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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE BELAS ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS Eliane M. Gordeeff INTERFERÊNCIAS ESTÉTICAS: A TÉCNICA STOP MOTION NA NARRATIVA DE ANIMAÇÃO Rio de Janeiro 2011 Eliane M. Gordeeff INTERFERÊNCIAS ESTÉTICAS: A TÉCNICA STOP MOTION NA NARRATIVA DE ANIMAÇÃO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais / Escola de Belas Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção de título de Mestre em Artes Visuais. Orientador: Prof. Dr. Rogério Medeiros Rio de Janeiro Março / 2011 Gordeeff, Eliane M. G661 Interferências estéticas : a técnica stop motion na narrativa de animação / Eliane M. Gordeeff. 2011. 166 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Rogério Medeiros. Dissertação (mestrado) – UFRJ/EBA, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, 2011. 1. Animação. I. Medeiros, Rogério. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Belas Artes. III. Título. IV. Título: a técnica stop motion na narrativa de animação. CDD 778.5 INTERFERÊNCIAS ESTÉTICAS: A TÉCNICA STOP MOTION NA NARRATIVA DE ANIMAÇÃO Dissertação de final de curso em Arte Visuais, Linha de Pesquisa em Imagem e Cultura, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / Escola de Belas Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção de título de Mestre em Artes Visuais. Conceito:________________________________________ ____________________________________________ Prof. Dr. Rogério Medeiros Universidade Federal do Rio de Janeiro Conceito:________________________________________ ____________________________________________ Profa. Dra. Maria Cristina Volpi Universidade Federal do Rio de Janeiro Conceito:________________________________________ ____________________________________________ Prof. Dr. Jorge Luiz Cruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro A imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra, o menor no lugar do maior. Para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto: para falar do infinito, mostra o finito. Substituição... Não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem. Andrei Tarkovski AGRADECIMENTOS Aos animadores Alexander Petrov, Garri Bardin, Piotr Sapegin e Quiá Rodrigues, por suas atenções e solicitudes, sem as quais esse trabalho não seria possível. Aos também animadores Antônio Moreno, Arnaldo Galvão, Céu D´Elia, Fábio Yamaji, Marcos Magalhães, Martine Chartrand e Sávio Leite, pelo apoio e atenção. Aos professores Amaury Fernandes, Ana Maria Tavares Cavalcanti, Antônio Moreno (UFF), Carlos Azambuja, Carlos Terra, Luiz Roberto Pinto Nazário (UFMG), James Arêas (UERJ), Luiz Sérgio (UFF), Maria Cristina Volpi, Marcus Vinícius Dohmann e Rogério Medeiros que direta ou indiretamente tornaram este trabalho possível. Aos colegas Ana Palmiere, Caetano Mauro, Daniel Pinna, Gabriel Cruz, Índia Martins, José Ricardo Cereja, Jaciara e Lourdes Grzybowski, Luciana Fagundes Braga Ferreira e Mirian A. C. Crapez pelo apoio e auxílio. Aos membros da banca, os Profs. Doutores, Maria Cristina Volpi e Jorge Luiz Cruz (UERJ), pela atenção e solicitude. Ao meu orientador Prof. Doutor Rogério Medeiros, pelo suporte, compreensão e paciência. Ao meu companheiro Cláudio Roberto, pelo amor, compreensão e apoio. RESUMO INTERFERÊNCIAS ESTÉTICAS: A TÉCNICA STOP MOTION NA NARRATIVA DE ANIMAÇÃO Esta dissertação vem propor um olhar analítico, sobre uma expressão artística pouco abordada nos meios acadêmicos brasileiros: a Animação. Considerada somente um “gênero” cinematográfico, esta surgiu antes do chamado “cinema” e caracteriza-se pela variedade de seu tecnicismo, desenvolvido ao longo do tempo: desenho sobre papel, Stop motion, Pixilation, Rotoscopia, 2D e 3D. Porém, mesmo com todos os avanços tecnológicos e o brutal desenvolvimento da sua indústria atual, esta permanece obedecendo aos mesmos princípios desenvolvidos por figuras históricas, como Winson McCay, os irmãos Fleischer, Walt Disney, Tex Avery, Norman McLaren e continua sendo a arte de dar alma a quem não a tem. O objetivo desta pesquisa é o de analisar como a materialidade da técnica influi na informação visual complementando e auxiliando à narrativa animada. Para tanto, foi elaborado um estudo de casos, em que os recortes foram os seguintes curtas-metragens de animação em Stop motion: Vizinhos (1952, de Norman McLaren), De Janela pro Cinema (1999, de Quiá Rodrigues), O Velho e o Mar (2000, de Alexander Petrov), Adágio (2000, de Garri Bardin) e Ária (2001, de Piotr Sapegin). Estes foram analisados sob os conceitos da semiótica, do simulacro, do cinema, da narrativa, da teoria da comunicação; e com base nas informações obtidas em fontes primárias e nas pesquisas de gabinete. Assim foi possível constatar como a expressividade pode ser apresentada pelo uso físico, representativo e/ou simbólico do material (ou objeto) utilizado na elaboração da imagem, na produção de uma narrativa de animação; e como a variedade estética dessas formas de animar interfere definitivamente no resultado final do trabalho, muitas vezes contribuindo visualmente para “contar a história”. Por consequência, a pesquisa amplia a compreensão sobre a riqueza estética da Animação – enquanto arte, técnica e meio de mensagem. Palavras-chave: Animação, Stop motion, Narrativa, Estética da Animação. ABSTRACT AESTHETIC INTERFERENCE: TECHNICAL NARRATIVE IN STOP MOTION ANIMATION This dissertation proposes an analytical view on artistic expression rarely addressed in brazilian academic circles: Animation. Considered only a “genre” film, it came before of what is known by “cinema” and is characterized by its technical variety developed over time: Drawing on paper, Stop motion, Pixilation, Rotoscope, 2D and 3D. But even with all the technological advances and the development of its nowadays heavy industry, it still follows the same principles developed by historical figures such as Winson McCay, the Fleischer brothers, Walt Disney, Tex Avery, Norman McLaren and remains the art of giving soul to whom has not one. The objective of this research is to analyze how the technique affects the materiality of visual information complementing and assisting the animation narrative. To that goal, it was developed a case study, in which were selected the following shorts Stop motion animation films: Neighbors (1952, McLaren Norman), From Window to the Cinema (1999, Quiá Rodrigues), The Old Man and the Sea (2000, Alexander Petrov), Adagio (2000, Garri Bardin) and Aria (2001, Pjotr Sapegin). Theses were examined under the concepts of semiotics, the simulacrum, film, narrative, communication theory; and based on information obtained from primary sources and the research office. Thus, it was established how the expression may be presented, by representative and/or symbolic usage of the material (or object) used in the preparation of the image, in producing an animated narrative; andhow the aesthetics variety of these ways of animating definitely affects the result of the final work, often visually helping “to tell the story”. Consequently, the study expands the understanding of the aesthetic richness of the Animation – as art, technology end medium of message. Keywords: Animation, Stop motion, Narrative, Aesthetics of Animation. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 10 1 PANORAMA HISTÓRICO DA ANIMAÇÃO .................................................................... 14 1.1 A HISTÓRIA DA ANIMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE SUAS TÉCNICAS ...... 14 1.1.1 O início ................................................................................................................................ 14 1.1.2 Avanço técnicos .................................................................................................................. 18 1.1.3 Animação experimental .................................................................................................... 26 1.1.4 A Computação Gráfica ..................................................................................................... 30 1.2 O DESENVOLVIMENTO DO STOP MOTION ................................................................... 35 1.3 A ANIMAÇÃO NO BRASIL ................................................................................................ 39 2 A IMAGEM ANIMADA E SUA ESTÉTICA ....................................................................... 44 2.1 A ANIMAÇÃO NO CONTEXTO ARTÍSTICO .................................................................. 44 2.1.1 Considerações sobre a imagem no teatro, na pintura, e no cinema .............................. 44 2.1.2 Considerações sobre a fotografia e as imagens cinematográficas: viva e animada ........... 48 2.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS TÉCNICAS DE ANIMAÇÃO E A VIRTUALIDADE ... 54 3 A NARRATIVA E A ANIMAÇÃO ....................................................................................... 58 3.1 TIPOS DE NARRATIVAS .................................................................................................... 59 3.2 NARRATIVA E NÃO-NARRATIVA NO CINEMA ........................................................... 62 3.3 A NARRATIVA NO CINEMA VIVO E NA ANIMAÇÃO ................................................. 64 3.3.1 A narrativa, o tempo e a história ..................................................................................... 