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015 - Módulo Direito - Política e organização do Estado e do Judiciário

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Ciência Política, Direito, Estado e Sociedade
COMPREENDER AS ESPECIFICIDADES DA DISCIPLINA DE CIÊNCIA POLÍTICA, SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO E COM OS CONCEITOS DE ESTADO E SOCIEDADE
1. A política enquanto objeto de ciência
Nos tempos modernos, as pessoas que ocupam altos cargos nos governos e nos órgãos oficiais responsáveis pela organização da sociedade se tornaram muito poderosas. A participação da imensa maioria da população nas grandes decisões políticas, em comparação a isso, ficou bastante reduzida. Por essa razão, quando dizemos que alguém é “político” logo imaginamos que está ocupando algum desses altos cargos, ou é candidato a ocupar um. Ou que está pelo menos entre as poucas pessoas que continuam sempre próximas dos líderes políticos e com alguma influência sobre as decisões deles.
Não estamos acostumados a pensar em nós mesmos, cidadãos comuns, como “políticos”. Mas nem sempre foi assim. No passado, houve tempos em que ser “cidadão” e ser “político” era a mesma coisa.
O que é a política, afinal?
Vejamos o que Hannah Arendt diz sobre isto.
A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das
diferenças. (ARENDT: 2004, P. 21)
Em outras palavras, a política é o esforço que fazemos para organizar a nossa convivência uns com os outros, considerando que somos pessoas diferentes, e que muitas vezes discordamos quanto aos caminhos que devemos seguir nessa nossa convivência. Oficialmente, esse esforço está concentrado principalmente na ação de instituições e órgãos públicos criados para isso, como o governo e as leis. Mas sempre que fazemos pessoalmente algum esforço desse tipo em nossas vidas, de certo modo já estamos praticando um pouco de “política”.
As discordâncias nunca deixam de existir na vida social. Elas geram conflitos entre as pessoas, que então se agrupam em posicionamentos opostos, e esses posicionamentos opostos podem tomar a forma de partidos políticos.
Esses conflitos fazem parte natural da vida política: os grupos que discordam uns dos outros entram numa disputa de poder, cada um tentando fazer a sua opinião valer para toda a sociedade.
Essas relações de poder que vão se formando entre os diferentes grupos da sociedade podem chegar em uma situação de relativo equilíbrio de forças, e ser resolvidas por meio de acordos ou negociações. Ou podem se desequilibrar a favor de um dos grupos, que então domina os demais e os obriga a aceitar suas opiniões sobre o que deve ou não deve ser feito na sociedade.
Governos e cargos públicos, leis e instituições, partidos oficiais etc.... - tudo isso são maneiras pelas quais as relações de poder, equilibradas ou não, vão chegando a um certo modo de organizar a sociedade, para as pessoas que vivem nela poderem conviver melhor umas com as outras. Tudo isso, então, é matéria de estudo da Ciência Política.
Por isso podemos dizer, resumidamente, que a Ciência Política estuda o modo como uma sociedade se organiza para garantir a convivência entre seus membros: sua forma de governo, sua organização jurídica etc., e também as relações de poder que estão por debaixo dessas formas de organização, criando-as, mantendo-as, modificando-as ou desfazendo-as.
2. A política e o direito
A política sempre esteve intimamente associada ao Direito, porque ambos dizem respeito ao modo como as pessoas e grupos se organizam para conviverem uns com os outros em uma mesma sociedade. Como você pode perceber pelo que já dissemos, ou mesmo lendo os jornais e observando por si próprio o que acontece na sociedade, o que uns fazem costuma afetar a vida dos demais, e na maior parte do tempo as pessoas e grupos da sociedade tomam decisões e seguem caminhos muito diferentes, que de algum modo precisam ser ajustados uns aos outros.
Entre as atividades mais fundamentais em que o Direito está direta ou indiretamente envolvido, está a de lidar com normas e instituições que têm papel importante nesse ajuste entre os agentes sociais. E a política, por sua vez, está diretamente ligada ao conjunto das relações de poder que vão se formando na sociedade, e o modo como essas relações de poder, bem ou mal, vão também se organizando e se ajustando. No desenvolvimento da vida política de uma sociedade, as relações de poder podem ir se organizando e se ajustando por si mesmas, em função de equilíbrios força ou formas de dominação de uns pelos outros que se firmam e se padronizam com o tempo. Ou podem se organizar e se ajustar graças aos esforços ativos de convivência e entendimento mútuo das próprias pessoas e grupos envolvidos. Ou ainda por meio de instituições criadas para isso como, por exemplo, o governo, os partidos etc. - e também, justamente, as normas e instituições jurídicas.
Pode-se dizer que o Direito tem uma participação importante na organização e no ajuste das relações de poder na vida política de uma sociedade. E em contrapartida, a atividade política de um modo geral, e as relações de poder em particular, acabam tendo também uma forte influência sobre o Direito, que não pode ser ignorada por aqueles que se formam para atuar nessa área.
3. Ciência Política e Filosofia política
Entre as disciplinas especialmente importantes para o Direito que estudam o funcionamento e o sentido da política - e a dinâmica das relações de poder em uma sociedade - está a Ciência Política, especializada no assunto. Mas para isso ela se utiliza com frequência da ajuda de outras disciplinas científicas, que examinam esses assuntos a partir de outros ângulos - como por exemplo a Antropologia Política, a Psicologia Social, a História, o próprio Direito e a Teoria Geral do Estado.
A Ciência Política se utiliza ainda mais da Filosofia, principalmente em seus fundamentos (como aliás ocorre na verdade com todas ciências, sobretudo as humanas). E também se utiliza dela nos seus estudos mais introdutórios - o que é exatamente o caso aqui. Nos livros didáticos ou de introdução ao pensamento político - mesmo naqueles que são escritos ou organizados por cientistas políticos - você quase sempre vai encontrar, na maioria dos capítulos, estudos sobre as teorias políticas de grandes filósofos, como Platão, Aristóteles, La Boétie, Hobbes, Locke, Rousseau e outros.
Existem muitas regiões comuns entre Ciência Política e Filosofia Política, muitos pontos em que essas duas disciplinas se cruzam e até se confundem. Mas isso não quer dizer que Ciência Política e Filosofia política sejam exatamente a mesma coisa. Ciência e Filosofia são duas maneiras diferentes de se estudar as coisas, e essas diferenças também aparecem nos estudos políticos. Norberto Bobbio tenta esclarecer isso dizendo que
a ciência é não valorativa ou não é ciência - a maior distância entre filosofia política e ciência política se verifica lá onde a filosofia política assume um caráter fortemente
valorativo. (BOBBIO: 2000, P. 71)
Na verdade, a filosofia nem sempre assume esse caráter valorativo, por isso distinguir filosofia e ciência política somente com base nisto não é tão simples. Uma outra diferença importante entre as duas disciplinas está ligada ao fato de que uma teoria científica procura sempre se especializar no seu tema de estudo, e uma filosofia, pelo contrário, tende a relacionar o seu tema com diversos outros temas, inclusive temas que a princípio não imaginaríamos que poderiam ter qualquer relação possível com ele.
Hobbes, por exemplo, relaciona os problemas político com problemas da matemática e da física. Locke relaciona sua teoria sobre a propriedade com sua teoria do conhecimento, isto é, com sua teoria sobre o modo como acontece a formação de conhecimentos na mente humana. Quando o cientista político se utiliza de uma filosofia, ele nem sempre sente necessidade de examinar em detalhe essas relações da teoria política de um filósofo com outras áreas tão diferentes - e normalmente tem razão em fazer isso.
Entretanto, em alguns casos o centro, o coração de uma filosofia política, está justamente no que essa filosofia diz sobre assuntos de uma áreacompletamente diferente, e todo o resto deriva disto. Em casos específicos desse tipo, se não entendermos o que o filósofo diz nessa outra área, correremos o risco de não entenderemos direito o que ele realmente quis dizer sobre política. Não é incomum acontecerem pequenos erros de interpretação de uma filosofia política aqui ou ali por causa desse tipo de coisa, mesmo por exemplo em textos de grandes juristas de renome nacional ou internacional.
Bobbio, que tem sólida formação filosófica, se preocupa bastante com essa questão das diferenças e pontos de contato entre Filosofia Política e Ciência Política, e se você quiser se aprofundar mais no assunto, pode pesquisar a respeito no primeiro capítulo de seu livro Teoria geral da política (veja na Bibliografia deste tópico).
4. Relações entre Estado, Sociedade e Ciência Política
A palavra “política” deriva da palavra “pólis" - que na Grécia antiga (séculos antes de Cristo) queria dizer justamente “cidade”. Mas uma cidade na qual os “cidadãos” estavam sempre atentos aos problemas que eram do interesse público (de todos), e queriam participar das decisões do governo por todos os meios possíveis. Isto era bastante claro principalmente na cidade de Atenas do século V antes de Cristo, onde foi criada a primeira democracia da História.
Nesta época, aliás, ainda não existiam grandes países como esses que conhecemos hoje. Cada cidade era como se fosse ela própria um pequeno país, na verdade um pequeno Estado independente, sem ninguém acima dos seus governantes para comandá-los (chamamos esse tipo de coisa de “cidades-Estado”, e não de “países”).
Mesmo os grandes impérios da antiguidade, como o Império Romano, não foram exatamente países: um Império, na antiguidade, era um aglomerado de pequenas colônias dominadas por uma cidade mais poderosa. Mas o mais importante é entendermos que, naquele tempo, dizer que alguém em uma cidade era “político” era o mesmo que dizer que se tratava de um cidadão como todos os outros, e não de alguém com “mais poder” que os outros.
