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Dra. H., preceptora do rodízio de Pediatria, está com um grupo de estudantes de medicina e lhes informa que vão atender uma criança com problema no sangue, que não faz parte das alterações da hemostasia, mas precisa ser bem diferenciada de outras situações clínicas. Então, inicia a apresentação do caso. Tiago tem cinco meses de idade e vem acompanhado pelos pais. A genitora relata que há três dias ele vem apresentando febre e choro, como se estivesse com dor. Encontra-se em aleitamento materno exclusivo, porém no momento aceita muito pouco. Nega quedas e sinais de resfriado. No exame físico, o lactente apresenta FR: 48 ipm. FC: 108 bpm. Estado geral regular, está inquieto e hipocorado (2+/4+). AR e ACV: sem alterações. Abdome encontra-se distendido e percebe-se hepatomegalia indolor ++/4+. A criança persiste chorosa, mesmo quando acomodada no colo da mãe. Dra. H. solicita à genitora o exame de sangue realizado há 15 dias, em uma UPA. Hemoglobina 7g/dL VR: 11.0 a 13.0 g/dL Plaquetas 350.000/ mm 3 VR:250.000 500.000/ mm3 Reticulócitos 10% VR: 1,0 a 2,5% - - - Leucograma 16.000 leucócitos/m m 3 VR: 6000 a 17500 /mm3 Neutrófilos 13.000/ mm3 VR: 1000 a 9000/mm3 Bastões 1.000/ mm3 VR: 500/mm3 Linfócitos 2.000/ mm3 VR: 3500 a 1 4500/mm3 Após analisar o resultado, a médica explica aos pais que seu filho está com “anemia e o fígado crescido,” precisando ser internado para investigação, e pede que os estudantes acompanhem a família até a emergência. Os médicos que realizam a admissão hospitalar prescrevem venóclise com SF 0,9% e SG 10%. No entanto, ficam em dúvida sobre a possibilidade de hemotransfusão e decidem solicitar o parecer de uma hemato pediátrica. Durante a consulta, a hematologista investiga os pais, obtendo os seguintes dados: Genitora: Maria Lúcia tem 18 anos, cor/raça parda (autodeclarada), dona de casa. Refere que sempre foi “uma criança miudinha” e com histórico de anemia. As pessoas diziam que ela era assim porque “não comia direito”. Usou vitamina muitas vezes, sem melhora. Nunca precisou de transfusão sanguínea. Genitor: Manuel está com 20 anos, cor/raça preta (autodeclarada), trabalha há muitos anos na agricultura e já fez vários tratamentos para verminoses e anemia. Há dois anos, quando um tio precisou de transfusão de sangue, ele se prontificou para a doação, mas não foi aceito para o procedimento; disseram que seu sangue era “fraco.” A hematologista indaga sobre o teste do pezinho de Tiago. A genitora afirma que o exame foi coletado, mas esqueceu de buscar o resultado. A médica, então, explica que terá de solicitar alguns exames laboratoriais para eles e o filho, a fim de investigar as causas de anemia e os diagnósticos diferenciais. Na sala de evolução da enfermaria, os estudantes comentam sobre as possíveis etiologias do caso dessa família. Um acadêmico sugere anomalia da membrana das hemácias, como a esferocitose hereditária. Outra estudante lembra das hemoglobinopatias, como as talassemias ou anemia falciforme. Os exames solicitados para a família evidenciam: Maria Lúcia (mãe) Hemoglobina 8 g/dL VR: 12.0 - 16.0 g/dL R Reticulócitos 2,5% VR: 0,5 a 1,8% VCM 102 fL VR: 80.0 a 100.0 fL HCM 32 pg VR: 27.0 a 32.0 pg RDW 22% VR: 10.0 a 16.0% Plaquetas 380.000/ mm3 VR: 140.000 a 450.000 mm3 Ferritina 2 mg/dL VR: 10,0 a 291,0 - - - Eletroforese de Hemoglobina A1: 58% A2: 2% S: 38% F:2% VR: 96 a 98 % VR: 2,5 a 3,5% VR: 0 a 1,0% VR: 0 a 1,0% Manuel (pai) Hemoglobina 11,8 g/dL VR: 13.0 a 18.0 g/dL VCM 79 fL VR:80.0 a 100.0 fL HCM 30 pg VR:27.0 a 32.0 pg - - - Eletroforese de Hemoglobina A1: 53% A2:3% S:33% F:11% VR: 96 a 98 % VR: 2,5 a 3,5% VR: 0 a 1,0% VR: 0 a 1,0% Tiago (paciente) Hemoglobina 9,0 g/dL VR:11.0 a 13.0 g/dL Plaquetas 500.000/mm 3 VR:250.000 a 500.000/ mm3 VCM 68 fL VR:77.0 a 95.0 fL HCM 27 pg VR:30.0 a 33.0 pg Leucócitos: 16.800/ mm3 VR:6000 a 17500 Segmentados 11.000/mm3 VR: 3300/mm3 Linfócitos 5.800/mm3 VR: 3500 a 14500 Ferritina 300 mg/dL VR: 50,0 a 200,0 mg/dl Eritroblastos: 6 / 100 células Eletroforese de Hemoglobina A: 0% S: 88% F:12% VR: Igual ou superior a 95% VR: 0 a 1,0% VR: 80 a 100 % no RN 0,2 a 1,5 % no adulto A médica analisa os exames e explica que o caso de Tiago é um tipo de anemia que passa dos pais aos filhos. A mãe, preocupada, indaga: - Dra, isso é um problema de família? E por que meu filho chorava tanto, não mamava e estava inquieto, antes de receber o soro? A hematologista explica que existem alguns tipos de anemia que os pais não manifestam clinicamente, podendo ser portadores de algum traço da patologia. Esclarece também que as manifestações clínicas do paciente na admissão, correspondiam a uma das complicações mais comuns dessa doença. E, no momento, ele não vai precisar de transfusão sanguínea. OBJETIVOS 1. Definir e classificar anemia. 