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MATERIAL DIDÁTICO INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 1.282 DO DIA 26/10/2010 0800 283 8380 www.ucamprominas.com.br Impressão e Editoração SUMÁRIO UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO ............................................................................... 03 UNIDADE 2 – ANTROPOLOGIA .......................................................................... 06 2.1 Conceitos e definições .................................................................................... 06 2.2 Objeto de estudo e objetivos ........................................................................... 10 2.3 Divisão e campos de atuação ......................................................................... 12 2.4 O trabalho do antropólogo ............................................................................... 13 UNIDADE 3 – DIVISÕES E CAMPOS DA ANTROPOLOGIA .............................. 19 3.1 Antropologia Física ou Biológica ..................................................................... 19 3.2 Antropologia Social e Cultural ......................................................................... 21 UNIDADE 4 – MÉTODOS UTILIZADOS PELA ANTROPOLOGIA ...................... 34 4.1 Métodos de pesquisa em Antropologia ........................................................... 36 4.2 Técnicas de pesquisa em Antropologia ........................................................... 38 UNIDADE 5 – APLICAÇÕES DA ANTROPOLOGIA ........................................... 41 UNIDADE 6 – CULTURA: CONCEITO, ESSÊNCIA E CLASSIFICAÇÃO ........... 45 6.1 Conceitos para cultura .................................................................................... 46 6.2 A essência da cultura para os antropólogos .................................................... 50 6.3 Classificação da cultura................................................................................... 51 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 56 3 UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO Nada é bastante ao homem para quem tudo é demasiado pouco. Epicuro E assim, com palavras do filósofo grego do período helenístico, Epicuro de Samos (341 a.C - 270 a.C.), cuja filosofia prega a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos, iniciamos nosso curso de Antropologia. A Antropologia, enquanto uma chave de compreensão do homem, é central para o entendimento da sociedade como um todo, contribuindo para um alargamento do discurso, bem como do olhar, e fornecendo instrumentais teóricos para que o aluno analise com maior discernimento a realidade social (BERGER, 2007). A realidade, os fatos, os acontecimentos cotidianos ao redor de todo o mundo habitado pelo ser humano, esse ser complexo em sua singularidade, nos mostra que somente com diálogo e convivência inter-racial, intercultural e inter- religiosa será possível “esticar nossa existência” no planeta Terra, afinal de contas, violência, guerra, terrorismo, atrocidades são atos cometidos por nós mesmos em função de desejos, insatisfações, preconceitos, egoísmos, enfim, “loucuras” que permeiam nossos pensamentos. Por que iniciamos com Epicuro? Porque ao seu tempo e ao seu modo, ele viveu as contradições do mundo novo. Ele entendia a necessidade de distinguirmos os desejos inúteis, infundados e frívolos, os naturais, não naturais, necessários e não necessários que podem nos levar a uma vida tranquila ou podem nos atormentar e essas dualidades que nós vivemos a todo momento, afinal de conta somos seres biológicos, sociais e que trazemos ao longo de nossa existência uma rica bagagem cultural. Como completa Berger (2007), para progredirmos no mundo, a ciência antropológica termina por ser um auxiliar imprescindível, pois é conhecendo os 4 povos, suas culturas, seus costumes e religiões, que podemos chegar a entendê-los e a respeitá-los. A ignorância só produz medo, desentendimentos e conflitos. O conhecimento mútuo gera intercâmbios, cooperação e amizade. Eis que vamos nos aproximando dos conteúdos a serem lançados neste módulo: a Antropologia em sua essência! A Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural. Sendo cada uma dessas dimensões por si só muito ampla, o conhecimento antropológico geralmente é organizado em áreas que indicam uma escolha prévia de certos aspectos a serem privilegiados como a “Antropologia Física ou Biológica” (aspectos genéticos e biológicos do homem), “Antropologia Social” (organização social e política, parentesco, instituições sociais), “Antropologia Cultural” (sistemas simbólicos, religião, comportamento) e “Arqueologia” (condições de existência dos grupos humanos desaparecidos) (SILVA, 1999; MARCONI; PRESOTTO, 2014). Qualquer que seja a definição adotada, é possível entender a Antropologia como uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, isto é, a busca de respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo “Outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais podemos alargar nossas possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que, afinal de contas, nos torna seres singulares, humanos (SILVA, 1999). Objeto de estudo e objetivos da Antropologia; divisões e campos de estudo; métodos de pesquisa utilizados; conceitos, essência e classificação de cultura completam o módulo. Ressaltamos em primeiro lugar que embora a escrita acadêmica tenha como premissa ser científica, baseada em normas e padrões da academia, fugiremos um pouco às regras para nos aproximarmos de vocês e para que os temas abordados cheguem de maneira clara e objetiva, mas não menos científicos. Em segundo lugar, deixamos claro que este módulo é uma compilação das ideias de vários autores, incluindo aqueles que consideramos clássicos, não se tratando, portanto, de uma redação original e tendo em vista o caráter didático da obra, não serão expressas opiniões pessoais. 5 Ao final do módulo, além da lista de referências básicas, encontram-se muitas outras que foram ora utilizadas, ora somente consultadas e que podem servir para sanar lacunas que por ventura surgirem ao longo dos estudos. 6 UNIDADE 2 – ANTROPOLOGIA Segundo Costa (2001, p. 11-13), ciência (de scire, saber, conhecer) é uma forma especial, diferenciada de conhecimento. É ao mesmo tempo uma atividade e um campo de ação. Como atividade, seus objetivos são descrever, interpretar, explicar e prever a realidade, como campo de ação, é o terreno comum no qual se mesclam e interagem todas as contribuições de todas as áreas do conhecimento científico. Considerando-se esta acepção, pode-se dizer que a Antropologia é uma ciência que estuda o homem em sua totalidade, incluindo os aspectos biológicos e socioculturais como parte integral de qualquer grupo e/ou sociedade. Seu objeto de estudo é dividido com outras ciências como a Biologia, a História, a Economia, a Psicologia, a Política, entre outras. O que distingue a Antropologia, de acordo com Mello (2003), “das demais ciências sociais e humanas é o objetivo que a sustenta de estudar o homem como um todo”. Desse modo, suas questões se concentram no homem, de um lado como componente do reino animal e de outro, no seu comportamento como sersocial. 2.1 Conceitos e definições No sentido etimológico, a palavra “antropologia” tem a sua origem no grego άνθρωπος, ou seja, anthropos que significa homem/pessoa, enquanto logia ou logos (λόγος) que quer dizer ciência, estudo. Logo, de acordo com Mello (2003), Antropologia é a ciência do homem e, a partir da identificação e do estudo dos modos de vida, formas de habitação, alimentação e vestuário, das relações sociais, manifestações religiosas, símbolos e seus respectivos significados, busca compreender as origens e a dinâmica da natureza humana, em suas diversas formas de organização e produção de sobrevivência. Enquanto campo do conhecimento, a Antropologia contribui para descrever e analisar os sentidos mais amplos da variabilidade do ser humano. Por esta razão, a Antropologia aborda temas heterogêneos da existência e da produção das 7 diferentes culturas humanas, como a arte, a economia, a família, a história, a língua, a literatura, a política, a religião e a biologia humana, entre outros (BRITO, 2007). Afirmar que a Antropologia é a ciência do homem não quer dizer muito, pois qualquer disciplina entre as chamadas ciências humanas (Psicologia, Sociologia, entre outras) trata do homem e é também, portanto, uma ciência do homem. Vamos de imediato justificar porque é a “ciência do homem”: Em primeiro lugar, significa que é o único saber que acima de tudo, com toda a sua grande diversidade temática, tem uma preocupação constante em definir o homem. A resposta à pergunta kantiana – o que é o homem? – pode-se colocar de diversos pontos de vista. Pode-se responder desde a perspectiva empírica, formulando conclusões gerais sobre o homem e sua natureza, mediante o conhecimento para o qual contribuem as observações sistemáticas, à recompilação dos dados recolhidos por todo o mundo e o estudo comparado das variantes físicas e culturais que se observam entre os diferentes grupos humanos. Podemos também responder que se refere a uma perspectiva humanística e filosófica que trata do homem, de seus costumes e seus diferentes modos de vida, de suas dimensões fundamentais, de seu destino, entre outros. Todas essas posições são próprias da Antropologia porque, conforme nos diz Hoebel (1973), cumprem as três características essenciais que distinguem este tipo de conhecimento: 1º. Tratam do homem e suas manifestações como um todo (visão holística). 