O que se chamava de “político” era apenas alguém que vivia na cidade, que tinha o direito de participar dos processos de decisão política que aconteciam nela, e que realmente se utilizava desse direito, lutando para fazer valerem as decisões que achava serem as melhores para o conjunto de todos os cidadãos. A separação entre o que hoje chamamos de “cidadão” e o que chamamos de “político” só apareceu mais tarde, conforme foi aumentando o desequilíbrio e a diferença de poder entre, de um lado, aqueles que ocupam altos cargos políticos, e de outro, o resto dos cidadãos.
Na Idade Média (a partir do século V d.C.) essa concentração de poder nas mãos de uma minoria da sociedade já havia ficado muito clara. Mas ficou mais nítida ainda conforme foram surgindo os primeiros países do mundo, que começaram a ir tomando forma aos poucos a partir do século XIII d.C. Nestes novos países, as cidades já não eram mais Estados independentes, nem eram colônias como nos impérios da antiguidade: passaram a ser apenas pequenas divisões dentro de um Estado maior e bem integradas a ele, todas elas submetidas ao mesmo governo que dirigia esse Estado em seu conjunto.
Os países foram, então, os primeiros grandes Estados nacionais do mundo, isto é, Estados formados por muitas e muitas cidades nas quais as pessoas formavam uma mesma nação, vivendo no mesmo grande território, com a mesma língua e uma mesma cultura, além de estarem sob o mesmo governo.
Com o fim da Idade Média, no século XV, esses novos Estados nacionais chamados “países” começaram a se firmar solidamente, e foi somente nessa época - nos textos do filósofo Maquiavel - que começou a aparecer pela primeira vez a palavra “Estado”. Então, quando dizemos que as cidades da antiguidade eram pequenos “Estados” independentes, estamos usando para isso uma palavra que, na verdade, os antigos ainda não
conheciam. Fazemos isso porque apesar de só ter aparecido depois, a nossa noção moderna de “Estado” de qualquer modo nos ajuda a entendermos melhor como eram afinal aquelas pequenas “cidades-Estado” da antiguidade.
E o que é exatamente um Estado?
Seria difícil falar sobre isso, em Direito, sem mencionar a Teoria Geral do Estado.
A Teoria Geral do Estado - que trata dessa noção de um ponto de vista especialmente adaptado aos interesses do Direito, define esse conceito aproximadamente assim: Estado é o conjunto formado por um povo, um território e uma forma de organização política que atua sobre esse povo e tem sua validade nesse território. E esse conjunto é dotado além disso de soberania - noção que pode ser entendida em um sentido historicamente mais antigo, como uma força superior a qualquer outra dentro do Estado de modo a manter sua unidade; ou em um sentido mais moderno, como a autonomia, independência, desse Estado em relação a forças externas.
Dizemos que a definição é aproximadamente esta porque ela na verdade varia de um autor para outro. Quando falamos aqui, em sentido geral, de uma “forma de organização política”, por exemplo, devemos notar que os autores de Teoria Geral do Estado muitas vezes especificam isso melhor, mas quase sempre apresentando divergências entre eles. Alguns consideram essas formas de organização política em um Estado como sendo especificamente “leis”. Outros, como sendo um “governo”, e outros ainda, de maneira menos rígida, como sendo um conjunto de normas não necessariamente oficializadas na forma de leis, ou uma força organizadora que não precisaria ser necessariamente um governo. E há finalmente os que pensam em diferentes combinações dessas coisas.
Quando falamos em “território”, alguns autores consideram isto de maneira mais rígida, de modo que não seria possível falar em “Estado” quando não há territórios com fronteiras claramente fixadas dentro das quais se aplicam as normas e o poder oficial - como na Idade Média. Outros - como o jurista Dalmo de Abreu Dallari, por exemplo - tomam esta noção de maneira menos rígida, falando abertamente em um “Estado medieval”.
Também há, entre aqueles que são ainda mais rígidos, os que se recusam a chamar de “Estado” qualquer coisa que tenha existido antes do surgimento da própria palavra “Estado”, que só ocorreu depois da Idade Média.
Quanto à noção de “povo”, uma discussão interessante pode ser encontrada no livro Elementos de Teoria Geral do Estado (DALLARI). Ele nota que há uma diferença entre tratarmos o povo de um território como uma “sociedade” ou como uma “comunidade”. A noção de “comunidade” indica uma integração muito maior entre os indivíduos, e também deles com seu território, de modo que se perde de vista o fato de serem indivíduos independentes uns dos outros. Por isso é utilizada quando falamos de uma população menor, mais unida, e mais firmemente enraizada em um local específico dentro do território do Estado. Certos bairros por exemplo, em que as pessoas são muito ligadas ao local e umas às outras, podem ser considerados “comunidades”.
A noção de “sociedade”, no entanto, é a mais utilizada quando pensamos no povo de todo um Estado, porque é uma noção que indica uma independência maior entre os envolvidos, de modo que não se perde de vista a sua individualidade: significa que estão “associados” em um conjunto organizado que é toda a
sociedade, mas ainda são indivíduos livres e independentes uns dos outros, apesar de integrarem o mesmo Estado.
A questão da soberania é melhor trabalhada no livro Ciência Política e Teoria geral do Estado (STRECK). Ele observa que a noção de soberania como uma força superior a qualquer outra no interior do Estado - a primeira que surgiu - tornou-se cada vez mais problemática com o desenvolvimento das democracias, embora continue a ser utilizada. Mas na opinião do autor a segunda noção, que é mais moderna e muito utilizada no Direito - a noção de soberania como independência em relação a forças externas - é igualmente problemática.
A noção de soberania como “força superior” no Estado se desenvolveu após a Idade Média, com o aparecimento dos primeiros países governados por reis. Naépoca se dizia que o rei era o poder soberano, e que no Estado não havia ninguém acima dele. Este é o sentido de soberania que aparece por exemplo nas teorias contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau, que são dessa época dos reis. Mas já em Rousseau, revoltado contra os poderes estabelecidos em sua época, aparece a noção do povo como poder soberano, bem mais ajustada às democracias que viriam depois - afinal, a própria palavra “democracia” costuma ser traduzida como “poder do povo”.
Contudo as democracias atuais são representativas, isto é, o povo só está no poder indiretamente, através de seus representantes. Nessa situação continua válida a noção de poder soberano ou não? Outro problema está ligado à comparação entre a “vontade do povo” - que em certos momentos parece se manifestar publicamente por meio de passeatas e grandes mobilizações populares - e a Constituição.
A Constituição é base e o fundamento legal de todo o funcionamento do Direito em um Estado, e se supõe que ela deve representar aspectos talvez mais profundos e duradouros dessa vontade popular, já que é feita por constituintes eleitos e feita para durar. Mas o que acontece se a vontade popular manifesta nas ruas começar a contrariar coisas que estão fixadas na Constituição? A partir de que ponto esse tipo de contestação passaria a ser motivo para uma reforma constitucional ou para uma nova Constituição?
Sabemos pela experiência dos “modismos” e dos grandes momentos de comoção popular generalizada, mas passageira, que essas manifestações públicas da vontade do povo podem muitas vezes ocorrer em torno de uma ideia num determinado momento, mas sem que isso represente realmente algo de profundo e importante para esse povo, e que deva mesmo ser fixado constitucionalmente - O problema que se coloca aqui, em outras palavras, é o seguinte: numa democracia, a Constituição é soberana, enquanto representante do mais profundo e duradouro na vontade do povo? Ou o poder soberano é diretamente do povo em sua vontade manifestada publicamente?
Problemas assim complicam o uso da noção de “soberania” em seu sentido mais antigo.
Quanto ao sentido mais moderno, de soberania como independência em relação a forças externas, ainda se aplica com certa facilidade pelo menos na discussão de conflitos internacionais. Por exemplo, se um país invade sem permissão o território de outro. Num caso como este, pode-se dizer que o país invasor feriu a soberania do outro Estado sobre seu território, e é o momento de se iniciarem negociações diplomáticas, inclusive para evitar uma guerra.
Mas em que medida se pode dizer que o Estado como um todo, representado pelo seu governo federal, tem poder soberano sobre o seu território, se o governo de uma cidade (como São Paulo, por exemplo) começa a estabelecer negociações diretamente com o governo de uma cidade de outro país, sem que isso passe pela
supervisão ou pelo controle do governo federal? Na maioria das democracias existem campos de ação específicos nos quais uma cidade às vezes pode realmente fazer isso - porque o município tem também certo grau de soberania, de independência, em relação ao governo federal.
Mas raciocinemos um pouco a respeito disso: se podemos falar de um certo grau de independência das partes de um Estado nacional em relação ao todo, ou seja, de um grau de soberania das partes em relação às forças do próprio Estado, e se essas partes do Estado às vezes têm o poder de negociar relações importantes com forças externas ao Estado como um todo sem ter que pedir permissão ao governo federal, em que medida então ainda é válida a noção de “soberania” como independência em relação a forças externas?
As observações de Streck nesse sentido não chegam a inviabilizar a noção de “soberania”, que continua importante no campo do Direito. Mas mostram o quanto pode ser complicado raciocinarmos a partir dela, e nos fazem pensar se algum dia não seremos obrigados a substituir essa noção por uma outra que se ajuste de maneira mais clara e simples ao funcionamento das democracias atuais.
