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AULA 1 GOVERNANÇA GLOBAL E FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS INTERNACIONAIS Profa Ana Cristina Aguilar Viana 2 INTRODUÇÃO A presente disciplina visa apresentar a você aspectos fundamentais sobre governança e formulação de políticas internacionais, focando as perspectivas históricas, natureza e origens conceituais dos termos governança e políticas públicas. Inicialmente, para poder compreendê-los, faz-se necessário uma contextualização histórica, passando por questões relevantes como globalização e perda do poder soberano do Estado nacional. TEMA 1 – O ESTADO – CONCEITUAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO Diz-se que o primeiro a alcunhar como Estado uma ordem jurídica e soberana interna e externamente foi o pensador Maquiavel (1988, p. 5). Em sua obra clássica, O Príncipe, dispõe, em seu primeiro capítulo – “Quantos são os tipos de principado e como conquistá-los” – que “Todos os Estados e todos os governos que exercem certo poder sobre a vida dos homens foram ou são repúblicas ou principados”. Desde então, o estudo desse ente com a referida denominação cresceu exponencialmente, já que seu papel sempre foi de grande relevância na história do homem. Contudo, inobstante as expressivas pesquisas acerca do Estado, a sua conceituação, todavia, se mostra complexa. Entretanto, Bobbio (2009) colabora com o caminho de sua definição e dispõe acerca de quatro estruturas analíticas, quais sejam, formal, material, social e política. Convém frisar, contudo, que tais eixos influenciam a elaboração teórica de diversas disciplinas. Inicialmente, é mister se atentar ao fato de que o Estado Moderno, em sua concepção contemporânea, se fez presente para representar o poder governado por um ente, peculiaridade inerente desse arquétipo estatal. A esse respeito, salienta Bonavides (2008, p. 31): “O Estado Moderno em verdade significa uma nova representação de poder grandemente distinta daquela que prevaleceu em passado mais remoto”. O principal modelo pré-moderno foi o Estado Medieval, o qual teve como características a presença do cristianismo, as invasões bárbaras e o feudalismo, sistema no qual se fizeram presentes relações de dependência pessoal, hierarquia e privilégios. Ainda nessa concepção, é importante mencionar que o senhor feudal possuía tanto o poder econômico quanto militar e político. 3 No referido período, os indivíduos respeitavam o seu senhor, mas, por outro lado, não havia uma lei a obedecer, posto que a autoridade era o suserano feudal. Com a transformação do Estado Medieval em Estado Absolutista, passou a emergir um processo de dominação legal racional, ou, como bem salienta Streck (2004, p. 24), "do ex príncipe passa-se ao ex principo. O vassalo do suserano passa a ser súdito do rei”. Assim sendo, a concepção do Estado Moderno tem como o cerne a ideia de que esse ente é legitimado para representar os cidadãos, que, mediante um contrato social1, dão-lhe o poder de governar. A marca fundamental é a centralização do poder, bem como a distinção entre a esfera pública e privada. Skinnier (1996, p. 10) aduz que “O poder do Estado, e não do governante, passou a ser considerado a base do governo. E isso, por sua vez, permitiu que o Estado fosse fonte da lei e da força legítima dentro de seu território e como o único objeto adequado de lealdade de seus súditos”. As deficiências do Estado Medieval foram determinantes para o surgimento do Estado Moderno, assim como as deficiências de cada modelo estatal são o cerne do início do seu sucessor. No que se refere ao Estado Moderno, este se utilizou de características fundamentais como governo, povo, nação, território e poder soberano. O estado procede da institucionalização do Poder, sendo que suas condições de existência são o território, a nação, mais potência e autoridade. Esses elementos dão origem à ideia de Estado. Ou seja, o Estado Moderno deixa de ser patrimonial. Ao contrário da forma estatal medieval, em que os monarcas, marqueses, condes e barões eram donos do território e de tudo o que neles se encontrava (homens e bens), no Estado Moderno passa a haver a identificação absoluta entre Estado e monarca em termos de soberania estatal. L’Etat, c’est moi. (Streck, 2004, p. 27) Sendo assim, o primeiro modelo de Estado Moderno é o absolutista, cuja formação contemplava alta nobreza, baixa nobreza, clero e burguesia das cidades. Tais grupos elaboravam suas normatividades entre si, promovendo o privilégio entre os membros, bem como a adoração e a lealdade aos príncipes. 1 O contrato social é um instituto criado para afirmar que “somente a vontade humana justifica a existência da sociedade” (Dallari, 1995, p. 9). Possui dois eixos analíticos, um proposto por Tomas Hobbes e outro por Jon Locke, Rousseau e Montesquieu. O primeiro sustenta que o homem vive de início em um estado de natureza, em uma guerra de todos contra todos, necessitando de um contrato social para a vida em harmonia. Já a segunda corrente pugna por um contrato social, mas não em virtude de uma inerência maléfica do indivíduo, mas sim por conta da existência de leis naturais que carecem de um contrato em sociedade. 4 O alicerce do domínio absolutista se consubstanciava na associação dos reis a deuses, em que aqueles representavam o poder divino, e dessa forma, soberano, indiscutível, irresponsável e perpétuo. Assim sendo, o modelo absolutista dá ao seu rei um poder soberano e sem controles sem qualquer dependência a outro poder. Quanto às leis divinas e naturais, todos os príncipes da Terra lhe estão sujeitos e não está em seu poder contrariá-las, se não quiserem ser culpados de lesar a majestade divina, fazendo guerra a Deus, sob a grandeza de que todos os monarcas do mundo devem dobrar-se e baixar a cabeça com temor e reverência. São essas, portanto, as únicas limitações ao poder do soberano. Como um poder perpétuo, a soberania não pode ser exercida com um tempo certo de duração. (Dallari, 1995, p. 66) TEMA 2 – O ESTADO LIBERAL Com a evolução do Estado, esse arquétipo passou a sofrer resistências. Os príncipes, ao observar o franco crescimento da elite burguesa, tentaram favorecer o seu crescimento, uma vez que não conseguiriam impedir a expansão capitalista. No entanto, a crise revolucionária se mostrou impossível de ser combatida e novos liames foram moldados; dessa vez, a intenção recaía justamente em criar limitações ao poder e às funções do Estado. Nascia aí o modelo de Estado Liberal, cuja inauguração se deu em 1789, com a Revolução Francesa, emergindo o poder político burguês e já demonstrando igualmente a futura contradição – burguesia versus operários. O Estado Liberal, assim como a sua ideologia, teve como escopo maior a promoção de um Estado Mínimo, em que a atuação estatal se faria presente somente em momentos de necessidade, para garantir a paz e segurança. Dessa forma, o indivíduo seria respeitado de tal maneira onde o todo gira em seu entorno. Roy Macridis (1982 citado por Streck, 2004, p. 39) desenvolveu sua definição acerca do liberalismo sob parâmetros específicos: o moral político e o econômico. No núcleo moral, preponderava a liberdade do indivíduo e sua capacidade de se autorrealizar, promovendo a liberdade de expressão, de pensamento, de crença e outras. Por sua vez, Bobbio (2000, p. 7) conceitua o liberalismo por meio de seus modelos antagônicos: “Liberalismo entende-se uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas e como tal se contrapõe tanto ao Estado Absoluto quanto ao que hoje chamamos de Estado Social”. 5 Convém aclarar que a referida doutrina2 aduz que existem leis que não são inseridas pela vontade do homem, mas são direitos e leis naturais. Tal pensamento se apresenta como uma âncora para a corrente liberal, porquanto estabelece a limitação do poder, uma vez que a natureza do homem não necessita decomprovação empírica ou histórica. TEMA 3 – O ESTADO SOCIAL O início da transformação que marcou a mudança do Estado Liberal Mínimo para Social se mostrou em pertinência à renovação no modelo adotado pelo liberalismo clássico, no qual a autoridade somente promoveria a paz e a segurança. Ainda, a concepção liberal voltada primordialmente ao indivíduo não se mostrava adequada à nova realidade social. Sendo assim, o Estado passou, lentamente, a assumir tarefas como a prestação de determinados serviços públicos, o que acarretaria no denominado Welfare State. “Na ampliação da atuação positiva do Estado, temos a diminuição no âmbito da atividade livre do indivíduo, ou seja, com o crescimento da intervenção, desaparece o modelo de Estado mínimo e abre-se o debate acerca de até que momento se permanece liberal diante de tal situação” (Streck, 2004, p. 58). De acordo com Streck (2004), algumas peculiaridades se apresentaram como fundamentais na transformação do Estado Liberal a Social: a Revolução Industrial, a Primeira Guerra Mundial, a crise econômica de 1929, a Segunda Guerra Mundial, as crises do liberalismo e os movimentos sociais. Ademais, com a proliferação da atuação dos operários, as lutas de contestações aumentaram e a liberdade contratual deu margem à intervenção do Estado em espaços que até então eram restritos à iniciativa privada. O Estado passou a agir, então, como um garantidor das condições mínimas de existência dos indivíduos, bem como atuou como agente financiador, passando a regular o mercado. Streck (2000, p. 62) acredita que todas essas modificações se deram em virtude de um “agigantamento dos centros urbanos e o surgimento 2 Em contrapartida ao jus naturalismo, existem doutrinadores que seguem uma linha totalmente diversa. Um dos grandes críticos à referida doutrina é Hans Kelsen, que propõe uma clara distinção entre o mundo natural e o mundo “ético”. Para o autor, a primeira relação se dá com a causalidade, ao passo que no mundo ético a relação é de finalidade, naquele a consequência natural é o pensamento sobre o “é”, ao passo que nesse se faz um julgamento sobre o que “deve ser”. Kelsen (2000, p. 1) elabora a sua teoria pura do direito e aduz que sua proposta é “libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos”. 