64 3.3.2 Códigos narrativos ............................................................................................................ 70 3.3.3 Funções, personagens e verossimilhança ......................................................................... 73 3.4 IMPRESSÃO DE REALIDADE E A SUSPENSÃO DA DESCRENÇA ............................. 78 3.5 A NARRATIVA ANIMADA NO STOP MOTION ............................................................... 81 4 ANÁLISE DAS ANIMAÇÕES – ESTUDO DE CASOS ..................................................... 85 4.1 VIZINHOS (1952), DE NORMAN MCLAREN ...................................................................... 85 4.1.1 A técnica e o filme .................................................................................................................... 85 4.1.2 A narrativa e os elementos de espetáculos ...................................................................... 87 4.1.3 A multiplicidade estética do Pixilation ............................................................................ 94 4.2 DE JANELA PRO CINEMA (1999), DE QUIÁ RODRIGUES .......................................... 95 4.2.1 O cinema e o filme ............................................................................................................. 95 4.2.2 A narrativa e suas referências cinematográficas ............................................................ 96 4.2.3 O reflexo cultural na estética da animação ..................................................................... 104 4.3 O VELHO E O MAR (1999), DE ALEXANDER PETROV ............................................... 107 4.3.1 A história de Hemingway e a animação .......................................................................... 107 4.3.2 A pintura, a narrativa e o tempo ...................................................................................... 109 4.3.3 A percepção da animação na pintura sobre vidro...... .................................................... 114 4.4 ÁDAGIO (2000), DE GARRI BARDIN ............................................................................... 118 4.4.1 O origami e a animação .................................................................................................... 118 4.4.2 A narrativa, o simbólico e o material ............................................................................... 120 4.4.3 A unidade plástica e a animação ...................................................................................... 125 4.5 ÁRIA (2001), DE PIOTR SAPEGIN .................................................................................... 127 4.5.1 A ópera e a animação ........................................................................................................ 127 4.5.2 A narrativa, os bonecos e a sua anima ............................................................................. 129 4.5.3 A materialidade na animação com bonecos .................................................................... 135 CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 139 A SIMULAÇÃO NA ANIMAÇÃO ............................................................................................. 139 A REPRESENTAÇÃO NA ANIMAÇÃO ................................................................................... 141 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 144 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 146 LIVROS E DISSERTAÇÕES. ..................................................................................................... 146 REVISTAS E CATÁLOGOS ...................................................................................................... 150 TEXTOS ON-LINE E DE MÍDIA ELETRÔNICA ..................................................................... 150 ENTREVISTAS ........................................................................................................................... 153 FILMES ........................................................................................................................................ 153 ANEXO – A ................................................................................................................................ 166 10 INTRODUÇÃO Assim como a cor determina uma sensação visual, a forma e a textura também a emolduram, materializando a intenção do artista e a sua mensagem. Muito se tem escrito sobre as técnicas, as novas tecnologias, os novos equipamentos e softwares de animação e efeitos. Também há muitos livros sobre a linguagem cinematográfica, o estudo do movimento, da luz, das técnicas de animação, de como se construir um personagem, entre outros tecnicismos. Porém, muito pouco se sabe, efetivamente, sobre como se processa o impacto da imagem animada, em termos de empatia artística do espectador/receptor, além de como e quais são as influências dos meios materiais, empregados na criação dessas imagens e no “contar histórias”. A linguagem estética da Animação está diretamente vinculada à técnica utilizada para se animar. InterferênciasEstéticas: a técnica Stop motion na narrativa de animação se apresenta com o objetivo de analisar como a materialidade da técnica influi na informação visual, complementando e auxiliando à narrativa animada. Como a expressividade pode ser apresentada pelo uso físico, representativo e/ou simbólico do material (ou objeto) utilizado na elaboração da imagem, na produção de uma narrativa de animação. Neste processo será analisada a estética da técnica de animação, tendo em vista a sua narrativa, com uma consequente metodologia de avaliação de formas e possibilidades estéticas – opção de análise que poderá ser um meio de aprofundamento da representatividade de uma produção animada, para que forma (plástica) aliada ao conteúdo (narrativa), alcancem o seu objetivo (a empatia do público). Por consequência, somente as produções que apresentam determinadas características, servem de recorte para a pesquisa – destacando assim que não foram levadas em consideração questões sobre seus autores. O que importa é o resultado visual das obras, a forma pela qual os seus animadores/diretores o obtiveram, e não o trabalho dos animadores enquanto criadores. Por suas características, entre as diversas técnicas de animação, o recorte foi sobre a técnica chamada Stop motion. Este termo é comumente conhecido como sendo sinônimo de animação de bonecos, porém, nesta pesquisa, é considerada a sua significação primeira, isto é, a animação quadro a quadro, com parada-movimento do objeto a ser animado, independe da natureza deste objeto – seja ele boneco, tinta, barbante, pessoas. Assim sendo, a fim de comprovar que a expressividade da ação pode ser representada por materiais diversos, foram escolhidas cinco animações representativas do Stop motion (e 11 não todas). Por uma questão de necessidade de limitação do projeto, por ser impossível a análise de todo esse universo e pela razão de que, nem todas as obras animadas utilizam a materialidade de forma expressiva. As que também a utilizam, e não estão inseridas nos estudos de casos, são representadas ou possuem análogos nos recortes selecionados. Estes foram: • Pixilation (animações de pessoas) e animação de objetos: Vizinhos1 • animação de bonecos: De Janela pro Cinema ; 2 e Ária3 • pintura sobre vidro: O Velho e o Mar ; 4 • animações de objetos (papel e brinquedos): Adágio ; 5 As técnicas de animação de areia e recorte não foram selecionadas já que, de alguma forma, possuem similaridade com alguma técnica de animação selecionada (no caso da animação de areia, é semelhante à pintura sobre vidro; e animação de recorte com animação de objetos que utiliza papel). Em relação à Pin-screen não foi encontrado nenhuma obra onde a materialidade fosse utilizada como expressão – até porque, a técnica trabalha indiretamente com o seu material, os pinos, isto é, ela é o resultado da variação das sombras formadas por eles. e Ária. Todos os recortes utilizados para análises fazem parte da “classe” das chamadas animações experimentais com estilo narrativo, onde a técnica individual, o desafio artístico e a autoexpressão estão mais presentes na procura de uma nova ótica, na exploração do meio/técnica. Com esta escolha tem-se um material rico em expressividade pictórica, propício à análise, porém com um referencial fixo – a narrativa – estratégia que possibilita uma melhor avaliação e elaboração de conjecturas sobre o objeto de estudo, pois este apresenta um objetivo definido (a intenção do autor é conhecida), diferentemente das animações chamadas abstratas, onde há uma ausência de narrativa “lógica”. Esta dissertação se apresenta dividida em quatro capítulos. O primeiro é destinado ao panorama histórico da animação e o desenvolvimento de suas técnicas, resultado de uma pesquisa de gabinete utilizando diversas fontes bibliográficas. Do ponto de vista do 1 Produção canadense de 1952, direção de Norman McLaren. É considerada uma das obras-primas do animador escocês, enquanto trabalhou no National Film Board do Canadá. A animação é uma crítica à Guerra Fria. 2 Animação brasileira de 1999, de Quiá Rodrigues, premiada no Festival de Cinema de Brasília, no Anima Mundi e Prêmio Especial do Júri de Gramado (todos em 1999), entre outros (além de participar dos festivais de Cannes e Biarritz, ambos em 2000). Ela rememora nostalgicamente ícones da história do cinema mundial. 