Todos esses problemas relacionados aos diferentes elementos que compõem um Estado - povo, território, forma de organização política e soberania - na verdade são problemas típicos da Teoria Geral do Estado, bem mais do que da Ciência Política. Mas como estão diretamente ligados às questões políticas em geral, não deixa de ser útil para a Ciência Política, que é uma disciplina muito mais ampla, prestar alguma atenção também a eles de vez em quando, principalmente quando o entendimento de certos autores importantes para a disciplina acaba envolvendo conceitos como os de povo, Estado e soberania - coisa muito clara quando tratamos de pensadores como Hobbes, Locke e Rousseau por exemplo.
Se ao tratarmos da questão do Estado procurarmos focalizar mais claramente a Ciência Política, ao invés de nos prendermos estritamente ao problemas técnicos de Teoria Geral do Estado, acabamos concluindo que tudo isso é apenas um instrumento a mais para pensarmos em uma questão que, na verdade é muito mais aberta e profunda - a questão geral das relações entre a política e isso que chamamos de “Estado”.
É importante notar, então, que o modo como a Ciência Política lida com problemas como esse, do Estado e de suas relações com a política, costuma ser bastante diferente da abordagem típica da Teoria Geral do Estado.
A Teoria Geral do Estado tende a focalizar questões mais técnicas e ligadas ao uso jurídico de certos conceitos. A Ciência Política, muito mais próxima à sociologia e à filosofia, costuma buscar uma perspectiva mais ampla das coisas - mais voltada para problemas sociais, históricos, econômicos e diretamente políticos, relacionados por exemplo à dinâmica das relações de poder em uma sociedade, e oferecendo uma visão global desses problemas. Para isto, como já mencionamos antes, ela pode recorrer ao auxílio de diversas outras disciplinas, e inclusive à Teoria Geral do Estado quando preciso, mas não se prende necessariamente a ela.
Política na antiguidade: Os gregos e o sentido da política
COMPREENDER AS ESPECIFICIDADES DA DISCIPLINA DE CIÊNCIA POLÍTICA, SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO E COM OS CONCEITOS DE ESTADO E SOCIEDADE
O que é Teocracia
Desde o final da pré-história até a antiguidade, e na maior parte do mundo, o poder era exercido por líderes religiosos, que não estavam ali cumprindo dois papeis ao mesmo tempo, mas um só: liderar a sociedade era ao mesmo tempo dirigir e fiscalizar os cultos religiosos dessa sociedade. As decisões do líder eram consideradas decisões inspiradas por Deus ou pelos deuses, e era preciso obedecer com o mesmo empenho com o qual se obedece a uma divindade. Às vezes o próprio líder era considerado um deus encarnado em corpo humano.
Esse tipo de situação, em que o poder é controlado pelo líder de uma religião, considerada então a religião “oficial” do Estado, é uma situação que não apenas tende a ser extremamente autoritária, mas também tende a perseguir qualquer um que tenha crenças religiosas diferentes ou não tenha crença religiosa nenhuma. E junto com a existência de uma religião oficial proibindo o culto de qualquer outra, vem toda uma série de valores morais que normalmente não permitem nenhum posicionamento divergente, por mais bem-intencionado que seja do ponto de vista ético, por mais que seja orientado também por valores morais, só que outros, diferentes daqueles da religião oficial. Portanto, os costumes tendem a ser regulados muito rigidamente, e qualquer comportamento diferenciado tende a ser punido com severidade.
Nessas condições, seria muito difícil alguém questionar ou mesmo apenas discutir e avaliar uma decisão governamental em seus prós e contras. Não haveria liberdade para isso.
Passagem do Império Teocrático de Micenas a uma Política Laica
Todavia no sul da Europa, naquela região repleta de pequenas ilhas em que se falava a língua grega, essa situação só durou até por volta do século XI a;C (a mesma época da famosa guerra de Tróia). Depois começou a mudar.
Existia naquela época um grande império dominandomuitas cidades, o império da cidade de Micenas. Até aquele momento, o Império Micênico tinha sido governado por um imperador que era considerado ele próprio um deus encarnado, mas no séc. XI a.C. essa figura do imperador micênico foi perdendo a
importância e o poder. O império micênico havia perdido muitas guerras, não conseguia lidar com uma poderosa invasão de povos estrangeiros bastante agressivos chamados “dóricos”, e as pessoas já não acreditavam mais nos supostos poderes divinos do imperador.
Essa crise do poder do imperador levava muitos líderes militares de prestígio a questionarem se deviam mesmo obedecê-lo, e inclusive a disputarem uns com os outros pensando em tomarem o poder no lugar dele. Com isto, iniciou-se uma época de muitas guerras, tanto contra os povos invasores quanto guerras internas entre esses líderes, ou entre eles e os exércitos do imperador, o que trouxe muito caos e sofrimento para o povo.Depois de pouco tempo nesta situação, o império micênico acabou caindo e desaparecendo de uma vez. As cidades da Grécia se tornaram cidades independentes umas das outras.
Nos séculos seguintes (sécs. X, IX e VIII a.C.) começou a crescer entre os sábios, apesar de na época ainda estarem muito ligados à religião, um movimento de valorização da razão, e daqueles líderes que se mostravam os mais sábios e racionais — e por isso mesmo mais competentes na solução dos problemas sociais, e mais voltados para o diálogo com a sociedade do que para o simples comando direto e autoritário. Mas o que esses sábios praticavam ainda era uma sabedoria que se considerava inspirada nos deuses (os gregos acreditavam na época em vários deuses, e não em um só). De qualquer modo, essa sabedoria “inspirada” estava se tornando cada vez mais racional. No sé. IX a.C., um desses sábios, chamado Hesíodo, realizou o primeiro esforço no sentido de construir uma teologia racional, uma explicação coerente da relação entre os diversos deuses em que os gregos acreditavam. O nome dele era Hesíodo, e fez isso em um livro chamado Teogonia — que quer dizer “a origem dos deuses”.
No século VII a.C., surgiu um novo modo de pensar muito mais racional, que já não dependia mais da fé, e
se mostrava bastante desligado do pensamento religioso. Um modo de pensar que considerava a sabedoria como um produto do trabalho intelectual humano, dos raciocínios e argumentos, de provas, evidências e demonstrações, do debate e da avaliação crítica das coisas que estavam sendo ditas, e não mais da inspiração divina — esse modo novo de pensar era a filosofia.
Mesmo fora da filosofia, podemos dizer que nessa época, a valorização da razão e do esforço humano de raciocinar, procurando encontrar as melhores saídas para os problemas e sofrimentos do povo, já não era mais apenas uma noção defendida pelos grandes sábios, e estava se espalhando por toda a população grega. Ligadas a isso começaram a surgir novas formas de organização política, em que as discussões humanas, confrontando posicionamentos e buscando soluções racionais para eles, começavam a ganhar mais terreno. As antigas formas de organização política, quando se mantinham, também tendiam a ir gradualmente se adaptando a esse novo estilo de funcionamento das relações de poder. Em muitas cidades da Grécia, as lideranças religiosas começaram a deixar o poder, ou a dividi-lo com lideranças laicas, isto é, lideranças que não governavam mais segundo interesses desta ou daquela fé, mas segundo o que se julgava o modo mais racional de decidir as coisas, para o melhor ajuste entre diferentes opiniões que iam sendo levadas em conta.
A ideia nova que estava se formando na política, era a de que seguir crenças religiosas específicas ao governar gerava resistências na sociedade, por parte de quem tivesse crenças diferentes, e tendia a estimular as divergências e conflitos dentro da sociedade. Tentar ser neutro e mais racional era importante para o melhor ajuste entre diferentes opiniões que iam sendo levadas em conta. Chamamos de “laicos”, então, governos, ou instituições, que procuram se manter neutros em matéria de religião a fim de evitar qualquer constrangimento que prejudique a liberdade de crença das pessoas.
Em geral ouviam-se só as opiniões de gente poderosa na cidade. Mas ainda assim, o fato de se levarem em conta diversas opiniões e interesses, e tentando uma solução que as satisfizesse da melhor forma, era uma novidade consideravelmente grande. Muitas cidades chegaram inclusive a passar a ser governadas, parcialmente ou completamente, por líderes eleitos — ainda que, mais uma vez, em muitos casos a eleição estivesse aberta apenas para os membros das classes mais ricas e poderosas da sociedade.
O Nascimento da Pólis de Atenas: Contexto Geral
A palavra pólis, que significa “cidade”, passou a ter cada vez mais um sentido bastante especial: a pólis passou a ser, cada vez mais, em toda a Grécia, uma comunidade em que se praticava a política, isto é, uma comunidade na qual pessoas e grupos com opiniões e interesses divergentes, mas atentos também (ainda que às vezes mais, às vezes menos) ao interesse público de todos os habitantes, procuravam participar das decisões a quanto aos rumos a serem tomados pela pólis como um todo. E essa participação tendia a se fazer por meio do diálogo e de argumentos em defesa de certas posições junto a outras pessoas igualmente aptas a participarem dessa vida política (ou seja, pessoas que atendiam aos requisitos para isso, que muitas vezes incluíam estarem acima de certa faixa de renda).
A palavra “político” significava “cidadão”, isto é, aquele que tem o direito de exercer uma participação direta ou indireta nas decisões que envolvessem os interesses da pólis como um todo. Já dissemos que nas cidades gregas nem todos tinham essa condição de “cidadania”, isto é, esse direito de participação política. O caso mais marcante de exclusão das decisões, em quase todas as cidades da Grécia, era o dos escravos.
Havia toda uma categoria de cidadãos, que normalmente estavam entre os mais ricos e poderosos, que vivia fundamentalmente do trabalho dos escravos. Esses cidadãos eram líderes guerreiros, de famílias da nobreza. Eles conquistavam muitos de seus escravos, e das terras aonde colocavam esses escravos para trabalharem, através da guerra.