2º. Empregam o método comparativo. 3º. Levam em conta o conceito de cultura como âmbito próprio do humano. Esta última característica é também válida para a Antropologia Filosófica, pois o conceito de cultura traz intrínseco um conceito de homem (AZCONA, 1988). Sem dúvida, a tarefa que se atribui à Antropologia é muito vasta, o que facilita a proliferação de subdivisões e paradigmas distintos agrupados sob esta denominação comum. Denominou-se a Antropologia como cultural, física, econômica, social, aplicada, médica, psicológica, linguística, filosófica, cognitiva, 8 ecológica, hermenêutica, funcional, simbólica, estrutural, entre outras. Cada uma destas denominações encerra uma particular forma de entender a Antropologia e uma série de atividades, às vezes muito divergentes: observação, medição de ossos e fósseis, reflexão, medição de variáveis corporais, entrevistas, escavações, entre outras. Definir a Antropologia como aquilo que fazem os antropólogos é, como vemos, muito difícil, ao menos a princípio. Mais adiante vamos tentar pôr um pouco de ordem em todas estas possíveis especializações antropológicas (ESPINA BARRIO, 2008). Marconi e Presotto (2014) completam que, como ciência da humanidade, a Antropologia se preocupa em conhecer cientificamente o ser humano em sua totalidade, o que lhe confere um tríplice aspecto: a) Ciência Social: propõe conhecer o homem enquanto elemento integrante de grupos organizados. b) Ciência Humana: volta-se especificamente para o homem como um todo – sua história, suas crenças, usos e costumes, filosofia, linguagem, entre outros. c) Ciência Natural: interessa-se pelo conhecimento psicossomático do homem e sua evolução. 9 Relaciona-se, assim, com as chamadas ciências biológicas e culturais; as primeiras, visando ao ser físico e as segundas, ao ser cultural. Hoebel e Frost (1981, p. 3) definem a Antropologia como a ciência da humanidade e da cultura. Como tal, é uma ciência superior social e comportamental, e mais, na sua relação com as artes e no empenho do antropólogo de sentir e comunicar o modo de viver total de povos específicos, é também uma disciplina humanística. A Antropologia tem uma dimensão biológica, enquanto Antropologia Física; uma dimensão sociocultural, enquanto Antropologia Social e/ou Antropologia Cultural; e uma dimensão filosófica, enquanto Antropologia Filosófica, ou seja, quando se empenha em responder à indagação kentiana que falamos acima: o que é o homem? Apesar da diversidade dos seus campos de interesse, constitui-se em uma ciência polarizadora, que necessita da colaboração de outras áreas do saber, mas conserva sua unidade, uma vez que seu foco de interesse é o homem e a cultura. Pode-se afirmar que há pouco mais de cem anos, a Antropologia conquistou seu lugar entre as ciências. Primeiramente, foi considerada como a história natural física do homem e do seu processo evolutivo, no espaço e no tempo. Se, por um lado, essa concepção vinha satisfazer ao significado literal da palavra, por outro restringia o seu campo de estudo às características humanas físicas. Essa postura marcou e limitou os estudos antropológicos por largo tempo, privilegiando a antropometria, ciência que trata das mensurações do homem fóssil e do ser vivo (MARCONI; PRESOTTO, 2014). A Antropologia visa ao conhecimento completo do homem, o que torna suas expectativas muito mais abrangentes. Dessa forma, uma conceituação mais ampla a define como a ciência que estuda o homem, suas produções e seu comportamento. O seu interesse está no homem como um todo – ser biológico e ser cultural –, preocupando-se em revelar os fatos da natureza e da cultura. Tenta compreender a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço e no tempo, partindo do princípio da estrutura biopsíquica. Busca também a compreensão das manifestações culturais, do comportamento e da vida social. 10 2.2 Objeto de estudo e objetivos A Antropologia como ciência do biológico e do cultural tem seu objeto de estudo definido: o homem e suas obras. Segundo Beals e Hoijer (1968, p. 5 apud MARCONI; PRESOTTO, 2014), “seus problemas se centram, por um lado, no homem como membro do reino animal e, por outro, no comportamento do homem como membro de uma sociedade”. O objeto da Antropologia engloba as formas físicas primitivas e atuais do homem e suas manifestações culturais. Interessa-se, preferencialmente, pelos grupos simples, culturalmente diferenciados, e também pelo conhecimento de todas as sociedades humanas, letradas ou ágrafas, extintas ou vivas, existentes nas várias regiões da Terra. Atribui-se ao antropólogo, a tarefa de proceder a generalizações, formulando princípios explicativos da formação e desenvolvimento das sociedades e culturas humanas. Exemplo: o estudo do homem fóssil, suas mudanças evolutivas, sua anatomia e suas produções culturais. Mais adiante, falaremos dos métodos de estudo utilizados pela Antropologia, mas de imediato, vale saber que toda investigação antropológica vale-se do método comparativo em busca de respostas para uma infinidade de porquês, na tentativa de compreender as semelhanças e as diferenças físicas, psíquicas, culturaise sociais entre os grupos humanos. Exemplos: brancos e negros; línguas diversificadas; a indumentária do índio e do não índio; o culto ao Sol e a presença da pirâmide no Egito e nas civilizações pré-colombianas, duas regiões muito distanciadas geograficamente. 11 Na ausência de um laboratório experimental, o antropólogo lança mão da pesquisa de campo, que lhe fornece os dados desejados e permite testar as hipóteses levantadas na observação de situações peculiares. Daí a importância da contribuição dos antropólogos de campo, fornecendo o maior número possível de estudos sobre grupos humanos, uma vez que cada um deles é o produto de uma experiência cultural particular. Exemplos: os Apinajé, estudados por Curt Nimuendajú; os Guarani, estudados por Egon Schaden; os Esquimós, pesquisados por Franz Boas; e os Samoanos, investigados por Margaret Mcad. Índios Guaranis Samoanos 12 Esquimós Hoebel e Frost (1981, p. 3-4) afirmam que a “Antropologia fixa como seu objetivo o estudo da humanidade como um todo [...]” e nenhuma outra ciência pesquisa sistematicamente todas as manifestações do ser humano e da atividade humana de maneira tão unificada. É um objetivo extremamente amplo, visando ao homem como expressão global – biopsicocultural –, isto é, o homem como ser biológico pensante, produtor de culturas e participante da sociedade, tentando chegar, assim, à compreensão da existência humana (MARCONI; PRESOTTO, 2014). 2.3 Divisão e campos de atuação Assim como tem objetivo amplo, a Antropologia, sendo a ciência da humanidade e da cultura, tem um campo de investigação extremamente vasto: abrange, no espaço, toda a terra habitada; no tempo, pelo menos dois milhões de anos e todas as populações socialmente organizadas (MARCONI; PRESOTTO, 2014). Divide-se em dois grandes campos de estudo, com objetivos definidos e interesses teóricos próprios: Antropologia Física ou Biológica e Antropologia Cultural, a ser visto adiante. 13 2.4 O trabalho do antropólogo Olhar – ouvir – escrever resumem bem o trabalho desse profissional que precisa estar atento a detalhes, a entrelinhas para saber descrever a realidade dos fatos seja ela presente ou passado. Não nos alongaremos, mas sugerimos a leitura do livro O trabalho do Antropólogo (2006), de Roberto Cardoso de Oliveira, que nos envolve em cada página dessa obra que traduz muito bem ao que veio. Realmente, olhar-ouvir-escrever são as etapas mais estratégicas da produção do conhecimento antropológico como o próprio Oliveira (2006, p. 19-33) explica. A seguir, uma parte do seu trabalho: Talvez a primeira experiência de pesquisador de campo – ou no campo – esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá- lo. Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade. Esse esquema conceitual – disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico, daí o termo disciplina para as matérias que estudamos –, funciona como uma espécie de prisma por meio da qual a realidade observada sofre um processo de refração – se me é permitida a imagem. É certo que isso não é exclusivo do olhar, uma vez que está presente em todo processo de conhecimento, envolvendo, portanto, todos os atos cognitivos em seu conjunto. Contudo, é certamente no olhar que essa refração pode ser melhor compreendida. A própria imagem ótica – refração – chama a atenção para isso. Imaginemos um antropólogo no início de uma pesquisa junto a um determinado grupo indígena, entrando em uma maloca, uma moradia de uma ou mais dezenas de indivíduos, sem ainda conhecer uma palavra do idioma nativo. Essa moradia de tão amplas proporções e de estilo tão peculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna, do alto rio Solimões, no Amazonas, teriam o seu interior imediatamente vasculhado pelo “olhar etnográfico”, por meio do qual toda a teoria que a disciplina dispõe relativamente às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo pesquisador, isto é, por ele referida. 