3 Animação russa de 2001, de Piotr Sapegin que, se aproveitando dos bonecos dos personagens da animação, produziu um chocante suicídio de em sua versão de Madame Butterfly. 4 Produção russa de 1999, de Alexander Petrov; ganhou o Oscar de Melhor Curta-metragem de Animação de 2000, utilizando a complexa técnica de Pintura sobre vidro. Baseado no romance homônimo de Ernest Hemingway. 5 Animação russa de 2000, de Garri Bardin, utiliza como trilha sonora a música “Adagio em Sol menor”, de Tomaso Albinoni, e é uma produção introspectiva, mas contundente. Utilizando inteligentemente a materialidade do papel, Bardin nos faz pensar sobre a intolerância e a violência, contra as diferenças e contra o que não se entende. 12 desenvolvimento das técnicas de animação foram fundamentais as abordagens, entre outras, de Charles Solomon6 – ensaísta, crítico e historiador de Cinema de Animação, respeitado internacionalmente, autor de diversas publicações sobre a história da animação e, por isso, fundamental, com seu trabalho sobre o tema; de Paul Wells7, diretor de animação da The Animation Academy e professor da Loughborouh University School of Art & Design, Inglaterra, com a sua visão panorâmica sobre o assunto; de Barbosa Junior8, Mestre em Multimeios, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, cineasta de animação e professor do Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba, com sua análise focada no desenvolvimento da computação gráfica; e a de Ray Harryhausen9 No segundo capítulo é apresentado o resultado das pesquisas de gabinete e de campo (algumas obras animadas e de ação viva), pautado em investigações semióticas, analisando o tema da estética animada, com considerações sobre questões plásticas, cinematográficas e virtuais. Neste sentido, a obra de Roland Barthes , conhecido animador de Stop motion e técnico de efeitos especiais para o cinema, como base para as considerações sobre a técnica. 10 foi essencial para as análises da construção e do tempo para a imagem (com o foco na imagem animada), assim como os trabalhos de Jean Baudrillard11, com sua análise sobre a simulação, objetivo intrínseco ao ato de animar; e de Edmond Couchot12 O terceiro capítulo é destinado ao segundo ponto deste trabalho, a narrativa na animação. Questões sobre a narratividade, a verossimilhança, a impressão de realidade e a suspensão da descrença são abordadas tendo em vista o universo da animação. Seguindo esse princípio, os trabalhos de Jacques Aumont , muito esclarecedor com as suas análises sobre a mecanização e a virtualização da imagem. 13 serviram como modelos de análise e de elaboração teórica, substanciados pelas análises cinematográficas de Sergei Eisenstein14 e narratológicas de Tzvetan Todorov15 6 The history of animation: enchanted drawings. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1989. . Também foram considerados os trabalhos de Christian 7 Fundamentals of animation. Londres: An AVA Book, 2006. 8 Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora SENAC, 2005. 9 A century of Stop motion animation: from Méliès to Aardman. New York: Watson-Guptill Publications, 2008. 10 O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições70, 2009. 11 Simulacra and simulation. Ann Arbor: University of Michigan, 1994. 12 Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André (Org.). Imagem máquina: a era dastecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. 13 A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 1990; e A imagem. Lisboa: Ofício, Arte e Forma, 1990. 14 O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002. 15 As estruturas narrativas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1970. 13 Metz16 No quarto capítulo são apresentadas as análises dos estudos de casos, das cinco animações já mencionadas, embasadas nas pesquisas de gabinete – já referenciadas, e outras que se fizeram necessárias de acordo com os objetos de estudo , aglutinadores entre os dois assuntos, cinema e narração. 17 Fechando a dissertação, apresenta-se também um texto conclusivo sobre o conjunto do trabalho de pesquisa, juntamente com as suas referências bibliográficas e audiovisuais, além de um DVD com as animações analisadas – Anexo-A. –, conjuntamente com as pesquisas de campo através das obras e das entrevistas com seus autores e/ou reportagens, além de depoimentos. Devido as variedades plásticas e de narrativas desses objetos, as análises serão semelhantes, mas não seguirão a mesma formatação, observando e destacando exatamente a diversidade que se apresenta ao longo do processo. Outra observação que se faz necessária é sobre os títulos das obras audiovisuais citadas18 16 A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972; e Linguagem e Cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980. . Estes foram traduzidos para o português, em sua grande maioria. Mas para as obras já conhecidas por seus títulos de origem, estes foram mantidos. 17 Os trabalhos de Andrei Tarkovski (Esculpir o tempo. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. 2002); de Henri Bergson (The perception of change. In: ________. The creative mind: an introduction to metaphysics. Nova York: Dover Publications Inc., 2007; e Da seleção das imagens. In: ______. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda. 1999); de Gilles Deleuze (A imagem-movimento e suas três variedades - segundo comentário de Bergson In: ______. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1983; e Para além da imagem-movimento. In: ________. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasilieinse, 1a. ed., 1990); e de Patrice Pavis (Outros elementos materiais da representação. In:_____. A análise dos espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996) foram extremamente úteis na compreensão da obra de arte e do trabalho do diretor cinematográfico; da importância do tempo, da percepção e da sua vinculação com a memória, assim como a composição dos elementos de representação de cena. 18 Constam nas “Referências” somente as obras que serviram de referência estética para a pesquisa, e não todas as obras citadas. 14 1 PANORAMA HISTÓRICO DA ANIMAÇÃO Neste primeiro capítulo são apresentados os principais desenvolvimentos técnicos e estéticos da história da animação. O objetivo deste é o de orientar a atenção em relação a esta arte, a fim de compreender a importância do seu desenvolvimento tecnológico (e artístico) e de como este interfere no próprio ato da criação e na ação de animar. Dados históricos, personagens e animadores serão citados de acordo com a sua importância dentro do contexto apresentado – e não como elementos de um texto histórico sobre a história da animação. Dentro deste foco, a informatização dos meios da produção animada será considerada como um avanço tecnológico, dentre muitos que ocorrem ao longo do tempo e que influenciam essa arte. O que é observado é a sua aplicação na área da animação, a forma como esta aconteceu e que mudanças ocasionaram no processo de animar. Na parte destinada à animação no Brasil, como país recebedor desta arte, serão abordados também os fatos mais relevantes a respeito da animação, a fim de compreender como tem sido o desenvolvimento da arte no país (nos últimos anos, felizmente, de forma mais profissional). 1.1 A HISTÓRIA DA ANIMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE SUAS TÉCNICAS 1.1.1 O início A animação talvez seja a manifestação artística onde a interferência técnica – seja ela do tecnicismo, de equipamentos ou do surgimento de novos materiais – tenha sido o elemento mais determinante no desenvolvimento de sua história. No século XVIII, brinquedos mecânicos como o taumatroscópio1, o fenaquistoscópio2 1 Consiste em um disco de papel com duas tiras de barbante nas laterais e com um desenho de cada lado do disco. Quando os barbantes são girados tem-se a visão da coexistência das duas imagens num único plano. , 2 Primeiro brinquedo que criava a ilusão de movimento. Inventado pelo cientista belga Joseph Plateau, é formado por dois discos de papel, ligados por meio de uma haste fixada no centro dos discos. Um deles possui uma sequência de imagens em torno do eixo e o outro possui frestas na mesma disposição. Quando são girados, o espectador vê as imagens em movimento através das frestas do segundo disco. 15 o zootrópio3 e o cineógrafo4 – utilizavam a persistência retiniana5, representando assim uma espécie de semente para o cinema de animação. Os temas eram apenas pequenas sequências cíclicas. Em 28 de outubro de 1892 (três anos antes de o cinematógrafo ser apresentado pelos irmãos Lumière), no Musée Grévin, em Paris, Émile Reynaud começa a divertir o público, com o seu “Teatro Ótico”, um instrumento chamado Praxinoscópio (um tipo de lanterna mágica6 ), que fornecia as imagens projetadas numa parede de um ambiente escuro – il. 01. As pequenas narrativas tinham início, meio e fim, mas eram muito simples. Il. 01 - Ilustração da exibição do “Teatro Ótico”. Em 17 de agosto de 1908, no Théâtre du Gymnase, também em Paris, o cartunista francês Émile Cohl apresentou o seu desenho animado Fantasmagorias7 , o primeiro a ser exibido em um projetor de filmes moderno. Cohl desenha com nanquim sobre papel, simplificando o traço, mas mantendo a sua expressividade, e começa a utilizar um equipamento que deu origem à mesa de luz – o que permitia o redesenho exato a cada folha de papel. Assim, como explica Alberto Barbosa, [...] o controle da relação entre os desenhos proporcionado por esse dispositivo vai permitir a racionalização da distribuição destes na linha do espaço-tempo da ação o que certamente levou Cohl à descoberta de que poderia fotografar cada desenho duas vezes, sem implicar a perda de continuidade do movimento8 3 Trata-se de um tambor giratório com frestas em toda a sua circunferência, cujo interior montavam-se sequências de imagens em papel. Ao girar o tambor, olhando-se através das aberturas, assiste-se ao “movimento” das imagens. . 