Grande parte desses escravos (em muitas cidades a maioria deles) era formada por soldados de algum povo inimigo que havia sido vencido na guerra. Os soldados do povo derrotado eram transformados em escravos dos grandes oficiais militares. Os escravos não eram apenas de povos de outras partes do mundo. Havia muitas guerras entre as próprias cidades da Grécia, então muitos deles eram gregos também. Esses escravos, sendo inimigos de guerra, era de se esperar que não pudessem participar das decisões políticas daquela pólis que os havia escravizado. Mas também já não eram liberados para participarem das discussões políticas de sua antiga cidade, se ela ainda existisse e ainda fosse uma cidade livre o suficiente para decidir os seus próprios rumos.
Entretanto havia uma outra categoria de escravos igualmente excluídos da participação política, que tornavam essa exclusão ainda mais grave: em quase todas as cidades da Grécia na antiguidade (e também em muitas outras cidades de outras regiões do mundo nessa época) pessoas que ficavam muito endividadas costumavam ser transformadas em escravas dos seus credores até conseguirem pagar a dívida com seu trabalho — o que frequentemente significava nunca. Os credores muitas vezes arranjavam um jeito de fazer
os devedores ficarem devendo mais alguma coisa. Mais grave ainda do que isso, era o fato de que não só o endividado se tornava escravo, como além dele, na maioria das cidades, toda a sua família também era escravizada. Considerava-se que a família estava devendo, e não apenas ele.
E é claro que esses escravos por dívidas, mesmo sendo da pólis (e não inimigos de guerra), não costumavam
possuir nenhum direito à participação política, por menor que fosse.
Porém uma das cidades gregas, a cidade de Atenas, por uma sériede circunstâncias, acabou levando a participação política das pessoas muito mais longe, e criando uma forma de organização que, pela primeira vez na história política mundial, recebeu o nome de “democracia” — que segundo a tradução mais habitual quer dizer “poder do povo”. Era também o primeiro governo inteiramente laico, isto é, inteiramente independente da religião. Não que a cidade fosse descrente: muito pelo contrário, era um povo extremamente religioso, e suas crenças religiosas estavam sempre claramente presentes em todas as suas manifestações políticas.
Mas se organizaram de uma maneira que, apesar da constante presença da religião, não dependia dela para funcionar. Tudo naquela forma de organização política poderia funcionar exatamente do mesmo modo fosse qual fosse a religião das pessoas ou até mesmo se não houvesse religião nenhuma na cidade. Isto na verdade permitia uma liberdade de crença muito maior para as pessoas seguirem aquilo em que acreditavam, e permitia também uma variedade muito maior de valores morais divergentes, e de costumes diferentes, exigindo uma atividade política de conciliação dessas coisas muito mais intensa. Como se vê, liberdade e política são coisas intimamente ligadas.
E o primeiro passo na direção dessa primeira democracia da história mundial foi, justamente, a libertação de todos aqueles que haviam se tornado escravos por dívidas — todos eles, na cidade de Atenas, tiveram suas dívidas perdoadas por um decreto governamental. Isto foi realizado por um líder chamado Sólon, no século VI a.C.
O Nascimento da Pólis de Atenas: de Sólon à Democracia
Sólon era o líder supremo da cidade, com o título de “arconte”. Ele já era um líder eleito pela população, mas os atenienses ainda não chamavam isto de “democracia”. Antes de Sólon, como funcionava o governo dessa cidade?
O governo de Atenas antes de Sólon era formado não por um, mas por um grupo de alguns “arcontes” que governavam juntos. Eram líderes supremos que tinham poder legislativo (faziam leis) e executivo (tomavam decisões). Mas além deles, o governo era formado também por uma assembleia chamada “areópago”, e essa assembleia era formada por representantes das famílias mais ricas da nobreza guerreira da cidade.
Os arcontes eram escolhidos pelo areópago, e os membros do areópago eram eleitos somente pelos homens maiores de idade das famílias da nobreza guerreira. O resto da população ficava de fora.
No caso de Sólon foi diferente: uma grande revolta popular assustou o areópago, que para conter a revolta, permitiu que a população votasse, escolhendo um dos candidatos propostos pelo próprio areópago.
Além disso, o areópago escolheu candidatos que sabia que a população poderia aceitar sem revolta. Sólon, um poeta considerado muito sábio (na verdade, considerado um dos homens mais sábios de toda a Grécia) foi o candidato vitorioso. Foi eleito com os votos do povo mais pobre, e ele próprio também não era rico: era de classe média.
Sólon não apenas perdoou as dívidas dos atenienses que eram escravos por causa delas e os libertou da escravidão, mas também reorganizou a economia da cidade, ativando muito o comércio, o que estimulou o crescimento de uma nova classe média na cidade. E com o comércio, a cidade como um todo se tornou mais rica.
Mas esse governo dirigido por um arconte eleito por todos e por uma assembleia de líderes eleitos por famílias ricas ainda não era considerado pelos atenienses como um governo “democrático”.
Depois de Sólon ainda houve uma série de outros líderes eleitos antes que realmente os atenienses considerassem sua cidade-Estado uma “democracia”. Mas vamos mencionar aqui apenas aqueles que tiveram um papel mais importante na formação dessa democracia (que só se completou realmente no século V a.C.). Vamos mencionar os governos de Pisístrato e Clístenes.
Pisístrato não foi eleito. Tomou o poder à força, depois de ter conquistado a simpatia das camadas mais pobres da população com promessas na verdade impossíveis de cumprir. Ao assumir o poder, começou a governar desprezando as leis, e enganando e manipulando o povo. Mas tomava muitas decisões que serviam para agradar o povo superficialmente — sem resolver de verdade os problemas e necessidades mais graves da cidade.
Apesar de tudo isso, o governo de Pisístrato foi importante no caminho para a democracia. Uma das razões da importância de Pisístrato foi ter sido o primeiro a dar alguma atenção para as camadas mais pobres da população, apesar de fazer isso de maneira manipuladora e superficial. Essa camada mais pobre começou a sentir que os governantes tinham a obrigação de dar atenção a ela, já que Pisístrato pelo menos tinha feito um pouco disto (Marx chamava a atenção para esse ponto interessante no governo de Pisístrato).
Contudo, muito acima disso, o governo dos Pisístratas (o de Pisístrato e depois o de seus filhos, que herdaram o poder), foi importante no caminho para a democracia porque, no final das contas, acabou gerando uma enorme revolta (faltou a Marx, quando examinou esse assunto, focalizar um pouco melhor a importância dessa revolta).
Na verdade, o governo dos Pisístratas, com seu autoritarismo populista e manipulador, acabou no final das contas gerando tanta revolta de tanta gente (de todas as camadas sociais, inclusive das mais baixas), que formou contra ele uma forte mobilização no sentido contrário. Uma enorme mobilização unindo essas diversas camadas sociais, no sentido de refortalecer as leis e garantir, por todos os meios possíveis, que nunca mais acontecesse um governo autoritário e manipulador como aquele.
O resultado, foi a invenção da democracia — organização política que tomou toda sua forma mais completa com o último arconte que governou antes dela: Clístenes.
As leis de Clístenes, com forte apoio popular, reorganizaram a cidade criando uma nova divisão de todas as suas regiões em pequenos bairros chamados “demos”, ligados às comunidades viviam ali. E criaram um sistema pelo qual cada demo poderia levantar suas próprias propostas para governo ou apoiar as propostas de outro demo, e o conjunto dos cidadãos poderia votar nessas propostas levantadas pelos demos.
Antes disso, a cidade era dividida de acordo com as regiões controladas por aquelas famílias ricas, da nobreza guerreira, que tinham sempre seus representantes no areópago, e só eram ouvidas propostas feitas por essas famílias ricas. As leis de Clístenes quebraram essa estrutura de poder dos nobres guerreiros, e colocaram o kratós (o poder) nas mãos das comunidades que formavam os demos. Este foi o surgimento do kratós dos demos, isto é, da primeira democracia na história da humanidade.1.2 - A transição das formas estatais pré-modernas)
A Democracia ateniense
COMPREENDER A ORIGEM DA NOÇÃO DE DEMOCRACIA, E DIFERENCIAR A DEMOCRACIA DIRETA DA ANTIGA ATENAS E AS DEMOCRACIAS REPRESENTATIVAS DE HOJE
O problema da neutralidade política no estudo da História da Democracia
Normalmente, quando vamos pesquisar “cientificamente” um assunto, procuramos evitar fazer juízos de valor — isto é, evitamos tomar um posicionamento a favor ou contra o que estamos estudando, tentamos assumir uma postura “neutra”, sem fazermos nenhum julgamento, nenhuma avaliação de que as coisas estudadas são “boas” ou “ruins”. Ao invés disso, nos concentramos nos juízos de fato, isto é, nas afirmações sobre como as coisas são ou como as coisas não são. Em outras palavras, procuramos apenas e simplesmente descrever os fatos e estudá-los.
Mas será que é possível fazermos isso em política?
Alguns acham que sim. Mas mesmo esses reconhecem que não é nada fácil. Nessa área, qualquer afirmação que fazemos corre facilmente o risco de ser considerada uma afirmação no fundo “política”, isto é, misturada com um posicionamento a favor ou contra alguma das forças políticas que participam da situação estudada.
Em política, quando alguém declara que não está “nem de um lado nem de outro” numa disputa, ou seja, quando alguém diz ser “neutro”, na prática está favorecendo o lado mais forte na disputa.
