violenta foi definido no Título XVIII como “Todo homem, de qualquer stado e condição que seja, que forçosamente dormir com qualquer mulher postoque ganhe dinheiro per seu corpo, ou seja scrava, morra por ello.39 [footnoteRef:8]Segundo explica Martins esse delito era punido com pena capital, a não ser que a vitima fosse escrava ou prostituta. “ Nesse caso, as Ordenações Filipinas previam: “Porém, quando fôr com mulher, que ganhe dinheiro per seu corpo, ou com scrava, não se fará execução, até nol-o fazerem saber, e per nosso mandado”.40 Nesse caso, as Ordenações Filipinas previam: “Porém, quando fôr com mulher, que ganhe dinheiro per seu corpo, ou com scrava, não se fará execução, até nol-o fazerem saber, e per nosso mandado” [8: 37 BRASIL. Ordenações Filipinas. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5ind.htm Acesso em: 05 jan. 2017 38PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: Parte especial – arts. 121 a 249. Vol. 2. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 647” 39 BRASIL. Ordenações Filipinas. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1168.htm Acesso em: 05 jan. 2017” PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: Parte especial – arts. 121 a 249. Vol. 2. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 647 ] Em suma, pode-se afirmar que as Ordenações Reais visavam proteger a honra da mulher virgem e da viuva honesta, consequentemente, as mulheres que não se amoldavam a este perfil não eram merecedoras da tutela jurídica.[footnoteRef:9] [9: 40 MARTINS, José Renato, op. cit., p. 9. 41 MARTINS, José Renato, op. cit., p. 10 42 Ibid., p. 10.] A proclamação da independência no Brasil e o advento da Constituição de 1824, foi promulgado o Código Penal do Império de 1830, sendo o primeiro Codigo Penal brasileiro, vigorou de 1831 a 1891. Conforme Martins, o Código Criminal do Império do Brasil foi o primeiro diploma a utilizar a rubrica “estupro” para denominar um crime, porém a mesma não representava apenas esse delito em si, isto é, conjunção carnal forçada, mas também outros crimes de conotação sexual, técnica redacional que foi duramente criticada pela doutrina à época. 41 MARTINS, José Renato, op. cit., p. 10 O autor reitera que o Código Criminal de 1830 previa, sob a mesma rubrica de “estupro”, os seguintes delitos: a) defloramento de mulher virgem e menor de dezesseis anos (artigo 219); b) defloramento de mulher virgem e menor de dezesseis anos por quem a tem sob seu poder ou guarda (artigo 220); c) defloramento de mulher virgem e menor de dezesseis anos por pessoa a ela relacionada por grau de parentesco que não admita dispensa para casamento (art. 221); d) cópula carnal por meio de violência ou ameaça com mulher honesta(artigo 222); e) ofensa pessoal a mulher para fim libidinoso, causando-lhe dor ou mal corpóreo, sem que se verifique a cópula carnal (artigo 223); e f) sedução de mulher honesta e menor de dezessete anos, praticando com ela conjunção carnal (artigo 224). 42 Ibid., p. 10 A tipificação do delito estupro estava disposto no art. 222 do Capítulo II, que tratava “Dos crimes contra a segurança da honra”, do Título II, que versava acerca “Dos crimes contra a segurança Individual”, com a seguinte redação: “Ter cópula carnal por meio de violencia ou ameaças, com qualquer mulher honesta” (redação original).43[footnoteRef:10] BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm Acesso em : 24 .03. 2017Tendo penas diferentes quando as vitimas eram distintas, se o estupro fosse praticado contra “mulher honesta”, a pena aplicada seria a prisão de três a doze anos, bem como a constituição de um dote em favor da vitima, para que esta conseguisse um bom casamento após o delito. Entretanto se a vitima fosse prostituta, a pena seria menor, ou seja, de apenas um mês a dois anos de prisão, demonstrando, que ela possuía um valor social menor em relação à primeira. [10: 43 BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm Acesso em: 06 jan. 2017. 44 BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm Acesso em: 06 jan. 2017 . ] Sobre este dispositivo legal , reitera Teixeira: Com a independência do Brasil e a Constituição de 1824, o direito penal instituiu o Código Criminal do Império, erigido sobre bases de equidade e justiça. A despeito disso, a mulher continuou sendo classificada como honesta e desonesta, dependendo de sua reputação e conduta sexual. O atributo da virgindade ainda participava de critérios adotados pela sociedade para julgar a mulher como digna ou não. (TEIXEIRA, Deice Silva. A mulher violentada: a suavidade da propaganda na perpetuação da dominação masculina. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011, p. 27) TEIXEIRA, Deice Silva. A mulher violentada: a suavidade da propaganda na perpetuação da dominação masculina. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011, p. 27 Já o art. 223 definia o que seria o atentado violento ao pudor : “Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal” (redação original)44 “ Nesse caso, a punição era mais branda, propiciando prisão de um a seis meses, além de multa correspondente à metade do tempo de condenação e possíveis outras que fossem impostas ao réu. E como afirma Martins, além de ter abrandado a pena em relação às Ordenações Filipinas, o Código Criminal de 1830 passou a prever a possibilidade de extinção da pena do estupro caso a ofendida se casasse com o agressor.45[footnoteRef:11]Conforme o art. 225. Art. 225.46 [11: 45 MARTINS, José Renato, op. cit., p. 11. 46 Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas”. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm> . Acesso em: 06 jan. 2017 47 CUANO, Rodrigo Pereira. História do Direito Penal Brasileiro. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 06 de jun. de 2001. Disponivel em: <http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/884/historia_do_direito_penal_brasileiro> Acesso em: 06 jan. 2017”CUANO, Rodrigo Pereira. História do Direito Penal Brasileiro. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 06 de jun. de 2001. Disponivel em: http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/884/historia_do_direito_penal_brasileiro Acessp em : 24 . Mar. 2017 ] O que na verdade objetivava a “restauração da honra" da mulher, pois esse era o objeto jurídico tutelado pelo tipo penal mencionado. Observando que mesmo com as mudanças socioculturais decorrentes na legislação, o bem tutelado continuou inalterável, permaneceu sendo a honra e virgindade da mulher, e a punição do crime de estupro prosseguia vinculada à análise do comportamento sexual pregresso da vítima ao invés do delito em si, condizente com o que declara Teixeira : A evolução jurídica do sistema penal se ateve às concepções machistas que colocaram o homem sempre em posição superior à da mulher nas relações como um todo, atribuindo a ela conceitos de honestidade que nunca foram debatidos em relação ao homem, como se ele fosse honesto por natureza, independentemente de sua postura sexual seja ela qual fosse. (TEIXEIRA, Deice Silva, op. cit., p. 29-30) TEIXEIRA, Deice Silva, op. cit., p. 29-30Nascendo a Republica, foi promulgado o Código Penal de 1890, também conhecido como Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, que teve vigência entre 1891 até 1932. Salienta-se que esse diploma foi promulgado pelo Decreto de Governo Provisório n. 847, de 11 de outubro de 1890, só tendo entrado em vigor no ano de 1891, face ao Decreto n. 1.127, de 06 de dezembro de 1890, que assinava o prazo de seis meses para a sua execução no território nacional. 47 O crime de estupro então passou a ser definido restritamente à pratica de conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.48 O artigo 269 classificou : “Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não” ( redação original)49 BRASIL, Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049 Acesso em ; 24.Mar. 2017. E na parte final definia : a violência para além do uso da força física, nestes termos: “Por violência entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcóticos” ( redação original). ( Ibid.) Ibid. O art. 269 estava inserido no Capítulo I, que tratava “Da violência carnal”, do Título VIII, que tratava “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, assim observamos que neste dispositivo legal, existe não apenas a tutela da honra da vítima, mas também de sua família. Ressaltando que o artigo 268, que versava do crime de estupro especificamente, afirmava o seguinte : [footnoteRef:12] [12: 48 MARTINS, José Renato, op. cit., p. 12 49 BRASIL, Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049> Acesso em: 06 jan. 2017 ] Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão cellular por um a seis annos. § 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos. § 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte ( redação original). (Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049> Acesso em: 06 jan. 2017) Houve aqui uma ampliação em relação ao polo passivo, já que não mais exigia que a vitima fosse virgem para a consumação do crime. Porém ainda era exigido que esta fosse honesta, protegendo somente as que se amoldavam no conceito de honestidade da época. Seguindo esta tendência, o Código Penal Republicano, cominou uma pena mais branda a este delito.50 Perpetuando as diferenças das penas em relação ao estupro cometido contra mulher honesta, “mulher publica” ou prostituta.