2. Compreender a anemia falciforme (Epidemiologia, etiologia, fisiopatologia, quadro clínico, diagnóstico, tratamento e complicações). 3. Conhecer a talassemia e a esferocitose hereditária. Anemias Condição patológica em que ocorre diminuição da massa de hemoglobina e da massa eritrocitária. A redução da concentração de hemoglobina (Hb), em si, não define a anemia, pois esse achado pode ocorrer em situações fisiológicas, como a que se observa a partir do segundo trimestre da gestação, principalmente por volta da 24ª semana, atribuída à hemodiluição. Ainda assim, para fins práticos, a concentração da hemoglobina (ou o hematócrito) é o parâmetro laboratorial mais utilizado para definir o quadro de anemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define anemia como a concentração de Hb inferior a 12 g/dL para mulheres pré-menopausa e inferior a 13,0 g/dL para homens e para mulheres na fase pós-menopausa, ambos os valores considerados para o nível do mar. Aceitam-se valores mais baixos para homens idosos, mas não para mulheres, pois homens idosos apresentam leve queda da concentração da Hb com a idade avançada, atribuída à redução nos níveis de testosterona. Os parâmetros da normalidade da concentração da Hb em crianças e em adolescentes também diferem daqueles observados nos adultos. Por exemplo, entre os 6 meses e os 5 anos, o limite inferior é de 11,0 g/dL; entre 6 e 11 anos, de 11,5 g/dL; entre 12 e 14 anos, de 12,0 g/dL. - Fatores que podem influenciar na concentração de hemoglobina: ● Altitude (mais alta, mais hemoglobina); ● Idade; ● Sexo; ● Tabagismo; ● Idade gestacional; ● Índice de massa corporal. Classificação A anemia pode ser classificada em aguda e crônica, quanto ao tempo de instalação; decorrente da diminuição da produção (hipoproliferativa) - pelo índice de reticulócitos - ou do aumento da destruição dos eritrócitos (perda ou hemólise), quanto à causa e em normocítica/normocrômica, macrocítica e microcítica/hipocrômica, quanto ao volume corpuscular médio (VCM). Anemia Falciforme Doença hemolítica de caráter autossômico recessivo, presente em indivíduos homozigotos para Hemoglobina S (HbS). É gerada por mutação na posição 6 da extremidade N-terminal do cromossomo 11, onde acontece substituição de um ácido glutâmico pela valina. Há então o afoiçamento dos eritrócitos. EPIDEMIOLOGIA - 40% da população da África equatorial - forma de resistência à malária, dificultando a invasão do Plasmodium sp. - 0,1 a 0,3% da população brasileira possui AF, mais prevalente nas regiões sudeste e nordeste. - 1-3 indivíduos para cada 1.000 nascidos vivos. FISIOPATOLOGIA Ocorre uma mutação que substitui o ácido glutâmico por valina (troca da base nitrogenada timina pela adenina) na posição 6 da cadeia B da globina. Essa mutação ocorre no cromossomo 11. A hemácia com a globina mutante quando desoxigenada torna a clássica forma de foice, perdendo a flexibilidade necessária para atravessar pequenos capilares. A HbS é responsável pela polimerização dos eritrócitos em condições de hipóxia, fazendo com que estes assumam formato de foice. Esses polímeros podemlesar a estrutura da membrana dos eritrócitos, provocando hemólise. A diminuição do número de eritrócitos pela hemólise associada à alta destruição das hemácias pelo baço leva ao quadro comum de anemia em pacientes falciformes. Com a membrana enrijecida, há aumento do contato da hemácia com moléculas de adesão, favorecendo vaso-oclusões (quando ocorre aderência destas células no endotélio vascular), ocasionando processos inflamatórios e infecciosos. QUADRO CLÍNICO As manifestações agudas mais comuns são: - Crise vaso-oclusiva, dor, infarto pulmonar, priapismo, surdez, anemia aguda e maior susceptibilidade à infecção bacteriana e AVC. As manifestações crônicas incluem: - Anemia, dor e alteração do funcionamento de órgãos vitais. Ao longo da vida, o acúmulo de alterações funcionais em vários órgãos agravam as manifestações e reforçam sua fisiopatologia. A dactilite falcêmica, crises