Sim, porque o lado maisforte é o que está no poder, e que quer manter as coisas como estão. A situação só mudará se houver forças suficientes se posicionando contra esse poder. Os que são a favor dele ajudam a manter a situação como está, mas os que são “neutros”, na prática também ajudam, porque “ser neutro” significa “não se envolver na disputa”, isto é, continuar agindo do modo como sempre agiu, ignorando a disputa.
E é justamente isso o que um dos lados que estão disputando (o lado mais forte) quer: que todos continuem agindo do mesmo modo, que tudo se mantenha do jeito que está. Isso coloca os estudiosos que querem ser mais “neutros” e “científicos” numa espécie de beco sem saída: não há como deixar de tomar posição.
Em política, “não tomar posição” já é uma tomada de posição. Não votar em uma eleição, por exemplo, é
uma atitude que tende a ajudar quem estiver vencendo nas pesquisas.
No caso dos estudos sobre a história da Democracia, a situação fica muito mais grave, porque é extremamente difícil — senão impossível — evitar comparações entre as democracias de outras épocas e as de hoje. E essas comparações provocam o senso crítico de qualquer inteligência, a tal ponto que evitar as
comparações tende a parecer uma atitude como a do avestruz que, para fugir do perigo, enfia a cabeça num buraco, como se o perigo desaparecesse pelo simples fato de não o estarmos enxergando, de estarmos ignorando que ele existe.
Democracia antiga e atual
A primeira democracia oficialmente reconhecida pelos historiadores foi a da cidade-Estado de Atenas no século V a.C. Quase todas as outras cidades da Grécia na época eram “cidades-Estado”.
O que quer dizer isso?
Quer dizer que eram cidades independentes, soberanas, cada uma com seu próprio povo, território e forma de organização política. Na época, não existia um país chamado Grécia: “Grécia” era apenas uma grande região em que todos falavam a língua grega.
Apesar de alguns historiadores, como por exemplo A. Croisset e John Keanne, lembrarem que houve outras organizações de espírito democrático na antiguidade, inclusive mais antigas, Atenas foi o primeiro Estado democrático realmente forte, bem organizado e duradouro — e de qualquer modo, o primeiro que assumiu esse título para se definir. Isso não impede que haja discussões para saber se aquela foi realmente a única democracia da época, ou se não houve algum esboço de democracia antes disso, em outras épocas e lugares. Por detrás dessas discussões, existe uma questão política (e jurídica) atual e extremamente importante: a maior parte do mundo hoje — por exemplo o Brasil — vive em regimes políticos que costumamos considerar “democráticos”, e que são inclusive definidos assim nas suas constituições. Mas as democracias de hoje são muito diferentes daquelas da antiguidade. E de todas elas, a mais diferente das nossas atuais é justamente a de Atenas, onde a palavra “democracia” foi inventada.
Defender a ideia de que aquela não foi a única democracia ou de que não foi a primeira, pode ser uma maneira de dar mais importância e atenção a esse assunto, mostrando que a organização democrática de Atenas não foi uma “exceção” ou um “caso isolado” na antiguidade — o que é um modo de defender a ideia de democracia.
Mas também pode ser uma maneira de justificar as democracias incompletas que temos hoje — porque se chamarmos de “democracia” o que existia em outras cidades do século cinco antes de Cristo, vamos estar aceitando como “democracias” formas de organização bem menos livres e mais autoritárias que a de Atenas
— e por isso mesmo mais parecidas com as de hoje!
Quer dizer que as democracias de hoje são “incompletas”? Sim, e muito. E que a democracia antiga de Atenas era “completa”? Talvez não, porque na prática tinha muitos defeitos, embora bem menos que as de hoje. Alguns eram defeitos gravíssimos, mas na verdade não eram defeitos da própria democracia que eles criaram, e sim traços da cultura, do modo de pensar e viver dos atenienses, que não conseguia acompanhar todas as consequências da democracia que eles mesmos criaram.
Na verdade — embora isso pareça estranho — em alguns aspectos muito importantes, aquela democracia parecia bem mais ajustada à maioria das culturas de hoje do que à cultura dos gregos antigos.
Usando um pouco de imaginação, é como se um grupo de democratas radicais de hoje tivesse entrado numa máquina do tempo, viajado para o passado e dado essa ideia para eles, tentando realizar lá o sonho de uma democracia mais perfeita que aqui não existe. O que isso quer dizer é que é bastante difícil entender como
um povo com a mentalidade daquela época foi capaz de criar uma democracia tão completa.
Para entender como era possível serem ao mesmo tempo tão democráticos e tão machistas, por exemplo, ou terem escravos trabalhando para eles (como realmente tinham) é preciso entrar em detalhes muito profundos da cultura deles, difíceis de se estudar.
É preciso entender por exemplo que em toda a Grécia e em quase todo o mundo, na época, quando se vencia uma guerra contra outro povo, os prisioneiros viravam escravos. Isso quer dizer que os escravos, na democracia de Atenas, eram inimigos de guerra, por isso é claro que não podiam participar das decisões políticas, senão apoiariam tudo o que fosse pior e pudesse destruir a cidade.
A democracia de Atenas não libertou esses escravos, mas os tratava melhor do que a maioria das outras cidades, e havia até leis para protegê-los de maus tratos. Na prática era uma espécie de prisão com pena de trabalhos forçados desses escravos para cidadãos particulares de Atenas.
É preciso entender também que na democracia de Atenas, apesar de toda a repressão que sofriam e de não serem consideradas oficialmente como “cidadãs”, na prática as mulheres não deixavam de ter alguma influência indireta nas decisões políticas, através de seus maridos. E havia mulheres que conseguiam conquistar uma independência e uma influência muito maiores, inclusive enriquecendo, embora para conseguir tudo isso precisassem abandonar a família e se prostituir.
Do ponto de vista do funcionamento institucional e jurídico, do ponto de vista das instituições políticas que eles criaram, firmaram por lei e mantiveram, era uma democracia quase “completa” — e seguramente bem mais democrática que as de hoje.
Alguns de seus defeitos e problemas, como o machismo, pelo qual na prática os atenienses não davam direitos iguais às mulheres, como vimos, tinham raízes culturais, que precisariam de muitos séculos para serem resolvidas. Aquela democracia infelizmente não durou tempo suficiente para isso, embora tenha chegado a durar três séculos. É que nesse período de tempo, passou por muitas variações tentando se ajustar à cultura ateniense e grega em geral. Não atingiu uma situação madura e mais estável.
Mesmo assim, neste caso das mulheres, por exemplo, não seria preciso alterar rigorosamente nada nas leis e instituições mais fundamentais da democracia para que elas fossem aceitas com direitos iguais: bastava declarar as mulheres maiores de idade oficialmente como “cidadãs”, e se encaixariam em todos os direitos dados por lei aos demais “cidadãos”.
Na verdade, apesar do machismo e da presença de escravos, a diferença entre aquela democracia de Atenas e todas as outras que costumamos encontrar na História até hoje é tão grande, que o que temos atualmente jamais seria aceito como uma verdadeira “democracia” por um grego ateniense do séc. V. a.C. Os governos e leis mais democráticos de hoje, ele provavelmente acharia autoritários demais, e os povos de hoje passivos demais diante disso — e não estaria falando só do Brasil, mas do mundo.
É claro que, como pesquisadores sérios, precisamos ter cuidado com esse tipo de afirmação. Na verdade é muito difícil, quase impossível, imaginar o que um homem da antiguidade realmente pensaria se visse o modo como vivemos e nos organizamos nos dias de hoje. Por isso os historiadores costumam evitar esse tipo de especulação.
Para não incomodarmos os historiadores, então, sejamos um pouco mais cuidadosos no modo de dizer a coisa:podemos nos arriscar a dizer, com uma probabilidade de erro muito baixa, que um democrata ateniense típico daquela época consideraria as nossas “democracias” atuais tão autoritárias, que seria quase impossível que aceitasse chamá-las de “democracias”.
Por mais que essa ideia seja uma pura especulação, e por isso mesmo incômoda para a maioria dos historiadores, o fato é que os mais conceituados entre eles são os primeiros a admitir que, quanto mais se estuda seriamente a democracia de Atenas, e com mais atenção e cuidado, mais essa ideia parece plausível. Um historiador sério e cuidadoso do assunto não chegaria a fazer explicitamente essa afirmação, mas dificilmente deixaria de pensar nela — em outras palavras, dificilmente deixaria de comparar o que antigamente se chamava de “democracia” com o que hoje se acredita ser uma democracia.
É que no caso específico da questão democrática, os fatos sugerem tão fortemente essa comparação que é preciso muito esforço para não pensar nela.
Não há como deixar de notar que, de todos os regimes políticos do século V antes de Cristo, aquele que criou a própria palavra “democracia” para se autodefinir é justamente um dos menos parecidos com as nossas democracias atuais. E que aqueles primeiros democratas criticavam — aliás de maneira bastante rigorosa e com muita indignação — o excesso de autoritarismo de organizações políticas da época deles que, curiosamente, eram bem mais parecidas com as democracias atuais.
Muitas vezes tinham “reis” por exemplo, ou assembleias de legisladores, ou as duas coisas — mas o que os historiadores vem descobrindo é que pelo menos os legisladores, ou parte deles, eram eleitos para governarem por um período de tempo, como legisladores de hoje, e algumas vezes os “reis” eram também eleitos, mas por um grupo de nobres, e não pelo conjunto da população.
A cidade de Esparta, também conhecida como Lacedemônia, que era a maior inimiga de Atenas, tinha dois reis hereditários (que herdavam o trono de seus pais) — e isso quer dizer que um esses dois reis controlavam um o poder do outro para que não houvesse nenhum abuso de poder.
