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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA SABINY PEDREIRA RIBEIRO A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO DO USUÁRIO: desafios e possibilidades Rio de Janeiro 2017 SABINY PEDREIRA RIBEIRO A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO DO USUÁRIO: desafios e possibilidades Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção título de Mestre em Saúde Coletiva. Orientadora: Profª. Drª. Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti. Rio de Janeiro 2017 R484 Ribeiro, Sabiny Pedreira. A atenção primária à saúde na coordenação do cuidado do usuário: desafios e possibilidades / Sabiny Pedreira Ribeiro. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2017. 115 f.; 30 cm. Orientador: Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 2017. Referências: f. 99-105. 1. Atenção primária à saúde. 2. Atenção à saúde. 3. Coordenação do cuidado. I. Cavalcanti, Maria de Lourdes Tavares. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título. CDD 362.1 AGRADECIMENTOS Agradeço a minha orientadora, Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti, por todo conhecimento compartilhado, atenção dispensada ao longo de todo o processo de construção deste trabalho, com toda sua competência e dedicação, e principalmente pela sua humanidade diante das dificuldades que enfrentei na descoberta da minha gestação, compreendendo o momento, me tranquilizando e estimulando a continuar no ritmo possível. Agradeço a todos os profissionais das unidades de saúde lócus do meu estudo, que colaboraram para a realização desta pesquisa, em especial a enfermeira Maria e ao médico Bernardo, que se tornaram também amigos e que hoje acompanham o meu pré-natal. Agradeço, ainda, aos gestores do nível central, local e regional que me receberam e viabilizaram a realização deste trabalho, bem como aceitaram participar da pesquisa. Agradeço à Pós-graduação do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, nas pessoas de Nadja e Fátima da secretaria, por toda colaboração. Agradeço ao Programa de Residência de Enfermagem em Saúde da Família, nas pessoas de Alice e Ana Carolina, e a todos os profissionais e residentes que me apoiaram nesta reta final do mestrado, em especial a Hevelyn e Aline, nas quais descobri uma linda amizade. Agradeço as minhas amigas Lívia, Marília, Bianca, Lizzia, Greicy, Mayara, Thais, Pernelle, Renata, Danielle, Fernanda e Nathalia pela paciência e pelo apoio em todos os momentos que precisei. Agradeço a minha família, força motriz e sentido da minha vida. Aos meus tios Fátima e André, meus primos Matheus, Hanna, Fabrícia e Fabrício, e aos meus sobrinhos Henry, Ygor e Ana, por serem meu porto seguro e minha diversão nas horas tristes. Aos meus irmãos Abraão, André, Diego, Caito e Catherine, pelo exemplo de união e amor fraterno. Agradeço a meu Pai José Carlos (in memoriam) e, em especial, a minha mãe, Soheide, pelos valores e princípios transmitidos, pelo apoio incondicional neste e em todos os desafios da minha vida. Agradeço aos meus filhos, hoje ainda em desenvolvimento no meu útero, mas que já trazem um novo significado a minha existência e, ao lado do meu cachorro Jimmy, representam a família que sempre desejei. Por fim, e antes de tudo, agradeço a Deus que colocou todos em meu caminho, o que possibilitou a realização deste trabalho. RESUMO RIBEIRO, Sabiny Pedreira. A atenção primária à saúde na coordenação do cuidado do usuário: desafios e possibilidades. 2017. 115 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017. Um dos grandes desafios do Sistema Único de Saúde tem sido organizar os serviços em redes integradas para responder às necessidades de saúde da população. Isso implica no desenvolvimento de mecanismos que coordenem a atenção por todo o espectro de serviços, com bons sistemas de informação, capazes de garantir a continuidade da atenção. Esta dissertação objetivou investigar a coordenação do cuidado do usuário na rede de atenção à saúde exercida pela Atenção Primária a Saúde (APS), no território da Área de Planejamento em Saúde 2.1 do município do Rio de Janeiro. A pesquisa descritiva, de natureza qualitativa, buscou descrever a opinião dos gestores/profissionais de saúde da APS a respeito da coordenação do cuidado e o seu papel na coordenação, as estratégias e instrumentos adotados pelas equipes de APS para coordenação do cuidado do usuário e, identificar os limites e possibilidades no exercício da coordenação do cuidado pelas equipes de APS. Os dados foram gerados através da observação participante e entrevista com roteiro semiestruturado. Os sujeitos investigados foram gestores e profissionais de saúde de 02 equipes de APS. Para análise dos dados foi utilizada a técnica de análise temática que permitiu organizar as falas em quatro categorias, para as quais destacam-se os principais resultados: Significado da coordenação do cuidado na opinião dos gestores/profissionais de APS - diz respeito às diversas atividades que proporcionam a prestação de um cuidado individualizado e integral visando a continuidade do cuidado ao longo da rede; Papel do gestor/profissional de APS na coordenação do cuidado e estratégias adotadas - trabalho em equipe, o cadastro e vinculação da população, o registro em prontuário eletrônico, implantação de protocolos clínicos, descentralização da regulação ambulatorial, apoio institucional e educação permanente; Ferramentas desenvolvidos e/ou utilizadas por gestores/profissionais de APS na coordenação do cuidado - SISREG, sistema de Alta Referenciada, Portal de Gestão do Cuidado, Sistema de Vaga Zero, prontuário eletrônico, mecanismos de referência e contra referência; Dificuldades e desafios na coordenação do cuidado – fragmentação da rede, baixa oferta de vagas aos serviços especializados, frágil comunicação entre os serviços, prontuário eletrônico não integrado, baixa qualificação profissional e desconhecimento do papel da APS. Assim, os principais resultados desta pesquisa demonstraram que o apoio da gestão no estabelecimento de diretrizes e fluxos, os programas de qualificação profissional e maiores investimentos em tecnologias de comunicação e integração da rede se mostram essenciais para superação das dificuldades e construção das possibilidades da APS na coordenação do cuidado do usuário na rede. Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Redes de atenção à saúde. Coordenação do cuidado. ABSTRACT RIBEIRO, Sabiny Pedreira. Primary health care in the coordination of the care of the user: challenges and possibilities. 2017. 115 pp. Master Dissertation – Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017. One of the great challenges of the Unified Health System has been to organize the services in integrated networks to respond to the health needs of the population. This implies the development of mechanisms that coordinate careacross the spectrum of services, with good information systems capable of ensuring continuity of care. This dissertation aimed to investigate the coordination of the care of the user in the health care network carried out by Primary Health Care (PHC) in the territory of the Health Planning Area 2.1 of the city of Rio de Janeiro. The qualitative descriptive research sought to describe the opinion of the PHC health managers/professionals regarding the coordination of care and its role in the coordination, strategies and instruments adopted by PHC teams to coordinate care of the user and, Identify limits and possibilities in the exercise of coordination of care by PHC teams. Data were generated through participant observation and semi-structured interview. The subjects investigated were managers and health professionals from 02 PHC teams. To analyze the data, the thematic analysis technique was used to organize the speeches in four categories, for which the main results are highlighted: Meaning of the coordination of care in the opinion of the managers /professionals of PHC - concerns the various activities that Provide the provision of an individualized and integral care aiming at the continuity of care throughout the network; The role of the APS manager /professional in the coordination of care and strategies adopted - teamwork, registration and linking of the population, registration in electronic medical records, implementation of clinical protocols, decentralization of outpatient regulation, institutional support and permanent education; Tools developed and/or used by APS managers/professionals in the coordination of care - SISREG, High Referenced System, Care Management Portal, Zero Wave System, electronic medical record, referral and counter mechanisms; Difficulties and challenges in the coordination of care - fragmentation of the network, low availability of jobs to specialized services, fragile communication between services, non-integrated electronic medical record, low professional qualification and lack of knowledge of the role of PHC. Thus, the main results of this research demonstrated that management support in the establishment of guidelines and flows, professional qualification programs and greater investments in communication and network integration technologies are essential for overcoming difficulties and building the possibilities of PHC in Coordination of user care in the network. Keywords: Primary health care. Health care networks. Coordination of care. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AB - Atenção Básica ACS - Agente Comunitário de Saúde AIS - Ações Integradas de Saúde AP - Área Programática APS - Atenção Primária à Saúde CAPS - Centro de Atenção Biopsicossocial CEO - Centro de Especialidades Odontológicas CEP - Comitê de Ética em Pesquisa CME - Centro Médico Especializado CNES - Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde CRAS - Centro de Referência de Assistência Social CREAS - Centro de Referência Especializado de Assistência Social ESF - Estratégia de Saúde da Família EUA - Estados Unidos da América GSE - Grupamento de Socorro e Emergência HIV/AIDS - Vírus da imunodeficiência humana IBEG - Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia IESC - Instituto de Saúde Coletiva INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social MS - Ministério da Saúde NASF - Núcleo de Apoio à Saúde coletiva NOAS - Norma Operacional da Assistência à Saúde OMS - Organização Mundial de Saúde OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde OSS - Organizações Sociais em Saúde PACS - Programa de Agentes Comunitários de Saúde PIASS - Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento do Nordeste PMAQ-AB - Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica PNAB - Política Nacional de Atenção Básica PROVAB - Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica PSF - Programa de Saúde da Família PTS - Projeto Terapêutico Singular RAS - Rede de Atenção à Saúde RT - Responsável Técnico SAMU - Serviço de Assistência Médica de Urgência SISREG - Sistema de Regulação SUS - Sistema Único de Saúde TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UBS - Unidade Básica de Saúde UPA - Unidades de Pronto Atendimento SUMÁRIO 1 A COORDENAÇÃO DO CUIDADO DO USUÁRIO NA ATENÇÃO PR IMÁRIA À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 10 1.1 PERGUNTAS DE PESQUISA ..................................................................................... 12 1.2 OBJETIVOS .................................................................................................................. 13 1.2.1 Objetivo geral ................................................................................................................. 13 1.2.2 Objetivos específicos ...................................................................................................... 13 2 A COORDENAÇÃO DO CUIDADO DO USUÁRIO NA REDE DE ATEN ÇÃO À SAÚDE ..................................................................................................................................... 14 2.1 DEFINIÇÃO E ATRIBUTOS DAS REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE ........................ 14 2.1.1 Modelagem e componentes das redes de atenção à saúde ......................................... 15 2.1.2 Benefícios das redes regionalizadas e integradas de atenção à saúde ....................... 17 2.1.3 Coordenação do cuidado do usuário na RAS ............................................................. 19 2.2 A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: O CENTRO DE COMUNICAÇÃO DAS RAS . 21 2.2.1 Concepções de APS e seu contexto histórico ............................................................... 21 2.2.2 O papel da atenção primária na coordenação do cuidado ........................................ 24 2.2.3 Características da APS no Brasil ................................................................................. 27 2.2.4 Características da APS no município do Rio de Janeiro ........................................... 30 2.3 USUÁRIO DA REDE DE ATENÇÃO À SAÚDE ........................................................... 32 2.4 O CUIDADO ...................................................................................................................... 36 3 MÉTODO ............................................................................................................................. 38 3.1 O CAMPO DE ESTUDO ................................................................................................... 38 3.2 SUJEITOS DA PESQUISA ............................................................................................... 42 3.3 PROCEDIMENTO DE COLETA DE INFORMAÇÕES .................................................. 43 3.3.1 A entrevista .................................................................................................................... 44 3.3.2 A observação .................................................................................................................. 46 3.4 PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES .............................................. 48 3.5 IMPLICAÇÕES ÉTICAS .................................................................................................. 50 4 A OPINIÃO DOS GESTORES A RESPEITO DA COORDENAÇÃO DO CUIDADO .................................................................................................................................................. 52 4.1 SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO DO CUIDADO NA OPINIÃO DOS GESTORES .................................................................................................................................................. 52 4.2 O PAPEL DOS GESTORES NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO E AS ESTRATÉGIAS ADOTADAS ................................................................................................54 4.3 FERRAMENTAS DESENVOLVIDAS E/OU UTILIZADAS PELOS GESTORES NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO ......................................................................................... 62 4.4 DIFICULDADES E DESAFIOS NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO ....................... 64 5 OPINIÃO DOS PROFISSIONAIS DE EQUIPES DE APS A RESPEITO DA COORDENAÇÃO DO CUIDADO ....................................................................................... 67 5.1 SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO DO CUIDADO NA OPINIÃO DOS PROFISSIONAIS DE APS ...................................................................................................... 67 5.2 PAPEL DOS PROFISSIONAIS DE EQUIPES DE APS NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO E ESTRATÉGIAS ADOTADAS ......................................................................... 72 5.3 FERRAMENTAS UTILIZADAS PELOS PROFISSIONAIS NA COORDENAÇÃO DO CUIDADO ................................................................................................................................ 80 5.4 DIFICULDADES E DESAFIOS PARA COORDENAR O CUIDADO NA VISÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE ................................................................................................ 83 6 A COORDENAÇÃO DO CUIDADO EM DIÁLOGO COM PROFISSIO NAIS DE SAÚDE E GESTORES .......................................................................................................... 88 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 97 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 99 APÊNDICE A – ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA GESTORES .. .......................... 106 APÊNDICE B – ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA PROFISSIONA IS DE APS .... 107 APÊNDICE C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARE CIDO ......... 108 APÊNDICE D – ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ... .......................... 111 ANEXO 1 – INDICADORES DO ACOUNTABILIT MONITORADOS ATRAVÉS DO PRONTUÁRIO ELETRÔNICO ......................................................................................... 112 10 1 A COORDENAÇÃO DO CUIDADO DO USUÁRIO NA ATENÇÃO PR IMÁRIA À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS Trata-se de uma dissertação sobre o papel da atenção primária à saúde (APS) na coordenação do cuidado do usuário, na rede de atenção à saúde (RAS). A atenção primária tem sido adotada como a principal estratégia de reorientação do modelo assistencial e definida, desde a sua enunciação, como porta de entrada e o primeiro nível de contato da população com o sistema de saúde (OMS, 1978). Uma responsabilidade ampliada para APS tem sido debatida, no âmbito nacional, a partir da proposta da criação das redes de atenção à saúde, nas quais a APS possui um papel central na coordenação do cuidado do usuário (ALMEIDA et al., 2011; BRASIL, 2010, 2011). A estruturação da rede de atenção à saúde tem sido concebida como estratégia para superar a fragmentação da atenção e aperfeiçoar o funcionamento político-institucional do Sistema Único de Saúde (SUS). Seu objetivo é promover a integração sistêmica de ações e serviços de saúde com provisão de atenção contínua, integral, de qualidade, responsável e humanizada, bem como incrementar o desempenho do Sistema, em termos de acesso, equidade, eficácia clínica e sanitária e eficiência econômica (BRASIL, 2010). Entretanto, um dos grandes desafios do SUS tem sido implementar a organização dos serviços em redes com serviços integrados, para responder às necessidades de saúde da população, a partir do seu perfil epidemiológico (SILVA, 2011). Tal desafio, vale salientar, não é exclusividade do sistema público de saúde brasileiro, várias análises têm demonstrado a fragmentação dos sistemas de saúde e suas consequências negativas sobre a eficiência e efetividade das ações em saúde em países tais como EUA e Canadá (MENDES, 2007, 2011; NORONHA et al., 2014). Estudos têm demonstrado que a organização dos sistemas de saúde em rede, tendo a APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede, se apresenta como um mecanismo de superação da fragmentação sistêmica. Sistemas organizados dessa forma são mais eficientes e eficazes, tanto em termos de organização interna (alocação de recursos, coordenação clínica, etc.), quanto em sua capacidade de fazer face aos atuais desafios do cenário socioeconômico, demográfico, epidemiológico e sanitário do país (BRASIL, 2010; CECILIO et al., 2012; RODRIGUES et al., 2014). 