14 Nesse sentido, o interior da maloca não seria visto com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibilizado pela teoria disponível. Ao basear-se nessa teoria, o observador bem preparado, como etnólogo, iria olhá-la como objeto de investigação previamente construído por ele, pelo menos em uma primeira prefiguração: passará, então, a contar os fogos – pequenas cozinhas primitivas –, cujos resíduos de cinza e carvão irão indicar que, em torno de cada um, estiveram reunidos não apenas indivíduos, porém pessoas, portanto seres sociais, membros de um único “grupo doméstico”; o que lhe dará a informação subsidiária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o número de fogos, estaria abrigada uma certa porção de grupos domésticos, formados por uma ou mais famílias elementares e, eventualmente, de indivíduos “agregados” – originários de outro grupo tribal. Conhecerá, igualmente, o número total de moradores – ou quase – contando as redes penduradas nos mourões da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observará, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a segundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente [...]. Contudo, o olhar não é suficiente... Como alcançar, apenas pelo olhar, o significado dessas relações sociais sem conhecermos a nomenclatura do parentesco, por meio da qual poderemos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes das sociedades ágrafas e sem o qual não nos será possível prosseguir em nossa caminhada? O domínio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-se, então, indispensável. Para se chegar, entretanto, à estrutura dessas relações sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de outro recurso de obtenção dos dados. Vamos nos deter um pouco no ouvir. Cremos necessário mencionar que o exemplo indígena – tomado como ilustração do olhar etnográfico – não pode ser considerado incapaz de gerar analogias com outras situações de pesquisa, com outros objetos concretos de investigação. O sociólogo ou o politólogo, por certo, terá exemplos tanto ou mais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria social pré-estrutura o nosso olhar e sofistica a nossa capacidade de observação. Entretanto, Oliveira julgou que exemplos bem simples são geralmente os mais inteligíveis, e como a Antropologia é 15 sua disciplina, continua a valer-se de seus ensinamentos e de sua própria experiência, na esperança de proporcionar uma boa noção dessas etapas aparentemente corriqueiras da investigação científica. Portanto, se o olhar possui uma significação específica para um cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade. Evidentemente, tanto o ouvir como o olhar não podem ser tomados como faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. Ambos complementam-se e servem para o pesquisador como duas muletas – que não nos percamos com essa metáfora tão negativa – que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento. A metáfora, propositalmente utilizada, permite lembrar que a caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpeto de conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participadas mesmas precondições desse último, na medida em que está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes, isto é, que não façam nenhum sentido no corpus teórico de sua disciplina ou para o paradigma no interior do qual o pesquisador foi treinado. Imaginemos uma entrevista por meio da qual o pesquisador pode obter informações não alcançáveis pela estrita observação. Sabemos que autores como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observação de rituais para estudarmos sistemas religiosos. Para ele, “no empenho de compreender uma religião, devemos primeiro concentrar atenção mais nos ritos que nas crenças”. O que significa dizer que a religião podia ser mais rigorosamente observável na conduta ritual por ser essa “o elemento mais estável e duradouro”, se a compararmos com as crenças. Porém, isso não quer dizer que mesmo essa conduta, sem as ideias que a sustentam, jamais poderia ser inteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do olhar e do ouvir – suas músicas e seus cantos –, faltava-lhe a plena compreensão de seu sentido para o povo que o realizava e sua significação para o antropólogo que o observava em toda sua exterioridade. Por isso, a obtenção de explicações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada permitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de “modelo nativo”, matéria- prima para o entendimento antropológico. Tais explicações nativas só poderiam ser obtidas por meio da entrevista, portanto, de um ouvir todo especial. Contudo, para isso, há de se saber ouvir. 16 Se, aparentemente, a entrevista tende a ser encarada como algo sem maiores dificuldades, salvo, naturalmente, a limitação linguística – isto é, o fraco domínio do idioma nativo pelo etnólogo –, ela torna-se muito mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade está na diferença entre “idiomas culturais”, a saber, entre o mundo do pesquisador e o do nativo, esse mundo estranho no qual desejamos penetrar. De resto, há de se entender o nosso mundo, o do pesquisador, como sendo Ocidental, constituído minimamente pela sobreposição de duas subculturas: a brasileira, pelo menos no caso da maioria do público leitor; e a antropológica, no caso particular daqueles que foram treinados para se tornarem profissionais da disciplina. E é o confronto entre esses dois mundos que constitui o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, em um contexto essencialmente problemático que tem lugar o nosso ouvir. Como poderemos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão delicadas? Fazendo prevalecer uma relação dialógica, criando um espaço semântico partilhado por ambos interlocutores, graças ao qual pode ocorrer aquela “fusão de horizontes” – como os hermeneutas chamariam esse espaço –, desde que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvido, encetando formalmente um diálogo entre “iguais”, sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu próprio discurso. Mesmo porque, acreditar ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absoluta, é apenas viver em uma doce ilusão. Ao trocarem ideias e informações entre si, etnólogo e nativo, ambos igualmente guindados a interlocutores, abrem-se a um diálogo em tudo e por tudo superior, metodologicamente falando, à antiga relação pesquisador/informante. O ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única, em uma outra de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação. Se o olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo – atividade que os antropólogos designam pela expressão inglesa fieldwork –, é, seguramente, no ato de escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento torna- se tanto ou mais crítica [...]. 17 Devemos entender por escrever o ato exercitado por excelência no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante, sobretudo quando o compararmos com o que se escreve no campo, seja ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscamos em nossas cadernetas. É um momento, fora do campo, no qual o antropólogo exerce sua mais alta função cognitiva porque está longe do fenômeno sociocultural observado e precisa textualizar fidedignamente. Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar e é no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática. Assim sendo, seria um equívoco imaginar que, primeiro, chegamos a conclusões relativas a esses mesmos dados, para, em seguida, podermos inscrever essas conclusões no texto, portanto, dissociando-se o pensar do escrever. Pela experiência de Oliveira, o ato de escrever e o de pensar são de tal forma, solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que, nesse caso, o texto não espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, poder ser iniciado. Para ele, na elaboração de uma boa narrativa, o pesquisador, de posse de suas observações devidamente organizadas, inicia o processo de textualização – uma vez que essa não é apenas uma forma escrita de simples exposição, pois há também a forma oral –, concomitante ao processo de produção do conhecimento. Não obstante, sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo, esse ato tende a ser repetido quantas vezes for necessário; portanto, ele é escrito e reescrito repetidamente, não apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista formal, quanto para melhorar a veracidade das descrições e da narrativa, aprofundar a análise e consolidar argumentos. Isso, por si só, não caracteriza o olhar, o ouvir e o escrever antropológicos, pois está presente em toda e qualquer escrita no interior das ciências sociais. Contudo, no que tange à Antropologia, esses atos estão previamente comprometidos com o próprio horizonte da disciplina, em que olhar, ouvir e escrever estão desde sempre sintonizados com o sistema de ideias e valores que são 18 próprios da disciplina. O quadro conceitual da Antropologia abriga, nesse sentido, ideias e valores de difícil separação. Enfim, os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar – isto é, peculiar à Antropologia –, por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade. Ao tentar penetrar em formas de vida que lhe são estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vivência – só assegurada pela observação participante “estando lá” – passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina. Os dados contidos no diário e nas cadernetas de campo ganham em inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador; o que equivale dizer, que a memória constitui provavelmente o elemento mais rico na redação de um texto, contendo ela mesma uma massa de dados cuja significação é melhor alcançável quando o pesquisador a traz de volta do passado, tornando-a presente no ato de escrever (OLIVEIRA, 2006, p. 19-33). 