Mas a cidade também tinha no poder, controlando esses reis, legisladores idosos na nobreza aristocrática, formando uma assembleia chamada gerusia. além disso tinha, finalmente, um grupo de representantes do povo — como se pode conferir no livro de A. Croiset, As democracias antigas (p. 201).
É importante acentuar isso: a cidade de Esparta, que tinha leis defendendo uma fortíssima igualdade entre os cidadãos, que tinha mecanismos de controle do poder do rei, e todo um grupo de representantes do povo eleitos, não era considerada de modo nenhum democrática na época, pelo contrário, era considerada, de todas as cidades da Grécia, a maior inimiga da democracia.
Agora vejamos: a Inglaterra de hoje, que costuma ser considerada seguramente democrática, tem no poder
um Parlamento, dividido em duas câmaras, uma câmara formada por “lordes” das famílias mais ricas da nobreza, uma por gente mais comum eleita pelo povo. E além do Parlamento, eles têm uma rainha hereditária.
Ao invés de ter dois reis (ou rainhas) como forma de controle contra abusos de poder, a Inglaterra transformou sua rainha em uma figura simbólica, com muito pouco poder. Não é ela quem escolhe os seus ministros: eles são todos escolhidos pelo Parlamento, isto é, pela Câmara Alta (dos “Lordes”) e pela Câmara dos Comuns. Quem manda “de fato” são a Câmara dos “comuns” e o primeiro ministro da rainha, que não é escolhido por ela, mas também pela mesma Câmara dos Comuns.
A Inglaterra é uma monarquia parlamentarista, porque tem um monarca (no caso uma rainha), apesar de simbólico; e porque tem como principal poder o Parlamento, ou seja, o legislativo, aqueles que “parlam” (falam) decidindo as leis.
Mas é considerada ao mesmo tempo uma “democracia” porque os membros da Câmara dos Comuns (que é a que realmente tem poder no Parlamento) são eleitos pelo povo. Não há dúvida de que a Inglaterra de hoje é bem mais democrática que a Esparta da antiguidade. Mas também não há dúvida que essa sua organização política “democrática” é bem mais parecida com a de Esparta do que com a de Atenas.
No mesmo livro de A. Croiset, podemos acompanhar a descrição de uma “democracia” na cidade antiga de Mantinéia que também era mais parecida com as de hoje, e bem menos radical que a de Atenas.
Em Mantinéia se formou “uma democracia de camponeses” (p. 214), que tinham dificuldade de ir do campo à cidade para participar das decisões. Então eles “nomeavam eleitores, encarregados, por seu turno, de eleger os magistrados” (p. 215), isto é, os membros do governo. “Esses eleitores eram escolhidos no conjunto do povo, sem restrições, ao que parece” (p. 215). Mas a Assembleia Popular, que em Atenas se reunia a cada 9 dias para tomar decisões, em Mantineia só se reunia raramente (p. 215).
Havia aliás, também, em Mantinéia, uma espécie de senado ou conselho (βουλÎn´), que era, sem dúvida, eleito pelo povo, e devia ser uma espécie de seção permanente da Assembleia, encarregada das negociações diplomáticas e do preparo das questões
destinadas a ser resolvidas pelo conjunto dos cidadãos. Quanto aos magistrados, sabemos que os principais eram os demiurgos, que foram, ao
que parece, na origem, os chefes eleitos dos demos.
(A. CROISET, P. 217-218)
A tal βουλη — se diz “Boulé” — também existia na cidade de Atenas. Era um grupo sorteado a cada reunião da Assembleia Popular, com a função de organizar melhor os pro-boulemas trazidos pelo povo para serem depois discutidos na Assembleia.
A cidade de Tarento também tece alguns traços democráticos. Criou “uma espécie de coletivismo limitado aos pobres”, que decidiam algumas questões que eram só do seu interesse. Mas o resto das decisões ficava sob o controle de uma aristocracia (A. Croiset, p. 218).
Na democracia de Atenas, as coisas funcionavam de outra maneira: o poder supremo estava nas mãos de uma assembleia popular aberta a todos os cidadãos atenienses maiores de idade, que se reunia a cada 9 dias para tomar todas as decisões que fossem necessárias. Não vemos nada parecido com isso nas democracias atuais. Mas era justa mente isso o que eles entendiam como “democracia”, e não o governo de alguns eleitos.
A. Croisset chega a observar que a democracia firmada na organização política da cidade de Cartago, na antiguidade, seria “muito mais acessível e mais familiar” aos olhos de um democrata de hoje do que a da cidade de Atenas (p. 229). Os cartaginenses tinham uma espécie de “rei” (que eles chamavam de “suffeta”) e tinham um Senado com poder de fazer leis. Mas o suffeta e os senadores eram eleitos e “o povo tinha o direito de voto” (p. 228).
No entanto, a que torna a Democracia de Atenas menos familiar e mais difícil de entender para nós é justamente o fato de que era muito mais radical do que isso.
A partir dessa constatação, de uma evidência gritante para qualquer historiador minimamente cuidadoso, fica difícil contornarmos uma questão muito delicada e que já não é só historiográfica, mas política: isso em que estamos vivendo hoje pode mesmo ser chamado de “democracia”?
Essa questão é delicada, porque provoca uma porção de outras, algumas um tanto perigosas inclusive para o próprio espírito democrático. Por exemplo: a democracia antiga de Atenas era muito mais radical do que as atuais e mesmo do que aquilo que poderíamos talvez chamar de “outras democracias” daquela época, como
A. Croisset procura fazer. Em Atenas, havia participação maciça da população nas questões políticas, e instituições oficialmente organizadas para que as decisões fossem tomadas por plebiscito, isto é, pela própria multidão reunida, que votava decidindo o que devia ser feito e o que não devia ser feito.
Supondo que seja possível nos organizarmos assim nos dias de hoje, será que é isso o que realmente queremos? — Esta é uma questão um tanto perigosa para o espírito democrático, porque leva alguns a questionarem se o que queremos é mesmo uma democracia, ou se preferimos algo mais autoritário.
É precisonotar que a palavra “queremos”, aqui, é capciosa: ela supõe que todos queremos a mesma coisa, o que não é verdade.
Conhecendo melhor a democracia de Atenas — isto é, o sentido mais profundo e radical de democracia, que foi esquecido nas “democracias” de hoje — alguns acabariam realmente defendendo que fossem criadas essas assembleias populares. Mas outros acabariam forçados a reconhecer que não são tão “democráticos” assim, e que preferem que o poder fique concentrado nas mãos das “autoridades competentes”.
Segundo os estudiosos — e isto é um ponto muito importante na discussão — os gregos antigos definiam a democracia justamente pelo número de pessoas com o direito de exercerem oficialmente o poder. Mesmo em livros escritos com simplicidade e sem grandes pretensões, para servirem com uma introdução ao assunto, como pequeno A democracia, do conceituado filósofo político Renato Janine Ribeiro, encontramos passagens como a seguinte:
Os gregos distinguiam três regimes políticos: monarquia, aristocracia e democracia. A diferença era o número de pessoas exercendo o poder — um, alguns ou muitos. Monarquia é o poder (no caso, arquia) de um só (mono). Aristocracia é o poder dos melhores, os aristoi, excelentes. São quem tem aretê, a excelência do herói. Assim, a democracia se distingue não apenas do poder de um só, mas também do poder dos melhores, que se destacam pela sua qualidade. A democracia é o regime do povo comum, em que todos são iguais. Não é porque um se mostrou mais corajoso na guerra, mais capaz na ciência ou na
arte, que terá direito de mandar nos outros.
(P. 9)
Nesse início de seu livro, Janine curiosamente se “esqueceu” de observar que, na democracia de Atenas, as pessoas passaram cada vez mais a considerar a aretê como uma qualidade de qualquer cidadão que se dedicasse a fazer o melhor possível em sua área e se colocar como exemplo educativo para os outros, ajudando a coletividade a se desenvolver. Não eram um povo como o espartano por exemplo — que valorizava uma igualdade de tipo militar, com pouco espaço para grandes realizações individuais.
Os atenienses valorizavam muitíssimo a iniciativa individual e até mesmo heroica, desde que fosse feita para o bem da coletividade e de maneira exemplar e educativa, estimulando os outros a fazerem o mesmo e ajudando-os a se desenvolverem naquele sentido.
O que Janine provavelmente quis ressaltar, com toda razão aliás, é que não era de modo algum uma sociedade de concorrência individualista e capitalista como as de hoje, em que cada pessoa ou grupo tenta “derrubar” os rivais. E é claro que esse espírito democrático de Atenas não atraía a todos: é claro que os aristocratas nunca aceitaram muito bem essa “banalização” do sentido de aretê, pela qual ela ia se tornando um traço da formação moral do próprio povo ateniense, espalhando-se para todos os cidadãos, ricos ou pobres.
Os nobres atenienses se irritavam com a ideia de que alguém pudesse ter aretê (excelência) na sua atividade profissional ou nos serviços públicos prestados para a cidade, por exemplo. Achavam que a “verdadeira” aretê só se conquistava na guerra, com gestos heroicos, liderança de exércitos e grandes vitórias. Mas essa visão tão restrita da aretê ia sendo considerada cada vez mais “antiquada” pelos cidadãos de Atenas.
De qualquer modo, o essencial para compreender o choque que o estudo da democracia ateniense causa nos democratas de hoje, já está presente com toda clareza nessa simples classificação dos regimes políticos que os gregos faziam, e que Janine, como tantos outros estudiosos, nos lembra no início do seu livro. É que por essa classificação, as assim chamadas “democracias” de hoje seriam seguramente consideradas um novo tipo de aristocracia — apesar de moderada por um pequeno tempero democrático.