11 A coordenação do cuidado realizada pela APS é definida como a capacidade de promover a continuidade da atenção, na medida em que os profissionais de saúde devem realizar monitoramento constante das distintas condições, articulando-se com os diversos pontos de atenção do sistema. Requer o exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais a APS assume a responsabilidade sanitária (BRASIL, 2010). Para o exercício da coordenação são necessários: tecnologias de gestão clínica, mecanismos adequados de comunicação entre profissionais e registro adequado de informações (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2012). Entretanto, a APS encontra diversos desafios no exercício da coordenação do cuidado, a exemplo da fragmentação do sistema de saúde, com frágeis mecanismos de integração e comunicação dos serviços; configuração inadequada dos modelos de atenção, marcada pela incoerência entre a oferta de serviços e às necessidades de saúde, não conseguindo acompanhar a tendência de declínio dos problemas agudos e ascensão das condições crônicas; fragilidade na gestão do trabalho, com problemas de precarização e carência de profissionais, em número e alinhamento com a política pública; financiamento público insuficiente; dentre outros (BRASIL, 2010; CECILIO et al., 2012; RODRIGUES et al., 2014). A motivação e o desejo por este estudo surgiram a partir da minha vivência como coordenadora da Atenção Básica em um município de pequeno porte no estado da Bahia. No exercício desta função, pude observar que a coordenação do cuidado do usuário na esfera da APS era incipiente. Percebi, durante essa experiência, que diversos entraves dificultavam a coordenação do cuidado pelas equipes de APS relacionados, principalmente, ao pouco reconhecimento político do papel da APS na organização da rede; a sua pouca legitimidade social; a precariedade logística, organizacional e operacional da rede de atenção à saúde; ao pouco comprometimento e qualificação de alguns gestores e profissionais para implementar a coordenação do cuidado. Exemplo desses entraves eram a ausência de prontuário eletrônico, o pouco uso das fichas de referência e contra referência, o desconhecimento dos profissionais acerca dos serviços de referência e cuidado especializados da rede, falhas no sistema de regulação, a ausência de gestão da rede de saúde com vistas à integração dos serviços existentes, limitações de acesso, dentre outros. Observei, ainda, que a APS era pouco resolutiva frente aos problemas de saúde agudos que demandavam uma resposta rápida. Essa pouca resolutividade evidenciada contribuía para 12 a desvalorização da APS e para reforçar a não legitimidade social da mesma. Estava presente, na visão da população, de alguns gestores e de profissionais de saúde que atuavam em outros níveis de atenção, a ideia de uma APS voltada à oferta de um pacote de serviços fechados e para pobres, não sendo reconhecida, portanto, a necessidade de integrar a APS aos outros níveis de atenção, tampouco, a necessidade de ter a APS coordenando o cuidado na rede. 1.1 PERGUNTAS DE PESQUISA Pensando nos desafios apresentados, foi estabelecido como objeto de investigação neste estudo a atenção primária à saúde na coordenação do cuidado do usuáriona rede de atenção à saúde. Entendo que a coordenação do cuidado do usuário é uma das atribuições da atenção primária e que os serviços de APS são os mais adequados para assumir essa função. Entretanto, somente uma APS “forte”, capaz de mobilizar apoio, recursos políticos, econômicos, financeiros e humanos, poderia assumir a coordenação do cuidado de forma efetiva, conforme preconizado. Portanto, é preciso conhecer e compreender os fatores que interferem no exercício da coordenação do cuidado pela APS. Para tanto, algumas questões foram levantadas: • Qual o entendimento dos gestores e equipes de APS a respeito da coordenação do cuidado e do seu papel nessa coordenação? • Quais as estratégias e instrumentos adotados na APS para a coordenação do cuidado? • Quais os limites e as possibilidades para o exercício de coordenação do cuidado pelas equipes de APS? Em que pese a existência de diversos estudos relacionados ao funcionamento da RAS e da APS, ainda são poucos os que visam conhecer e analisar a APS na coordenação do cuidado do usuário na rede, com vistas à integração dos serviços e à integralidade no cuidado. Dessa forma, este estudo levanta questões que podem incentivar a comunidade científica a buscar novas respostas e soluções, visando o fortalecimento da APS como coordenadora do cuidado e contribuir na ampliação do conhecimento da Saúde Coletiva acerca dessa problemática. 13 1.2 OBJETIVOS 1.2.1 Objetivo geral Investigar a coordenação do cuidado do usuário na rede de atenção à saúde exercida pela atenção primária, no território da Área de Planejamento em Saúde 2.1 (AP 2.1) do município do Rio de Janeiro. 1.2.2 Objetivos específicos 1. Descrever a opinião dos gestores e profissionais de saúde da esfera da APS a respeito da coordenação do cuidado e o seu papel nessa coordenação. 2. Descrever as estratégias e ferramentas adotadas e/ou desenvolvidos pelas equipes de APS para coordenação do cuidado do usuário na rede de atenção à saúde do município do Rio de Janeiro. 3. Identificar os limites e possibilidades no exercício da coordenação do cuidado pelas equipes de APS, na visão desses profissionais e gestores. 14 2 A COORDENAÇÃO DO CUIDADO DO USUÁRIO NA REDE DE ATEN ÇÃO À SAÚDE 2.1 DEFINIÇÃO E ATRIBUTOS DAS REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE O conceito de rede existe na sociedade com diferentes conotações, a saber: Rede das aranhas para captura das suas presas; rede como equipamento de descanso do corpo; as redes sociais, a exemplo das redes de relacionamentos online (Facebook, Twitter, Instagram etc) capazes de, em pouco tempo, movimentar milhões de pessoas em torno de objetivos comuns; redes de comunicação com diferentes formas de expressão para levar aos cidadãos a oportunidade de manifestar-se sobre determinados assuntos, muitos buscando o desenvolvimento do sentimento de pertencimento, de fazer parte dos “nós” das tramas. Em todos os casos, as redes unem e dão suporte a algo e, por essas características, conferem novas possibilidades a seus usuários (ARAÚJO, 2013). A proposta de redes, no suporte às políticas públicas, tem sido adotada a partir da década de 90 como forma de superação do modelo burocrático e hierárquico hegemônico, baseados no taylorismo e no fordismo e caracterizados por pirâmides. Em um contexto de complexificação das questões sociais, de processos de privatização, de descentralização acelerada, de globalização, de proliferação de organizações não governamentais e de fortalecimento do controle público, as organizações hierárquicas rígidas tendem a serem substituídas por redes estruturadas em tessituras flexíveis e abertas de compartilhamentos e interdependências em objetivos, informações, compromissos e resultados (MENDES, 2011). Na saúde, rede é uma ferramenta que vem sendo trabalhada com a finalidade de possibilitar, por meio dos “nós”, o suporte para o caminhar do cidadão dentro dos diferentes serviços ofertados pelo sistema de saúde. Na rede de atenção à saúde, as tramas são organizadas por meio de políticas de governo, ofertando serviços de diferentes níveis de complexidade (ARAÚJO, 2013). Uma definição da RAS bastante utilizada a coloca como […] organização poliárquica de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde – prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e com equidade – e com responsabilidades sanitária e econômica e gerando valor para a população (MENDES, 2011, p.82). 15 A Organização Mundial da Saúde considera que a RAS contém seis modalidades de integração: um conjunto amplo de intervenções preventivas e curativas para uma população; os espaços de integração de vários serviços; a atenção à saúde contínua, ao longo do tempo; a integração vertical de diferentes níveis de atenção; a vinculação entre a formulação da política de saúde e a gestão; e o trabalho intersetorial. A partir dessas modalidades, se produz uma conceituação de serviços integrados de saúde como a gestão e a oferta de serviços de saúde de forma a que as pessoas recebam um contínuo de serviços preventivos e curativos, de acordo com as suas necessidades, ao longo do tempo e por meio de diferentes níveis de atenção à saúde (WHO, 2008). O Ministério da Saúde (MS) define as RAS como arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado. Alguns dos atributos de uma RAS explicitados são: população e território definidos com amplo conhecimento de suas necessidades; extensa gama de estabelecimentos de saúde; APS estruturada como primeiro nível de atenção e porta de entrada do sistema, integrando e coordenando o cuidado na RAS; prestação de serviços especializados em lugar adequado; atenção à saúde centrada no indivíduo, na família e na comunidade; capacidade de gestão para planejar, monitorar e avaliar o desempenho das organizações; participação social; recursos humanos suficientes, competentes e comprometidos; sistema de informação que integre toda a rede; financiamento tripartite, garantido e suficiente; ação intersetorial e abordagem dos determinantes da saúde, dentre outros (BRASIL, 2010). 