6 do proletariado urbano, fruto do desenvolvimento industrial e da consequente destruição de modos de vida antigos e tradicionais”. Tampouco se pode olvidar que a guerra promove distorções nas distribuições da industrialização, predispondo a fragilidade desta por falta de demanda e com a necessária atuação do Estado com o fim de evitar uma crise. Ademais, o equilíbrio econômico financeiro se transportou da Europa aos Estados Unidos. Streck (2004, p. 69) salienta, contudo, que tal transformação não se deu de maneira imediata, mas gradual, por meio inicialmente do intervencionismo, seguido de um dirigismo e por fim de uma planificação que “representa o último e mais acabado estágio de atuação do Estado”. Como já mencionado, a consequência dessa modificação se solidificou no chamado Welfare State – ou Estado de Bem-Estar Social –, o qual envolve diretamente tópicos relacionados com o processo produtivo. Streck (2004, p. 70) elucida que a diferenciação entre o Estado intervencionista e o de Bem-Estar Social se dá que neste “as prestações públicas são percebidas e construídas como um direito e conquista da cidadania”. A promulgação desse modelo de Bem-Estar Social pode ser determinada por duas razões: uma, de ordem política, por meio de uma luta pelos direitos individuais, políticos e sociais; e outra, de natureza econômica, da transmutação agrícola para o urbano. O fim maior do referido Estado, em consonância com o professor Bonavides, se consubstancia na promoção do cidadão e na garantia de pugnar por seus direitos fundamentais para perseguir uma qualidade de vida. “Nesse momento, em que se busca superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social, ocorre, sob distintos regimes políticos, importante transformação, bem que ainda de caráter superestrutural. Nasce, aí, a noção contemporânea de Estado Social” (Bonavides, 2001, p. 184). O Estado valoriza o indivíduo, o protege, atendendo-lhe e promovendo os valores fundamentais. Sendo assim, a marca maior predominante nos Estados atuais se consubstancia em um Estado Social, com a defesa dos direitos fundamentais, que combinam com um Estado Democrático Participativo. De fato, nesse viés, mostra-se pertinente uma descrição pormenorizada dos institutos do Estado de Direito, Estado Democrático de Direito e a Constituição. 7 TEMA 4 – A MITIGAÇÃO DA SOBERANIA DO ESTADO A delimitação e a identificação das nações mundiais estão amparadas sob a definição da palavra Estado – esse é um ente soberano interno e externo. O modelo de Estado moderno é conhecido por portar as características de reunir uma identidade, uma nação, dentro de um território e sendo exercido por um poder soberano no ambiente externo e interno, o qual se comunica com demais agentes semelhantes em um ambiente internacional. Seu advento ocorreu com o fim do período medieval e do mundo feudal. O surgimento da palavra ainda é controverso. É possível dispor que no que tange à ideia de legitimidade para promover guerra, a concepção de Estado teve início com o Tratado de Westfalia. Maquiavel foi o primeiro a falar de Estado nas concepções que se conhece, e o conceito de soberania surgiu com Jean Bodin, em que foi dito que esta seria um poder absoluto sem qualquer tipo de limitação. Contudo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial – e especialmente após o fim da Guerra Fria –, passou-se a observar que diversas circunstâncias apontavam para uma diminuição da legitimidade e soberania. O Estado passou a perder a cada dia o seu poder, com o surgimento de outras organizações supraestatais, mercados e pela globalização. Como ensina Eric Hobsbawm: O estado-nação estava sendo erodido de duas formas, de cima e de baixo. Perdia rapidamente poder e função para várias entidades supranacionais e, na verdade, de forma absoluta, na medida em que a desintegração de grandes estados e impérios produzia uma multiplicidade de estados menores, demasiado fracos para defender- se numa era de anarquia internacional. Perdia, também, como vimos, seu monopólio de poder efetivo e seus privilégios históricos dentro de suas fronteiras, como testemunham a ascensão da segurança privada e dos serviços postais privados competindo com o correio. A mitigação da soberania também sobressalta no que se refere aos direitos humanos. Com efeito, o Estado que violar algum direito dentro do espectro dos direitos humanos protegidos universalmente pode ser responsabilizado pela comunidade internacional, por meio de cortes internacionais, ou regionais, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Da mesma maneira, aquele sujeito que sentir que teve um direito humano violado e não protegido por seu Estado pode acionar qualquer das entidades internacionais visando obter efetiva proteção. Nessa perspectiva, o dirigente estatal que permitir que sejam perpetrados crimes contra os direitos humanos pode responder perante à referida Corte. 8 A mitigação da soberania estatal no que tange aos direitos humanos teve a expressão maior com a Corte de Nuremberg, quando o tribunal foi instalado em decorrência das mazelas e barbáries praticadas pelo nazismo. Foi naquela ocasião que se vislumbrou a necessidade de se flexibilizar a soberania das nações. Também restou demonstrada que a garantia aos indivíduos dos seus direitos seria uma verdade a ser concretizada. De todo modo, deve-se acentuar que os tribunais internacionais têm um caráter subsidiário e complementar; em outras palavras, são instados apenas no caso de a jurisdição do país ter se silenciadoou suas instâncias não terem sido capazes de julgar o caso. Sob outro aspecto, pode-se considerar que a existência de cortes internacionais não mitiga o poder estatal. Isso porque ele concedeu, por meio do princípio da autodeterminação dos povos, participar de um sistema de proteção internacional, no qual se pune qualquer ato que atente contra a humanidade. TEMA 5 – A GLOBALIZAÇÃO Santos (1997, p. 106) identifica três tensões dialéticas que informam a modernidade ocidental. A primeira se dá entre a regulação social e a emancipação social, que se mostra presente na divisão positivista de ordem e progresso, pois “a crise da regulação social – simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providência – e a crise da emancipação social – simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma da transformação social radical – são simultâneas e alimentam-se uma da outra”. Para o autor, os direitos humanos se encontram nessa crise (Santos, 1997). A segunda tensão ocorre entre o Estado e a sociedade. A sociedade se autorreproduz por leis e regulações que provêm do Estado. Os direitos humanos se situam nessa tensão, e a primeira dimensão dos direitos humanos exigia uma não atuação estatal, ao passo que a segunda e a terceira pressupõem atividades por parte do Estado. Por fim, a terceira tensão acontece entre o Estado e a globalização. O modelo moderno ocidental político é dos Estados-nação, cada qual coexistindo no mundo internacional, mas com a própria soberania “O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anárquica, regida por uma legalidade muito tênue, e mesmo o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade”. 9 Com a globalização, Santos (1997) questiona se a questão da regulação social e da emancipação social também se deslocará para um nível global. O reconhecimento dos direitos humanos como uma política mundial surge nesse ambiente. Mas as violações dos direitos humanos e as lutas em sua defesa possuem uma perspectiva nacional, assim como em determinadas perspectivas os direitos humanos possuem aspectos culturais de um local específico. Daí o questionamento de Santos a respeito da maneira pela qual os direitos humanos podem se firmar em um nível transnacional. Segundo Viana (2012), a globalização é trabalhada por várias maneiras por distintos autores. Ressalte-se que a globalização é um aspecto comum da sociedade contemporânea, e como leciona Sato (2010, citado por Viana, 2012, p. 40), “a globalização é um fenômeno cujas raízes se assentam no próprio conceito de modernidade”. Quando se fala do tema, as razões trazidas não se restringem a um ponto central, mas, pelo contrário, são debatidas diversas questões. A despeito da diversidade na qual os debates em torno da globalização são elucidados, deve-se pontuar, em conformidade com Lima (2002, p. 12), que, inicialmente, a globalização pode ser identificada dentro de cinco espaços ideológicos: econômico, político, social, ambiental e cultural. No entanto, há peculiaridades que são inerentes ao estudo da globalização como um todo, e a desigualdade social aparece como maior atributo desse sistema. Olson, em sua obra sobre relações internacionais, comenta acerca da conexão entre os agentes internacionais e