4 O cineógrafo foi inventado em 1868, e nada mais é que o conhecido Flipbook. 5 O fenômeno foi descrito pelo médico Peter Mark Roget, em 1826, mas foi o físico Joseph-Antoine Plateau quem mediu pela primeira vez o tempo da persistência retiniana (1830). Ele consiste na capacidade da retina em manter uma imagem por aproximadamente 1/16 de segundo, mesmo depois da mudança desta. 6 Invenção do século XVII, de Athanasius Kircher, era uma caixa com uma forte luz e um espelho curvo, que possibilitava a projeção de imagens desenhadas em uma lâmina de vidro. 7 Émile Cohl, na década de 1880, liga-se aos Incoerentes, grupo de filosofia iconoclasta, antiburguesa, antiacadêmica e antiracional, considerado anarquista da arte, estética que influenciou o seu trabalho. 8 BARBOSA, Alberto L. Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 50. 16 Tal fato foi um avanço considerável, já que o trabalho e o tempo eram reduzidos pela metade. Em termos artísticos, Cohl unia imagem e narrativa com originalidade,aproveitando- se das linhas do desenho. Fez uso de metamorfoses9; utilizou efeitos de zoom – com detalhamento de uma ação e quando as câmeras ainda não permitiam esse recurso –; utilizou máscara fotográfica – precursor do chromakey e do atual canal alfa10 Seu amigo George Méliès –, desistindo da câmera de manivela para combinar desenho e ação filmada, passando a utilizar a de obturador elétrico, eliminando a cintilação da imagem. 11 Uma outra corrente de estudiosos afirma que o primeiro desenho animado foi produzido em 1906, pelo inglês James Stuart Blackton – Fases Humorísticas de Faces Engraçadas, il. 02 – com personagens desenhados em um quadro-negro e que também utilizava o Stop motion com uso de recortes. inicia também a trucagem no cinema, o recurso da exposição múltipla de negativos, os recursos do teatro, pintura sobre película (mais tarde desenvolvida por Norman McLaren), sendo o primeiro a utilizar o Stop motion, entre outros efeitos, presentes em sua obra-prima, Viagem à Lua, de 1902. Il. 02 - Still de Fases Humorísticas de Faces Engraçadas (1906). Porém, o quadrinista Winsor McCay foi um dos primeiros a realmente produzir na técnica – desenho sobre papel – desenhando em full-animation (cenário e personagens desenhados na mesma folha), criando personagens e ambientes bem mais sofisticados (abrindo caminho para Walt Disney), deixando um legado admirável. Vale destacar os curtas-metragens: O Naufrágio do Lusitânia (1918), o primeiro documentário em animação; How a Mosquito Operates (1912); Gertie, a Dinossauro (1909) – il. 03 – e Little Nemo (1911). O sucesso 9 Termo utilizado para designar o efeito de transformação de um desenho ou imagem em outro. 10 Chromakey é o termo utilizado para designar o efeito da imagem filmada sobre um fundo verde ou azul, que na etapa de edição é substituído pelo fundo final da cena. Canal alfa é a capacidade que alguns programas ou imagens possuem para trabalhar com a transparência, com a possibilidade de apresentação de outros fundos. 11 Mágico de profissão, diretor do “Teatro Robert Houdin” – marcado pela primeira exibição de cinema dos Lumière. 17 desses personagens marcou definitivamente os principais enfoques da animação: a exploração do absurdo, animais e objetos como personagens e o chiste. Il. 03 - Still de Gertie, a Dinosauro (1909). Mas a Arte dos Quadrinhos ainda dividiu muitos outros artistas com a Animação. Krazy Kat, personagem criado pelo americano George Herriman, era originalmente um personagem de quadrinhos, do New York Evening Journal, publicados entre 1913 e 1943. Em 1916, seu editor iniciou a produção de curtas-metragens baseados em suas tiras. Com um traço bem estilizado, já apresentava a conhecida relação gato e rato. Já o gato Félix é o mais famoso exemplo de personagem animado, tendo ficado conhecido como o primeiro personagem duradouro, difundindo a animação. Sua primeira aparição foi em um curta de 1919, Folias Felinas. Criação do cartunista americano Pat Sullivan, foi animado por Otto Messmer, com um traço simples, utilizando recursos das histórias em quadrinhos, como balões e onomatopéias, com um design mais semelhante à estética de Émile Cohl. Sua popularidade só diminuiu com o surgimento do Mickey Mouse. Outras técnicas foram surgindo logo no início do século passado, abrindo um vasto campo de experimentações e de variedades de imagens. O Stop motion com bonecos, além de ter sido utilizado por Méliès, também foi utilizado por Willis H. O'Brien, que criou bonecos flexíveis de borracha e filmou, em 1915, O Dinossauro e o Elo Perdido, sendo o precursor da Clay Animation ou Stop motion com Massinha, 18 anos antes da primeira versão de King Kong12 (1933), que teve muitas sequências realizadas em stop motion, inclusive pelo próprio O'Brien. 12 Direção de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. 18 1.1.2 Avanços técnicos No mesmo período (início do século XIX), surgiram duas tecnologias determinantes para o desenvolvimento do cinema como conhecemos hoje e para a própria arte da animação: a fotografia13 e o cinematógrafo14 Outros também perceberam as potencialidades do mercado de animação. Um desses foi John Randolph Bray. Como ilustrador de jornal ele entendia que o sucesso da produção de animação só poderia acontecer se houvesse como concorrer com o cinema-vivo . Em 28 de dezembro de 1895, no Salão Grand Café, em Paris, quando os irmãos Lumière fizeram uma apresentação pública de Chegada de um Trem a La Ciotat, atraíram uma maior atenção e interesse, já que o cinema-vivo – termo utilizado para denominar as obras cinematográficas de ação-viva – apresentou um sistema de produção mais rápido, logo atingindo o patamar de indústria. 15. Sua estratégia consistia em retirar da produção de animação detalhamentos exagerados, valorizar a produção em detrimento da arte individual, proteger o processo através do registro de patentes e de um sistema eficiente de distribuição e marketing. Com isso surgiu uma linha de montagem, modelo para os estúdios de animação, propiciando um alto grau de uniformidade gráfica, além do surgimento espontâneo de códigos visuais que contribuíram para uma “identificação popular com o gênero”16 Mas o grande avanço se deu em 1914, quando o animador Earl Hurd utilizou folhas de celuloide (acetato) para criação dos desenhos. Com isso houve a separação entre cenário e personagem, flexibilizando o processo e abrindo novas possibilidades técnicas e estéticas. . Para simplificar a produção, Bray imprimia o cenário em folhas de papel, as mesmas onde seria desenhado o personagem (área que era preenchida de branco). Já Bill Nolan (que trabalhava em outro estúdio), utilizava cenário desenhado em uma folha comprida, movimentada a cada captura da imagem, recurso que servia para criar a ilusão do caminhar do personagem, que “andava sem sair do lugar”. No mesmo ano, Max Fleischer, caricaturista austríaco que vivia nos EUA, inventa a Rotoscopia – desenho sobre os fotogramas de uma ação filmada, il. 04 – enquanto trabalhava nos estúdios de John Bray. Neste período cria o seu primeiro personagem de sucesso, o palhaço 13 Um marco deste desenvolvimento foi a cronofotografia (1892), um sistema desenvolvido por Jules-Éttienne Marey, fisiologista francês, através do qual era possível realizar fotografias em série, a partir dos experimentos de Eadweard Muybrigde, fotógrafo inglês que fez tomadas fotográficas do galope de cavalos para análise de movimento. 14 Cinemato (movimento) + grafo (escrita), aparelho de registro do movimento. Desenvolvido pelos irmãos Lumière. 15 “Lançados à proporção de dois programas novos por semana”. Cf. CRAFTON, Donald apud BARBOSA, A. L. Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 63. 16 BARBOSA, A. L., op. cit., p. 64. 19 KoKo. Junto com seu irmão (Dave) funda em 1919, a Out of the Inkwell, Inc., quando passam a misturas as animações de KoKo com imagens filmadas. Não foram os primeiros a realizar tal feito, mas desenvolveram o processo de forma criativa e bem integrada, utilizando fotografias em preto e branco (de paisagens e objetos), como cenários, e desenhando sobre o celuloide. Em 1924, Max cria a famosa bolinha dançante, que acompanhava as letras das canções dos desenhos animados17. Os irmãos Fleischer desenvolveram um estilo alternativo ao padrão Disney, com personagens animados de grande sucesso, como Popeye (comprado de Elzie Segar), Superman (comprado pela Paramount de Jerry Siegel e Joe Schuster) e Betty Boop18 – il. 04. Em 1939, eles produzem o longa-metragem As Viagens de Gulliver – livre adaptação do romance de Jonathan Swift – mas não obtiveramo mesmo sucesso que Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt Disney. Il. 04 - Desenho para o pedido de patente da mesa de rotoscopia, de Fleischer, e de Betty Boop. Outro avanço tecnológico importante foi a sonorização dos filmes, a partir de 1926, havendo a necessidade da alteração da velocidade de exibição da película, de 16 para 24 quadros por segundo, para sincronia do som com a imagem. Para a animação isso resultou em um maior número de desenhos/segundo, com maior custo e o aumento do tempo de produção. Mas nessa época também surgia uma das personalidades determinantes para o desenvolvimento da produção animada: Walt Disney. Empreendedor, com forte senso estético e empresarial, sabia o que o público queria ver. Sob o seu comando surgiram artistas 17 Este artifício gráfico auxiliou na alfabetização do público americano, que naquela época não era completa. 