2.1.1 Modelagem e componentes das redes de atenção à saúde A organização de um sistema de saúde em redes pressupõe a superação do modelo piramidal, o qual, habitualmente, situa os serviços de atenção primária na base da pirâmide e os demais, em complexidade crescente, da base para o topo, com limitação das conexões entre seus diversos pontos (SILVA, 2011; OLIVEIRA et al., 2004; MENDES, 2011). Neste modelo de pirâmide, os instrumentos de referência e contrarreferência entre níveis de atenção não se mostram adequados, já que os serviços de saúde interagem entre si em diferentes fluxos, com relação horizontalizada e elevado grau de interdependência (SILVA, 2011). 16 Um modo adequado de organizar as RAS é estruturando os serviços de saúde em rede de pontos de atenção, composta por equipamentos de diferentes densidades tecnológicas, distribuídos espacialmente de forma ótima. Em geral, os serviços de menor densidade tecnológica como os de atenção primária à saúde devem ser dispersos; ao contrário, os serviços de maior densidade tecnológica como hospitais, unidades de processamento de exames de patologia clínica, equipamentos de imagem etc, tendem a ser concentrados, buscando a economia de escala (MENDES, 2011). Assim, a concepção de hierarquia é substituída pela de poliarquia e o sistema de saúdeorganiza-se sob a forma de uma rede horizontal em que cada nó se liga a vários outros, sem ordem ou grau de importância entre eles (OLIVEIRA et al., 2004). Os principais componentes das redes integradas e regionalizadas de atenção à saúde, segundo Mendes (2011), são três: (1) a população; (2) a estrutura operacional, a qual engloba o centro de comunicação - a APS, os pontos de atenção secundários e terciários, os sistemas de apoio, os sistemas logísticos e o sistema de governança; e (3) o modelo de atenção à saúde (o Modelo de Atenção às Condições Agudas e o Modelo de Atenção às Condições Crônicas). Para se organizar de forma efetiva, eficiente e com qualidade, a RAS deve estruturar-se com base em alguns fundamentos, dentre eles o de economia de escala, disponibilidade de recursos, qualidade, acesso, níveis de atenção e integração dos serviços (MENDES, 2011; SILVA, 2011). Um princípio importante a ser adotado é o do sistema em redes usuário- centrado, no qual devem estar instituídas linhas de cuidado, levando em conta a singularidade de suas demandas e necessidades (SILVA, 2011). Assim, a RAS estrutura-se por regiões e em redes temáticas ou linhas de cuidado, a exemplo no Brasil, a Rede Cegonha, a Rede de Atenção Biopsicossocial, a Rede de atenção ao Idoso, dentre outras, que buscam conformar linhas de cuidados a grupos específicos. A linha de cuidado pode funcionar, antes de tudo, como estratégia de aproximação da integralidade do cuidado, na medida em que são articulados profissionais e unidades de saúde com diferentes papéis e aportes tecnológicos, organizada em função de trajetórias, pensada em corte horizontal, mas sem a rigidez de uma rede hierarquizada (WHO, 2008). Portanto, não se trata de programas verticais de atenção focalizada em doenças específicas, como se observou em momentos na história do Brasil e em países com sistema de saúde pouco desenvolvido (OPAS, 2008b; GIOVANELLA E MENDONÇA, 2012), já que, nas linhas de cuidado, somente os pontos de atenção à saúde secundários e terciários são verdadeiramente 17 temáticos. A APS, os sistemas de apoio, os sistemas logísticos e o sistema de governança são comuns a todas as redes e organizam-se de forma transversal (MENDES, 2011). Nessa proposta, o centro de comunicação das redes de atenção à saúde e o nó intercambiador no qual se coordenam os fluxos e os contrafluxos do sistema é constituído pela APS. Na concepção de RAS, cabe à APS a responsabilidade de articular-se, intimamente, com a população, o que implica não ser possível falar de uma função coordenadora dessas redes se não se der, nesse nível micro do sistema, um processo de conhecimento e relacionamento íntimo da equipe de APS com a população adscrita, estratificada em subpopulações e organizada, socialmente, em famílias. Portanto, não é possível falar de rede e seu trinômio espaço territorial/população/serviços de saúde sem enfatizar a importância primordial da APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede (MENDES, 2011; ARAÚJO, 2013). 2.1.2 Benefícios das redes regionalizadas e integradas de atenção à saúde As RAS, regionalizadas e integradas, oferecem condição estruturalmente adequada para efetivação da integralidade da atenção e reduzem os custos dos serviços por imprimir uma maior racionalidade sistêmica na utilização dos recursos e melhor aproveitamento da oferta assistencial disponível (SILVA, 2011). Ainda, a organização do sistema em redes possibilita a construção de vínculos de solidariedade e cooperação entre trabalhadores, serviços e comunidade, bem como reduz a fragmentação da atenção à saúde (BRASIL, 2010). A preocupação com a fragmentação na atenção à saúde não é recente. Iniciativas de expansão no acesso e na redução da segmentação entre serviços assistenciais e da fragmentação no cuidado podem ser identificadas, por exemplo, no Relatório Dawson, publicado na Inglaterra em 1920. Entre seus objetivos, esse relatório propunha disponibilizar os serviços de saúde segundo as necessidades da população, associando a ideia de regionalização e integração das ações curativas com as preventivas (DAWSON, 1964; CONILL, 2008). Autores assinalam a intensidade da fragmentação dos sistemas de saúde observada em diferentes países na época atual (SILVA, 2011; CONILL et al., 2010), com algumas possíveis causas apontadas pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS): a segmentação dos sistemas de saúde; o predomínio de programas focalizados; a separação dos serviços de saúde 18 pública dos serviços de atenção às pessoas; o modelo de atenção centrado na enfermidade, nos casos agudos e no hospital; as debilidades na coordenação pela autoridade sanitária; insuficiência e má distribuição dos recursos e culturas organizacionais contrárias à integração (OPAS, 2008a). No Brasil, a implantação do SUS buscou reduzir a segmentação na saúde ao unir os serviços da União (Ministério da Saúde e assistência médica previdenciária do antigo INAMPS), estados e municípios em um único sistema de saúde. A criação do SUS na Constituição Federal de 1988, além de estabelecer a universalização do acesso, promoveu a descentralização/regionalização e integração com formação de redes como diretrizes fundamentais. Todavia, a implementação do SUS contribuiu pouco para a integração da saúde nas regiões, possivelmente pela maior ênfase dada à municipalização em detrimento da regionalização na primeira década da sua construção (anos 1990) (SILVA, 2011). Assim, em 2001, o MS publica a Norma Operacional da Assistência à Saúde (Norma Operacional da Assistência à Saúde-NOAS/2001), dando proeminência à necessidade de formação de redes integradas, apesar de não conseguir avançar na sua implementação pelas regras rígidas e não consolidação de uma governança regional e intermunicipal (SILVA, 2011). Em 2006, é publicado o Pacto pela Saúde, se propondo a substituir o formato rígido da NOAS por pactuação mais flexível (SILVA, 2011). Brasil (2008), é divulga um documento estimulando o debate sobre a importância das redes e, em 2010, o MS publica a Portaria GM 4.279 de 30 de dezembro, a qual estabelece as diretrizes para a organização da RAS no âmbito do SUS. Em 2011, o Decreto Presidencial Nº 7.508 reafirma a importância da organização do SUS em rede. Esta série de publicações normativas evidencia a preocupação do governo brasileiro com a consolidação das RAS, frente às dificuldades inerentes ao processo de regionalização e formação de redes no atual contexto do sistema de saúde brasileiro. A proposição de sistemas integrados de saúde ou organizados em rede tem sido uma resposta à fragmentação observada, bem como uma resposta social às mudanças do perfil demográfico e epidemiológico das populações. Em vista do processo de envelhecimento da população, em que há um crescente incremento das condições crônicas, já que estas afetam mais os segmentos de maior idade, torna-se ainda mais relevante pensar em um sistema de saúde organizado em rede, tendo em vista que os usuários com condições crônicas utilizam simultaneamente serviços de diversas complexidades, resultando em interdependência entre 19 os pontos de atenção. Cabe destacar que as condições crônicas envolvem todas as doenças crônicas, mais as doenças transmissíveis de curso longo (tuberculose, HIV/Aids e outras), as condições maternas e infantis, os acompanhamentos por ciclos de vida, as deficiências físicas e os distúrbios mentais de longo prazo (OMS, 2003). Nesse sentido, é fundamental que os sistemas de atenção em saúde trabalhem de forma integrada, em rede, desenvolvendo mecanismos que coordenem a atenção por todo o espectro de serviços, incluindo o desenvolvimento de sistemas de referência e contrarreferência, com bons sistemas de informação e uma APS coordenando os fluxos e os contrafluxos do sistema de atenção à saúde (OPAS, 2008a). Estudosreforçam que a integração em sistemas de serviços de saúde depende da qualidade dos processos de coordenação e estes, por sua vez, dependem da eficácia da comunicação instituída entre as pessoas no interior do sistema (RODRIGUES et al., 2014). 