a globalização. “A presente pesquisa de relações internacionais e globalização em linhas gerais, está centrada na premissa de que essas relações estão sendo atingidas pelos efeitos da globalização e em decorrência, os atores internacionais e seus cenários, na sociedade internacional estão sendo alterados e redefinidos. (OLSON, 2003, p. 15)”. Eric Hobsbawm também indica a globalização como um aspecto de suma importância no entendimento das guerras contemporâneas. Para tanto, salienta o crescimento da desigualdade social em decorrência do desenvolvimento da globalização e que tal crescimento está no cerne dos conflitos contemporâneos (Viana, 2012). “A globalização acompanhada de mercados livres, atualmente tão em voga, trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e 10 sociais no interior das nações e entre elas. Não há indícios de que essa polarização não esteja prosseguindo dentro dos países, apesar de uma diminuição geral da pobreza extrema. Este surto de desigualdade, especialmente em condições de extrema instabilidade econômica como as que se criaram com os mercados livres globais na década de 1990, está na base das importantes tensões sociais e políticas do novo século (HOBSBAWM, 2007, p. 11)”. Assim, seguindo essa linha de raciocínio, podemos concluir que o sistema globalizado contemporâneo é inerente do modelo capitalista de governo que anseia e necessita do mercado de produção, da massa e da transnacionalidade, e esta se utiliza da globalização de maneira primordial para a configuração de seu modelo. De acordo com Frois, 2004, citado por Viana (2012, p. 43): A globalização representa, ao mesmo tempo, interpenetração e interconexão marcadas pela supremacia do capital e do mercado, entre regiões, estados nacionais e comunidades e potencialização da demanda por singularidade e por espaço para a diferença. Se nas instâncias econômicas a globalização significa o retraimento da soberania dos estados sobre essas, nas instancias culturais o processo encontra necessária resistência à perda das identidades e à anulação das culturas. 11 REFERÊNCIAS BODIN, J. República I. In: BITTAR, E. C. B. Doutrinas e filosofias políticas. São Paulo: Atlas, 2002. p. 123. BONAVIDES, P. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. HOBSBAWM, E. A era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SANTOS, B. de S. Uma concepção cultural de direitos humanos. Lua Nova, São Paulo, n. 39, p. 105-124, 1997. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n39/a07n39.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2019. VIANA, A. C. A. Conflito entre as nações. Um estudo acerca da Teoria de Huntington e outras perspectivas. 61 f. Monografia (Pós-Graduação em Sociologia Política), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/45432/R%20-%20E%20- %20ANA%20CRISTINA%20AGUILAR%20VIANA.pdf?sequence=1&isAllowed=y >. Acesso em: 16 nov. 2019. AULA 2 GOVERNANÇA GLOBAL E FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS INTERNACIONAIS Profª Ana Viana 2 TEMA 1 – DO GOVERNO À GOVERNANÇA A governança é um vocábulo polissêmico, que pode ter diversos significados. Portanto, para se poder compreender a extensão e definição da governança global, é preciso, primeiramente, ter conhecimento sobre a definição de governança e suas múltiplas formas de expressões. Desse modo, a aula de hoje é dedicada a explorar em detalhes todas as acepções da palavra. A origem da palavra governança vem do vocábulo grego que significa direção. Assim, o sentido fundamental é de direção da economia e da sociedade para encontrar fins coletivos. Segundo Baynard Guy Peters, O processo de governança envolve descobrir meios de identificar metas e depois identificar os meios para alcançar essas metas. Embora seja fácil identificar a lógica da governança e os mecanismos para atingir essas metas sejam muito bem conhecidos pela ciência política e administração pública, a governança ainda não é uma tarefa simples. (Peters, 2013) O Banco Mundial, em seu Relatório de Desenvolvimento Mundial 2017 descreve governança como sendo um “processo por meio do qual atores estatais e não estatais interagem para formular e implementar políticas dentro de um conjunto predefinido de regras formais e informais que moldam e são moldadas pelo poder” (Brasil, 2018). A OCDE, na mesma linha, afirma que a boa governança é um meio para atingir um fim, qualseja, identificar as necessidades dos cidadãos e ampliar os resultados esperados (Brasil, 2018). De todo modo, tendo em vista que a palavra implica em diversas acepções, é importante examinar de modo detalhado quais são as perspectivas e correntes teóricas sobre a governança. Isso sobretudo para evitar um mau uso do termo, ou uma cooptação da palavra para fins contrários ao que ela prega. Isto é, é preciso conhecer o que se entende por governança, para, a partir daí poder observar os entendimentos práticos sobre o tema. Para esse trabalho, utiliza-se como base a obra de Orlando Vilas Boas Filho que discorre pontualmente sobre cada um dos significados. O autor esclarece que muitos autores tratam do tema, e buscam delimitar seu contorno conceitual, com suas diferentes formas de manifestação e relações com a globalização, tudo isso em conjunto com as mutações e modificações existentes na sociedade, além da figura do Estado e de modelo democrático (Bôas Filho, 2016). Ou seja, a governança perpassa todos esses elementos, sendo um estudo, portanto, 3 complexo, e de caráter paradigmático, porquanto implica na observância de um governo sem governado, quer dizer, governar sem governo, cuja realidade parece cada vez mais se concretizar, notadamente em épocas de revoluções industriais em que se visualiza uma conversão de um modo analógico para digital. Segundo Orlando Vilas Bôas Filho, Philippe Moreau Defarges indica que o vocábulo surgido na França ainda no século XII, em um modo técnico de designar a direção dos bailados. Historiadores ingleses também teriam se referido ao termo como um modelo de organização do poderio feudal. O seu ressurgimento se deu no século XX, enquanto definição de noção fundamental das empresas e organizações. Atualmente, a governança traria e substanciaria novo modelo de gestão social decorrente das revoluções da informação. Já Philippe Moreau Defarges entende a governança como um modelo onde não existe hierarquia. Dentre as consequências, encontram-se a erosão do modelo top down de decisão e, especialmente, seu potencial como instrumento de participação no exercício da autoridade política, econômica e/ou administrativa para a gestão dos negócios comuns nos níveis global, regional, nacional, local/territorial e empresarial, abrangendo, ademais, todos os setores (público e privado), sobretudo a sociedade civil. (Bôas Filho, 2016, p. 676) Assim, na sociedade global contemporânea, a primeira noção do sentido governança leva a sua distinção aos termos governo, governamentabilidade e governabilidade. Citando Arnauld, a primeira definição de governança, portanto seria como “um estilo de gestão e de administração de questões públicas e privadas não emanado da ordem governamental ou de decisões fundadas em um ente soberano, na medida em que estaria fundado em uma autoridade partilhada” (Bôas Filho, 2016, p. 675). No que tange a distinção entre governo e governança, empresta-se das considerações de James Rosneau a ideia de governo sugeriria uma autoridade oficial, dotada de poder de polícia que garantiria a implementação das políticas devidamente instituídas, enquanto a de governança diria respeito a atividades apoiadas em objetivos, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas sem que seja indispensável a intervenção do poder de polícia. (Bôas Filho, 2016, p. 676) Assim, a governança consistiria em um fenômeno mais amplo do que o governo, de modo a abranger não apenas instituições governamentais, mas também mecanismos informais, de caráter não governamental, por meio dos quais indivíduos e organizações, no âmbito de uma determinada área de atuação, 4 perseguiriam seus interesses próprios. Portanto, a governança expressaria um sistema de ordenação fundado tanto em relações interpessoais como em regras e em sanções explicitas, motivo pelo qual, enquanto sistema de ordenação, implicaria a aceitação da maioria (ou pelo menos dos atores mais poderosos) para poder funcionar ao passo que os governos poderiam, em tese, funcionar mesmo diante de uma forte oposição (Bôas Filho, 2016). O quadro que diferencia um do outro estabelece que: Quadro 1 – Diferenças entre governo e governança Governo Governança Domínio Assuntos públicos Assuntos coletivos Ambiente Escassez Abundância Horizonte Guerra Paz Espírito Vertical/hierárquico Horizontal/democrático Modos decisórios Ordem/instrução Negociação/processos Finalidade Manutenção/unidade Criatividade/diversidade Controle/supervisão Estado Autoridades independentes/ Estado, como recurso último. Como conclui Bôas Filho: A partir desse contraste, fica evidente que o conceito de governo remete a uma organização institucional que procede de maneira verticalizada, ou seja, a partir de uma forma de ordenação hierarquizada (top down), enquanto que o de governança reporta-se a um sistema horizontal, não necessariamente atrelado à autoridade estatal, e ordenado a partir de uma lógica distinta (bottom up). (Bôas Filho, 2016, p. 678) Expõe ainda o autor que, no caso da governança, se observaria um progressivo deslocamento do poder do plano do governo