19 UNIDADE 3 – DIVISÕES E CAMPOS DA ANTROPOLOGIA Brito (2007);Marconi e Presotto (2014) e vários outros estudiosos da área citam dois grandes ramos que podemos dividir a Antropologia: Física ou Biológica e Sociocultural, mas cada uma delas abrigando diversas correntes de pensamento. Com este entendimento, Mello (2003, p. 36-37) assinala que: a Antropologia física estuda os aspectos biológicos do homem, misto de história natural e ciência natural do homem. [... Enquanto], a Antropologia cultural é o nome que se dá ao outro grande ramo da Antropologia geral. O campo dessa disciplina especial é vastíssimo, pois ela se propõe estudar a obra humana. Ora, essa obra que se denomina cultura é este conjunto complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade. Deste modo, enquanto a Antropologia Física trata da evolução biológica e da adaptação fisiológica dos seres humanos, a Antropologia Social ou Cultural se ocupa das formas das pessoas viverem em sociedade, ou seja, das dinâmicas culturais, com suas respectivas línguas, costumes, valores e tradições. 3.1 Antropologia Física ou Biológica A Antropologia Física se ocupa principalmente da evolução do homem, a Biologia Humana e o estudo de outros primatas, aplicando métodos de pesquisa utilizados nas ciências naturais1. A Biologia Humana é um dos ramos importantes da Antropologia Física e constitui o estudo dos povos contemporâneos e de seus diferentes traços biológicos. Grande parte dos estudos e discussões antigas se concentrou na identificação, no número e nas características das chamadas “raças principais”. Na medida em que se foram desenvolvendo técnicas mais sofisticadas para medir a cor da pele e dos olhos, a textura do cabelo, o tipo sanguíneo, a capacidade craniana e outras variáveis, a classificação das raças se tornou muito mais sofisticada e complexa. Vale ressaltar que os teóricos atuais sustentam a concepção 1 As ciências naturais têm como principal objetivo o estudo da natureza. Nas ciências naturais são estudados os aspectos físicos e não humanos do mundo. São exemplos de ciências naturais: Astronomia, Biologia (Botânica e Zoologia), Física, Geografia Física, Geologia e Química. 20 de que qualquer ideia sobre as denominadas “raças puras” ou “modelos originais ancestrais” é enganosa e errônea. Todos os seres humanos atuais são Homo Sapiens Sapiens e descendem dos mesmos originais universais e complexos. Na verdade, os traços genéticos sempre variam com a geografia, segundo a resposta biológica de sua adaptação ao meio, mas em cada região, a herança genética produz uma gama de variedades de tipos e combinações intermediárias. Portanto, a tentativa de associação de pessoas a categorias segundo possíveis raças, é mais um recurso que busca camuflar a realidade por meio de falaciosas explicações sociais, econômicas, políticas ou ideológicas, mas que não tem uma sustentação científico-biológica. Daí talvez se possa concluir que os qualificativos “asiático”, “negro”, “hispânico” ou “branco” obedecem a definições sociais que comportam uma grande mistura de características genéticas e culturais (BRITO, 2007). Com o avanço das ciências e ajuda de outros especialistas, os antropólogos concentram suas atenções nos complexos moldes da genética humana, estudam a interação das adaptações genéticas, bem como os ajustamentos e acomodações não genéticas, fisiológicas e culturais, com relação às doenças, à desnutrição e à pressão do meio, assim como as grandes altitudes e os climas quentes. Os antropólogos, por exemplo, com ajuda de médicos especialistas em nutrição, passaram a combinar os enfoques biológicos e genéticos com dados culturais e sociais, seja para estudar doenças como a hipertensão e a diabetes ou para investigar o crescimento e/ou desenvolvimento dos grupos sociais em diferentes condições de alimentação e saúde. Estas são as subáreas apresentadas por Marconi e Presotto (2014): a) Paleontologia Humana: a Paleontologia (palaios, antigo; onto, ser; logos, estudo) Humana ou Paleoantropologia estuda a origem e a evolução humana através do conhecimento das formas fósseis do passado, intermediárias entre os primatas e o homem moderno. b) Somatologia: a Somatologia (somato, corpo humano; logos, estudo) descreve variedades existentes do homem, diferenças físicas individuais e diferenças sexuais (tipos sanguíneos, metabolismo basal, adaptação, entre outras). 21 c) Raciologia: a Raciologia (raça, etnia; logos, estudo) interessa-se pela história racial do homem, preocupando-se com a classificação da espécie humana em raças, com a miscigenação (mistura de raças), características físicas, entre outras. d) Antropometria: a Antropometria (anthropos, homem; metria, medida) usa as técnicas de medição, procedimento quantitativo que fornece medidas do corpo humano (crânio, ossos, entre outros), elaboradas por instrumentos especiais. Entre eles o antropômetro, largamente utilizado. e) Estudos comparativos do crescimento: recentemente, os somatólogos ampliaram seu campo de estudo, no sentido de conhecer as diferenças grupais relacionadas aos índices de crescimento e a outros aspectos correlatos – alimentação, exercícios físicos, maturidade sexual, entre outros. 3.2 Antropologia Social e Cultural A Antropologia Cultural, um dos ramos em que se divide esta ciência, estuda as inúmeras culturas e povos existentes no mundo, com o objetivo de conhecer e comparar as suas semelhanças e diferenças, bem como as influências e os intercâmbios de aspectos/dimensões culturais. 22 Grande parte da investigação antropológica se baseia em pesquisas de campo realizadas com diferentes culturas, com o objetivo de observar, por exemplo, os ritos, as cerimônias, os símbolos, os valores e as mudanças, entre outros aspectos. Os estudiosos reconhecem também que a Antropologia Cultural pode ser subdividida em: Arqueologia, Etnografia, Etnologia, Linguística e Folclore. a) Arqueologia A Arqueologia (archaíos, antigo; logos, estudo) tem como objeto de estudo as culturas do passado, extintas, que, em épocas remotas, desenvolveram formas culturais, representando fases da humanidade não registradas em documentos escritos. Trata-se da tentativa de reconstrução do passado por meio da busca de vestígios e restos materiais não perecíveis e resistentes à destruição através do tempo. Cabe ao arqueólogo desenvolver técnicas adequadas para o trabalho de escavação e coleta de material que, devidamente interpretado, possibilitará a reconstrução dos fatos do passado (MARCONI; PRESOTTO, 2014). A Arqueologia, por sua vez, divide-se em: a) Arqueologia Clássica: tenta reconstruir as antigas civilizações letradas (Egito, Grécia, Mesopotâmia, Etrúria, entre outras). b) Antropologia Arqueológica: trata dos primórdios da cultura, relativa às populações extintas (culturas do Paleolítico, Mesolítico e Neolítico). b) Etnografia A Etnografia (éthnos, povo; graphein, escrever) consiste em um dos ramos da ciência da cultura que se preocupa com a descrição das sociedades humanas. Lévi-Strauss (1967, p. 14 apud MARCONI; PRESOTTO, 2014) define-a de modo mais preciso e objetivo. Para ele, a Etnografia consiste na observação e análise de grupos humanos considerados em sua particularidade (frequentemente escolhidos, por razões teóricas e práticas, mas que não se prendem de modo algum à natureza da pesquisa, entre aqueles que mais diferem do nosso), e visando à reconstituição, tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles. Mello (2003) também cita Claude Lévi-Strauss,para o qual a Etnografia “corresponde aos primeiros estágios da pesquisa”, ou seja, é a especialidade da 23 Antropologia que tem por objetivo o estudo e a descrição dos povos, sua língua, raça, religião, e manifestações materiais de suas atividades. Ele considera ainda a Etnografia como parte ou disciplina integrante da Etnologia que visa à descrição da cultura de um determinado povo, em áreas como o sexo, a morte, ou a produção de bens. Desse modo, segundo esta corrente teórica, pode-se dizer que a Etnografia estuda preponderantemente os padrões mais previsíveis do pensamento e comportamento humanos manifestos em sua rotina diária, ou seja, as atividades humanas como os fatos e/ou eventos menos previsíveis ou manifestados particularmente em