As grandes batalhas da antiguidade eram de vida e morte, e os guerreiros eram ricos herdeiros que lutavam principalmente para aumentarem a riqueza de sua família, conquistando as terras e os tesouros públicos de outras cidades, e adquirindo a mão de obra dos povos vencidos, que eram transformados em escravos.
Os que se destacavam como grandes heróis nessas batalhas eram chamados “aristoi”, e nas aristocracias o poder (kratós) era deles. Não existe algo parecido nas “democracias” atuais? Vejamos: hoje as grandes batalhas são entre os políticos oficiais, e não são de vida e de morte (embora às vezes possam chegar perto disso). Eles lutam para conquistarem os melhores lugares no poder, e o tempero democrático da coisa está no fato de que essa luta acontece não só pela disputa do apoio de outros políticos, mas também e principalmente pela disputa do apoio popular.
Mas esse “apoio popular” tão disputado não é só aquele do voto do cidadão comum, de tantos em tantos anos: é também, e na maior parte do tempo, o apoio de grupos sociais poderosos — seja porque têm influência sobre as opiniões de muita gente, como as lideranças sindicais ou os empresários que dominam a mídia, seja porque têm força política ou econômica, isto é, porque já estão no poder ou porque são ricos.
Os políticos que vencem essas disputas acabam atingindo a alta hierarquia do poder em uma “democracia” como as de hoje — e são apenas eles que exercem o poder, em conjunto com técnicos e especialistas escolhidos por eles, ou com aliados políticos em quem eles confiam.
Nisso tudo, enfim, o único poder exercido realmente por aqueles “muitos” da definição grega de democracia
— isto é, pelo povo — é o de ser uma (e apenas uma) das várias bases de apoio e de ascensão daqueles que de fato vão exercer o poder. Portanto, trata-se com toda clareza do poder exercido por alguns, que conquistam esse poder pela vitória em uma espécie de batalha contra outros “candidatos” — e de maneira nenhuma de um poder exercido pelos “muitos” conforme a definição grega original de democracia.
Atualmente, de país para país, a palavra “democracia” vai sendo entendida de várias maneiras diferentes. Não de qualquer maneira: é uma palavra que ainda continua fazendo sentido, ainda não se transformou num “vale-tudo”. Mas está correndo esse risco. Cada um tende a dar a ela o sentido que mais lhe interessa. De um país para outro, vão sendo encaixadas nessa classificação as mais variadas formas de governo, desde que haja governantes de algum modo “eleitos” pela maioria da população, e não impostos por alguém de cima para baixo.
Essa pequena base de apoio, essa ideia de governantes eleitos pela maioria — mais ou menos como no antigo governo de Cartago — ainda tem sido suficiente para manter um sentido mais ou menos consistente para a palavra “democracia”. Ajuda a reconhecer, por exemplo, que ditaduras não são e não podem ser de maneira nenhuma consideradas “democráticas”.
Como quer que seja interpretada, a democracia costuma ser considerada a forma de organização que garante a maior liberdade possível para os diferentes membros e grupos de uma sociedade fazerem valer suas opiniões no exercício do poder — e parecem ser bem poucos os que discordam disso.
O único problema é que o verdadeiro sentido da democracia, como os mais renomados estudiosos de História e de política do mundo têm nos mostrado cada vez mais, não está na eleição de governantes pela maioria — e sim no que essa eleição pretende representar: o poder do povo de decidir os rumos da sua própria organização social.
Mas será que podemos confiar tanto assim no funcionamento da tal representação política? Será que o poder nas mãos de um representante eleito é exatamente a mesma coisa que o poder diretamente nas mãos do próprio eleitor?
Será que, em termos democráticos, decidir quem vai decidir as coisas que devem ser feitas vale tanto quanto decidir diretamente o que deve ser feito? — Esta é a questão.
Em suma: a palavra “democracia”, como já se sabe, é de origem grega, vem das palavras “ demos” e “kratos”, e em todo o mundo, a tradução oficial disso é: poder do povo.
Os governantes eleitos para exercerem o poder servem (ou deveriam servir) justamente para isso, para representar esse poder do povo. Mas no melhordos casos (caso raro, aliás, seja por dificuldades técnicas ou morais), esses governantes representam apenas as vontades, necessidades e interesses do povo, tomando eles próprios as decisões que acharem as melhores e as mais conveniantes para satisfazerem essas vontades, necessidades e interesses.
Mas não representam o poder do povo. O único poder que parece estar realmente nas mãos do povo, numa democracia como as de hoje, é o de votar neste ou naquele político de tantos em tantos anos. O povo só tem o poder de decidir justamente quem é que vai ter o poder no lugar dele, em seu nome, representando-o indiretamente durante um período de tempo.
É possível hoje uma democracia direta, “pura”, como a dos atenienses?
Será que é realmente possível praticar hoje a democracia em um sentido mais profundo e verdadeiro, como parece ter sido praticada pelos gregos antigos de Atenas?
“Democracia”, como vimos, significa poder do povo, e não de um grupo de eleitos em nome do povo. Na democracia de Atenas quem governava oficialmente era mesmo o próprio povo, decidindo as coisas de maneira direta e não através de representantes. O povo ateniense se reunia em assembleia a cada 9 dias para discutir e tomar as decisões necessárias, através de plebiscitos.
É verdade que de lá para cá muita coisa mudou. Mas será então que as condições para uma verdadeira e profunda democracia pioraram? Será que hoje, com toda a nossa modernidade e tecnologia, temos que nos contentar com uma democracia incompleta, com uma situação indiretamente democrática, na qual o poder só é nosso, só é do povo, indiretamente, através de um grupo de eleitos que toma as decisões no nosso lugar?
As comparações entre os regimes políticos da antiguidade greco-romana e os atuais deixam isso tão evidente, que os estudos sobre a Grécia antiga chegam a deixar muitos “democratas” de hoje bastante embaraçados.
A democracia, nos tempos atuais, costuma ser quase unanimemente considerada, em todo o mundo, como o regime político mais livre, aquele em que há mais liberdade para os cidadãos e diferentes grupos sociais. Mas em comparação com vários aspectos daquela primeira organização que assumiu o nome de “democracia” e que é tão antiga, de cinco séculos antes de Cristo, nossas democracias atuais, tão modernas, ficam parecendo muito pouco democráticas e até bastante autoritárias.
Na verdade, se examinarmos de perto as organizações políticas da antiguidade, as de hoje são muito mais parecidas com algumas que, naquela época, nunca seriam consideradas realmente “democráticas”.
Esse problema foi percebido com toda clareza já desde a derrubada das monarquias e o início das democracias contemporâneas, por volta do século XIX.
Para se livrarem do embaraço das descobertas dos historiadores e das comparações com a democracia de Atenas, os grandes defensores dos primeiros regimes políticos democráticos do século XIX levantaram a ideia de que esses novos governos, com governantes eleitos no lugar dos antigos reis, eram realmente “democracias” como a de Atenas do séc. V a.C, só que democracias “de outro tipo”: democracias representativas, ou “indiretas” — isto é, democracias nas quais o poder do demos, do povo, só é exercido indiretamente, através de representantes eleitos.
É como se esse poder pudesse ser desligado do corpo da pessoa que o tem, e passado adiante para um
representante, para ser exercido por esse representante no lugar dela — e mesmo assim o poder continuasse, no fundo, sendo da pessoa representada. Um pouco como se a pessoa “emprestasse” esse seu poder ao representante por um certo período (o período do mandato exercido por ele como governante eleito), com a condição de que o representante eleito fizesse o que a própria pessoa faria. Depois as pessoas “pegariam de volta” esse poder no momento das eleições, para decidirem para quem iriam emprestar dessa vez.
Quando observamos isso com clareza, parece uma ideia um tanto absurda. Por isso é que a maior parte da população mais simples, com a sua tradicional sensatez, nem se dá conta de que isso é “um poder”, de que há realmente algum “poder” nesse ritual de ir votar.
A questão é: será que há?
Ou melhor, nessas condições, qual é a real relevância do poder do voto? O povo está mesmo completamente enganado nessa sensata desimportância com que trata o voto? Os políticos democratas e pessoas mais politizadas em geral, curiosamente, costumam achar que sim.
Temos então, em países democráticos atuais como por exemplo o Brasil, uma situação bastante interessante: uma demo(povo)cracia em que o “verdadeiro” detentor do poder (do cratós) — isto é, o demos, o povo — não se sente com poder. Esse “verdadeiro” detentor do poder considera que poderosos são os políticos (e também os ricos), isso sim... e os políticos (e também os ricos) repetem insistentemente que o povo está enganado, e que aquele poder de votar uma vez a cada tantos anos é um enorme poder.
O fato é que, mesmo parecendo absurda, a ideia de um poder que “sai do corpo” dos cidadãos e vai para o dos políticos eleitos e para as instituições por delegação, através do voto, como se fosse uma espécie de entidade espiritual independente, é exatamente o modo como raciocinam os defensores das democracias atuais.
Eles declaram que o povo é quem tem o poder, e “delega” esse poder provisoriamente a um representante, sob a condição de que se comprometa a representar bem as vontades, desejos e necessidades do próprio povo. E nas eleições, o povo avalia se foi bem representado mostrando por meio do voto quem ele acha que merece esse “empréstimo” de poder para o mandato seguinte.
Um crítico mais atento e irônico poderia observar que esse poder do povo parece mesmo uma entidade bastante “espiritual”: dessas quer não se vê nem se pega, embora todo mundo diga que existe. Mas assim que se materializa naquele breve momento do voto, se torna um poder de consequências bastante concretas e materiais nas mãos do representante eleito. E é sobre o povo que descem depois essas consequências — quer ele goste delas ou não — por toda a duração do mandato. Um “poder do povo” que, durante anos, entre uma eleição e a seguinte, se exerce independentemente de qualquer ação desse povo.