18 Um marco no cinema de animação. Por sua sensualidade provocante chegou a ser proibida. Primeiro sua vestimenta, em 1934, e depois definitivamente em 1939, pela perseguição do Comitê Moralizador Americano. 20 fabulosos que influenciaram o mercado da animação – exemplo disso foi o posterior surgimento da UPA (United Productions of America). Foi seu trabalho que estabeleceu os conceitos fundamentais de animação19 , talvez a sua mais importante contribuição para a arte. Conforme observa Alberto Barbosa, Esses novos procedimentos para animação foram surgindo gradualmente. Eram estudados isoladamente e, então, nomeados. Os animadores continuaram sua pesquisa buscando estabelecer a perfeita relação entre um desenho e outro a ponto de conseguir resultados previsíveis. Foram analisados, aperfeiçoados e discutidos. [...] Com isso a animação passava a dispor de um conjunto de regras básicas, uma linguagem com sua própria sintaxe, que, adequadamente compreendida e empregada, possibilitava a obtenção de movimentos realisticamente convincentes, uma animação de boa qualidade20 . Era preciso criar movimentos consistentes e personagens com personalidade (e não apenas as gags tão comuns nos anos 20), e isso não era possível a partir do nada. Disney dizia: “Quando nós consideramos um novo projeto, nós realmente o estudamos... não de forma superficial, mas tudo sobre ele”21 19 São normas que devem ser seguidas para a fiel representação dos movimentos. Algumas dessas representações já haviam sido conceitualizadas em livros e periódicos dos anos 20 como A Condensed Course in Motion Picture Photograph, de Carl Gregory e Animated Cartoons: How They are Made, Their origin and Development de Edwin G. Lutz (CRAFTON, D.. Before Mickey: the animated film 1898-1928. Chicago: The University of Chicago Press, 1993, p. 201), mas foi com Walt Disney e colaboradores que estes conceitos foram melhor aplicados e difundidos. São eles: Achatamento (quando o personagem ou partes de seu corpo é (são) achatado(s) ou alongado(s)); Antecipação (resultado de uma série de pré-movimentos secundários que resultam no movimento principal); Aceleração e desaceleração (descrição de todo processo de movimento que se inicia com a inércia à parada do movimento); Staging (representação do personagem, suas expressões faciais e corporais); Ação Direta ou Quadro a quadro (a primeira é quando a animação é contínua, desenhada seguidamente; na segunda, quando o tempo do movimento é calculado, desenhando-se os quadros- chave e depois a intervalação); Ação sucessiva ou sobreposta (quando há vários movimentos decorrentes de um principal); Ação Secundária (ações que acontecem paralelamente à ação principal); Contagem de tempo (12 desenhos para 24, ou 24 para 24 frames); Exagero (nos movimentos é desejável e necessário para visualizá-lo como verídico e real); Desenho sólido (a representação da perspectiva no desenho sempre enriquece a imagem); Arcos (todo movimento do corpo que parte de um eixo); Sedução Estética ou Apelo (criação de empatia com o público). . Seu estúdio era um celeiro de aprendizagem sobre o movimento, com estudos sobre imagens filmadas, visitas a zoológicos, fazendas, observação de cadáveres de animais, maquetes de veículos e muitos esboços. A barra de pinos inferior, na mesa de luz, foi um dos artifícios adotados no sistema de trabalho de Walt Disney. Com isso o manuseio das folhas desenhadas se tornou mais fácil, e era possível trabalhar com um maior número, fazendo-as “rolar” rapidamente (semelhante ao movimento do flipbook), o que já 20 Ver em: Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 115-116. 21 FRANK, Thomas e JOHNSTON, Ollie. The ilusion of life: Disney animation. New York: First Hyperior Edition, 1981, p. 47. 21 permitia visualizar o movimento desenhado e alterar o que se desejassse. Se ainda houvesse algum erro, este seria detectado na próxima etapa introduzida por Walt Disney: o pencil test (teste de lápis, esboço) – que consistia em fotografar, com filme preto e branco barato, as sequências desenhadas pelos animadores, antes de sua finalização. Isso auxiliou na fiel representação do movimento e na diminuição do tempo de produção, pois os erros eram detectados antes da finalização. Surgiu o profissional de clean-up, responsável pela limpeza dos desenhos, que eram passados ao celulóide, com traços únicos e bem definidos. Il. 05 - Still de Steamboat Willie (1928), de Walt Disney e Ub Iwerks, e o cartaz de Silly Symphony: Flowers and Trees (1932). Mickey, o personagem animado mais famoso de Walt Disney, foi criação de Ub Iwerks, seu primeiro sócio e surgiu em 18 de novembro de 1928, no curta-metragem Steamboat Willie – il. 05. A primeira animação sonora do cinema22 marca a importância que o som e a música viriam ter nas obras de Disney. De 1929 a 1939 ele produziu a série Silly Symphonies, composta de curtas com trilha sonora, quase sem diálogos, visando o mercado internacional. Flowers and Trees foi a primeira animação colorida em Technicolor, tecnologia de três cores primárias em três tiras de negativo – a primeira a ganhar o Oscar de Curta-metragem, il. 05. Mas o sistema onerou a produção, pois as tintas (coloridas) foram reformuladas para aderirem ao celuloide, que depois de lavados ficavam manchados23 22 Na verdade não foi o primeiro, mas foi o que melhor sincronizou imagem e som e acabou ficando reconhecido como seu precursor. SMITH, David. R. apud BARBOSA, A. L. Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 104. , não podendo mais ser reaproveitados. 23 SOLOMON, Charles. The History of Animation: Enchanted Drawings. New York: Wing Books, 1994, p. 49. 22 Ainda dentro da série Silly Symphonies, outro destaque foi Os Três Porquinhos (1933), pois, pela primeira vez, os personagens não se distinguiam pela forma dos seus desenhos, mas pelo seu comportamento – a representação enquanto encenação. Comentário de Chuck Jones: Quando eu o vi, percebi que algo estava acontecendo ali, e que não acontecia antes. Durante vinte anos, tudo o que você precisava, em animação era a ação, e um bom personagem só precisava ser bonito. “Três Porquinhos” mudou isso, provando que não é o visual do personagem mas como ele age que determina a sua personalidade24 . Era a valorização da etapa de lay-out, do processo de animação, quando é definida a concepção gráfica da história. Com isso, surgiu o storyboard, onde toda a animação tinha as suas ações principais desenhadas em pequenos pedaços de papel, presos depois num quadro na parede. Assim todos os participantes do processo tinham a completa noção dos movimentos, do ritmo e do encadeamento visual das cenas, resultando numa produção mais consistente25. Il. 06 - Still de Branca de Neve e os Sete Anões (1937). Mas talvez a mais importante inovação de Walt Disney tenha sido a introdução da câmera multiplano – que lhe rendeu o Oscar de inovação técnica em 1939. Isso porque a representação de qualquer efeito de luz no cenário, ou de perspectiva de movimento, era desenhada. Com o uso da câmera multiplano, cada elemento da cena ficava em um plano distinto, a uma distância diferente da câmera e com iluminação independente. Assim, os planos podiam ser aproximados e afastados da câmera, independentemente e de acordo com a necessidade de cada um. Este equipamento foi utilizado pela primeira vez nas produções de 24 Chuck Jones era então diretor da Warners Cartoon. Ver em: SOLOMON, C., op. cit. 52. Tradução livre. 25 Foi um recurso tão útil que se generalizou na produção audiovisual sendo utilizada até hoje. 23 Branca de Neve e os Sete Anões (1937) – il. 06 – e do curta-metragem O Velho Moinho, lançado um mês e meio antes – que mostra um velho moinho sendo atingido por uma tempestade. A forte ilusão de profundidade, entre a construção e a paisagem no pôr-do-sol e depois com a tempestade, rendeu-lhe mais um Oscar. Branca de Neve foi o primeiro longa-metragem de animação a ganhar um Oscar de Melhor Filme. Com personagens bem construídos e a utilização de trilha sonora específica para cenas importantes, além de muito bem animados (com os conceitos básicos e a Rotoscopia), o filme marcou definitivamente a história do cinema. Com Fantasia (1940) – il. 39 –, Disney também revolucionou a estética. Através de pequenas narrativas independentes, com desenhos de animais, vegetais e objetos animados sincronicamente ao som de diversas músicas eruditas, o filme apresenta um show de imagens e cores que, para a época, foi um assombro. Todas as outras produções animadas posteriores seguiram o mesmo patamar de qualidade, afirmando uma estética perfeita e um amadurecimento da arte. Mas outros avanços introduzidos pelos estúdios Disney merecem destaque: • a fotocopiagem dos desenhos feitos no papel diretamente para o celuloide, o que diminuiu consideravelmente o tempo de produção; • o cinemascope26 • o desenvolvimento da interação da imagem animada e filmada nas produções, Você já foi à Bahia? (1945); Mary Poppins (1964); e 24 anos mais tarde, o ápice, em Uma Cilada para Roger Rabbit (1988) – il. 07 –; onde, pela primeira vez, personagens animados interagem com imagens do cinema-vivo, com simultânea movimentação de câmera. Além disso, apresenta a interação gráfica, simulando a tridimensionalidade do desenho. Até então era utilizada uma imagem desenhada, plana, com a imagem de ação viva filmada. Para a produção, a Industrial Light & Magic , resultando numa imagem com espaço maior para o cenário e alterando a sua relação com os personagens; 27 26 O sistema de filmagem com lentes anamórficas que criavam uma proporção de imagem de 2.66:1, o que resultava numa imagem com uma largura mais de duas vezes maior que a altura (sistema utilizado no filme A Dama e o Vagabundo, de 1955). precisou fotografar, para cada desenho dos personagens, pelo menos três camadas de acetato, com as imagens das luzes e das sombras, subexpostas e fora de foco. 27 Empresa de efeitos especiais de George Lucas. 