2.1.3 Coordenação do cuidado do usuário na RAS Discussões e problemas vinculados à coordenação dos cuidados do usuário e à fragmentação da rede assistencial não constituem temas novos nas discussões sobre a organização dos sistemas de saúde (ALMEIDA et al., 2010). As mudanças do perfil demográfico e epidemiológico das populações, como referido anteriormente, reforçam a importância da coordenação entre serviços, função que deve ser exercida principalmente pela equipe de APS. A coordenação do cuidado pode ser definida como a articulação entre os diversos serviços e ações relacionados à atenção em saúde de forma que, independentemente do local onde sejam prestados, estejam sincronizados e voltados ao alcance de um objetivo comum (STARFIELD, 2002; HOFMARCHER et al., 2007; NÚÑEZ et al., 2006). O mecanismo de coordenação do cuidado envolve o conhecimento das ações e serviços prestados em outros pontos da rede e a integração destes, de modo que distintas intervenções sejam percebidas e experienciadas pelo usuário de forma contínua, adequadas as suas necessidades de saúde e compatível as suas expectativas pessoais (STARFIELD, 2002; ALMEIDA et al., 2010). A coordenação do cuidado sustenta-se na existência de uma rede integrada de prestadores de serviços de saúde que disponha de canais de comunicação entre si, permitindo que as informações a respeito dos pacientes sejam transmitidas entre os profissionais de saúde 20 dos diversos serviços da rede (STARFIELD, 2002; ALMEIDA et al., 2010). Starfield (2002) destaca que a essência da coordenação é a disponibilidade de informações a respeito de problemas e serviços anteriores e o reconhecimento de que estas informações poderão estar relacionadas às necessidades para o presente atendimento. Portanto, o apoio da função de coordenação depende do desenvolvimento de melhores meios de transferência de informação a respeito do usuário, especialmente quando recebe atenção das várias fontes para as quais foi encaminhado. Na definição da OPAS, a coordenação conota a capacidade de garantir a continuidade da atenção, por meio da equipe de saúde, com o reconhecimento dos problemas que requerem seguimento constante e se articula com a função de centro de comunicação das redes de atenção à saúde (OPAS, 2011). Nessa mesma linha, a concepção adotada pelo MS traz que a coordenação do cuidado é definida como a capacidade de promover a continuidade da atenção, na medida em que os profissionais de saúde devem realizar monitoramento constante das distintas condições, articulando-se com os diversos pontos de atenção do sistema (BRASIL, 2010). Desse modo, o ato de coordenar o cuidado deve responder à elaboração, acompanhamento e à gestão de projetos terapêuticos, à organização de fluxo dos usuários entre os pontos de atenção, à gestão de lista de espera, à organização de protocolos de cuidado, além de realizar a discussão e análise dos casos (BRASIL, 2006, 2011). Apesar da existência de diversos estudos, nacionais e internacionais, sobre a coordenação do cuidado, sua definição parece ainda não apresentar consenso, sendo possível observar na literatura certa confusão teórica e a utilização indiscriminada dos termos continuidade assistencial, coordenação, integração de serviços, colaboração, trabalho em equipe, gestão da doença, gestão de casos, gestão do cuidado e o chamado modelo de atenção às condições crônicas. É difícil interpretar a relação entre esses conceitos e chegar a um denominador comum sobre o que seria, de fato, a coordenação do cuidado (ALMEIDA et al., 2010; BROWN et al., 2004; MCDONALD et al., 2007). Para fins deste estudo, será assumida a coordenação do cuidado como a capacidade de garantir a continuidade da atenção em saúde de um modo integrado com os diferentes pontos de atenção e compreendida nas dimensões vertical, entre a APS e os demais níveis do sistema, e horizontal, que envolveria a articulação entre a própria equipe de APS, serviços de saúde e equipamentos sociais (RODRIGUES et al., 2014). 21 Alguns autores apresentam a coordenação não apenas como um atributo da APS, mas como fazendo parte de uma estratégia de todo o sistema de saúde para melhorar a integração entre seus níveis assistenciais, embora reconheçam a APS, fortalecida em seus atributos, como mais adequada para assumir a função de coordenação dos cuidados no interior dos serviços de saúde. Assim, coordenação seria um atributo organizacional dos serviços de saúde que se traduz na percepção de continuidade dos cuidados na perspectiva do usuário (ALMEIDA et al., 2010). 2.2 A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: O CENTRO DE COMUNICAÇÃO DAS RAS 2.2.1 Concepções de APS e seu contexto histórico A estrutura operacional das redes de atenção à saúde tem sua base na APS. Sem uma APS muito bem estruturada não se pode pensar em redes de atenção à saúde efetivas, eficientes e de qualidade (OPAS, 2011). A proposta da APS foi cunhada originalmente em 1920 pelo Relatório Dawson, que a mencionava como o foco central do processo de regionalização e o primeiro nível de atenção responsável pelo acesso da população aos meios diagnósticos e aos serviços especializados (CONILL, 2008; MENDES, 2011). Entretanto, sua institucionalização nos sistemas de saúde foi feita após a reunião de Alma-Ata, realizada em 1978, a qual propôs uma APS abrangente e assumida como responsabilidade dos governos, reiterando a saúde como um direito humano fundamental (OPAS, 1978). Três pensamentos fundamentais permeiam a declaração de Alma Ata: tecnologia apropriada, oposição ao centralismo médico e o conceito de saúde como uma ferramenta para o desenvolvimento socioeconômico. Assim, a APS é concebida como a atenção baseada em métodos e tecnologias apropriadas, cientificamente comprovadas e socialmente aceitáveis, cujo acesso deve ser garantido a todos. Implica em participação comunitária e democratização dos conhecimentos, incluindo ‘práticas tradicionais’ (curandeiros, parteiras) e agentes de saúde na comunidade. Ainda, é expressa como função central do sistema nacional de saúde e como parte do processo mais geral de desenvolvimento social e econômico, o que envolve a cooperação com outros setores. Nessa concepção, a APS representa o primeiro nível de contato com o sistema de saúde, levando a atenção ao mais próximo possível de onde as 22 pessoas residem e trabalham, dispondo de assistência sanitária que inclui prevenção, promoção, cura e reabilitação (OMS, 1978; CUETO, 2004). Desde Alma Ata, diferentes interpretações de APS surgiram na prática social dos sistemas de saúde, identificando quatro linhas principais de interpretação (OPAS, 2008b; GIOVANELLA & MENDONÇA, 2012): 1) Programa focalizado e seletivo, de baixa resolutividade, voltados à população pobre, com cesta restrita de serviços para enfrentar limitado número de problemas de saúde nos países em desenvolvimento; 2) Um dos níveis de atenção, porta de entrada no sistema de saúde e local de cuidados contínuos, correspondendo aos serviços ambulatoriais médicos de primeiro contato não especializados. Trata-se da concepção mais comum em países da Europa com sistemas universais públicos; 3) Abrangente e integral, como uma concepção de modelo assistencial e de organização do sistema de saúde, conforme proposto em Alma Ata, para enfrentar os determinantes sociais de saúde, com base em tecnologias apropriadas, uso eficiente dos recursos e participação comunitária; 4) Filosofia que orienta processos emancipatórios pelo direito universal à saúde, enfatiza a abordagem dos determinantes sociais e políticos mais amplos da saúde.Nos países em desenvolvimento, após Alma Ata, observou-se a difusão da proposta da APS seletiva com práticas racionalizadas, restrita à cesta de serviços, obtendo especial suporte da Unicef e do Banco Mundial (RODRIGUES et al., 2014). Esse formato passou a ser fortemente criticado por orientar-se estritamente por critérios de custo-efetividade e por ignorar o contexto maior do desenvolvimento social e econômico (OPAS, 2008b; MAESENEER, 2007). Em resposta, a OPAS e a Organização Mundial de Saúde (OMS) impulsionaram um movimento de renovação da APS, uma espécie de atualização da concepção abrangente de Alma Ata, divulgando o documento “Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas” (OPAS/OMS, 2008) e, em 2008, o Relatório Mundial de Saúde, intitulado “Atenção Primária à Saúde: agora mais do que nunca” (OMS, 2008). Esses documentos defendem a necessidade de alcançar atenção universal e abrangente por meio de uma abordagem integrada e horizontal no desenvolvimento dos sistemas de saúde, bem como uma APS como coordenadora de uma resposta integral em todos os níveis de atenção, 23 reconhecendo que a APS abrangente requer mais investimento, pois representa o modo mais eficiente de aplicação de recursos. Para compreensão de uma APS abrangente, tem sido utilizada, por especialistas da área, a referência teórico-conceitual da médica e pesquisadora Bárbara Starfield (2002) que destaca o papel da atenção primária como foco de organização dos sistemas de saúde para responder adequadamente às crescentes ameaças a qualidade da atenção e às crescentes iniquidades sociais que ameaçam piorar ainda mais as disparidades entre as populações. Starfield (2002) desenvolveu uma abordagem para caracterizar a APS abrangente, apesar de centrar sua análise numa atenção individual. Em sua abordagem, considera como características específicas da APS: a prestação de serviços de primeiro contato; a assunção de responsabilidade longitudinal pelo usuário com continuidade da relação clínico-paciente ao longo da vida; a garantia de cuidado integral considerando-se os âmbitos físicos, psíquicos e sociais da saúde dentro dos limites de atuação do pessoal de saúde; e a coordenação das diversas ações e serviços indispensáveis para resolver necessidades menos frequentes e mais complexas. O primeiro atributo da APS é se constituir como primeiro contato, porta de entrada do sistema de saúde, de fácil acesso, buscado pelo usuário a cada vez que um novo problema ou necessidade forem observados ou para o seu acompanhamento continuado. Para tanto, é necessária a eliminação de barreiras financeiras, geográficas, organizacionais e culturais, tornando o local de atendimento facilmente acessível e disponível (STARFIELD, 2002). Outro requisito na configuração de porta de entrada é a exigência de encaminhamento por profissionais de atenção primária para acesso à atenção especializada (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012). A longitudinalidade, segundo atributo, consiste na existência de uma fonte habitual de atenção na qual se estabelece uma relação pessoal de longa duração entre profissionais e usuários, com prestação de atenção independente da ocorrência de um problema de saúde. Trata-se, portanto, de uma atenção orientada para a pessoa ao longo de sua vida (da gestação até idades avançadas), considerando as necessidades e especificidade de cada ciclo da vida (STARFIELD, 2002). Para sua efetivação é necessário que a APS seja capaz de identificar sua população de referência, por meio da adscrição territorial e registro dos usuários (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012). 