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Fichamento - Kaldor

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The idea of global civil society - MARY KALDOR
1. Introdução
A crescente interconectividade dos Estados, o surgimento de um sistema de governança
global e a explosão de movimentos, grupos, redes e organizações que se engajaram em um
debate público global ou transnacional colocaram em questão a primazia dos estados.
Isso não significa o fim dos Estados. Pelo contrário, penso que os Estados continuarão a ser
o repositório jurídico da soberania, embora a soberania seja muito mais condicionada do que
antes – cada vez mais dependente tanto do consentimento doméstico quanto do respeito
internacional.
2. Mudando os sentidos da sociedade civil
Para os primeiros pensadores modernos, não havia distinção entre sociedade civil e Estado.
A sociedade civil era um tipo de Estado caracterizado por um contrato social.
Não foi até o século XIX que a sociedade civil passou a ser entendida como algo distinto do
Estado.
A definição voltou a estreitar-se no século XX, quando a sociedade civil passou a ser
compreendida como o domínio não apenas entre o Estado e a família, mas ocupando o
espaço fora do mercado, do Estado e da família - em outras palavras, o domínio da cultura,
da ideologia e do debate político.
Apesar da mudança do conteúdo do termo, é sugerido que todas essas diferentes definições
tinham um significado central comum. Eles eram sobre uma sociedade governada por regras
com base no consentimento dos indivíduos; ou, se preferir, uma sociedade baseada em um
contrato social entre indivíduos.
Em outras palavras, a sociedade civil, de acordo com minha definição, é o processo pelo
qual os indivíduos negociam, argumentam, lutam ou concordam uns com os outros e com os
centros de autoridade política e econômica.
Não apenas todas essas definições têm esse núcleo comum de significado, mas também
todas concebem a sociedade civil como territorialmente amarrada. A sociedade civil estava
inextricavelmente ligada ao Estado territorial. Foi contrastado com outros estados
caracterizados pela coerção - os impérios do Oriente. Também foi contrastado com as
sociedades pré-modernas, que careciam de um estado e careciam do conceito de
individualismo - Highlanders, ou índios americanos. E, sobretudo, contrastava com as
relações internacionais, que eram equiparadas ao estado de natureza por falta de
autoridade única. Muitos teóricos da sociedade civil acreditavam que a sociedade civil
interna estava ligada à guerra externa. Foi a capacidade de se unir contra um inimigo
externo que tornou possível a sociedade civil.
3. A reinvenção da sociedade civil
O ressurgimento da ideia de sociedade civil nas décadas de 1970 e 1980, quebrou esse
vínculo com o Estado. Curiosamente, a ideia foi redescoberta simultaneamente na América
Latina e no leste europeu.
Em ambos os casos, o termo 'sociedade civil' provou ser um conceito útil na oposição a
regimes militarizados. Os latino-americanos se opunham às ditaduras militares; os europeus
orientais se opunham ao totalitarismo - uma espécie de sociedade de guerra. Ambos
chegaram à conclusão de que a derrubada de seus regimes 'de cima' não era viável; ao
contrário, era necessário mudar a sociedade.
Além da ênfase na autonomia e na organização civil, a sociedade civil também adquiriu um
significado global. Este foi um período de crescente interconectividade, aumento de viagens
e comunicação, mesmo antes do advento da internet. O surgimento de 'ilhas de
engajamento cívico' foi possível por duas coisas:
1. Possibilidade de se conectar com grupos em outros países.
2. A existência de legislação internacional de direitos humanos.
Em outras palavras, por meio de vínculos internacionais e apelos a autoridades
internacionais, esses grupos conseguiram criar espaço político.
Assim, a nova compreensão da sociedade civil representou tanto uma retirada do
protagonismo do estado quanto um movimento em direção as instituições globais. Os
grupos pioneiros dessas ideias foram centrais nas pressões pela democratização na
América Latina e nas revoluções de 1989 no leste europeu. Às vezes se diz que não houve
novas ideias nas revoluções de 1989 - que os revolucionários só queriam ser como o
Ocidente. Mas essa nova compreensão da sociedade civil foi a nova ideia, uma ideia que
contribuiria para um novo conjunto de arranjos globais na década de 1990.