24 Il. 07 - Stills de Mary Poppins (1964), à esq. e Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), à dir. A diferença de interação, das duas produções, entre as imagens animada e real, é latente. Por outro lado, em termos estéticos e de narrativa, essa supremacia “disneyana” contribuiu para a difusão do paradigma de que filme de animação é “para criança”, além da visão de que a “animação certa” tinha de ser igual a uma produção Disney. Mas como outros estúdios podiam desfrutar dos mesmos recursos técnicos, o caminho da diferenciação eram os estilos alternativos. Um grupo dissidente dos estúdios Disney desbravou uma nova vertente – as séries cômicas animadas. Surgiram as animações da Warner e da Metro-Goldwyn-Mayer, com foco na antropomorfização e no absurdo, onde se destacaram Chuck Jones, Tex Avery, Bob Clampett, Bill Hannah e Joe Barbera28. Com personagens ágeis, exagerados e nem sempre politicamente corretos, tudo acontece muito rápido – corridas, explosões, quedas. São ícones dessa época personagens como Pica-pau29, Tom e Jerry 30 e as séries Looney Tunes – il. 08 – e Merrie Melodies31. Eles foram conquistando plateias (a animação passa a ser um produto da indústria cultural32 ), o que colocou outro rótulo nesta arte: o de que “tem que fazer rir”. Em termos de design, os personagens da Warner eram esguios, desenhados para viverem histórias surreais. Talvez a maior contribuição deixada por esses animadores, tenha sido a capacidade de dominar o tempo na construção das ações, das piadas, nas sequências dos acontecimentos – o chamado timing. 28 Estes dois últimos, posteriormente, criaram o próprio estúdio trabalhando em dupla. 29 Pica-pau (Woody Woodpecker) foi criado por Walter Lantz em 1940. 30 Tom & Jerry é a mais famosa e importante dupla de personagens de animação, criação de William Hannah e Joseph Barbera para a MGM. 31 Looney Tunes e Merrie Melodies foram séries animadas da Warner Bros/MGM, que formaram um dos mais famosos conjuntos de personagens e animadores da história. 32 Expressão usada por Edgar Morin em A Indústria Cultural. In: Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1969. Quando o trabalho criativo torna-se produtivo, adptando-se as exigências da produção industrial, muitas vezes ignorando a existência do autor. 25 Mas a revolução artística amadureceu com a UPA – United Productions of America, em 1945, originária de outro grupo dissidente da Disney: Stephen Bosustow, Saul Bass, Robert Cannon, John Hubley, Pete Burness e Art Babitt. Eles criaram desenhos com um traço mais solto, estilizado, sem o pragmatismo da forma naturalista de Disney. Era a liberdade para experimentar desenho, estética, narrativa e temática, quebrando o estigma de “coisa de criança” e gags a todo custo. Com temática adulta e personagens exóticos, divertiam com uma dose de reflexão. Os desenhos da UPA se baseavam nas conquistas estéticas da arte moderna surgidas a partir do cubismo, com a valorização das formas geométricas e da linha simples, através da forte influência dos trabalhos de Saul Steinberg33 A UPA ganhou o Oscar, em 1951, com Gerald McBoing-Boing – il. 09 –, que conta a história de um menino que troveja e apita ao invés de falar, e que fica rico depois de sair de casa e tornar-se um fenômeno de circo. Mr. Magoo – onde o fundo das imagens era colorido, fazendo ressaltar o desenho essencial dos personagens (o que remete aos trabalhos de Émile Cohl). 34 era um velhinho que enxergava mal e criava inúmeras situações cômicas e embaraçosas para os outros personagens, mas de onde sempre saía ileso. Esse humor inteligente foi uma virada na produção animada que ganhou público. Porém, as animações da UPA coincidiram com o surgimento das séries animadas para TV. O escasso tempo de produção e a necessidade abundante de produtos televisivos resultaram na sobreposição do design sobre a atuação dos personagens e a queda do nível de qualidade das animações – surgindo a chamada animação limitada, que privilegiava a economia, com a utilização de 6 quadros por segundo, com o aproveitamento de desenhos e sequências. Como observa Luiz Nazário, a 33 Desenhista e pintor de origem romena, que viveu nos EUA, onde teve um trabalho de destaque, sempre ligado a uma crítica social. Interrompeu seu trabalho como pintor, para trabalhar comocartunista. 34 De Pete Burness, talvez o personagem da UPA mais conhecido no Brasil, foi a primeira série animada para televisão produzida pela UPA. Il. 08 - Personagens: Tweety (Piu-piu), Wille Coyote (Coiote), Sylvester (Frajola), Road Runner (Papa-léguas), Elmer Fudd (Hortelino), Foghorn Leghorn (Frangolino), Daffy Duck (Patolino), Porky Pig (Gaguinho) e Bugs Bunny (Pernalonga). 26 Ausência de movimentos, diálogos e mais diálogos, rigidez de expressões, ausência de profundidade de campo, repetição mecânica de esquemas e personagens fazem do cartum um passatempo infantil que só contribui para a destruição da fantasia. O grotesco triunfa, adotando a perspectiva adolescente de um mundo deformado e corrompido pela feiúra maciça, pela crueldade absoluta, pela perversidade total35 . Il. 09 - Still de Gerald McBoing-Boing (1951). As décadas de 1960 e 1970 foram o ápice das séries animadas para a televisão, com a entrada das produções de Hannah & Barbera36 e japonesas37 no mercado mundial. Talvez a mais duradoura contribuição da UPA para a arte da animação, tenha sido a ideia de que era possível a expressão artística em trabalhos comerciais. Essa característica libertária da animação foi uma das bandeiras mantidas pela Escola de Zagreb (mesmo depois do enfraquecimento da UPA, depois dos anos 50) e pelo National Film Board do Canadá38 . 1.1.3 Animação experimental O termo animação experimental refere-se praticamente a tudo que é diferente da estética Disney ou de mercado, inclusive em relação aos esquemas de produção. São animações mais artesanais, onde há maior liberdade para a experimentação. Como resultado tem-se a 35 Ver em: Animação norte-americana. In: BRUZZO, Cristina (Coord.) Coletânea lições com cinema. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1996, vol. 4, p. 59. 36 William Hannah e Joseph Barbera dominaram o mercado televisivo de animação. Os Flintstones – primeira animação a ser transmitida em horário nobre –, Os Jetsons (outro retrato da família americana), Zé Colméia e Scooby-Doo são seus personagens mais famosos. 37 Entre as séries de maior sucesso da época estão: Astroboy (1963, de Osamo Tezuka); Speed Racer (1967, de Tatsuo Yoshida); Cavaleiros do Zodíaco (1984, de Masami Kurumada). Todos com uma estética característica japonesa e baseados em Mangás. 38 SOLOMON, C. The History of Animation: enchanted drawings. New York: Wing Books, 1994, p. 227. 27 presença mais forte do animador enquanto artista, além de uma estética diferenciada, peculiar a cada novo material ou método empregado. Nesta vertente destacam-se as produções europeias e as do National Film Board do Canadá. A alemã Lotte Reiniger desenvolveu a técnica de animação de silhuetas – a animação de recorte, uma variação do Stop motion – em um dos primeiros longas-metragens de animação39, As Aventuras do Príncipe Achmed (1926) – il. 10. O Stop motion com bonecos também logo despontou no Leste Europeu – rico na tradição de marionetes e do artesanato em madeira. O polonês Wladyslaw Starewicz40 foi um dos pioneiros na técnica, com produções que datam de 1910. Partindo de temas folclóricos, seus filmes já traziam a riqueza de detalhamento, metáforas alegóricas e perfeição de movimentos, características sempre presentes nas obras do Leste Europeu. Na França, o russo Alexander Alexeieff e a americana Claire Parker criaram e desenvolveram a dificílima técnica da tela de alfinetes (Pin-screen). A técnica consiste em uma tela perfurada por inúmeros pinos, que são movidos para cima e para baixo, criando mais ou menos sombras, que fazem surgir as imagens e seus movimentos. Exemplos de suas produções: Une Nuit sur le Mont Chauve (1933) – il. 11 – e En Passant (1944). Outro destaque foi o alemão Oskar Fischinger41 39 O primeiro que se consta é o filme argentino El Apostol, de Quirino Cristiani (1917). , pioneiro na aplicação da arte abstrata no cinema. Trabalhou com som sintético (alteração da banda sonora da película) e com Pintura/Desenho sobre película. São exemplos de seu trabalho: Espirais (1925) e Composição em Azul (1934). 