24 A integralidade, o terceiro atributo, diz respeito ao reconhecimento da variedade de necessidades relacionadas à saúde do usuário e disponibilização dos serviços e recursos para abordá-las. Essas necessidades podem ser tanto sintomas, disfunções ou enfermidades, como também intervenções preventivas ou promoção da saúde. Nas situações em que a APS não dispõe de recursos ou serviços para adequada intervenção, deve assegurar que seja feito o encaminhamento para garantia da atenção integral. Ou seja, a equipe de APS tem a responsabilidade de reconhecer essas necessidades e providenciar ou coordenar a prestação de serviços em outros locais (STARFIELD, 2002). Portanto, para que uma atenção integral seja garantida, os serviços de atenção primária devem assumir a responsabilidade pela ‘coordenação’ das diversas ações e serviços necessários e garantir a continuidade do cuidado (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012). A coordenação, o quarto componente, é essencial para a obtenção dos outros aspectos. Sem ela, a longitudinalidade perderia muito de seu potencial, a integralidade seria dificultada e a função de primeiro contato tornar-se-ia uma função puramente administrativa (STARFIELD, 2002). A OPAS (2011), além de reconhecer os quatro atributos trazidos pela Bárbara Starfield, apresenta outros atributos e funções da APS na organização dos sistemas de saúde, quais sejam: focalização na família como o sujeito da atenção; orientação comunitária, com reconhecimento das suas necessidades em função do contexto físico, econômico, social; competência cultural, com relação horizontal entre equipe e população que respeite as singularidades culturais e as preferências das pessoas e das famílias. 2.2.2 O papel da atenção primária na coordenação do cuidado Um importante papel desempenhado pela atenção primária diz respeito à coordenação da continuidade da atenção e do fluxo de informações por todo o sistema de saúde. Tendo em vista que os serviços de atenção primária, por si, não são suficientes para atender as necessidades mais complexas de cuidados em saúde, torna-se necessário a busca por apoio e complemento aos cuidados nos diferentes níveis de atenção, tanto ambulatoriais como hospitalares, assim como no restante da rede de proteção social. Isso implica no desenvolvimento de mecanismos de coordenação do cuidado ao longo da rede de serviços de modo a garantir a continuidade e a qualidade dos serviços prestados. 25 A inserção da APS em redes de atenção à saúde requer, necessariamente, sua interpretação como estratégia de reordenamento do sistema de saúde, orientando o cuidado ao longo de todos os pontos de atenção. Isso significa, na prática, superar as visões de atenção seletiva e de mero nível de atenção. Nessa perspectiva, é comum encontrar na literatura expressões que destacam a APS na condução do sistema de saúde, tais como “sistemas de saúde baseados na APS” ou em “redes integradas de serviços de saúde baseadas na APS” (OPAS, 2011; RODRIGUES et al., 2014). No âmbito internacional, observa-se um movimento crescente de discussão e implementação de reformas institucionais e políticas na organização dos sistemas de saúde para o fortalecimento da APS em prol da coordenação do cuidado e integração da rede assistencial. Estas reformas têm sido impulsionadas, principalmente, por contextos econômicos restritivos, com políticas de austeridades fiscais e contenção de gastos em saúde (GIOVANELLA, 2006; GIOVANELLA;e STEGMÜLLER, 2014). No Brasil, estudos abordando a APS na coordenação do cuidado aparecem a partir de 2006, os quais têm cumprido um importante papel de descrever novas realidades e difundir boas práticas de gestão no SUS (RODRIGUES et al., 2014). A necessidade de melhor organização do SUS com a constituição de redes integradas, nas quais a coordenação do cuidado é assumida como uma responsabilidade ampliada da APS, tem sido objeto de debate político e acadêmico no país e aparece presente em diversos documentos normativos do MS (BRASIL, 2010; ALMEIDA et al., 2011; BRASIL; 2011). Ao coordenar a RAS, estudos evidenciam que a APS eleva sua capacidade de resolver os problemas de saúde dos usuários, tornando os sistemas mais custo-efetivos, como também pela possibilidade de se ajustar, de acordocom a conjuntura socioeconômica, demográfica e epidemiológica (BRASIL, 2010; KRINGOS et al., 2010). Assim, os sistemas de saúde, baseados numa forte orientação para a APS, apresentam resultados melhores e mais equitativos, são mais eficientes e produzem mais satisfação para os usuários quando comparados com sistemas de fraca orientação para a APS (OPAS, 2011). Para o exercício da coordenação do cuidado pela equipe de APS são necessários mecanismos tais como: tecnologias de gestão clínica; mecanismos adequados de comunicação entre profissionais dos diversos pontos de atenção e articulação intersetorial; registro adequado de informações e seu uso pelos profissionais dos diversos serviços; existência de prontuário de acompanhamento longitudinal e prontuário eletrônico em rede; gestão das listas 26 de espera (encaminhamentos para consultas especializadas, procedimentos e exames); protocolos de atenção organizados sob a lógica de linhas de cuidado; discussão e análise de casos, de eventos-sentinela e de incidentes críticos (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012; STARFIELD, 2002; BRASIL, 2015a, 2016). Cecílio et al. (2012) destacam dois movimentos que devem ser implementados na APS para constituição da coordenação do cuidado. O primeiro é que a coordenação das redes deve assumir múltiplas configurações, incluindo graus diferentes de participação e responsabilidade da APS, a depender dos diferentes contextos locorregionais do SUS. O segundo movimento vai no sentido de investimentos na APS para que ela possa, progressivamente, ampliar sua capacidade de intervir ativamente nos processos regulatórios, consolidando gradualmente sua legitimidade perante os usuários. Algumas medidas factíveis, e que já têm sido experimentadas em alguns municípios brasileiros, são o acesso direto das equipes locais para marcação de consulta, a criação de mecanismos formais de comunicação entre profissionais da APS e as centrais reguladoras e qualificação dos processos microregulatórios nas unidades (CECILIO et al., 2012). A OPAS (2011) ressalta ainda a importância de construir sistemas de educação permanente dos profissionais de saúde, de modo a fortalecer a APS na coordenação das redes de atenção à saúde. Entretanto, são grandes os desafios para que a APS assuma o papel de coordenadora da RAS. Dentre os nós críticos apontados pela literatura destacam-se a falta de política institucional direcionada ao fortalecimento da APS; a representação social das comunidades sobre esse nível de atenção; a falta de legitimidade social da APS; e a visão restrita de gestores que tendem a compreendê-la, por vezes, como seletiva. Ainda, a APS encontra desafios, sobretudo, pela dificuldade de se implantar uma rede que permita a integração entre os níveis de atenção na sua dimensão vertical e horizontal, bem como pelas fragilidades nos sistemas de apoio e logística que sustentem os fluxos de comunicação (RODRIGUES et al., 2014). Um estudo de revisão de literatura encontrou diversas fragilidades relacionadas à APS como coordenadora da RAS, tais como: desconhecimento dos vários pontos de atenção pelos profissionais de APS; precário funcionamento do mecanismo de referência e contra referência; acolhimento incipiente na unidade de saúde; carência de mecanismos e estratégias de integração e comunicação e de regulação do acesso pelos diferentes níveis; ausência de sistemas informatizados que possibilitem a gestão destes processos e fluxos; descompromisso 27 dos trabalhadores com os resultados organizacionais; dentre outros. Essas fragilidades resultam numa notável carência de dispositivos que favoreçam a inovação das práticas, o acolhimento dos usuários e a vinculação dos mesmos na APS (RODRIGUES et al., 2014). Portanto, para que a equipe de APS consiga coordenar o cuidado nas redes de atenção à saúde com efetividade é necessário vontade política dos gestores para maiores investimentos na APS (investimento em estrutura física, em tecnologias de comunicação, qualificação dos sistemas logísticos e de apoio, capacitação de pessoal, fluxo e processo de trabalho, etc.); profissionais comprometidos com o cuidado integral, horizontal e interdisciplinar, baseado no agir comunicativo; usuários