determinado contexto interativo entre as pessoas ou grupos. [...] O objetivo é documentar, monitorar, encontrar o significado da ação (MATTOS, 2001). No Brasil, a Etnografia é também conhecida como pesquisa social ou observação participante e compreende o estudo antropológico sistemático, baseado em trabalhos de campo, nos quais os pesquisadores realizam, por certos períodos de tempo, as observações diretas e as descrições das formas costumeiras de viver de grupos particulares de pessoas. Para Mello (2003, p. 39), a Etnografia engloba também os métodos e as técnicas que se relacionam como trabalho de campo, com a classificação, descrição e análise dos fenômenos culturais particulares (quer se trate de armas, instrumentos, crenças ou instituições). Em face disso, assumem importância ímpar as técnicas de registro e a documentação. Estes recursos podem, com o uso da técnica de observação participante, possibilitar que os pesquisadores tomem parte de situações ou fatos e os interprete sistemática e cientificamente até que adquiram significado (BRITO, 2007). O objeto de estudo da Etnografia centra-se nas culturas simples, conhecidas como “primitivas” ou ágrafas. São as chamadas sociedades de linhagem e segmentarias. São grupos humanos que se opõem às sociedades complexas ou civilizadas. Também estas podem constituir-se em foco de atenção do etnógrafo, como, por exemplo, o interesse no estudo de sociedades rurais. As sociedades simples encontram-se, ainda hoje, espalhadas pela Terra, cada uma desenvolvendo 24 uma cultura específica. Algumas já desapareceram; outras estão em contato com o mundo exterior, em processo de mudança; poucas se conservam isoladas. Exemplos: “Primitivos” dos Estados Unidos, Canadá, Austrália, África. No Brasil, em 1957, dos 143 grupos tribais existentes, 33 estavam ainda isolados, 276 em contato esporádico, 45 em contato permanente e 38 integrados à sociedade nacional (RIBEIRO, 1957 apud MARCONI; PRESOTTO, 2014). O etnógrafo é o especialista dedicado ao conhecimento exaustivo da cultura material e imaterial dos grupos. Observa e descreve, analisa e reconstitui culturas. Trata-se de um investigador de campo dedicado à coleta do material referente a todos os aspectos culturais passíveis de ser observados e descritos – primeiro passo da pesquisa antropológica. Relaciona-se intimamente com a Etnologia, de tal forma que o pesquisador deve ser, ao mesmo tempo, etnógrafo e etnólogo. Segundo Brito (2007), na primeira metade do século XX, grande parte dos estudos estava orientada a registrar os diferentes estilos de vida de determinadas culturas que ainda não tinham experimentado a influência dos processos da chamada modernização e/ou ocidentalização. Foram realizadas muitas pesquisas de campo (Etnografias) baseadas na descrição da produção de alimentos, da organização social, da religião, das diferentes formas de vestir, da cultura material, da linguagem e de outros aspectos das diversas culturas. As análises comparativas destas descrições etnográficas, que constituem generalizações mais amplas de esquemas e dinâmicas culturais, continuam sendo os objetos de estudo da etnologia. c) Etnologia A Etnologia (éthnos, povo; logos, estudo) é outro ramo da ciência da cultura, cujos pesquisadores utilizam os dados coletados e oferecidos pelo etnógrafo. Em seu aspecto teórico, a Etnologia se dedica ao estudo comparativo e sistemático da variedade de povos, ou seja, ao problema de explicar as semelhanças e diferenças entre as culturas, analisando o desenvolvimento histórico de uma determinada cultura e a sua relação com as outras (MELLO, 2003). Esse processo permite a incorporação de novas perspectivas e marcos teóricos, como por exemplo, o papel do indivíduo na sociedade, bem como a 25 personalidade de um sujeito e a sua relação com esta sociedade. No entanto, os antropólogos também fazem Etnografias. Mas o que vem a ser Etnografia? A partir da Etimologia, verifica-se que “grafia” vem do grego graf(o), que significa escrever sobre, escrever sobre um tipo particular, enquanto a palavra etn(o) indica uma sociedade em particular. No que se refere à nomenclatura, o uso de diferentes termos para descrever os campos da Antropologia apresenta variações de acordo com as tradições das academias europeias e estadunidenses. O que geralmente é chamado de “Antropologia Cultural” nos Estados Unidos; na França se reconhece como “Etnologia”; e na Grã-Bretanha, como “Antropologia Social”. No caso do Brasil, o termo “Antropologia Cultural” sofreu influências do antropólogo Gilberto Freire que estudou com Franz Boas2 na Universidade de Columbia, Estados Unidos. Mas na academia brasileira há também influências da nomenclatura britânica de Antropologia Social. Durante a segunda metade do século XX, a Etnologia (que hoje é conhecida como Antropologia Cultural) começou a relacionar seu campo de estudo com o da Antropologia Social, desenvolvida por cientistas britânicos e franceses. Em um breve período se debateu intensamente se a Antropologia deveria ocupar-se do estudo dos sistemas sociais ou de análises comparativas das culturas. O nome atual de Antropologia Sociocultural decorre da conclusão dos antropólogos atuais, de que as investigações das formas de vida e das culturas quase sempre estão relacionadas. Assim, a Etnologia é uma parte mais complexa da Antropologia, na qual se realizam estudos comparados de povos ou grupos de pessoas com características diferentes (BRITO, 2007). Segundo Lévi-Strauss (1967, p. 396 apud MARCONI; PRESOTTO, 2014), 2 Franz Boas (1858-1942), antropólogo alemão, estabeleceu-se nos EUA e lecionou na Universidade de Colúmbia, em Nova York, onde contribuiu para a criação de um dos principais centros de pesquisas antropológicas das Américas. Como antropólogo, Boas procurou salientar a grande variedade de formas culturais existentes, colocando como a tarefa da Antropologia descobrir, entre as variedades do comportamento humano, quais são comuns a toda a humanidade. Ele foi o fundador da moderna Antropologia Cultural, que contrapunha as teorias evolucionistas e racistas ainda dominantes no início do século XX a uma perspectiva relativizadora, centrada na noção de cultura. Este estudioso apontava que cada cultura é uma unidade integrada, fruto de um desenvolvimento histórico peculiar. Franz Boas foi um dos pioneiros da pesquisa de campo como método privilegiado para o estudo das diferentes culturas (BRITO, 2007). 26 Etnografia, Etnologia e Antropologia não constituem três disciplinas diferentes ou três concepções diferentes dos mesmos estudos. São, de fato, três etapas ou três momentos de uma mesma pesquisa, e a preferência por este ou aqueles destes termos exprime somente uma atenção predominante voltada para um tipo de pesquisa que não poderia nuncaser exclusivo dos dois outros. d) Linguística De todos os ramos da Antropologia Cultural, a Linguística é o mais autossuficiente, em função da independência que envolve o seu conhecimento. A linguagem é um meio de comunicação e também um instrumento de pensamento. A grande diversidade de línguas acompanha a grande variedade de culturas, cada uma delas com suas formas e estruturas básicas definidas. Exemplo: línguas indígenas brasileiras (Curt Nimuendajú, em 1981, relacionou 40 famílias linguísticas). e) Folclore O folclore também é um dos campos de investigação da Antropologia Cultural, definindo-se como o estudo da cultura espontânea dos grupos humanos rurais ou urbanizados. É uma ciência Socioantropológica, uma vez que se dedica ao estudo de determinados aspectos da cultura humana. Preocupa-se com os fatos da cultura material e espiritual que, originados espontaneamente, permanecem no seio do povo, tendo determinada função. O folclore, sendo uma disciplina autônoma, tem seus próprios métodos e técnicas de pesquisa científica. Estuda os fenômenos em sua dimensão espacial e temporal. Mesmo gozando desta autonomia, é considerado ramo da Antropologia, pela identidade de interesses (o homem e a cultura) desses dois campos de conhecimento (MARCONI; PRESOTTO, 2014). Exemplos: folguedos populares, danças, artesanato, linguagem, alimentação, canções, entre outros. Guarde... São muitas as divisões da Antropologia, mas quase todas se concebem de uma bipartição emanada presumivelmente do mesmo ser humano em sua dupla dimensão de ser natural (corpóreo e biológico) e ser de cultura (civilizado, 27 simbólico). Traduzem-se aqui clássicas dicotomias (natureza-cultura, biologia- sociedade, entre outras). Uma Antropologia se ocupará do polo natural (Antropologia Física) e outra do Sociocultural-simbólico (Antropologia Cultural ou Etnologia). Naturalmente que a essas duas divisões empíricas do saber sobre o homem deve-se somar a especulativa, própria da Antropologia Filosófica. Portanto, podemos definir a Antropologia Física (ou Biológica) como o estudo do homem enquanto organismo vivo, atendendo, além disso, a sua evolução biológica dentro das espécies animais. Quer dizer que o antropólogo físico tem que se ocupar da origem e evolução do homem (processo de hominização) e das diferenças físicas que se dão entre os seres humanos, da variação genética e das adaptações fisiológicas do homem frente aos diversos ambientes. Para isso, conta com uma série de estudos e de áreas de especialização: Primatologia (estudo dos primatas, grupo animal próximo ao homem), Paleoantropologia (estudo da evolução humana através dos fósseis), Antropomorfologia (anatomia comparada de diversos tipos e raças humanas), Genética Antropológica, Ecologia Humana, entre outras. A atividade concreta destes cientistas costuma consistir em trabalhos próximos da Arqueologia, recolhimento de fósseis, Antropometria (medição de partes corporais humanas, especialmente, o crânio – craniometria) e, ultimamente, análises mais sofisticadas relativas às características serológicas, genéticas ou fisiológicas e sua relação com o ambiente. 