De fato, podemos perceber esse poder presente nos governantes eleitos, nas condições que eles tem para agir, nas consequências e na força das ações que realizam, e na medida em que conseguem angariar forças para realizá-las, ou determinar o sentido dessas ações apesar da interferência de outras forças.
Mas como podemos dizer, ao mesmo tempo, que esse poder “é do povo” se não há condições para o próprio povo agir, se quando há condições, as consequências são fracas, e se, quando há consequências, não parece ser o próprio povo quem está dominando o sentido dessas ações, e começa sempre a surgir a fácil suspeita de manipulação da opinião pública por uns poucos mais poderosos?
Façamos a comparação.
Para evitar o abuso do poder, temos hoje, na maioria das democracias, uma divisão em três poderes: executivo, legislativo e judiciário. Os dois últimos foram criados para controlar os excessos do primeiro.
Os primeiros estudiosos a pensarem nessa divisão como forma de controlar abusos de poder foram os filósofos Montesquieu e John Locke, três séculos atrás. E depois deles, dois séculos atrás, o historiador John Acton, que ficou famoso ao dizer que “todo poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Quando disse isso, estava se referindo ao poder das monarquias absolutas onde o rei governa sem nenhum controle externo e sem seguir nem mesmo uma Constituição.
Com o Legislativo, passa a haver leis (e uma Constituição) feitas por legisladores que, em uma democracia, devem ser eleitos pela maioria da população. Todos são obrigados a seguir as leis e a Constituição, inclusive o poder Executivo — que em quase todos os países democráticos costuma ser representado principalmente
pelo presidente da república.
O Judiciário tem o poder de avaliar se as pessoas estão mesmo seguindo as leis ou não, e de determinar puniçãose não estiverem — e entre essas pessoas, estão inclusive o presidente da república e todos os demais funcionários do poder executivo, em todos os degraus da hierarquia do poder.
Esse sistema de controle do poder central recebe nomes diferentes em diferentes países: “Divisão do poder”, “Sistema de Checagens e Balanços” do poder executivo por outros poderes, “Sistema de Freios e Contrapesos” ao poder executivo, ou “Equilíbrio de poderes”. O próprio fato de o presidente da república ser também um representante eleito pela maioria da população, e para um mandato que tem um prazo determinado já de saída, também faz parte dos mecanismos para controlar esse poder, e evitar que o presidente acabe abusando dele e prejudicando a população.
Mas será que o próprio fato de ser necessário controlar de tantas maneiras os possíveis abusos do poder combina realmente com a ideia de que os políticos são nossos representantes? A própria necessidade desse controle já não nos diz que não é boa ideia confiar que os representantes políticos realmente nos representam?
Essa é a questão que tende a perseguir qualquer um que se aprofunde realmente nos estudos sobre a história da democracia. Porque quando examinamos a origem desse sistema, em Atenas, no século V a.C., percebemos algo interessante: os “representantes” políticos dos atenienses não tinham nenhum poder oficial, eram apenas porta-vozes das opiniões de diferentes grupos e setores da população. Não tinham nem mesmo um “cargo” oficial ou um “mandato”.
E mesmo assim, além disso, havia muitos e rigorosíssimos mecanismos, diferentes dos nossos, de controle de qualquer poder extraoficial que uma pessoa conseguisse desenvolver pela força da sua influência entre os demais.
Como funcionava a democracia dos atenienses?
Vejamos: eles tinham um sistema de “divisão de poderes”? Não. Mas quem fazia então aquilo que, nas democracias de hoje, é feito pelo poder executivo, isto é, pelo presidente e seus ministros, governadores e seus secretários, prefeitos e seus secretários? Quem tomava as decisões e as executava?
As decisões eram tomadas diretamente por uma Assembleia Popular, num plebiscito aberto do qual podia participar qualquer cidadão ateniense maior de idade.
Já vimos que as mulheres não eram consideradas “cidadãs”, um absurdo do ponto de vista democrático, mas isso não quer dizer que o sistema político deles não era democrático: era sim um sistema em que valia a opinião da maioria maior de idade e nascida em Atenas.
Infelizmente, essa maioria (incluindo a opinião de muitas das próprias mulheres, que não podiam falar na Assembleia, mas indiretamente influenciavam os maridos) era realmente machista, e os que defendiam direitos iguais eram bem poucos. Trata-se de uma questão mais cultural do que de funcionamento das instituições políticas da época.
Quanto aos direitos políticos dos estrangeiros, é preciso verificar até que ponto um estrangeiro podia “se naturalizar” ateniense, isto é, se tornar cidadão: as leis mudavam e variavam muito na época, e parece que a respeito disso também.
É preciso lembrar, de qualquer modo, que era uma época de guerras constantes contra povos estrangeiros, que exigia muito cuidado quanto a direitos políticos firmados para estrangeiros. As alianças entre os Estados eram instáveis, e os inimigos de guerra não eram sempre os mesmos. Nem sempre era possível garantir que um estrangeiro naturalizado ateniense, com todas as suas ligações com um outro povo, iria se manter fiel a Atenas em caso de guerra ou rompimento de alianças.
(Se hoje, em que as condições para firmar um imigrante como legítimo cidadão são muito mais sólidas, estrangeiros ainda chegam a sofrer preconceitos por parte do povo nativo em tempos de guerra, imagine-se numa época de imensa instabilidade como aquela.)
Em Atenas, para tomar as decisões, a população começava se reunindo em suas aldeias e discutindo problemas e propostas, depois essas reuniões iam juntando problemas e propostas levantados por outras aldeias do mesmo demos, isto é, do mesmo “bairro”, ou “distrito” — se quisermos usar uma linguagem mais atual. Então iam à praça central da cidade, para debater esses problemas e propostas com outros demos.
Ao invés de “praça”, diziam Ágora — que significa lugar da palavra isto é, lugar onde se trocam palavras
discutindo o assunto. Na Ágora formavam-se alianças e, com elas, grandes grupos formados por vários demos. Cada um desses grandes grupos apresentava então um porta-voz ou representante para debater suas posições com as dos demais grupos.
Chamavam esses porta-vozes de “oradores”. Os oradores não tinham nenhum poder político oficial. Eles apenas tinham a função de apresentar oralmente (falando) argumentos em favor das propostas do grupo. Muitas vezes eram profissionais contratados pelo grupo para isso, altamente treinados desde pequenos na arte da argumentação.
Para isso, tinham aulas com os Sofistas, grandes sábios que formavam um movimento de defesa da Democracia, que atuavam como professores de argumentação (essas aulas eram caríssimas, os professores particulares enriqueciam nessa profissão: era a mais bem paga de Atenas).
Escolhidos os oradores, a população ia para um lugar (que variava, mas muitas vezes era um monte chamado Pnix) onde fariam a discussão do assunto. As propostas eram então organizadas e colocadas em linguagem mais clara por um grupo especial sorteado para isso. Essa versão mais clara e organizada das propostas tinha o nome de pro-boulema — na verdade essa é a origem da nossa atual palavra “problema” — e era exposta em voz alta para toda a Assembleia.
A seguir eram escolhidos alguns técnicos que entendessem dos assuntos tratados para exporem para a Assembleia as facilidades ou dificuldades das propostas do ponto de vista técnico (custos, tempo de realização etc.). Depois, havia um debate entre os oradores escolhidos, que começava com um longo discurso de cada um deles tentando convencer a Assembleia a favor da ideia que estava defendendo. E finalmente, por último, havia a votação.
A Assembleia já conhecia as facilidades e dificuldades técnicas de cada proposta, os limites de orçamento dos cofres públicos para realizá-las e tudo o mais, e já havia escutado as defesas que cada orador tinha feito de uma das propostas. Então, todos votavam em alguma das propostas.
Tomada a decisão, ela era encaminhada para um grupo de dez estrategos (estrategistas), nove deles sorteados, e um — o estratego principal, que tinha a liderança do grupo — eleito pelo voto da maioria da população, por um mandato de um ano (os mandatos dos governantes de hoje costumam ser 3 ou 4 vezes mais longos).
Esse “estratego principal” era então um “governante eleito”? Uma espécie de “presidente da república”? — Não.
O estratego principal também não tinha nenhum poder para alterar as decisões da Assembleia Popular ou interferir nelas. O estratego era na verdade uma espécie de gerente, um administrador da realização das decisões que já haviam sido tomadas pela Assembleia. Seu papel era o de, junto aos nove estrategos “menores” que o auxiliavam, levantar planos de ação para colocar em prática aquelas decisões.
Esses planos tinham que apresentar prazos com cronogramas para a realização de cada passo do objetivo,
uma avaliação dos recursos e profissionais que seriam necessários e de como consegui-los e organizá-los, e um orçamento cuidadoso dos gastos previstos para tudo isso.
Em geral os estrategos levantavam dois ou três planos alternativos para que a Assembleia pudesse escolher o melhor — sim, os planos tinham que ser reapresentados para a Assembleia Popular para receberem ou não a aprovação. Se nenhum dos planos fosse aceito, os estrategos teriam que formular um novo plano, até que a Assembleia desse o seu aval.
Conseguido o aval da Assembleia Popular, o próprio estratego principal era quem cuidava de executar o plano.
No final de cada ano, era formado um grupo para examinar as contas públicas. Se cada detalhe dos gastos não estivesse devidamente anotado e justificado, o estratego teria que prestar contas a esse

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