engajados em prol de novos modelos organizacionais; e realização de estudos voltados à APS e RAS. 2.2.3 Características da APS no Brasil No Brasil, experiências de APS aparecem de forma incipiente na década de 1920, com os centros de saúde que, apesar da divisão entre ações curativas e preventivas, organizavam-se a partir de uma base populacional e trabalhavam com educação sanitária. A partir da década de 1940, foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública que realizou ações curativas e preventivas, restritas às doenças infecciosas e carenciais e limitada às áreas de relevância econômica. Só então na década de 1970 que se dá uma forte expansão da APS no país, através do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento do Nordeste (PIASS), cujo objetivo era fazer chegar à população historicamente excluída de acesso à saúde um conjunto de ações médicas simplificadas, caracterizando-se como política focalizada de baixa resolutividade e referida como APS seletiva. A expansão da APS no país se mantém intensa na década de 1980, com a crise da Previdência Social que levou para dentro das unidades de APS parte da atenção médica do INAMPS, instituindo as Ações Integradas de Saúde (AIS) (LAVRAS, 2011; MENDES, 2012; RIBEIRO,2007). Essas experiências somadas aos debates sobre cuidados primários nas VII, VIII e XIX Conferência Nacional de Saúde e à constituição do SUS possibilitaram a construção, no país, das primeiras políticas de APS ou de Atenção Básica (AB) como tem sido também denominada no Brasil (RIBEIRO, 2007; ESCOREL et al., 2007). A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF), em 1993, o qual também incorporou os preceitos de Alma Ata, é um marco da incorporação da APS na política de saúde brasileira. Voltado inicialmente para 28 estender a cobertura assistencial em áreas de maior risco social, aos poucos o PSF foi adquirindo centralidade, alçado à condição de estratégia de organização do SUS e reorientação do modelo de atenção. Passou então a ser entendido como Estratégia de Saúde da Família (ESF), buscando superar a visão da APS seletiva ou de mero nível de cuidados primários rumo à abordagem integral (MENDES, 2012; ESCOREL et al., 2007; SILVA et al., 2010). A criação do PSF, agora designado ESF, sofreu influências internas, dos modelos brasileiros de APS referidos anteriormente, e externas, em especial, dos modelos de medicina familiar canadense, cubano e inglês. Contudo, suas origens mais significativas estão no Programa de Agentes de Saúde, do estado do Ceará, em 1987, o qual teve larga repercussão política pelos seus resultados positivos, especialmente na redução da mortalidade infantil, razão pela qual foi estendido a todo o País, pelo MS, em 1991, com a denominação de Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Em 2006, o MS, levando em consideração essas evidências, edita a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) pela Portaria GM n. 648/GM, de 28 de março, ampliando o escopo e a concepção da AB ao incorporar os atributos da atenção primária abrangente, colocando-a como porta de entrada preferencial do SUS e ponto de partida para reestruturação do sistema. Em 2011, a PNAB foi atualizada, modificando conceitos e introduzindo elementos ligados ao papel desejado da AB na ordenação das redes de atenção à saúde e avançou no reconhecimento de um leque maior de modelagens de equipes para as diferentes populações e realidades do Brasil (consultórios na Rua e unidades Fluviais e Ribeirinhas) (BRASIL, 2011). Entretanto, o país convive não apenas com unidades de saúde funcionando no modelo da ESF, mas também no modelo do PACS (unidades detransição) e no modelo tradicional, as quais não implantaram, até momento, o modelo de saúde da família. A concepção de atenção primária na ESF preconiza equipe de caráter multiprofissional (médico generalista, enfermeiro generalista, auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde) com ou sem equipe de saúde bucal (cirurgião-dentista e auxiliar ou técnico de saúde bucal), que trabalha com definição de território de abrangência, adscrição de clientela, cadastramento e acompanhamento da população. Pretende-se que a unidade de saúde constitua a porta de entrada ao sistema local e o primeiro nível de atenção, o que pressupõe a integração à rede. Recomenda-se que cada equipe fique responsável por, no máximo, 4.000 pessoas, sendo a média recomendada de 3.000, respeitando critérios de equidade. Deve 29 conhecer as famílias do seu território de abrangência, identificar os problemas de saúde e as situações de risco, elaborar um programa de atividades para enfrentar os determinantes do processo saúde/doença, desenvolver ações educativas e intersetoriais, prestar assistência integral às famílias sob sua responsabilidade e coordenar o cuidado na RAS (BRASIL, 2011). Nos últimos anos, com a consolidação da APS no Brasil, houve aumento da oferta de ações de saúde essenciais à população. O País alcançou uma cobertura estimada de mais da metade da população brasileira pela ESF e uma cobertura populacional por outros modelos de atenção básica que pode variar entre 20% e 40% (BRASIL, 2014). Atualmente, o Brasil conta com 39.943 equipes de saúde da família implantadas em 5.459 municípios, o que representa um percentual de 98% dos municípios e uma cobertura de 60,69% de brasileiros atendidos por alguma equipe de saúde da família (BRASIL, 2016). Diversas iniciativas institucionais têm sido fomentadas pelo governo brasileiro com o intuito de fortalecimento da APS no país. Dentre os mais recentes estão a criação dos Núcleos de Apoios à Saúde da Família (NASF), em 2008, compostos por profissionais de diferentes áreas com o objetivo de ampliar a abrangência e o escopo das ações das equipes de APS; o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), em 2011, visando induzir a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade da APS; O Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (PROVAB), em 2011, visando estimular a atuação dos profissionais de saúde em localidades com maior carência de serviços de APS e a qualificação da formação; e o Programa Mais Médicos, em 2013, com o intuito de melhorar a atenção, levando médicos para regiões onde há escassez ou ausência desses profissionais, bem como provendo investimentos para construção, reforma e ampliação de UBS e criação de novas vagas de graduação e residência médica em diversos estados. Quanto à coordenação do cuidado, tem tido destaque na PNAB e em diversos documentos normativos do MS o papel protagonista da APS na produção e gestão do cuidado integral em rede (BRASIL, 2011, 2015a, 2015b). Esses documentos trazem subsídios teórico e prático para a operacionalização da coordenação do cuidado, como se observa na publicação do primeiro volume da série “Protocolos de encaminhamentos da atenção básica para a atenção especializada”, que visam aumentar a capacidade clínica e de cuidado das equipes de APS e a articulação destas com outros pontos da rede, com pactuação de fluxos e protocolos (BRASIL, 2015a). Outra importante inciativa é o Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes, que objetiva ampliar a resolubilidade das equipes e promover sua integração com o 30 conjunto da RAS. O Telessaúde pode ser caracterizado como um serviço de apoio diagnóstico e terapêutico, com ênfase no apoio assistencial, por meio das teleconsultorias, possibilitando que as equipes intervenham com maior efetividade sobre as práticas de saúde, incluindo ações de regulação do fluxo dos pacientes (BRASIL, 2012). 2.2.4 Características da APS no município do Rio de Janeiro O município do Rio de janeiro, capital do estado do Rio de Janeiro, é a segunda maior metrópole do Brasil com 6.320.446 habitantes, sendo 46,83% homens e 53,17% mulheres, e uma área de 1.199,828 km2 (IBEG, 2010). É um dos principais centros econômicos, culturais e financeiros do país, sendo conhecido mundialmente como uma importante rota de turismo. Possui um PIB estimado em aproximadamente 221 bilhões de reais, o segundo maior do país (IBGE, 2012). Na esfera da saúde, o território do município se divide em Áreas de Planejamento, um total de 10, as quais são geridas de forma terceirizadas por Organizações Sociais em Saúde (OSS), entidades de direito privado, sem fins lucrativos. As AP têm competências administrativas e orçamentárias, tais como controlar os serviços e executar as ações de saúde em seu território. O sistema de saúde do município do Rio de Janeiro conta com serviços públicos municipais, estaduais e federais, serviços privados conveniados (filantrópicos) e serviços privados contratados ou não pelo SUS. A rede de atenção à saúde localizada no município é composta pela atenção básica e especializada de média e alta complexidade. Dentre os serviços que dispõem, estão os hospitais de grande e médio porte, com atendimento especializado e de urgência e emergência, maternidades e centros de parto normal, unidades de pronto atendimento (UPA), centros de atenção psicossocial (CAPS), os serviços residenciais terapêuticos, clínicas/centros de especialidades e policlínicas, centro de atenção de hemoterapia e ou hematológica, serviço de atenção domiciliar e serviços de apoio diagnóstico e terapêutico. Os serviços de urgência e emergência municipais se configuram como portas de entrada integradas com a Defesa Civil, o Serviço de Assistência Médica de Urgência (SAMU) e o Grupamento de Socorro e Emergência (GSE). O município conta ainda com assistência farmacêutica, serviços de vigilância à saúde, Telessaúde, sistema de 31 regulação e rede informatizada (prontuários eletrônicos) (DATASUS, 