28 Por outro lado, podemos definir a Antropologia Cultural como o estudo e descrição dos comportamentos aprendidos que caracterizam os diferentes grupos humanos. O antropólogo cultural (ou sociocultural, como é costume denominar-se hoje em dia) tem que se ocupar das obras materiais e sociais que o homem criou através de sua história e que lhe permitiram fazer frente a seu meio ambiente e relacionar-se com seus congêneres. Também na Antropologia Cultural há várias subdivisões: a Arqueologia, quando estuda os vestígios materiais de culturas que não contaram com testemunhos escritos (ESPINA BARRIO, 2008). A Linguística Antropológica (ou Etnolinguística), que se ocupa de todas as línguas passadas e presentes, com seus dois enfoques principais: estrutural e genético. A linguagem é uma parte da cultura e pode esclarecer muitos aspectos da história da cultura e da mudança cultural. 29 30 O resto da Antropologia Cultural, precisamente sua parte mais substancial e genuína, está compreendido sob o rótulo de Etnologia Geral (estudo dos povos) e, segundo o enfoque que siga, será denominada de Etnografia (se descrever as formas de vida de determinados grupos sociais); Etnologia (se enfatiza a comparação de culturas, a reconstrução da história das culturas ou o tema da mudança cultural) ou Antropologia Social (que também compara as culturas, mas de modo a estabelecer generalizações acerca da ligação sociedades humanas-grupos sociais) (ESPINA BARRIO, 2008). A Etnografia (escrever sobre os povos): x é a disciplina mais próxima dos dados empíricos e a primeira que praticaram os antropólogos culturais; x prepondera nela o enfoque descritivo e utiliza como técnica de coleta de dados o trabalho de campo, principalmente, e as contribuições arqueológicas; x é a base de toda a Antropologia cultural, pois proporciona os elementos sobre os quais vão trabalhar os demais teóricos. A Etnologia: x vai além da descrição e pretende comparar, analisar as constantes e variáveis que se dão entre as sociedades humanas, e estabelecer generalizações e reconstruções da história cultural. A Antropologia Social: x refere-se a problemas relativos à estrutura social – relações entre pessoas e grupos, instituições sociais, como a família, o parentesco, as associações políticas, entre outros; x aqui a perspectiva é mais sincrônica que diacrônica. A Linguística trata de um aspecto restrito da cultura que é a linguagem. A Arqueologia pré-histórica também se reveste de significação para a Antropologia Geral (MELLO, 2003, p. 38). 31 Segundo essa perspectiva, o campo antropológico se desdobra nas seguintes divisões que, salvo diferenças terminológicas, já podem ser consideradas clássicas: Fonte: ESPINA BARRIO (2008). Mas, evidentemente que a Antropologia se comunica com outras disciplinas, trocando experiências e conhecimentos. Como diz Espina Barrio (2008), as disciplinas assinaladas não são as únicas que na atualidade desenvolvem campos interdisciplinares como o da Etno-História (reconstrução do passado cultural através de documentos escritos) ou o da Antropologia Psiquiátrica (cujo tema central é o das relações entre a cultura e a doença mental), matérias novas que estão assinalando o caminho deste conhecimento holístico que é o antropológico. Não há perigo de dissolução da disciplina nos demais saberes humanísticos (Psicologia, Psiquiatria, Medicina, Sociologia, História, Psicanálise, Semiótica, entre 32 outros), mas pode resultar numa confluência fecunda de interesses e uma comparação de resultados muito necessária, como mostra o quadro abaixo: Fonte: ESPINA BARRIO (2008). Relação da Antropologia com outras ciências: Como ciência social, a Antropologia oferece e recebe dados teóricos e metodológicos da Sociologia, da História, da Psicologia, da Geografia, da Economia e da Ciência Política. Como ciência biológica ou natural, liga-se à Biologia, à Genética, à Anatomia, à Fisiologia, à Embriologia, à Medicina. Também a Geologia, a Zoologia, a Botânica, a Química e a Física vêm oferecendo indispensável contribuição aos estudos antropológicos na busca da compreensão dos problemas comuns a todas essas disciplinas. A Antropologia, considerada a mais jovem das ciências, teve de aguardar o desenvolvimento dos conhecimentos ligados à Geologia, à Genética, à Biologia, à Sociologia para que se pudessedesenvolver. Pode-se afirmar que, somente após os conhecimentos da célula e da evolução terem sido formulados e aplicados ao 33 homem, é que a Antropologia se sistematizou e progrediu como ciência do homem (MARCONI; PRESOTTO, 2014). Mantêm relações interdisciplinares mais íntimas com as ciências que centram seu interesse, especificamente no estudo do homem e que emprestam a ela os dados pesquisados e acumulados em relação a todos os aspectos da existência humana: Sociologia, Psicologia, Economia Política, Geografia Humana, Direito e História. A Antropologia vem firmando-se como ciência do homem que exige, cada vez mais, a cooperação entre os seus especialistas e os de outras ciências, pois cada série de problemas requer a utilização de métodos específicos altamente técnicos. Como diz Espina Barrio (2008): A Antropologia, desde que se constituiu como saber organizado, desempenhou tradicionalmente um papel unificador em muitas áreas da pesquisa científica, assim como em humanidades, e o pôde fazer porque é um conhecimento integral e integrador. Simplesmente é conhecimento humano que trata do homem, de suas manifestações como espécie, de sua humanidade, com uma perspectiva global, aberta, integradora. 34 UNIDADE 4 – MÉTODOS UTILIZADOS PELA ANTROPOLOGIA A Antropologia é uma ciência social e humana, perfeitamente caracterizada, tendo seus campos de ação bem definidos e seus próprios métodos e técnicas de trabalho. Estes permitem ao antropólogo observar e classificar os fenômenos, analisar e interpretar os dados obtidos pela pesquisa, capacitando-o a estabelecer correlações e generalizações. Considerando os dois campos de investigação da Antropologia (o biológico e o cultural), faz-se uma distinção entre método e técnica pertinentes a cada um deles. Método é, segundo Calderon (1971, p. 165), um conjunto de regras úteis para a investigação, é um procedimento cuidadosamente elaborado, visando provocar respostas na natureza e na sociedade e, paulatinamente, descobrir sua lógica e leis. Técnica consiste na habilidade em usar um conjunto de normas para o levantamento de dados. A Antropologia Física ou Biológica e a Cultural recorrem a determinados procedimentos a fim de atender a seus objetivos de maneira mais fácil e segura. Para isso, valem-se de vários métodos e técnicas que, muitas vezes, são utilizados concomitantemente (MARCONI; PRESOTTO, 2014). Veremos abaixo os diversos métodos, mas antes, Brito (2007) nos convida a perceber que na Antropologia Cultural, a investigação se ampara na ideia fundamental da observação participante no interior de uma comunidade ou sistema social. O antropólogo se introduz (vive) na vida da comunidade e, por meio de contatos e observações cotidianas, desenvolve a sua pesquisa. Esta primeira fase da investigação de campo requer semanas ou meses, nos casos da necessidade de aprender a língua local. Os primeiros etnógrafos obtinham os dados a partir de entrevistas em profundidade com alguns informantes principais, como pessoas que conheciam profundamente a cultura e o sistema social locais. Estes dados eram verificados e cruzados com os de outros informantes e com as observações diretas do próprio pesquisador de campo. 