soberano para o da governança eficaz. Alain Supiot descreve esse processo em termos de uma progressiva substituição do “governo pelas leis” pela “governança pelos números.” Segundo o autor, o “governo pelas leis” referir-se-ia ao reino das regras gerais e abstratas que garantem a identidade, as liberdades e os deveres de cada um. Enquanto tal, ele repousaria sobre a faculdade de julgamento, ou seja, sobre operações de “qualificação jurídica”, consistentes em distinguir situações diversas e submetê-las a regras diferentes, e de “interpretação” de textos cujo sentido não pode nunca ser peremptoriamente fixado. Por seu turno, a “governança pelos números” remeteria à autorregulação das sociedades, repousando sobre o cálculo, ou seja, sobre operações de “quantificação” (consistentes em conduzir seres e situações diferentes a um denominador comum) e de “programação de comportamentos”. (Bôas Filho, 2016, p. 680) 5 TEMA 2 – GOVERNANÇA EMPRESARIAL Explica Bôas Filho que, segundo Andre-Jean Arnaud, há uma expansão da governança empresarial como forma de gestão da complexidade. Trata-se de um “um conjunto de procedimentos e de estruturas cuja finalidade seria gerir eficazmente os negócios empresariais de modo a assegurar transparência e equilíbrio de poderes entre administradores, proprietários e seus representantes” (Bôas Filho, 2016, p. 683). De modo a conciliar a dinâmica empresarial, surgiu a corporate governance, como uma ferramenta de gestão que deve possibilitar o equilíbrio dos poderes, bem como garantir transparência. A governança empresarial, assim, relaciona-se com conjunto de dispositivos de regulação econômica e financeira. Segundo Bôas Filho, aludindo à progressiva inserção da governança empresarial no contexto da globalização, André- Jean Arnaud sublinha sua relação com a soft law (normatividade flexível que expressa o progressivo descentramento da regulação jurídica de sua forma estatal de expressão). Por esse motivo, Philippe Moreau Defarges associa a governança empresarial às transformações experimentadas pelo capitalismo na contemporaneidade. É, aliás, nesse contexto que, conforme já ressaltado, Alain Supiot observa que “o governo pelas leis cede espaço à governança pelos números. (Bôas Filho, 2016, p. 684) Notícia publicada em jornal também trabalha com a ideia de governança e qual sua proposta: Atualmente, os conflitos que acontecem em uma organização são diversos, desde aprovação de projetos com foco em bônus, exposição desnecessária a risco até omissão de informações estratégicas. Devido a tantos casos de má gestão e práticas fraudulentas, a governança cresce no mercado. Em 2002, foiaprovada nos EUA a primeira lei envolvendo governança corporativa, conhecida como SOX, que protege investidores e lista regras e requerimentos para empresas de capital aberto. No Brasil, houve um avanço na regulamentação de empresas públicas e as iniciativas do IBGC já trazem regras e normas para certos tipos de empresa. Tais normas são focadas em quatro pilares que são transparência, equidade, accountability e responsabilidade corporativa. Dessa forma, hoje, a maioria as empresas consideram práticas de governança e estas passaram para o topo de prioridades porque, sim, trazem muitos benefícios na gestão e perenização do negócio e deixam claras as normas de gestão. Independente da indústria, legislações, tamanho da empresa, estrutura de capital e modelo de gestão, uma empresa precisa de transparência, comunicação clara, foco nos objetivos corporativos, respeito a todos os stakeholders e direcionamento estratégico. (Gonçalves, 2018) 6 TEMA 3 – GOVERNANÇA GLOBAL A chegada de uma governança global, segundo Andre-Jean Arnaud, decorre da mudança da corporate governance para a global. Nesse viés, são importantes para o desenvolvimento de uma governança global os teóricos Joseph Stiglitz, Oliver Williamson e John Williamson. Dispõe o autor que: a governança global teria sido concebida, em seu conjunto, como a gestão dos negócios mundiais no nível das organizações e das agências internacionais. Nesse sentido, o funcionamento de tais instituições (egressas de Bretton Woods) consistiria essencialmente no enquadramento da atividade soberana dos Estados pelos regimes multilaterais de governança, a partir dos princípios componentes do que se convencionou designar “Consenso de Washington”: disciplina fiscal; abertura comercial; estímulo a investimentos estrangeiros; privatização de empresas públicas; desregulação e respeito ao direito de propriedade. (Bôas Filho, 2016, p. 685) Nessa perspectiva, importante pontuar que do Consenso de Washington adotou-se uma agenda para América Latina que inseriu reformas institucionais, para que essas diminuíssem suas amarras burocráticas, reduzindo gastos com funcionalismo, diminuindo a garantia dos direitos de segunda geração e liberalizando inúmeros setores para o mercado (Nohara, 2012). Bôas FIlho explica: Tais princípios, oficialmente assumidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, foram convertidos em imperativos administrativos que deveriam nortear as políticas dos países (especialmente os endividados) em nome do que se convencionou designar de good governance, noção, aliás, que se tornou fundamental no âmbito da governança global, na medida em que assumiu o papel de um paradigma de referência para a avaliação das economias dos países por parte das autoridades financeiras internacionais. A noção de good governance, com sua inequívoca carga prescritiva, encontra, como contraponto, a de poor governance, mobilizada para a avaliação dos Estados em matéria de corrupção e de criminalidade global (Bôas Filho, 2016, p. 685) Prossegue o autor aludindo que: a governança global assumiria também a dimensão estratégica de promoção da segurança mundial a partir do impulso à cooperação, ao entendimento e à moderação mútua entre os Estados nacionais, o que, segundo o autor, estaria expresso nos capítulos VI e VII da Carta da ONU, que tratam da resolução pacífica dos conflitos e divergências e das ações relativas às ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão. (Bôas Filho, 2016, p. 685) Seguindo ainda nas indicações de Andre-Jean Arnaud, Bôas Filho discorre que a governança substanciaria, finalmente, 7 a substituição progressiva de um sistema top down de tomada de decisão por um sistema bottom up, caracterizado pela ausência de uma produção normativa ordenada e sem atos de governo impostos a partir de instâncias centrais e de modo verticalizado. Estar- se-ia, assim, diante de uma passagem da “pirâmide” à “rede”, em meio à qual agências multilaterais, ONGs e a sociedade civil se tornam cada vez mais atuantes e decisivas no estabelecimentos de pautas de interesse comum a serem implementadas em nível global, entre as quais, o autor destaca, para fins de sua análise, a questão ecológica. Contudo, a governança global – diferentemente do que ocorre com os governos, cujas decisões se fundam em normas impositivas do direito positivo – enfrentaria, no que concerne aos instrumentos de que dispõem os atores que com ela operam, problemas decorrentes do fato de que a regulação produzida pelas organizações internacionais e globais teria apenas um caráter de soft law. (Bôas Filho, 2016, p. 685) TEMA 4 – GOVERNANÇA DOS BLOCOS REGIONAIS E NACIONAL A Governança Territorial trabalha com a ideia que se necessita reconfigurar os poderes entre governantes, sociedade civil e mercado, o que engendra o confronto de diversas “racionalidades políticas” (Bôas Filho, 2016). Assim, importante considerar que a governança ocorre tanto no âmbito dos territórios, como também no âmbito regional. Explica Bôas Filho: A governança também se faz presente no âmbito dos blocos regionais. É o que André-Jean Arnaud procura explicitar ao aludir à experiência da gouvernance européenne. Observar-se-ia, assim, a progressiva substituição, no debate jurídico, dos conceitos clássicos de “governo”, “lei” e “regulamentação” pelos de “governança”, “políticas públicas”, “ação direta”, “resolução de conflitos”. a ideia de governança implica a redefinição das funções estatais. Para ele, tal como ocorre nos níveis empresarial, global e regional, também no nacional a governança se expressaria (e deveria ser estudada) como uma dinâmica complexa de relações e inter-relações transformadoras que se tecem entre os diversos âmbitos que constituem o Estado nacional. Nesse sentido, sua implementação supõe que se ponha em questão a concepção de Estado legada pela tradição ocidental. (Bôas Filho, 2016, p. 690) Já a governança nacional é a que possui mais relação com questões culturais. Explica Bôas Filho: a representação da governança como uma ameaça à soberania estatal se expressa, sobretudo, em países nos quais se verifica uma visão cultural centralista do Estado moderno. Contudo, procura sublinhar o fato de que o Estado não poderia mais ser visto como a única instância detentora do poder, de modo que, com a governança, afigurar-se-ia possível gerir as questões públicas para além do direito estatal, o que, em outras palavras, expressaria a progressiva passagem de uma ação política outrora fundada no governo para outra amparada na governança. Decorreria daí, inclusive, o declínio da concepção top down que atribui apenas aos governantes a criação do “dever-ser”. (Bôas Filho, 2016, p. 690) São três as maneiras pelas quais a governança é observada em um plano nacional: a) o desenvolvimento de agências reguladoras; b) a ingerência de uma 8 normatividade advinda de standards e indicadores; c) o incremento de formas de intervenção participativa dos cidadãos” (Bôas Filho, 2016). TEMA 5 – GOVERNANCA PÚBLICA O guia da Controladoria Geral da União estabelece de maneira didática o que vem a ser definido como governança pública, sendo aquela relacionada diretamente ao poder estatal, o que enseja inclusive um certo paradoxo, uma vez que a governança tradicionalmente alude a uma perspectiva horizontal, sendo, portanto, contrário ao ideal vertical e soberano da figura estatal. Mas, a CGU já explica que: Na administração pública, poucos termos são utilizados com tanta frequência e em contextos tão diferentes. Nos últimos anos, converteu- se em verdadeiro mantra para designar uma espécie de solução definitiva dos problemas na gestão pública e para o sucesso das políticas governamentais. (Brasil, 2018) O Decreton. 