2016; RIO DE JANEIRO, 2013). De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o município do Rio de Janeiro conta com 1.039 equipes de saúde da família, o que representa uma cobertura populacional de mais de 50% (DATASUS, 2016). Informações do Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro 2013-2016 mostram que em 2008 havia 63 equipes da ESF, representando uma cobertura de 3,5%, tendo aumentado para 27% de cobertura em 2011, sendo que alguns bairros como Rocinha, Manguinhos, Mangueira, Acari, Rocha, Santa Cruz, e Gardênia alcançaram 100% de cobertura de Saúde da Família. A meta divulgada é alcançar, até o fim de 2016, uma cobertura de 70% da população assistida pela ESF. A APS do município é composta por unidades de saúde da família, postos de saúde tradicionais, unidades mistas (ESF e modelo tradicional), consultório de rua e conta com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Aderiu ao Programa Mais Médicos do Governo Federal, recebendo profissionais que ajudam a compor o quadro de médicos das equipes de APS do município. Em relação à coordenação do cuidado, aparece em diversos documentos publicados pelo município o destaque ao papel da APS na coordenação do cuidado na rede. Estes documentos se configuram como normatização técnica e subsídios teórico e operacional para a coordenação do cuidado realizada pelas equipes de APS no município. Como exemplo, está o Protocolo para o Regulador do Sistema de Regulação (SISREG), atualizado em março de 2015, no qual constam os critérios para regulação de vagas ambulatoriais no município. Esse protocolo orienta os profissionais sobre como deve se dar o acesso ao sistema e a solicitação de vagas para consultas especializadas e exames complementares, discriminando os quais devem ser regulados, bem como os critériospara classificação de prioridade dos encaminhamentos. Cabe ao profissional regulador (médico Responsável Técnico (RT) da própria unidade) negar, devolver, deixar como pendente ou autorizar a marcação. O protocolo diz que todo caso negado ou devolvido deve ser discutido com o profissional solicitante ou em equipe, como proposta de educação permanente. Ainda, o protocolo ressalta a importância da APS na coordenação do cuidado dos usuários assistidos, sem perder de foco a resolutividade das ações em saúde, devendo solicitar e regular as 32 solicitações de exames/consultas nos casos em que sejam fundamentais para o diagnóstico ou acompanhamento (RIO DE JANEIRO, 2015). Outros exemplos são os Guias de Referência Rápida para hipertensão, diabetes, prevenção cardiovascular, depressão, atenção ao pré-natal, doenças sexualmente transmitidas, entre outros, disponíveis no site da Secretaria de Saúde do município, voltados aos profissionais de APS de forma a orientá-los na assistência clínica em cada linha de cuidado abordada nos guias. Portanto, se configuram em guias que buscam subsidiar o trabalho na APS visando à integralidade e à coordenação do cuidado. Como destaque para a coordenação do cuidado, podem ser observadas orientações a respeito da realização de plano de cuidado compartilhado entre equipe multiprofissional, familiares, usuário, NASF, atenção secundária, atenção terciária e outras fontes de matriciamento1; estratificação de riscos; monitoramento do manejo terapêutico; e registro em prontuário. Outros documentos encontram-se presentes nas publicações técnicas também no site da Secretaria de Saúde para subsidiar a coordenação do cuidado do usuário ao longo da rede de atenção à saúde, tais como: “Guia de referência e contrarreferência”, preenchida pela APS quando do referenciamento do usuário a outros serviços, recebendo de volta com as devidas informações da atenção prestada; “Guia Pós Alta Hospitalar”, em que consta as informações resumidas sobre a internação hospitalar para ser apresentado à APS quando da alta do usuário; a “Ficha de Encaminhamento da Atenção Secundária para a Atenção Primária-Solicitação de consulta”, no qual o usuário deve apresentar à APS para continuidade da atenção neste nível, dentre outros. 2.3 USUÁRIO DA REDE DE ATENÇÃO À SAÚDE Os termos usuário, cliente ou paciente são, usualmente, utilizados para designar as pessoas que acorrem aos serviços de saúde. Embora muitas vezes utilizados como sinônimos, cada um deles possui suas raízes e especificidades que não se trata apenas de questão 1 Matriciamento: Constitui-se na prática de cooperação entre equipes de ESF e suas referências de apoio – setoriais e intersetoriais – e como modo de potencializar o trabalho com os cuidados primários em saúde em toda sua complexidade. Seria, então, o arranjo entre recursos ofertados para o cuidado em saúde que ocorrem em serviços distintos para enriquecer as possibilidades de composição dos projetos terapêuticos individuais (CAMPOS, 1999). 33 semântica, visto que propiciam e induzem diferentes maneiras de olhar e compreender os objetos nomeados, ou como construímos a realidade (TAKAUTI et al., 2013). O termo paciente, segundo Foucault (1998), é um invento do hospital terapêutico do século XVIII e hoje é universalmente utilizado e está relacionado com a pessoa que tem paciência, sereno, conformado (FERREIRA, 1999), que apesar de sugerir relação mais íntima com o profissional que cuida, sua utilização pode sugerir, implicitamente, uma posição passiva e hierarquicamente inferior em relação ao profissional. O termo cliente procede do vocabulário próprio da economia liberal de mercado, marca o “exercício liberal” e/ou privado da atenção à saúde, sugerindo à pessoa que acorre aos serviços de saúde o caráter de consumidor e à saúde, a característica de um bem de consumo, não de direito social. Já o termo usuário designa cada um daqueles que usa ou desfruta de alguma coisa coletiva, ligada a um serviço público ou particular - “usuário do sistema de saúde”, podendo ser compreendido como termo mais amplo, capaz de ultrapassar o ideário passivo ou liberal e avançando para uma concepção de saúde enquanto direito humano e social, regulado pelas relações de cidadania (TAKAUTI et al., 2013). A utilização de um desses termos não elimina o uso dos demais, observando-se o uso mesclado dos mesmos diariamente nos serviços de saúde, sem que haja uma preocupação no que representam (TAKAUTI et al., 2013). Portanto, é preciso atenção no uso das expressões, sendo adotado neste trabalho o termo usuário, assim como é adotado pelos documentos normativos do governo brasileiro, por acreditar que essa denominação é mais adequada ao objeto foco das ações de saúde - o indivíduo portador de direitos e deveres. Assim, o termo usuário expressa o indivíduo em sua dinâmica e suas múltiplas e singulares necessidades, devendo ser o foco, o objeto, a razão de ser das ações e serviço de saúde e de toda a rede de atenção à saúde. Cada usuário que busca os cuidados de saúde o faz por possuir necessidades em saúde, as quais são social e historicamente determinadas e, portanto, possuem um componente de natureza subjetiva e individual, o que significa admitir, explicitamente, o valor e as implicações decorrentes deste valor: o individual. Embora a saúde seja um bem coletivo, que diz respeito a toda a sociedade, a doença tem características individuais. Assim, a dimensão social dos fenômenos da saúde é a síntese das exigências, das condições particulares de cada homem ou mulher (STOTZ, 1991). Nesse sentido, falar de necessidades de saúde do usuário 34 requer compreender, além da dimensão social, o contexto mais íntimo e profundo das necessidades de cada indivíduo. Cecílio (2001), embasado em Stotz (1991), apresenta uma reconceitualização da taxonomia das necessidades de saúde. Para ele, estas necessidades podem ser (1) a busca de algum tipo de resposta para as más condições de vida que a pessoa viveu ou está vivendo (do desemprego à violência no lar); (2) a procura de um vínculo (a)efetivo com algum profissional; e (3) a necessidade de ter maior autonomia no modo de andar a vida ou, mesmo, de ter acesso a alguma tecnologia de saúde disponível, capaz de melhorar e prolongar sua vida. Esta “cestinha de necessidades” precisa ser, de alguma forma, escutada e traduzida pelas equipes e serviços de saúde, captada em sua expressão individual, de tal forma que se possa efetivar a integralidade na atenção, tanto em nível de um mesmo serviço (“integralidade focalizada”) como em nível de rede de atenção à saúde (“integralidade pensada no macro”) (CECILIO, 2001). A integralidade da atenção pensada em rede, como objeto de reflexão e de (novas) práticas da equipe de saúde e sua gerência, passa pela compreensão de que ela não se dá, nunca, num lugar só, seja porque as várias tecnologias em saúde para melhorar e prolongar a vida estão distribuídas numa ampla gama de serviços, seja porque a melhoria das condições de vida é tarefa para um esforço intersetorial (CECILIO, 2001). Nesse sentido, garantir ao usuário o acesso e continuidade da atenção no interior da rede de serviços, com integralidade na atenção, é fundamental e deve ser tomado como responsabilidade de todos (Estado, sociedade e famílias), considerando que o acesso e a qualidade dos cuidados em saúde são direitos sociais e humanos fundamentais, como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos e escrito na Constituição Federal. Desse modo, uma rede de atenção à saúde estruturada e integrada possibilita aos seus usuários um atendimento às suas necessidades em saúde, que leve em conta as especificidades culturais, ambientais e socioeconômicas de forma individual dentro do coletivo em que se insere. Logo, a coordenação do cuidado ao usuário no interior da rede é um atributo