dolorosas, infecção, febre, icterícia, crise de sequestro esplênico (retenção de sangue no baço), úlceras de pernas, priapismo e AVE são sintomas e ocorrências derivadas da DF, reduzindo a expectativa de vida de 42 a 53 anos para homens e 48 a 58 anos para mulheres. ● Dor e inchaço das mãos e pés, chamada síndrome mão-pé, pode ser o primeiro sinal clínico na criança que ainda não recebeu o diagnóstico. Recém nascidos com AF geralmente não apresentam os problemas relatados por conta da alta concentração de Hb fetal presente nos eritrócitos, durante os 2 primeiros meses de vida. A partir do 3 mês, quando os níveis de Hb fetal caem, a doença começa a aparecer. DIAGNÓSTICO Baseado em dados clínicos e nos parâmetros laboratoriais: - Hemograma, teste de solubilidade, teste de falcização, dosagem de Hb fetal e hemoglobina A2, focalização isoelétrica, imunoensaio e triagem neonatal. A confirmação desta anemia se dá pela detecção da HbS, sendo a técnica de eletroforese de hemoglobina em acetato de celulose ou em agarose, por pH variando de 8 a 9, a mais indicada. TRATAMENTO Com hidroxiuréia é eficaz em crianças e adultos. Seus mecanismos não são totalmente elucidados, entretanto há a indução da produção de hemoglobina fetal HbF, e ajuda a inibir a falcização celular. A única opção de tratamento curativo é o transplante de células-tronco hematopoiéticas. Crizalizumabe - vaso-oclusão, reduz as crises álgicas. COMPLICAÇÕES AGUDAS Mais comuns são as crises álgicas, conhecidas como crises vaso-oclusivas agudas. Uma dor resultante de isquemia do tecido causada por vaso-oclusão, mais comumente ocorrendo em ossos e na medula óssea. Há também febre relacionada a infecções, injúria renal aguda, complicações hepatobiliares, anemia aguda, crise de sequestro esplênico, síndrome torácica aguda, AVE, priapismo e condições oculares agudas. CRÔNICAS As complicações crônicas podem ocorrer já no início do curso da doença e afetam toda a vida dos indivíduos portadores, as complicações da doença falciforme podem incluir síndromes de dor crônica ou aguda, anemia significativa e suas sequelas. Outras complicações coexistentes são artrite reumatóide e úlcera péptica. Esferocitose Hereditária Definição Doença genética de caráter autossômico dominante, na qual há um defeito nas proteínas de membrana dos eritrócitos ao nível do citoesqueleto. É uma anemia hemolítica não auto-imune. Há então uma fragilidade osmótica, aumento da densidade e do formato esférico, diminuindo a sobrevida. Fisiopatologia Quando as hemácias passam por um local pobre em glicose (no baço, tendo congestão vascular esplênica, por exemplo), ou pH diminuído ou por área com aumento de radicais livres, elas modificam-se para se tornarem mais esféricas e são facilmente destruídas, seja no próprio baço ou em outros locais ricos em células macrofágicas. Quadro Clínico Varia de sintomático, que é o mais comum, à sintomáticos, cursando com anemia de grau variado, que pode acometer qualquer idade, úlceras nas pernas, esplenomegalia, litíase biliar e icterícia flutuante. Diagnóstico História familiar positiva (ou negativa em casos de mutações) + exames laboratoriais: - Anemia; - Reticulocitose; - Leucocitose; - Microesferócitos; - Coombs direto negativo; - Hemólise - aumento de DHL e bilirrubina indireta. Tratamento Baseado nos sintomas do quadro, através de transfusões, colecistectomia em casos de litíase biliar, além de esplenectomia em casos de úlceras de MMII e retardo de crescimento. Talassemias Definição Doenças hereditárias autossômicas recessivas, resultado de mutações em genes das globinas alfa (cromossomo 16) ou beta (cromossomo 11). Fisiopatologia Indivíduos homozigóticos para alfa ou alfa-talassemias são sintomáticos, enquanto heterozigotos, em geral, são assintomáticos. Há a promoção da diminuição ou ausência na síntese de cadeias globínicas alfa ou beta, que são cadeias componentes da Hb. Alfa-talassemia Ocorre deleção total ou parcial de locus gênicos responsáveis pela síntese da cadeia de alfa-globina. Essa alteração leva à destruição intramedular dos precursores eritrocitários. Beta-talassemia Resulta de mutações pontuais na cadeia B da HB, porém somente as hemácias de adultos serão afetados. - Talassemia B maior (grave e precisa de transfusões); - Talassemia B intermediária (apresenta anemia, com ou sem esplenomegalia) - Talassemia B menor (ou traço, é assintomática).
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