9.203, de 22 de novembro de 2017, dispõe sobre a governança como um “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade” (Brasil, 2018). A cartilha do CGU ainda explica que a governança pública, para fins estatais, “fixa alguns dos mecanismos considerados importantes para o sucesso de uma política de governança e reforça a importância da construção e da coordenação de políticas focadas no cidadão” (Brasil, 2018). Na cartilha da CGU ainda é esclarecido que o conceito de governança tem como finalidade ser “ponto de partida para a formação de um consenso mínimo acerca do que é governança – com a indicação de um conjunto inicial de referências de boas práticas e a delimitação de um objetivo” (Brasil, 2018). A cartilha ainda trabalha com os objetivos a agendas de uma política de governança pública: Esse consenso leva em consideração a multiplicidade conceitual e, principalmente, os objetivos da política de governança [...] Portanto, ainda que se possa considerar a governança como uma abordagem ou agenda de pesquisa interdisciplinar voltada a analisar o funcionamento de diversas dimensões do Estado [...], este guia parte da perspectiva estatal sobre o tema.1 Nesse sentido, o foco da política e do guia estão no papel do Poder Executivo federal na criação de um ambiente institucional mais favorável à implementação dos interesses da sociedade. 9 Esse conceito mais objetivo, que efetivamente orientará a implementação da política de governança, permite fixar duas premissas importantes: i) a política é voltada para as instituições públicas federais e suas ações; e ii) cada órgão e cada entidade já possui um modelo próprio de governança pública. Dessa maneira, a identificação das necessidades prioritárias da sociedade, o estabelecimento de objetivos institucionais e a elaboração de estratégias para atingir essas metas adentram no campo epistemológico da governança pública. A definição desses interesses é tormentosa, sendo fruto de um complexo processo político. Cada instituição pública, em menor ou maior grau, contribui para a identificação e delimitação desses interesses – que, mais tarde, deverão nortear a sua atuação. Ter o cidadão como parceiro nesse processo é uma premissa fundamental. (Brasil, 2018) 10 REFERÊNCIAS BRASIL. Guia a política de governança pública. CGU, 2018. Disponível em: <https://www.cgu.gov.br/noticias/2018/12/governo-federal-lanca-guia-sobre-a- politica-de-governanca-publica/guia-politica-governanca-publica.pdf>. Acesso em: 3 dez. 2019. BÔAS FILHO, O. V. A governança e suas múltiplas formas de expressão: o delineamento conceitual de um fenômeno complexo. Rev. Est. Inst. v. 2, a. 2, 2016. Disponível em: <https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja &uact=8&ved=2ahUKEwi9ldmo67fjAhWLIbkGHUquA74QFjAAegQIARAC&url=ht tps%3A%2F%2Fwww.estudosinstitucionais.com%2FREI%2Farticle%2Fdownloa d%2F64%2F120&usg=AOvVaw3ahfai6UNETq26aFyf0s5a>. Acesso em: 3 dez. 2019. GONÇALVES, C. M. Afinal, o que é Governança Corporativa? O Estado de S. Paulo. 2018. Disponível em: < https://outline.com/yfD2VJ>. Acesso em: 3 dez. 2019. NOHARA, I. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012. PETERS, B. G. O que é governança. Revista do TCU. n. 127, 2013. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/87>. Acesso em: 3 dez. 2019. AULA 3 GOVERNANÇA GLOBAL E FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS INTERNACIONAIS Profª Ana Cristina Aguilar Viana 2 TEMA 1 – TENSÕES DA MODERNIDADE – ASPECTOS MULTICULTURAIS DOS DIREITOS HUMANOS Falar sobre governança em um mundo globalizado implica falar sobre globalização, direitos humanos e suas tensões. Boaventura de Souza Santos (1997) explica que os direitos humanos constituíram questões fundamentais no âmbito da Guerra Fria, sendo considerado por parte dos pensadores de esquerda como elemento da política desse momento, o que o tornava suspeito para uma política emancipatória. Todavia, segundo o autor, com a crise dos projetos emancipatórios, esses intelectuais voltaram-se aos direitos humanos como saída (Santos, 1997) a fim de identificar quais são as condições para que os direitos humanos sejam utilizados dentro de uma política progressista e emancipatória. Boaventura Santos identifica três tensões dialéticas que informam a modernidade ocidental. A primeira se dá entre a regulação social e a emancipação social, que se mostra presente na divisão positivista de ordem e progresso, pois a crise da regulação social – simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providência – e a crise da emancipação social – simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma da transformação social radical – são simultâneas e alimentam-se uma da outra. (Santos, 1997) Para Boaventura Santos (1997), os direitos humanos se encontram nessa crise. A segunda tensão se dá entre o Estado e a sociedade. A sociedade se autorreproduz por leis e regulações que provêm do Estado. Os direitos humanos se encontram nessa tensão, sendo que a primeira dimensão dos direitos humanos exigia uma não atuação estatal, ao passo que a segunda e terceira dimensões pressupõem atividades por parte do Estado. A terceira tensão se dá entre o Estado e a globalização. O modelo moderno ocidental político é dos Estados- nação, cada qual coexistindo no mundo internacional, mas com sua própria soberania: “O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anárquica, regida por uma legalidade muito tênue, e mesmo o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade” (Santos, 1997). Com a globalização, Santos (1997) questiona se a questão da regulação social e da emancipação social também se deslocará para um nível global. O reconhecimento dos direitos humanos enquanto uma política mundial surge nesse ambiente. 3 Mas as violações dos direitos humanos e as lutas em sua defesa possuem uma perspectiva nacional, assim como em determinadas perspectivas os direitos humanos possuem aspectos culturais de um local específico. Daí o questionamento de Boaventura Santos (1997) sobre a maneira pela qual os direitos humanos podem se firmar em um nível transnacional. TEMA 2 – A GOVERNANÇA EM UMA SOCIEDADE GLOBALIZADA É possível notar a relação intrínseca entre governança e globalização, porquanto a governança se trata de um fenômeno observado na contemporaneidade, tal como a globalização. Como ensina Eiti Sato (2010, p. 142), “a globalização é um fenômeno cujas raízes se assentam no próprio conceito de modernidade”. Segundo explica Viana (2016), no que tange ao tema da globalização, não há como estabelecer um ponto central de debate. Ao revés, debate-se uma ampla gama de questões. A despeito disso, é possível elencar cinco espaços ideológicos de debate sobre o tema, isto é, econômico, político, social, ambiental e cultural. Não obstante tais dimensões acima apontadas, existem singularidades que abrangem o estudo da globalização como um todo. Com efeito, a desigualdade social exsurge como relevante atributo. De todo modo, há certo consenso na literatura de que não se pode examinar o fenômeno em sua totalidade, pois a sociedade se encontra nele submersa. Por outro lado, é possível constatar e identificar alguns efeitos causados pela globalização, notadamente na sociedade internacional, foco da aula. Olsson (2003, p. 2), em obra sobre relações internacionais, dispõe sobre a conexão entre agentes internacionais e a globalização: A presente pesquisa de relações internacionais e globalização em linhas gerais, estácentrada na premissa de que essas relações estão sendo atingidas pelos efeitos da globalização e em decorrência, os atores internacionais e seus cenários, na sociedade internacional estão sendo alterados e redefinidos. Eric Hobsbawm (2007), célebre autor sobre o tema, descreve a globalização como um aspecto de grande relevância para a compreensão das guerras e conflitos que ocorrem na contemporaneidade. Salienta e menciona o crescimento da desigualdade social como uma consequência da globalização. 