40 O destaque é A Vingança do Cameraman (1910), curta-metragem em que Starewicz animou besouros colocando arames em suas pernas. 41 Foi o animador que mais influenciou Norman McLaren. Il. 10 - Still de As Aventuras do Príncipe Achmed (1926). 28 A produção cinematográfica do Leste Europeu, fortemente censurada, não sofria influência da americana. A cultura local é fortemente percebida nas animações, tanto no design e na técnica, quanto no humor crítico – uma maneira de burlar a censura – com temas voltados para questões sociais e educacionais. O Stop motion foi (e ainda é) a técnica largamente usada no Leste Europeu, influência cultural da região, com tradição no Teatro de Bonecos, na confecção de enfeites, brinquedos infantis e no circo. Jiri Trnka é um exemplo deste domínio, sendo considerado por muitos o melhor animador de todos os tempos. Reconhecido internacionalmente ainda durante a Guerra Fria, teve muitos trabalhos censurados, inclusive sua obra-prima, Mão (1965) – il. 12. Seu trabalho foi um marco na animação mundial e a Tchecoslováquia despontou como “berço” da Animação Stop motion, com a Escola de Praga42 . Il. 12 - Still de Mão (1965), de Jiri Trnka. A Croácia (então Iugoslávia) também se destacou ao ganhar o primeiro Oscar para uma animação de fora dos EUA, com Substituto, de Dusan Vukotic, em 1961, apresentando um design criativo ao estilo UPA. O estúdio croata, fundado em 1951, se tornou mundialmente respeitado e com estilo conhecido como “Escola de Zagreb”. Nele era comum 42 E com o Jiri Trnka Studio (1947) e com o Studio Bratri v triku (1945) – todos três fundados por Trnka. Este último é o mais antigo estúdio tcheco, onde Brestilav Pojar, Jiri Brdecka e Zdenek Miler participaram da sua fundação. Il. 11 - Still de Une Nuit sur le Mont Chauve (1933), de Alexander Alexeieff e Claire Parker. 29 a prática dos animadores escreverem, planejarem e dirigirem os próprios trabalhos, resultando numa unidade estético-narrativa. Com qualidade artística, comunicabilidade, explosão de cores, música, agudez, refinamento e humanidade, suas histórias sempre acreditam na possibilidade de um mundo melhor. Na Rússia (então União Soviética) foi criado o Soyuzmultfilm Studio43, feito que na época atraiu os melhores profissionais do país, que preferiram criar animações infantis a trabalhar com a propaganda do governo. Stalin, admirador de Walt Disney, restringiu a produção das animações a desenhos animados. Com Khruschev no poder, em 1957, eles passam a produzir também em Stop motion. Dois famosos personagens infantis que merecem destaque são Cheburashka44 e Krokodil Gena – il. 13. Com a Perestroika, em 1988, surgiu o primeiro estúdio de animação privado da Rússia, o Pilot Studio, com forte influência da Escola de Zagreb. Deste estúdio saíram profissionais reconhecidos internacionalmente, como Igor Kovalyov (diretor artístico da série americana “Os Anjinhos”) e Alexander Petrov (diretor de O Velho e o Mar, 1999). Do outro lado do mundo, em 1939, surge o National Film Board do Canadá, uma instituição governamental de serviço cultural, atualmente em plena atividade. Em 1942, Norman McLaren é convidado por John Grieson, também escocês, a trabalhar na instituição. Ele modificou e desenvolveu todas as técnicas de animação existentes, estudando a banda sonora e “desenhando” seus próprios sons e animações diretamente na película. Com Vizinhos 43 No início da década de 30 houve uma exibição dos estúdios Disney em Moscou. O SoyuzmultfilmStudio foi o resultado desta mostra, e se tornou um dos melhores estúdios europeus. 44 Atualmente Cheburashka é a mascote oficial da Seleção Olímpica Russa, o que nos fornece um parâmetro da importância deste personagem de animação para esta sociedade. Il. 13 - Os personagens infantis Cheburashka e Krokodil Gena,criados pela Soyuzmultfilm Studio, Rússia. 30 (1952), produzido em Pixilation45 Com a preocupação de manter a qualidade e a liberdade de criação, aliada à divulgação dos trabalhos de McLaren, o National Film Board se tornou um ponto de atração e referência para todos os animadores do mundo , recebeu o Oscar e o prêmio em Cannes, em 1955. Merecem destaque também: Hen Hop (1942), Le Merle (1958) e Pas de Deux (1968). 46 até a atualidade. 1.1.4 A Computação Gráfica Um dos primeiros registros animados utilizando aparatos eletrônicos foi Abstronics, da americana Mary Ellen Bute, resultado de um conjunto de experiências realizadas na década de 1930 (com o apoio da Bell Telephone Laboratories), que adaptou um circuito eletrônico a um osciloscópio, capaz de “desenhar” com feixes de luz através de controles manuais – il. 14. O próprio Norman McLaren, em 1950, experimentou a criação de imagens através da técnica por ele batizada de filme estereoscópico. Um dos filmes que produziu na técnica foi Around is Around (1951), a primeira animação a apresentar efeito de tridimensionalidade. Esta consistia em misturar a imagem desenhada com a imagem produzida através do oscilógrafo de raios catódicos, aparelho que gerava padrões gráficos. Os desenhos eram fotografados quadro a quadro e “para a obtenção do efeito 3D, utilizava-se uma truca na qual dois projetores exibiam frames alternados. Na acuidade da gravação dessas imagens, duplamente expostas, estava o êxito do processo”47 . Il. 14 - Mary Ellen Bute com o osciloscópio. 45 Variação da técnica de Stop motion, onde pessoas são fotografadas quadro a quadro. 46 Alguns animadores que trabalharam no National Film Board do Canadá: Alexander Alexeieff e Lotte Reiniger, a americana Caroline Leaf (The Street, indicado ao Oscar em 1975, com a sua técnica de animação Stop motion com areia); os portugueses Abi Feijó e Regina Pessoa, além dos brasileiros, Roberto Miller e Marcos Magalhães. 47 BARBOSA, A. L. Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 95. 31 Mas “a Computação Gráfica é a arte e a ciência em que o computador é incorporado no processo de criação e apresentação visual”48. Essa definição se confirma nos trabalhos dos irmãos John e James Whitney que, nas décadas de 1950 e 1960, produziram imagens utilizando computadores reciclados49, usados para o controle de canhões antiaéreos. John produziu animações abstratas e tipográficas reunidas numa coletânea, Catalog (de 1950, lançado em 1961, tinha sete minutos). Um trabalho com essa “tecnologia” foi o realizado com o desenhista Saul Bass: a sequência animada para a abertura do filme Um Corpo que Cai50 (1958). No trabalho de James, Lapis51 (1965) – il. 15 –, que durante três anos “pintou milhares de pontos em placas de vidro que eram montadas em camadas”52 , o computador controlava as rotações do eixo da truca e os movimentos de câmera. Il. 15 - Still de Lapis (1965). Mas uma das primeiras interações gráficas computadorizadas foi no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço53 (1968), na cena em que a nave acelera e cria uma deformação no espaço- tempo. O efeito foi obtido com o sistema Scanimate, um dos primeiros com interface “amigável” e precursor dos atuais programas de edição de vídeo. Consistia na conversão de um desenho em sinais elétricos (digitalização), com acesso via monitor. Através de um painel de controle, a imagem poderia ser rotacionada, deformada, explodida, texturizada, etc54 Porém, três avanços tecnológicos foram fundamentais para a animação computadorizada: . 48 KERLOW, Isaac V. e ROSEBUSH, Judson apud BARBOSA, A. L., Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p.162. Grifo feito pela autora. 49 Computadores ainda analógicos, computadores não programáveis. Ibid., p. 202. 50 Direção de Alfred Hitchcock. 51 “Em Lapis a configuração de 250 pontos cai e dança calendoscopicamente, através de organizadas rotações de câmera e filtros de cor”. BECK, Jerry (Ed.). Animation art: from pencil to pixel. Londres: Flame Tree Publishing, 2004, p. 217. Tradução livre. 52 BARBOSA, A. L., op. cit., p. 268. 53 Direção de Stanley Kubrick. 54 Ibid., p. 252-253. No funcionamento do Scanimate percebe-se claramente a aplicação do mesmo princípio da câmera multiplano de Disney, e da manipulação dos elementos como na técnica de recorte. 32 a pintura digital, os elementos de controle do movimento e os ambientes tridimensionais. A pintura digital surgiu em 1973, com o Superprint, da Xerox, um conjunto integrado de computador e programa. Possuía uma caneta digital e um menu, onde era possível escolher o pincel para o traço e sua cor, além de ter a capacidade de 8bits55 e resolução de 640 x 480 pixels. Mas o sistema de criação de cores era baseado na mistura de vermelho, azul e verde (o RGB, ou cores luz). Alvy Ray Smith desenvolve então o sistema baseado em matiz, saturação e brilho da cor (o HSV, hue, saturation and value, em inglês) e, depois, trabalhando na New York Institute of Technology, amplia a profundidade de cor para 24 bits, criando o algoritmo para fusão de cores na tela, incorporando o efeito de transparência. Il. 16 - Still de Hunger (1974). Os controles de movimento para a animação digital vieram do Canadá, com a animação por keyframe56 Já a imagem tridimensional começou a ser pesquisada em 1960, com a Boeing Aircraft Company, nos desenhos de seus modelos de aeronaves. Maiores evoluções só aconteceram a partir dos anos 70, com o desenvolvimento da tecnologia. (quadrochave) e o controle por esqueleto, desenvolvidos por Nester Burtnyk e Marceli Wein, no início dos anos 70, com auxílio do National Film Board. Nesse sistema o computador fica responsável pela criação dos desenhos de intervalação; e já apresenta a possibilidade do uso de esqueletos, que consiste em uma linha guia (motion paths), tanto para os movimentos, quanto para a estrutura do personagem (os bones, dos atuais programas de animação 2D e 3D). O sucesso desse processo veio com a premiação do júri no Festival de Cannes de 1974 e com a indicação ao Oscar, do curta-metragem de animação Hunger, de Peter Foldès – il. 16. 