[footnoteRef:13] [13: 50 MARTINS, José Renato, op. cit., p. 12-13 51 Ibid, p. 13-14 52 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm Acesso em: 03 de Mai. 2017 53 COULOURIS, Daniella Georges. A construção da verdade nos casos de estupro. Disponível em <http://www.cfemea.org.br/pdf/construcaodaverdade_daniellacoulouris.pdf> Acesso em : 3 mai. 2017 ] Duramente criticado pelos doutrinadores da época ,o Código Penal da Republica, foi alterado e acrescido de varias leis penais, o que originou a Consolidação das Leis Penais de 1932. Entretanto, nenhuma modificação foi feita no delito de estupro entre o Código Penal de 1890 e a Consolidação das Leis Penais de 1932.Portanto adveio o projeto de Alcântara Machado que foi sancionado em 07 de Dezembro de 1942.51 Estando vigente até hoje, o Código Penal de 1940 sofreu alterações, como o acréscimo do paragrafo único no artigo 213,para casos em que a vitima fosse menos de 14 anos.52 Mas as alterações significativas foram realizadas pela Lei nº 12.015/2009, que promoveu a inclusão de novos dispositivos e excluiu outros. Concluímos que, por esta breve explanação da parte histórica do crime de estupro, as ações legislativas e a naturalização do gênero em relação aos polos passivos e ativos, mostram ser insuficientes para modificar a realidade social, uma vez, que o crime de estupro continua manifestando-se, majoritariamente cometido contra a mulher, marcado por relações de gênero e poder. 4. Analise do discurso judicial e a construção da verdade nos processos de estupro No presente capitulo será analisado, a construção da verdade em um processo penal envolvendo o crime de estupro, evidenciando a dificuldade de se demonstrar a sua ocorrência, por apresentar inúmeras versões, carência de provas e testemunhas, que consequentemente confere a palavra da vitima o caráter de prova. Destacando que o discurso jurídico elaborado durante os julgamentos de estupro não serão considerados neutros, pois há influências através e critérios de diferenciação,53 marcados por vícios sociais e culturais, utilizando estereótipos e preconceitos contra as mulheres “ duplicando a violência de gênero54 pois julgam e condenam a vitima com base nestes critérios.[footnoteRef:14] [14: 54 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 85-86. 55 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: direitos humanos, gênero e justiça. Revista USP, São Paulo (37): 58-69, março/maio 1998. Disponível em:< http://www.usp.br/revistausp/37/06-silvia.pdf> Acesso em : 6 Mai. 2017 56 COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia..., p. 06 57 Ibid., p. 17] Como evidenciam Ardaillon e Debert : Mais do que os fatos em si, serão os perfis sociais dos envolvidos, construídos durante o processo, que fornecerão os elementos necessários para a visualização do provável resultado da sentença. Nesse sentido, será a relevância do perfil social de vítima e de acusado para o desfecho do caso – que pode ser de absolvição, condenação e, muitas vezes, de arquivamento – que nos permite afirmar que a verdade irá sendo construída em vários momentos no decorrer do processo ( citação direta , COULOURIS, Daniella Georges, op. cit., p. 02) Podemos afirmar que no decorrer do processo judicial há na realidade um julgamento moral da vitima e do acusado, em conformidade com estereótipos de gênero, ao invés de um exame mais racional e objetivo dos fatos.55 Portanto, o direito não se atem somente aos fatos, mas é construído uma imagem dos envolvidos que determina a forma da atuação do sistema de justiça. A estratégia jurídica é analisar a “idoneidade moral” dos envolvidos, sendo fundamental para atestar a credibilidade dos seus depoimentos.56 Tendo a ideia de honestidade distinções para os gêneros, enquanto para mulheres é relacionada intimamente com a sua virtude moral no sentindo sexual, a dos homens é associada com sua relação ao trabalho.57 Apesar da legislação não exigir um padrão de comportamento de vitima ou acusado, os agentes de justiça julgam os envolvidos por seus comportamentos, pela maneira que se vestem, pela sua vida profissional e pessoal.58 Possuindo um segundo grau de legitimação essas decisões judiciais segundo, Pandjiarjian :[footnoteRef:15] [15: 58 BRAUN, Jenefer L. Violência de gênero: os crimes sexuais e o Sistema de Justiça. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/228520294_Violencia_de_genero_os_crimes_sexuais_eo_Sistema_de_Justica> Acesso em 06 Mai.2017. 59 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime..., p. 206 60 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”? Abordagem sociojurídica do gênero. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 203 61 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 86. ] A atividade judiciária e seu poder coercitivo ampliam sua responsabilidade social, pois a produção de texto no interior do procedimento judicial confunde-se com o próprio direito. Além disso, tal produção inspira e legitima práticas que se estendem a toda a sociedade, pois essas decisões, que têm peso de lei para o caso específico, passam a ser condicionantes de outras práticas sociais. [...] A relevância de uma decisão judicial é o seu duplo grau de legitimação, seja em relação ao dispositivo que irá utilizar, seja em relação à lei que cria quanto ao fato em análise. O judiciário, assim, ao „explicar‟ as leis, constrói relações sociais (PANDJIARJIAN, Valéria, op. cit.) Evidenciando, que a aplicação do direito não é uma simples subsunção do fato á norma positiva jurídica, mas sim o momento em que são exaltados os valores sociais e os fatos sociais. Valores estes transvestidos de estereótipos, preconceitos que atuam no discurso dos operadores do direito involuntariamente ou não, sendo estas praticas vazias de dignidade, justiça e respeito.59 “Prevalece, pois, o julgamento moral da vítima em detrimento de um exame racional e objetivo dos fatos.”, 60 isto caracteriza a vitima no contexto do processual duplicando a violência sofrida pois além da violência sexual a mulher torna-se vitima inconstitucional do sistema penal que reproduz a violência estrutural das relações sociais desiguais.61 Já a imagem do autor do delito é construída a partir da imagem especifica de um “ homem doente”62, assim será muito mais difícil acreditar na palavra da vitima quando esta não encaixa-se no perfil de “mulher honesta” e quando o sujeito não amolda-se no estereotipo de estuprador.63 [footnoteRef:16] [16: 62 ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Frin. Quando a vítima é mulher: Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, p. 28. 63 COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia..., p. 06 64 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime..., p. 202. 65 CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz, op. cit., p. 09 66 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência..., p. 94 ] Porem na analise feita pelos autores Pimentel, Schritzmeyer e Pandjiarjian, foi constatada que inexiste um só tipo de estuprador, sendo o mais comum os indivíduos com uma orientação e vida normais.64 Ao contrario do que imaginam os operadores do direito, o estupro pode ser praticado por qualquer pessoa, sendo que a maioria das denuncias envolvem pessoas conhecidas e ou parentes segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, A, que verificou que, “no geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares” 65 Conclui Andrade que os crimes sexuais, são praticados em maioria por parentes e conhecidos e não uma minoria “anormal”, e não está voltada para a satisfação sexual, mas simuma relação de poder, controle e humilhação, o que retira a culpa atribuída a mulher suposta provocação de sua pratica.66 5 - Conclusão Foi possível analisar neste presente trabalho que as desigualdades entre os gêneros, foram justificadas por diferenças biológicas, o que foi paulatinamente desconstruído pelos movimentos feministas, que demostraram que a concepção de masculinidade e feminilidade não são naturais ou biológicas, mas sim uma construção sócio cultural. Ressaltando que foi verificado ainda que o conceito de gênero é mutável e flexível, conforme os valores determinantes em cada sociedade e momento histórico. Porém, estes conceitos em sua maioria serviam para garantir a supremacia masculina sob a subjugação feminina. Apurando que , esta construção histórica do gênero feminino como subordinado resultou na aceitação social da violência contra as mulheres como forma de controle, tutelando seu corpo como propriedade de um homem, sendo agressões naturalizadas e aceitas até pelo Estado. O estupro neste contexto é um dos resultados mais extremados dessa diferença entre os gêneros, classificado como violência de gênero, afetando principalmente as mulheres, por sua própria condição de mulher. Demonstrou a importância para o direito a perspectiva de gênero nos crimes sexuais pois possibilita um exame critico da construção da verdade jurídica em processos penais, e os papeis atribuídos aos envolvidos, refletindo as discriminações existentes no senso comum. Dessa forma a condição feminina praticamente não alterou-se no que se refere á violência sexual principalmente no crime de estupro pois o julgamento moral da vitima ainda persisti, prorrogando as discriminações, estereótipos e preconceitos de gênero. Apesar da forte reprovação social e penal do crime de estupro, o sistema penal e a sociedade em geral, tolera tal crime, tendo consequências negativas entre elas o baixo índice de denuncias as autoridades. Concluímos que, é necessário uma sensibilização em relação as mulheres vitimas de violência sexual, para que não se sintam constrangidas, mas sim acolhidas ao levar a diante uma denuncia de estupro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. 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