4 Para ele, é tal desigualdade que tem relação intrínseca nos conflitos contemporâneos: A globalização acompanhada de mercados livres, atualmente tão em voga, trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas. Não há indícios de que essa polarização não esteja prosseguindo dentro dos países, apesar de uma diminuição geral da pobreza extrema. Este surto de desigualdade, especialmente em condições de extrema instabilidade econômica como as que se criaram com os mercados livres globais na década de 1990 está na base das importantes tensões sociais e políticas do novo século. (Hobsbawm, 2007, p. 11) Assim, diante de tais posicionamentos, pode-se deduzir que o sistema globalizado contemporâneo é parte necessária do regime capitalista de governo. Modelo que necessita do mercado de produção, da massa e da transnacionalidade. Esse modelo se utiliza da globalização para sua configuração nos tempos atuais. É como ressalta Fróis (2004, p. 6): A globalização representa, ao mesmo tempo, interpenetração e interconexão marcadas pela supremacia do capital e do mercado, entre regiões, estados nacionais e comunidades e potencialização da demanda por singularidade e por espaço para a diferença. Se nas instâncias econômicas a globalização significa o retraimento da soberania dos estados sobre essas, nas instancias culturais o processo encontra necessária resistência à perda das identidades e à anulação das culturas. Nesse mesmo sentido, Boaventura Santos (1997) define globalização como o “processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”. Boaventura cita como exemplo o fato de a globalização estar condicionada à localização a língua inglesa, que se tornou a língua global (Santos, 1997). Santos (1997) ainda ressalva que uma relevante transformação da globalização é a compreensão do espaço/tempo, que ocorre não apenas pela classe capitalista transnacional, mas também pelos grupos de refugiados e migrantes, os quais nas últimas décadas têm realizado movimentações fronteiriças. Por isso, o autor (1997) fala de quatro formas de produção da globalização. O primeiro é localismo globalizado, que é quando algo local se globaliza com sucesso; o segundo é globalismo localizado, que trata do impacto dos transnacionais nas condições locais. Cosmopolitismo, defesa de interesses em comuns, para interação para bem comum, patrimônio comum da humanidade são todos temas relativos ao globo como um todo. 5 Assim, é possível distinguir entre globalização de cima para baixo e globalização de baixo para cima, ou entre globalização hegemônica e globalização contra- hegemónica. O que eu denomino de localismo globalizado e globalismo localizado são globalizações de cima para baixo; cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade são globalizações de baixo para cima. (Santos, 1997) TEMA 3 – TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS – PERSPECTIVA REALISTA Para que se torne possível a compreensão do sistema de formulações de políticas internacionais em um mundo globalizado e de governança, primeiramente é necessário compreender, ainda que sucintamente, a maneira pela qual se dá o sistema internacional. Assim, trabalha-se com algumas teorias sobre relações internacionais. Norberto Bobbio (2007) há muito já disse que o Estado pode ser visualizado sob uma perspectiva formal, material, social e política. O modelo estatal, de nações soberanas, adveio de um pensamento moderno e proveio do fim da Era feudal, e tem como característica no âmbito internacional ser considerado como anárquico, isto é, as nações são vistas como entidades soberanas. Essa visão do Estado como uma entidade soberana em um mundo anárquico é uma visão ordinária daqueles que perfilam de uma perspectiva teórica chamada de realista. É esta a corrente teórica adotada pela grande maioria dos agentes políticos e Estados nacionais. Essas concepções sobre o Estado decorrem de um tratado chamado de Paz de Westfalia, promovido em 1648 e que teve como fundamento reconhecer o Estado como poder supremo tanto interna quanto externamente. Foi aí que se deu fim a supremacia do clero. Nesses termos, os ensinamentos de Bedin (2000, p. 106) nos orientam para o seguinte: A paz de Westfália é o marco inicial da sociedade internacional moderna, uma vez que suas regras reconhecem, de maneira inovadora e definitiva, que o poder de arbitramento do Papa tinha desaparecido e que os estados soberanos passavam, a partir de então, a ser o núcleo fundamental de articulação política da emergente sociedade internacional moderna. Clássicos teóricos sobre o Estado, como Maquiavel e Thomas Hobbes, tiveram grande influência no desenvolvimento da teoria realista. Os pensadores Hans Morgenthau e Edward Carr, por sua vez, são considerados como os 6 emergentes e expoentes dessa teoria. Em regra, os realistas detêm uma visão pessimista acerca dos seres humanos e creem que o mundo internacional é marcado por um ambiente anárquico entre os agentes estatais. Desse modo, Hans Morgenthau ditou a busca pelo poder como o ponto nevrálgico das relações políticas. Nesse sentido, cumpre colacionar trecho do pensamento de Morgenthau (2003, p. 49): A política internacional, como toda política, consiste em uma luta pelo poder. Sejam quais forem os fins da política internacional, o poder constitui sempre o objetivo imediato. Os povos e os políticos podem buscar, como fim último, liberdade, segurança, prosperidade ou poder em si mesmo. Eles podem definir seus objetivos em termos de um Ideal religioso, filosófico, econômico ou social. Podem desejar que esse ideal se materialize, quer em virtude de sua força interna, quer graças à intervenção divina ou como resultado natural do desenvolvimento dos negócios humanos. Podem ainda tentar facilitar sua realização mediante o recurso a meios não políticos, tais como cooperação técnica com outras nações ou organismos internacionais. Contudo, sempre que buscam realizar o seu objetivo por meio da política internacional, eles estarão lutando pelo poder. Por outro lado, Raymond Aron (1995) buscou identificar algumas peculiaridades dessas relações. Para tanto, utilizou-se do pensamento weberiano e defendeu, portanto, o Estado como detentor legítimo do uso da força. Logo, segundo o pensamento de Aron (1995), o que diferencia as correlações das comunidades politicamente organizadas das demais relações sociais reside no fato de que, no cenário de tais comunidades (Estados soberanos), a violência desponta como um instrumento legal de utilização. Nessa perspectiva, vale pontuar de que maneira os teóricos clássicos defendiam e visualizavam o Estado. Thomas Hobbes, por exemplo, preconizava que os homens no seu estado de natureza se encontravamm em constante luta uns com os outros. Daí sua famosa frase que “o homem é o lobo do homem”, bem como toda sua referência teórica bem definida na obra Leviatã. Assim, no aspecto externo, de acordo com a perspectiva realista, o Estado era tratado como uma unidade essencial do sistema internacional, em constante estado de guerra com os outros. Leva-se então a compreender a teoria realista como pessimista, sendo que a paz irá emanardo equilíbrio de poder entre os Estados. 7 TEMA 4 – TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS – PERSPECTIVA IDEALISTA Sob outro aspecto, uma versão mais otimista do cenário internacional pode ser encontrada na perspectiva idealista. Ela decorre de pensadores que se influenciaram nas ideias e teses de Immanuel Kant, com sua teoria da paz perpétua, e também na perspectiva de Locke de contrato social. Moral e política não apresentam uma distinção no sentido de serem afastadas. Isto é, não creem os pensadores que elas podem ser apartadas. Locke, ao contrário de Hobbes, não parte de uma natureza negativa do sujeito. Ao revés, ele defende a liberdade dos homens e acredita que deve ser concedido aos homens as liberdades necessárias para que sejam autodeterminados. Seguindo essa linha, a vontade do sujeito, moral e racional, pode acarretar nas ações humanas uma construção de uma sociedade pacífica e libertária. Trata- se de uma sociedade em que a realização individual e o crescimento material corresponde a uma realidade. Sendo assim, seria factível assegurar a paz por outros mecanismos, já que o Estado seria um instrumento a ser manejado pelos indivíduos. Dentro da perspectiva liberal, compreende-se que a lei que assegura a ordem no aspecto interno dos Estados também tem o condão de ser aplicada no âmbito externo. Isso porque se acredita na interdependência internacional. Essa linha de raciocínio, que teve grande repercussão quando do fim da Primeira Guerra Mundial, exerceu grande influência na criação da Liga das Nações, que acabou posteriormente a fracassar, mas que foi o pontapé inicial para o surgimento da ONU. Nesse aspecto, não se pode deixar de elucidar e fazer menção aos esforços trazidos pelo ex-presidente estadunidense Wodroow Wilson. Ele buscou inserir uma proposta idealista nas relações de âmbito internacional, pretendendo abolir o pensamento realista nas relações internacionais. Sua tese foi bem- sucedida por um curto período. Todavia, a premissa não foi forte o suficiente para resistir às guerras que estavam por vir e acabou por sucumbir, o que permitiu a manutenção e o retorno da corrente realista. Com efeito, a corrente realista mostrou-se mais eficiente e conveniente aos interesses dos agentes políticos, os quais se utilizavam das teses elaboradas pelos renomados teóricos da área, sendo que, inclusive, alguns deles foram contratados em governos. Ademais, deve-se convir que, no âmbito internacional, 8 cada nação busca defender o seu próprio crescimento, sendo natural, portanto, que exista um ambiente anárquico. A constatação de uma perspectiva idealista equivale ao seu próprio nome, é um ideal, e, portanto, utópica, mas difícil de ser visualizada na prática. TEMA 5 – TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS – DEMAIS PERSPECTIVAS Grande parte da literatura das relações internacionais se dividiu por um bom período entre realistas e idealistas. No