55 A capacidade em bits tem haver com a profundidade e capacidade de processamento de cor pelo computador. 8 bits tem uma capacidade menor que 32 bits e trabalha com um menor número de cores – 8 bits, com 256 cores; 32 bits, com mais de 16 milhões, além de espaço para o canal alpha (transparência). 56 Quadro-chave, desenho chave dentro de uma sequencia animada, composta pelos quadros-chaves e os desenhos de intervalação, desenhos de transição entre os quadros-chave. 33 A criação de uma imagem 3D consiste de vários fatores: a modelagem, o material, a iluminação, os efeitos de ambiente e os atmosféricos, além de efeitos e movimentos câmera. Exemplos da sua utilização a partir dos anos 70 são as cenas de Guerra nas Estrelas57 (1977), quando são exibidos os alvos nos consoles dos caças espaciais; em O Império Contra-ataca58 (1980), para a sequência de combate dos caças espaciais; e em Alien o Oitavo Passageiro59 (1989), quando durante o pouso da nave, aparece no console o terreno “aramado”60 do planeta. Il. 17 - Still de Tron (1982). Mas o filme que foi um marco quanto à aplicação da CG no cinema foi Tron61 (1982),uma produção Disney, em parceira com a MAGI (Mathematical Applications Groups, Inc., empresa responsável pelos efeitos computacionais). Como observado por Jonh Lasseter62 57 Direção de George Lucas. : “Quando eu vi essa animação computadorizada, foi como se uma porta tivesse sido aberta em minha mente, revelado todo um novo mundo lá fora”. O destaque fica por conta da sequência das lightcycles (“motocicletas de luz”) – il. 17. A história acontece dentro de um computador, numa perseguição ao estilo de videogame (da época). A materialização das lightcycles passa pelos estágios de visualização de um objeto 3D – aramado, com superfície sólida, iluminação e textura. As sequências com os atores foram filmadas em preto e branco, com fundo preto. Depois os cenários (desenhos pintados sem uso de computadores) eram anexados a cada fotograma através de máscaras de filmes, num trabalho artesanal, com recortes para as áreas de luz colorida. Outro exemplo do emprego da animação 3D, foi no filme Jornada nas Estrelas, 58 Direção de Irwin Kershner. BARBOSA, A. L., Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p.327. 59 Direção de Ridley Scott. 60 Um tipo de visualização da imagem 3D, somente das linhas estruturais do desenho. 61 Direção de Steve Lisberger. 62 Então, diretor de animação da Lucas Filmes. Lasseter, John apud BARBOSA, A. L., op. cit, p. 429. 34 A Ira de Khan63 Em 1984, o curta-metragem A Aventura de André e da Abelha Wally foi uma produção de teste de tecnologia da Lucasfilm, com participação de John Lasseter. Foi a primeira animação em CG que adotou uma estética cartoon, tirando partido das possibilidades que o 3D oferecia no momento. Dois anos depois, Luxor Jr., uma produção Pixar (1982), com a sequência da “Genesis”, quando um planeta estéril se regenera. 64, apresenta a relação entre pai e filho através de duas luminárias animadas – il. 18. Foi outro marco na história da animação, comparável a Streamboat Willie. Graças ao apelo dos personagens, ao design (aproveitando as melhores possibilidades da modelagem 3D), ao uso da luz e apresentando todos os conceitos fundamentais de animação, tornou-se o primeiro curta-metragem em 3D indicado ao Oscar. Mas foi Tin Toy, outra produção Pixar, que recebeu o prêmio em 1988. Então, a animação 3D está madura o suficiente para o próximo passo: Toy Story65. Longa-metragem de 1995, primeira produção Pixar-Disney, também recebeu o Oscar de Melhor Animação. Na sua produção foi formulada a “técnica de construção de personagens como uma série de modelos digitais, com membros e expressões faciais que então podiam ser movidos em qualquer direção dentro do ambiente computadorizado”66 ; além dos pull points (controles faciais de animação) – o personagem Woody, por exemplo, tinha oito, somente para o controle dos olhos. Il. 18 - Still de Luxor Jr. (1986). Houve então o aquecimento do mercado e as produções se seguiram com destaque para FormiguinhaZ67 (1998) e Monstros S.A.68 63 Direção de Nicholas Meyer. (2001); entre outros. A animação também tornou-se indispensável para os efeitos especiais nos filmes de ação-viva, como O 64 George Lucas vendeu o departamento de animação para Steve Jobs, que lhe deu um novo nome: Pixar. 65 Recebeu o Oscar Special Achievement Award, pelo desenvolvimento e aplicação expressiva da técnica. 66 BECK, J.(Ed.). Animation art: from pencil to pixel. Londres: Flame Tree Publishing, 2004, p. 270. 67 Produção em que a equipe desenvolveu o sistema de animação facial, aumentando o grau de realismo. 68 Filme para o quel foram desenvolvidos novos sistemas: o “Geppetto”, onde o personagem é controlado como uma marionete, dando maior realismo aos movimentos; e o “Fizt”, para a criação de cabelo, pelo e tecido. 35 Exterminador do Futuro II: o Julgamento Final69 (1991) e Parque dos Dinossauros70 Na primeira década do século XXI, também vale ressaltar as seguintes produções: (1993). • Final Fantasy71 (2001): filme totalmente produzido em 3D, foi o primeiro filme a explorar a modelagem 3D humana de forma realista72 • O Senhor dos Anéis: As Duas Torres . 73 (2002): para as cenas de batalha foram criados complexos sistemas digitais para efeito de multidão, que simularam as ações de cada personagem individualmente. O personagem Gollum foi animado com Rotoscopia e com Motion capture74 • Ryan (2004): curta-metragem canadense, direção de Chris Landreth, apresenta o estilo “realismo psicológico”, onde os efeitos visuais são subjetivos, refletindo os estados emocionais e psicológicos do próprio Ryan . 75 • Avatar (2009): utilizou a tecnologia Motion capture, atualizada para a produção, inclusive para a movimentação facial. Outro filme de Cameron que recebeu o Oscar de Efeitos Especiais de 2009. – il. 32. É um documentário sobre o animador Ryan Larkin. 1.2 O DESENVOLVIMENTO DO STOP MOTION A animação tridimensional é compreendida como sendo Computação Gráfica. Na verdade, o Stop motion é a animação tridimensional real, enquanto o conhecido 3D é a animação tridimensional computadorizada. Alguns trabalhos e técnicas de Stop motion se destacaram ao longo do tempo, abrindo caminho para a animação se tornar um importante artifício dos efeitos especiais, antes da utilização dos computadores pelo cinema-vivo. O já citado Viagem à Lua, produzido numa época em que não havia a diferenciação entre animação e cinema (vivo), já apresentava sequências animadas em Stop motion, um prenúncio da importância dessa forma de criar imagens em movimento para o cinema-vivo. Mas a primeira manifestação de aplicação de 69 Direção de James Cameron, a produção desenvolveu os efeitos de morphing e metalballs, e de movimentação, o motion capture (onde o movimento é capturado da ação de um ator e projetado no personagem). BECK, J. (Ed.), Animation art: from pencil to pixel. Londres: Flame Tree Publishing, 2004, p. 306. 70 Foi o primeiro a apresentar personagens em 3D realisticamente, com respiração, pele, músculos e textura. Direção de Steven Spielberg. BECK, J. (Ed.), loc. cit. 71 Direção de Hironobu Sakaguchi. Foi baseado no game Final Fantasy, produção da Square Enix. 72 GÉNIN, Bernard. L'Image de synthèse. Le cinema d`animation. Paris: Cahiers du Cinèma, 2005, p. 59. 73 Direção de Peter Jackson. 74 BECK, J. (Ed.), op. cit, p. 356-357. 75 WELLS, Paul. Fundamentals of animation. Londres: An AVA Book, 2006, p. 130-131. Recebeu o Oscar de Melhor Curta-metragem Animação em 2004. 36 Stop motion (então conhecido como “stop-action”) foi registrada no livro The Emergence of Cinema: The American Screen to 1907, de Charles Musser, na cena da decapitação no filme de Thomas Edison, The Exercution of Mary, Queen of Scots, de 189576 . Il. 19 - Still de O Dinossauro e o Elo Perdido (1915); a estrutura do boneco de King Kong e still do filme (1933). Porém, o primeiro famoso animador americano de stop motion foi Willis O´Brien, que em 1914, fez seu primeiro teste com animação de boneco, manipulando-o a cada quadro fotografado. Tinha uma estrutura feita de madeira coberta por massinha, de difícil controle e de fraca integridade de textura. No ano seguinte, em O Dinossauro e o Elo Perdido, seus bonecos já tinham estruturas de metal articulado, eram preenchidos com algodão e recobertos com borracha e uma solução de látex. Seu processo de trabalho foi se desenvolvendo, com registros de patentes de estruturas e de sets de filmagem (para animação com bonecos), culminando com a sua participação na produção de King Kong (1933), ao adicionar imagem filmada e bonecos com maestria (através de recursos óticos de laboratório) – il. 19.
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