35 Sem dúvida, a investigação das distintas sociedades e povos exige hoje outras técnicas e instrumentos metodológicos. As entrevistas estruturadas (com amostragem) são utilizadas de forma rotineira para a obtenção de uma informação. Por exemplo, o pesquisador pode realizar entrevistas para observar o consumo de alimentos, o comportamento sanitário, os recursos econômicos, os movimentos migratórios de trabalhadores, o tempo livre, entre outros aspectos de um determinado grupo social. Para analisar a estrutura econômica, o observado participante precisa registrar com minuciosidade todas as atividades que envolvem o trabalho, o mercado e a produção da sobrevivência da comunidade pesquisada. Quando se trata de estudar os aspectos da personalidade, podem ser utilizadas técnicas com auxilia da Psicologia. Também se submetem a observação e análise do antropólogo, os dados dos registros religiosos, os textos locais, os documentos governamentais e outras fontes escritas. À medida que os dados são mais complexos e intrincados, e se faz necessário o tratamento rotineiro de milhares de fragmentos de informação, os antropólogos têm recorrido aos computadores e programas (softwares) sofisticados para desenhar as sequências temporais, as relações espaciais e demais esquemas sociais. As tendências de mudanças culturais, a interação entre as atividades econômicas e sociais globais, as inter-relações étnicas e outros padrões complexos, também podem ser estudados pela Antropologia com o auxílio de avançados recursos estatísticos. Destarte, os modernos recursos metodológicos de investigações antropológicas não substituem totalmente os estilos tradicionais de pesquisa de campo. Ao contrário, as entrevistas em profundidade com informantes, assim como a complexa análise qualitativa dos sistemas simbólicos, as cerimônias e outras práticas culturais, constituem também partes essenciais de uma metodologia complexa que busca captar os elementos estudados em sua totalidade (BRITO, 2007). 36 4.1 Métodos de pesquisa em Antropologia a) Método Histórico Consiste em investigar eventos do passado, a fim de compreender os modos de vida do presente, que só podem ser explicados a partir da reconstrução da cultura e da observação das mudanças ocorridas ao longo do tempo. Nessa análise histórica, a cultura do homem é desvendada. Exemplo: origem e mudança da sociedade Xavante. b) Método Estatístico Método muito empregado tanto no campo biológico, verificando as variabilidades das populações, quanto no campo cultural, levantando diversificações dos aspectos culturais. Os dados, depois de coletados, são reduzidos a termos quantitativos, demonstrados em tabelas, gráficos, quadros, entre outros. Dessa maneira, podem- se verificar a natureza, a ocorrência e o significado dos fenômenos e das relações entre eles, tanto de natureza biológica quanto cultural. Exemplos: dimensões do corpo humano, grupos sanguíneos; variedade de religiões, diversificação de habitações. c) Método Etnográfico Refere-se à análise descritiva das sociedades humanas, principalmente das primitivas ou ágrafas e de pequena escala. Mesmo o estudo descritivo requer alguma generalização e comparação, implícita ou explícita. Refere-se a aspectos culturais. Consiste no levantamento de todos os dados possíveis sobre sociedades ágrafas ou rurais e na sua descrição, com a finalidade de conhecer melhor o estilo de vida ou a cultura específica de determinados grupos. Exemplos: estudo dos índios do Alto Xingu e dos Yanomami, de Roraima. d) Método Comparativo ou Etnológico Método amplamente utilizado tanto pelos antropólogos físicos quanto pelos culturais. O método comparativo permite verificar diferenças e semelhanças apresentadas pelo material coletado. 37 A Antropologia Física compara aspectos físicos, populações extintas, através dos fósseis ou grupos humanos existentes, analisando características anatômicas: cor da pele, do cabelo, dos olhos, índice cefálico, textura dos cabelos, grossura dos lábios, entre outras. Exemplos: através do estudo dos fósseis, é possível verificar a evolução dos hominídeos, a distinção entre o homem e o primata. A análise de populações humanas vivas possibilita constatar as diferenças raciais. O método comparativo, utilizado pelo antropólogo cultural, também chamadométodo etnológico, compara padrões, costumes, estilos de vida, culturas do passado e do presente, ágrafas ou letradas. Verifica diferenças e semelhanças a fim de obter melhor compreensão desses grupos. Exemplos: populações indígenas, rurais e urbanas. Instituições (família, religião, política, economia), usos e costumes, linguagem, habitações, meios de transporte, entre outros. e) Método Monográfico ou Estudo de Caso O etnógrafo estuda, em profundidade, determinado caso ou grupo humano, sob todos os seus aspectos. Este método permite a análise de instituições, de processos culturais e de todos os setores da cultura. Os grupos isolados estão a exigir pesquisas, antes que desapareçam como cultura, pelos contatos ou pela dizimação. Exemplo: índios Makuxi, de Roraima. f) Método Genealógico Método da Antropologia Cultural que permite o estudo do parentesco com todas as suas implicações sociais: estrutura familiar, relacionamento de marido e mulher, pais e filhos e demais parentes; informações sobre o cotidiano, a vida cerimonial (nascimento, casamento, morte), entre outros. Através do levantamento genealógico, não apenas o pesquisador terá a confirmação dos dados já observados, mas também novas informações poderão vir à luz. É necessária a presença de um informante que revele os nomes das pessoas, a filiação clânica, sua posição dentro da estrutura social, o relacionamento entre as pessoas, indivíduos ausentes ou já falecidos. 38 Exemplos: sistema de parentesco dos índios Tupi; genealogia de grupos étnicos minoritários (japoneses, poloneses e outros). g) Método Funcionalista Refere-se ao estudo das culturas sob o ponto de vista da função, ou seja, ressalta a funcionalidade de cada unidade da cultura no contexto cultural global. Uma característica da abordagem funcional é descobrir as conexões existentes em uma cultura e saber como funcionam. Exemplo: averiguar as funções de usos e costumes de determinada cultura que levam a uma identidade cultural. 4.2 Técnicas de pesquisa em Antropologia Segundo Marconi e Presotto (2014), no campo biológico são utilizadas técnicas clássicas da Antropologia Física, ou seja, a mensuração, ao lado de outras mais modernas, de datação. Para tanto, a coleta intensiva de dados vem sendo feita há mais de um século, usando-se a mensuração como principal técnica no trato desse material. As informações descritivas das medidas antropométricas (cabeça, rosto, corpo, membros) são o primeiro passo para o conhecimento do material investigado. Quando se trata de restos fósseis, as técnicas usadas são as de datação. No campo cultural, o antropólogo desenvolve recursos e técnicas de pesquisa ligados à observação de campo. Este é o seu laboratório, no qual aplica a técnica da observação direta, que se completa com a entrevista e a utilização de formulários para registro de dados. Vejamos: a) Observação A observação é uma técnica de coleta em que o pesquisador se vale dos sentidos para a obtenção dos dados – ver e ouvir, principalmente. A observação pode ser: a.1) Sistemática: quando os fenômenos são observados sistematicamente, em determinado período de tempo. Divide-se em: 39 • direta – os fatos são observados pessoalmente, no local da investigação; • indireta – realizada por meio de outras pessoas. a.2) Participante: quando o pesquisador deve ter disponibilidade de permanência no campo, por muito tempo, o suficiente para a perfeita compreensão da cultura em estudo. Deve ser um arguto observador, objetivo e desprovido de qualquer sentimento etnocêntrico, que possa levá-lo a uma observação deformada dos fenômenos. Seu instrumento de trabalho é o diário de campo, utilizado para o registro de seus dados, complementados com fichas, nas quais os assuntos devem ser selecionados criteriosamente. Fotografias, gravações e filmes completarão as informações. Por meio da observação participante, o antropólogo tem a oportunidade de viver entre os grupos tribais, participando intensamente das conversas, dos rituais, observando todas as manifestações materiais e espirituais do grupo, as reações psicológicas de seus membros, seu sistema de valores e seu mecanismo de adaptação. b) Entrevista Trata-se do contato direto, face a face, entre o pesquisador e o entrevistado, a fim de que o primeiro obtenha informações úteis a seu trabalho. Pode ser: a) Dirigida – quando segue um roteiro preestabelecido. b) Não dirigida ou livre – quando é informal e não há um roteiro a ser seguido, e o pesquisador leva o entrevistado a manifestar suas ideias espontaneamente. c) Formulário Técnica de coleta semelhante ao Questionário. Trata-se do levantamento de dados através de uma série organizada de perguntas escritas, cujas respostas deverão ser dadas pelo entrevistado. No Formulário, o pesquisador aplica o instrumento de pesquisa, ou seja, faz e preenche o rol de perguntas. No Questionário, é o próprio entrevistado quem preenche o instrumento de investigação. 40 O Formulário é aplicado a pessoas analfabetas ou semianalfabetas, enquanto o Questionário, a pessoas com certa escolaridade. 