entanto, estudiosos também se propuseram em analisar a ordem internacional no Pós-Guerra Fria sob outras lentes, uma vez que houve uma desestabilização da formação, que até então era bipolar. Novos pensamentos e discussões passaram a trazer ao debate questões sobre governabilidade e suas contribuições para uma ordem política internacional. Este último tema da presente aula irá abordar as novas correntes do ambiente internacional. Os famosos teóricos Jackson e Sorensen, na obra Introduction to internactional relations, apresentam as diversas teorias das relações internacionais. Na parte final da obra, dedicam uma seção às teorias denominadas pós-positivistas. Os teóricos dessa linha questionam a racionalidade preponderante nas correntes clássicas, em especial a realista. O ponto de partida das teorias pós-positivias reside em problematizar as lacunas deixadas pelas teorias comuns das relações internacionais. Para tanto, promovem questionamentos que não se mostravam elucidados nas correntes tradicionais, a exemplo da ética no âmbito do poder. Ainda, a proposta desses teóricos resta em debater questões sobre a separação entre valores, conhecimento e poder. Postmodern IR theorists dispute the notions of reality, of truth, of the Idea that there is or can be an ever-expanding knowledge of the human world. They reject the notion of objetctive truth. Such beliefs are intellectual ilussions: they are subjective beliefs, like a religious faith. (Jackson; Sorensen, 1999, p. 235) As singularidades identificadas nos pensamentos dos pós-positivistas são de grande relevância para a reflexão da sociedade internacional atual. Elas podem ser sintetizadas em: problematização do Estado como ente soberano, moldagem anárquica estatal e discussão de uma proposta ética. A crítica desses autores quanto à agenda internacional se mostra mais adequada ao modelo contemporâneo de sociedade. Isso porque se defende a 9 discussão da ética no ambiente internacional e essa consideração se apresenta de extrema importância em todo debate acerca das relações interestatais. De todo modo, existem diversas novas perspectivas teóricas dentro das relações internacionais. Algumas se voltam para o próprio regime inerente de estudo, ao passo que outros buscam novos vieses elucidativos. Os pesquisadores da escola inglesa, por exemplo, abandonaram uma visão hobbesiana de estado de natureza e promoveram debates sobre a sociedade internacional, o que possibilitou compreender novos modelos e normas, trazendo o debate sociológico para o mundo das relações internacionais. Na corrente institucionalista, desponta o estudioso Robert Keohane. Herdeiro da corrente cooperativista da década de 80, o autor acredita que as instituições podem provocar a cooperação entre os agentes. Isso porque podem reduzir as incertezas, bem como abaixar o custo das transações, o que irá mudar, por consequência, a questão do custo-benefício para o ambiente internacional. Monica Herz (1997, p. 26) crê ser esta a proposta a ser seguida atualmente: “As instituições que puderem ser construídas a partir dessa concepção de cooperação serão o pilar da nova ordem internacional”. Contudo, há um ponto de divergência entre a corrente institucionalista e a neorrealista, a qual reside na própria natureza do sistema internacional. Segundo os neorrealistas, como Kenneth Waltz, os sujeitos se movimentam num esquema de lógica do jogo em soma zero, ou seja, em busca de relativos ganhos. Assim, as possibilidades de cooperação se restringem àqueles que são visualizados como aliados. Todavia, independente dessas discordâncias, as duas propostas têm em comum uma perspectiva utilitarista, em contraposição a um contrato internacional. Os pensadores pós-positivistas questionam a racionalidade preponderante nas correntes clássicas, notadamente a realista. A discussão pós-positivista tem, nos chamados estudos críticos, aqueles que se consideram como herdeiros dos trabalhos da Escola de Frankfurt. Ou seja, a Escola é usada como referência para contestar o mainstream teórico dominante na disciplina, a qual se orienta de uma maneira empiricista-positivista, notadamente, o realismo e neorrealismo (Fernandes, 2004, p. 108) . Nesse sentido, deve-se pontuar a necessidade de trabalhar com outras perspectivas, que podem se apresentar de forma mais adequada à contemporaneidade. 10 É importante mencionar que a teoria normativa das relações internacionais, em conformidade com Jackson e Sorensen (1999), não se mostra pós-positivista, mas sim pré-positivista. Isso porque, segundo eles, a teoria proclama a dimensão moral como fator essencial na interpretação das relações internacionais. Nessa perspectiva, faz-se necessário um pequeno apontamento sobre as características do momento contemporâneo, conhecido por alguns teóricos como pós-positivistas e pós-modernos. Com efeito, o pós-positivismoé aquela corrente que rompe com a ideia positivista, moderna, de relação objetiva entre o homem e o objeto. Uma quebra já enunciada por atores por Michael Foucault, por exemplo. Por sua vez, a perspectiva pós-moderna fala da quebra da continuidade e da solidez. O ambiente contemporâneo é fluido e caótico. As questões e os ambientes são fragmentados. Não há uma continuidade. Isso significa ser pós- moderno. As teorias mais recentes são feitas, destarte, partindo-se desta perspectiva. 11 REFERÊNCIAS ARON, R. Max Weber. In: _____. Etapas do pensamento sociológico. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 461-540. BEDIN, G. A. O realismo político e as relações internacionais. In: _____. (Org.). Paradigmas das relações internacionais. 3. ed. rev. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011, p. 57- 134. BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007. FERNANDES, J. P. T. 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O fenômeno da globalização e o novo cenário dos atores das relações internacionais. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2001). SANTOS, B. S. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, n. 39, p. 105-124, 1997. 12 SATO E. A agenda internacional depois da Guerra Fria: novos temas e novas percepções. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 43, p. 138-169, 2000. VIANA, A. C. A. Democracia, representação e participação: uma análise do debate político-partidário sobre a política nacional de participação social. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016. AULA 4 GOVERNANÇA GLOBAL E FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS INTERNACIONAIS Profª Ana Cristina Aguilar Viana 2 TEMA 1 – INTRODUÇÃO E CONCEITO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Para que possamos falar de modelos de formulação de políticas em um ambiente internacional, é necessário, primeiro, conhecer o ambiente internacional e suas respectivas teorias. Mas, para além disso, é preciso igualmente ter conhecimento teórico mínimo sobre políticas públicas. Desta maneira, a aula de hoje trabalhará aspectos teóricos sobre as políticas públicas, com modelos de análise de políticas públicas, suas correntes, características, entre outros fatores. As políticas públicas constituem, atualmente, uma disciplina específica (Faria, 2003), voltada para a análise dos comportamentos dos atores e do processo de formação de determinada política pública. Tal análise tem como finalidade compreender por que e para quem determinada política foi elaborada. Não se trata, portanto, de verificar unicamente o seu conteúdo. Sua definição, mesmo na disciplina, não é única. De qualquer modo, Thomas Dye é quem consegue condensar as principais ideias ao conceituar a política pública como aquilo que o governo escolhe fazer ou não fazer (Dye, 2008). Harold Laswell, criador da expressão “análise de política pública”, corrobora nessa definição, destacando que as políticas públicas não representam apenas o que o Estado faz, mas também o que deixa de realizar (Souza, 2006). Juridicamente, a melhor definição de políticas públicas é conferida à Maria Paula Dallari Bucci. Primeiramente, a autora distingue os conceitos em inglês de politics e policy. Enquanto o primeiro faz alusão à atividade estatal em si, o segundo se refere a programas de ações estatais. A política pública, portanto, que se relaciona a essa segunda acepção, é definida como: [...] o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial- visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados. (Bucci, 2006, p. 39) Dessa pequena exposição, pode-se perceber que a análise de políticas públicas colabora na compreensão do que os governos fazem e não fazem e de 3 que maneira ocorrem os processos políticos que acarretam determinadas formas de governo (Gordon, 1997). Tome-se como exemplo a opção de um governante por uso de um determinado contrato público de prazo prolongado. Isso se constitui uma forma de política pública, pois se trata de uma opção da administração em se utilizar um instrumento contratual, de determinada forma, em determinado tempo e com determinada pessoa. Daí a relevância do tema da análise de política pública, que busca explorar e explicar esse processo. TEMA 2 – MODELOS DE ANÁLISES DE POLÍTICAS A análise de política pública pode ser realizada por meio de vários modelos. No entanto, como um modelo significa uma representação primária de determinada particularidade do real (Dye, 2009), o modelo a ser escolhido dever ser aquele que mais se encaixa no objeto de estudo. Thomas Dye, em trabalho que busca identificar as principais formas de se realizar uma análise de política pública, aponta nove modelos. Em apertada síntese, os modelos e suas definições são as seguintes: institucional, modelo de processo, modelo de grupo, modelo de elite, modelo racional, modelo incremental, modelo da teoria dos jogos, modelo da opção pública e modelo sistêmico1. Cabe reiterar a advertência do autor quanto à relevância do modelo escolhido, porquanto cada um deles oferece uma forma distinta de pensar sobre a política pública (Dye, 2008). Existe, de outro modo, uma parcela da literatura de políticas públicas que distribui os modelos de análise dentro de dois grandes grupos, a Estadocêntrica e a Sociocêntrica (Secchi, 2010). 