4. Sociedade civil global na década de 1990
A partir da década de 1990 os entendimentos sobre sociedade civil passaram a ser mais
diversos e distintos. Apontando três paradigmas, temos:
1. Em primeiro lugar, o termo foi adotado em todo o mundo pelos chamados 'novos
movimentos sociais' - os movimentos que se desenvolveram depois de 1968 preocupados
com novas questões, como paz, mulheres, direitos humanos, meio ambiente e novas formas
de protesto. No final da década de 1990, o surgimento do chamado movimento
antiglobalização – preocupado com a justiça social global – utilizou o conceito de sociedade
civil da mesma forma. A autora chama essa perspectiva de sociedade civil de 'versão
ativista'.
2. Em segundo lugar, o termo foi adotado pelas instituições globais e pelos governos
ocidentais. Tornou-se parte da chamada 'nova agenda política'. A sociedade civil foi
entendida como o que o Ocidente tem; é visto como um mecanismo para facilitar a reforma
do mercado e a introdução da democracia parlamentar. A autora chama essa visão de
'versão neoliberal'.
3. Um terceiro conceito de sociedade civil global é a “versão pós-moderna”. Os antropólogos
sociais criticam o conceito de sociedade como eurocêntrica, algo nascido do contexto
cultural ocidental (de acordo com esse argumento, a América Latina e a Europa Oriental são
culturalmente parte da Europa). Eles sugerem que as sociedades não ocidentais vivenciam
ou têm potencial para vivenciar algo semelhante à sociedade civil, mas não com base no
individualismo. Eles argumentam, por exemplo, que nas sociedades islâmicas, instituições
como ordens religiosas, o bazar ou fundações religiosas representam um controle sobre o
poder do Estado. Assim, para os pós-modernistas, as novas religiões e movimentos étnicos
que também cresceram dramaticamente na última década também fazem parte da
sociedade civil global. A sociedade civil global não pode ser apenas os 'movimentos legais e
bons'.
A autora acredita que todas as três versões devem ser incluídas no conceito de sociedade
civil.
O que aconteceu na década de 1990, é que surgiu um sistema de governança global que
envolve Estados e instituições internacionais. Não se trata de um único Estado mundial, mas
de um sistema no qual os Estados estão cada vez mais encurralados por um conjunto de
acordos, tratados e regras de caráter transnacional. Cada vez mais, essas regras se
baseiam não apenas em acordos entre os Estados, mas também no apoio público gerado
pela sociedade civil global. De particular importância, a meu ver, é um corpo crescente de
leis cosmopolitas, o que significa a combinação de leis humanitárias (leis de guerra) e leis de
direitos humanos.
Sociedade civil pode ser entendida como uma plataforma onde os novos atores das RI
podem negociar novos arranjos para o desenvolvimento global.
5. Depois do 11 de setembro
Tanto o terror quanto a guerra contra o terror são profundamente hostis à sociedade civil
global. O terror pode ser considerado um ataque direto à sociedade civil global, uma forma
de criar medo e insegurança que são o oposto da sociedade civil. E a determinação
americana de entrar em guerra unilateralmente com o Iraque causou uma profunda crise nas
instituições de governança global.
A sociedade civil global oferece a promessa de trazer o 'dentro' para fora. A guerra contra o
terror oferece o oposto. O efeito polarizador da guerra tende a aumentar em vez de reduzir
os ataques terroristas. É da natureza da guerra discriminar entre grupos de seres humanos;
por mais que as forças da coalizão insistam em salvar vidas civis, na prática suas próprias
vidas são privilegiadas sobre as vidas dos iraquianos, tanto militares quanto civis. A guerra
já gerou uma tremendaraiva e ressentimento, especialmente no Oriente Médio. Além disso,
a dificuldade de estabilizar a região depois disso significa que o tipo de condições que
alimentam o terrorismo – repressão, violência esporádica, desigualdade, ideologias
extremas – provavelmente se reproduzirá no futuro próximo.
Existe uma alternativa? A sociedade civil global, especialmente a vertente ativista, não
desapareceu. O movimento antiglobalização é muito ativo, especialmente na América
Latina. Existem novas sinergias entre o movimento antiglobalização, o movimento pela paz e
as comunidades muçulmanas, que explodiram em um movimento antiguerra global,
historicamente sem precedentes em tamanho e distribuição geográfica. A nova capacidade
de resposta à sociedade civil global oferece a possibilidade de um sistema de instituições
globais que atuem com base na deliberação, em vez de, como no passado, com base no
consentimento da hegemonia americana.
A autora não vê outra saída para o perigoso impasse atual do que tentar estabelecer um
conjunto de regras globais baseadas no consentimento. Temos que encontrar maneiras de
minimizar a violência em nível global.

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