41 UNIDADE 5 – APLICAÇÕES DA ANTROPOLOGIA A Antropologia, que é por excelência a ciência do homem e da cultura, apresenta dupla dimensão: teórica e prática. Os especialistas da Antropologia teórica, que se dedicam à investigação pura, buscam todo conhecimento possível que leve à melhor compreensão da humanidade. De posse desses conhecimentos, tornam-se capazes de desenvolver atividades práticas, aplicando suas experiências junto aos grupos simples, ágrafos, quase sempre sujeitos a influências externas que possam provocar mudanças. Trabalham também em benefício das sociedades civilizadas, esperando contribuir para o bem-estar dos grupos humanos em geral e do homem em particular. Toda pessoa que pretenda a prática antropológica, necessita de um adestramento baseado no conhecimento de posições teóricas que fundamentam e orientam a ação antropológica na compreensão e solução dos problemas. Entre os numerosos conceitos consagrados pela Antropologia, três são considerados básicos: aculturação, relativismo cultural e etnocentrismo (MARCONI; PRESOTTO, 2014) e que irão dar o tom do seu trabalho: a) O conceito de aculturação é indicativo de situação de contato entre grupos portadores de culturas diferentes: grupos tribais e sociedades civilizadas (aculturação interétnica) e grupos tribais entre si, como os grupos do Alto Xingu (aculturação intertribal). Esses contatos vêm ampliando-se progressivamente e, em consequência, as culturas simples e isoladas estão mudando ou desaparecendo rapidamente. Criam quase sempre uma relação de dominação e de subordinação entre os grupos envolvidos. A cultura dominante ou colonizadora, via de regra, impõe seus padrões culturais à cultura colonizada, cujas reações à nova situação são as mais variadas. Geralmente, conformam-se às próprias condições de contato, que acabam por provocar, no interior dessas culturas, desequilíbrio e tensão, exigindo novo esforço de adaptação cultural. Todo sistema cultural está em contínuo processo de mudança que, a partir do contato com o mundo exterior, passa a ser estimulado e acelerado. A importância 42 dos estudos aculturativos leva à compreensão dos problemas gerados modernamente pela aproximação entre os grupos humanos. b) O conceito de relativismo cultural deve ser adequadamente compreendido por todos os indivíduos envolvidos direta ou indiretamente nas situações de contato. É um princípio que permite ao observador ter uma visãoobjetiva das culturas, cujos padrões e valores são tidos como próprios e convenientes aos seus integrantes. Considerando a extrema diversidade cultural da humanidade, pode-se compreender cada grupo humano, seus valores definidos, suas exclusivas normas de conduta e suas próprias reações psicológicas aos fenômenos do cotidiano; e também suas convenções relativas ao bem e mal, à moral e imoral, ao belo e feio, ao certo e errado, ao justo e injusto, entre outros. A relatividade cultural ensina que uma cultura deve ser compreendida e avaliada dentro dos seus próprios moldes e padrões, mesmo que estes pareçam estranhos e exóticos. Assegura ao antropólogo atitudes mais justas e humanas, o que vem, muitas vezes, contrariar os interesses da cultura dominante que, quase sempre, nas situações de contato, não leva em consideração alguns princípios humanitários. c) O Etnocentrismo. Deve-se considerar que há modos de vida bons para um grupo que jamais serviriam para outro. Os estudos dos grupos humanos vêm demonstrando que, embora existam expressivas diferenças culturais, “outras culturas” não são necessariamente inferiores. Mesmo assim, as sociedades “primitivas” são vistas dentro de um prisma de inferioridade cultural, sendo consideradas selvagens, bárbaras e de mentalidade atrasada. É uma atitude etnocêntrica, condenada pela Antropologia, que defende o princípio de que as culturas não são superiores ou inferiores, mas diferentes, com maiores ou menores recursos, com tecnologia mais ou menos desenvolvida. Os antropólogos adotam procedimentos alicerçados nos conceitos de relativismo cultural e etnocentrismo, quando são chamados a desenvolver programas de ação junto a grupos humanos sujeitos a mudanças socioculturais. É o significado utilitário da Antropologia, ou seja, o emprego prático dos conhecimentos 43 antropológicos, colocados à disposição da sociedade, colaborando, dessa forma, para o bem-estar dos grupos humanos sobre os quais atua. A Antropologia Aplicada vem adquirindo importância cada vez maior no mundo moderno, no qual o isolamento cultural é quase impossível e os contatos são inevitáveis e se multiplicam, levando muitas vezes a situações conflitantes. O papel da Antropologia Aplicada é bastante amplo. Veremos apenas alguns deles: a) Empenha-se na solução dessas situações, procurando minimizar os desequilíbrios e tensões culturais e tentando fazer com que as culturas atingidas sejam menos molestadas e seus padrões e valores respeitados. b) Aplica conhecimentos antropológicos, físicos e culturais na busca de soluções para os modernos problemas sociais, políticos e econômicos dos grupos simples e das sociedades civilizadas. Por exemplo, o COLONIALISMO. O antropólogo preocupa-se com os problemas gerados pelas situações de colonialismo e com a condição dos grupos sujeitos ao domínio colonial. Procura saber como beneficiar essas populações, impedindo a introdução dos valores ocidentais (cultura dominante) em detrimento dos padrões nativos. As tradições dos povos submetidos devem ser respeitadas pelos governantes coloniais, que precisam saber como tratar com culturas tão diferentes. Administradores, missionários e técnicos devem ser portadores dos conceitos antropológicos, a fim de que a interferência seja menos prejudicial. Outro exemplo seriam os PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO. Os antropólogos têm sido chamados a atuar em projetos de desenvolvimento em várias partes do mundo, geralmente de iniciativa de órgãos internacionais, como, por exemplo, a ONU, a Unesco, entre outros; projetos de colonização de terras, de reforma agrária, trabalho junto a sociedades camponesas, campanhas de saúde pública, desenvolvimento de comunidade, entre outros. Também trabalha na COEXISTÊNCIA POPULACIONAL. A coexistência de populações nativas com a população nacional requer a adoção de políticas indigenistas adequadas a cada realidade particular. No Brasil, por exemplo, o antigo 44 Serviço de Proteção ao Índio (SPI), norteado pelo Marechal Rondon, foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão protetor da população tribal brasileira, que nem sempre tem cumprido satisfatoriamente seus objetivos e metas (MARCONI; PRESOTTO, 2014). No Brasil, as frentes de expansão econômica (extrativa, pastoril e agrícola) fazem contactar diferentes grupos tribais com a sociedade nacional, exigindo a ação indigenista para amenizar os efeitos do contato. A INDUSTRIALIZAÇÃO, esse mal necessário! Nas sociedades civilizadas, a expansão da indústria vem exigindo maior desenvolvimento da Antropologia Aplicada na busca de soluções para os problemas decorrentes, sobretudo os referentes às relações de trabalho: baixos salários, greves, desemprego, injustiças sociais, excesso de trabalho, entre outros. Cabe ao antropólogo indagar as causas dessas tensões e procurar estabelecer o equilíbrio social nessas e em outras relações. Enfim, a ação do antropólogo é de relevância, mas a perspectiva histórica tem demonstrado que sua tarefa lhe tem sido decepcionante, em face das pressões da cultura dominante, que nem sempre concorda com as posições teóricas e os métodos humanísticos por ele adotados, ao desempenhar o papel de conciliador entre o mundo dominante e o dominado (MARCONI; PRESOTTO, 2014). 45 UNIDADE 6 – CULTURA: CONCEITO, ESSÊNCIA E CLASSIFICAÇÃO O sentido do termo cultura empregado pelos antropólogos difere amplamente do que o senso comum está acostumado a atribuir a tal vocábulo e é também diferente de outros muitos que historicamente foram associados a esse termo. É o sentido antropológico o que nos interessa e o que nos levará a afirmar que a cultura é o objeto de estudo privilegiado de nossa disciplina (ESPINA BARRIO, 2008). A cultura, para os antropólogos em geral, constitui-se no “conceito básico e central de sua ciência”, afirma Leslie A. White (1975 apud MARCONI; PRESOTTO, 2014). Como diz Espina Barrio (2008), proveniente do latim clássico, com significados associados ao cultivo e à criação, o vocábulo cultura seria aplicado só recentemente (cerca de 1750) ao âmbito das sociedades humanas, suplantando, em parte, o termo civilização. Marconi e Presotto (2014) também corroboram ao afirmar que o termo cultura (colere, cultivar ou instruir; cultus, cultivo, instrução) não se restringe ao campo da Antropologia. Várias áreas do saber humano – Agronomia, Biologia, Artes, Literatura, História, entre outras – valem-se dele, embora seja outra a conotação. Muitas vezes, a palavra cultura é empregada para indicar o desenvolvimento do indivíduo por meio da educação, da instrução. Nesse caso, uma pessoa “culta” seria aquela que adquiriu domínio no campo intelectual ou artístico. Seria “inculta” a que não obteve instrução. Os antropólogos não empregam os termos culto ou inculto, de uso popular, nem fazem juízo de valor sobre esta ou aquela cultura, pois não consideram uma superior à outra. Elas apenas são diferentes em nível de tecnologia ou integração de seus elementos. Todas as sociedades – rurais ou urbanas, simples ou complexas – possuem cultura. Não há indivíduo humano desprovido de cultura, exceto o recém- nascido e o homo ferus; um, porque ainda não sofreu o processo de endoculturação, e o outro, porque foi privado do convívio humano. 46 Para os antropólogos, a cultura tem significado amplo: engloba os modos comuns e aprendidos da vida, transmitidos pelos indivíduos e grupos, em sociedade. Voltando a Espina Barrio (2008), ele assevera que tanto o conceito de cultura como o de civilização estiveram associados no Iluminismo à melhora progressiva das faculdades
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