2.1 Perspectiva sociocêntrica Autores da ciência política distribuem teorias de análises de poder em dois grandes grupos, a Estadocêntrica e a Sociocêntrica (Dye, 2009). Na visão Sociocêntrica, cujo domínio de estudo ocorreu nas décadas de 1950 e 1960, 1 Os modelos apresentados são os seguintes: institucional, modelo de processo, modelo de grupo, modelo de elite, modelo racional, modelo incremental, modelo da teoria dos jogos, modelo da opção pública e modelo sistêmico. 4 acredita-se que a máquina estatal se encontra a serviço da sociedade, isto é, políticos e burocratas consideram as demandas sociais e buscam respondê-las. Fazem parte desse grupo os enfoques marxistas, pluralistas, elitistas e da escolha pública. Para os pluralistas, há na sociedade uma convivência de diversos centros de poder. O Estado é uma arena neutra, que depende da sociedade, e diferentes grupos sociais determinamas escolhas políticas. O maior expoente desta corrente é Robert Dahl (1998). Distinto dos elitistas, que dispõem serem pequenos grupos de elite que determinam as formas de governo (Mills, 1981). Em apertada síntese, pode-se dispor que, para os pluralistas, há na sociedade uma convivência de diversos centros de poder. O Estado é uma arena neutra, que depende da sociedade (Dahl, 1988) e diferentes grupos sociais determinam as escolhas políticas. Distinto dos elitistas, que são pequenos grupos de elite que determinam as formas de governo (Mills, 1981). Como se sabe, os marxistas partem da distinção econômica de classes, da infra e superestrutura. Wright Mills, teórico do elitismo, dispõe sobre o surgimento de uma minoria no poder, composta de hierarquias em que, no estado norte-americano, imperam as elites econômica, política e militar. As rodas do poder são formadas pelos círculos políticos econômicos e militares, que como um conjunto intrincado de “compadres”, se sobrepõem nas decisões de impacto nacional; os homens e mulheres “correntes” nas suas relações de trabalho, família e vizinhança encontram-se circunscritos a forças que não conseguem compreender nem governar sob o “diretório político” (1981). 2.2 Perspectiva estadocêntrica Por outro lado, a partir da década de 1980, começaram a ser difundidas novas premissas teóricas, as quais visualizavam o Estado no centro das relações. Assim, para os pensadores da perspectiva Estadocêntrica, é o Estado que explica a natureza das políticas governamentais. Compõem tal enfoque os vieses decisionistas e burocráticos, isto é, modelos racionais, de racionalidade limitada, incremental e modelo do garbage can (Serafim). Em suma, tal perspectiva vê no Estado um grau de autonomia em relação à sociedade, de maneira que as decisões são tomadas na seara estatal, podendo ou não respeitar as demandas sociais. As teorias que se encontram nesse enfoque tomam como pressuposto que o aparelho estatal é controlado por 5 políticos e burocratas, os quais, autonomamente, tomam decisões e as passam para a sociedade, que de maneira obediente as acatam. Embora essas teorias lidem com o caráter da incerteza do mundo, elas minimizam sua importância. É o caso, por exemplo, de Anthony Downs, filiado à corrente da escolha racional, que acredita que “um homem pode ter um grau extremamente alto de confiança em relação a algumas de suas decisões mesmo que viva num mundo de extrema incerteza” (Downs, 1999). A relevância de tais teorias se dá na forma como simplificam o vasto campo de decisões e que caracterizam o processo de decisão de uma política, saindo da complexidade do mundo e se aportando a uma dimensão específica e concreta. A par disso, essas teorias serviram e, ainda servem, de base para o desenvolvimento de categorizações mais modernas, o que, portanto, faz com que não se ignore ou sobreleve a importância desses mapeamentos analíticos. Ocorre que o processo de formação de uma política pública é complexo e caótico. Necessita-se, assim, de tipos analíticos que busquem lidar, e não afastar sua ocorrência. Por isso, faz-se primordial analisar o processo de formação de uma política pública em condições de ambiguidades e incertezas, admitindo sua existência. Paralelamente a isso, aludidas perspectivas apresentam outras limitações. Primeiro, não se pode compreender o Estado tão somente como uma máquina sem qualquer influência da sociedade. Segundo, também não prospera uma visão que acredite tão somente na função estatal como promotora de políticas públicas, alheias aos anseios da sociedade. Vale dizer que a complexidade das relações que ocorrem no seio de estado e sociedade não pode ser resumida de maneira linear, tal como propõem os modelos que veem o Estado como instituição promotora de políticas alheias à sociedade, ou, ainda, a sociedade como promotora de políticas sem qualquer influência da sociedade. TEMA 3 – PERSPECTIVAS PÓS-POSITIVISTAS Nas últimas décadas, novos estudos de análises de políticas se dedicaram às pesquisas empíricas e aos estudos conceituais, voltados a discutir o papel das ideias e do conhecimento nos problemas que aparecem na formação da agenda. Peter John distribuiu as diversas postulações teóricas de políticas públicas em cinco correntes analíticas, quais sejam: as institucionais, as que analisam os 6 impactos das redes, as que visualizam as condicionantes sociais e econômicas nas produções de políticas, a teoria da escolha racional e, por fim, as abordagens que se vinculam à importância das ideias e do conhecimento (teorias pós- positivistas). Portando como pressupostos a análise empírica em condições de ambiguidade, as teorias pós-positivistas conseguem explicar os diversos fenômenos que interferem na implementação de uma política, dando especial atenção à questão do tempo e dos atores envolvidos. Peter John explica que as correntes filiadas a uma concepção pós-positivista rechaçam a concepção de que, na área política, existem atores racionais buscando seus interesses. Ao contrário, acreditam que a interação de valores, normas e diferentes formas de conhecimento caracterizam o processo de formação de uma política pública. Fazem parte dessa corrente as propostas da advocacy coalitions, múltiplos fluxos, equilíbrio pontuado, pentágonos de ouro e comunidades epistêmicas. A vertente aadvocacy coalitions tem como intuito desvendar as categorias de transformações políticas em um mundo interdependente e marcado pela incerteza. O modelo dos múltiplos fluxos, por sua vez, desenvolvido primeiramente por John Kingdon e, posteriormente, por Nikolaos Zaharidis, apresenta-se como uma lente que busca explicar como as políticas públicas são realizadas pelos governos em condições de ambiguidade (Zaharidis, 2007). A proposta é explicar a maneira como um problema é racionalizado, para onde a alternativa é conduzida e de que forma é a realizada a seleção por determinada política pública (Zaharidis, 2007). São cinco os elementos que compõem os múltiplos fluxos, a saber: o fluxo dos problemas, o fluxo das alternativas (policy), o fluxo da política (politic), a janela da oportunidade (policy window) e os empreendedores. Durante uma janela aberta, os empreendedores tentam acoplar os três fluxos e o sucesso é maior quando todos os três fluxos estão acoplados. O mais importante dessa teoria é que, em vez de ver como uma aberração à ambiguidade, tal como as teorias tradicionais, aceita-se tal circunstância como um fato na vida política, o que faz a policy making algo complexo e pouco compreensível (Zaharidis, 2007). Já a teoria do equilibro pontuado dispõe que os processos políticos são muitas vezes guiados por uma lógica de estabilidade e incrementalismo, mas às vezes também produzem mudanças em grande escala (Capella, 2006). Por sua 7 vez, a vertente que propõe um pentágono de ouro destaca o papel central dos três atores que compõem o triângulo de ferro (políticos, burocratas e grupos de interesse), mas também sinaliza a importância dos mercados financeiros globais e atores não governamentais de atuação transnacional. Por fim, a vertente teórica que trata das comunidades epistêmicas adverte que os atores estatais diminuem as incertezas, mas admite a importância das comunidades (redes de profissionais) em virtude da crescente incerteza técnica e complexidade dos problemas nas agendas internacionais. A relevância de tais teorias resta na forma como simplificam o vasto campo de decisões e formas que caracterizam o processo de decisão de uma política, saindo da complexidade do mundo e se aportando a uma dimensão específica e concreta. A par disso, essas teorias serviram e, ainda servem, de base para o desenvolvimento de categorizações mais modernas, o que, portanto, faz com que não se ignore ou sobreleve a importância
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