Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Psicologia na Engenharia de Segurança, Comunicação e Treinamento Prof. Allan Saffiotti 1ª Edição | Junho | 2014 Impressão em São Paulo / SP Coordenação Geral Nelson Boni Coordenação de Projetos Leandro Lousada Professor Responsável Allan Saffiotti Catalogação elaborada por Glaucy dos Santos Silva - CRB8/6353 Copyright © EaD KnowHow 2011 Nenhuma parte dessa publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação Marilia Lopes Revisão Ortográfica Vanessa Almeida 1a Edição: Junho de 2014 Impressão em São Paulo/SP Psicologia na Engenharia de Segurança, Comunicação e Treinamento Sumário Unidade 1 5 Ciência e Psicologia 1.1 O que é psicologia 1.2 Psicologia e Relações Humanas 1.3 Dinâmica de Grupo Unidade 2 15 Aspectos psicológicos do acidente do trabalho. 2.1 Psicologia e relações de trabalho na atualidade Psicologia 2.2 Aspectos Psicológicos dos Acidentes de Trabalho Unidade 3 22 Treinamento de Pessoal 3.1 O que é Treinamento 3.2 Planejamento Referências Bibliográficas 5 Unidade 1 Ciência e Psicologia 1.1 O que é a Psicologia? A psicologia se estruturou como ciência no fi- nal do século XIX, fruto de um amplo processo his- tórico, tendo recebido influências tanto da Filosofia quanto da Fisiologia. Esta nova ciência foi desenvol- vendo um conjunto de saberes e técnicas que visa- vam à intervenção sobre a ação e a reflexão humana. (SOARES, 2010). Apesar de ser considerada uma ciência jovem, é comum ouvirmos, e também usarmos em nosso cotidiano, termos tirados das práticas e teorias psi- cológicas, ou ainda usarmos o termo psicologia com outros sentidos. Por exemplo, quando alguém fala que o vendedor usou de sua psicologia para conse- guir convencer o cliente a comprar, ou quando se diz que aquele rapaz usou da psicologia para conquis- tar uma garota. Outras vezes, os termos são usados com um sentido mais ou menos próximo ao científi- co, como quando para falarmos de alguém que está triste, dizemos está deprimido, ou quando aponta- mos alguém que fala alto, como histérico. Esse uso aponta para uma apropriação, pela sociedade, do conhecimento construído pela Psicologia enquanto área do saber. Mesmo que esta apropriação ocorra 6 de maneira superficial, implica que os métodos e práticas específicas e a linguagem rigorosa da ciência psicológica tenham sido disseminados pela cultura e alcancem em alguma medida os discursos cotidianos e o senso comum. O objeto de estudo da Psicologia, num sentido mais amplo, é o ser humano, o que a coloca dentro das chamadas ciências humanas e, nesse caso, o pes- quisador também está inserido na categoria a ser es- tudada, já que ele também é um ser humano e viven- cia os fenômenos investigados pela Psicologia. No entanto, há muitos modos diferentes de compreen- der o ser humano e, por isso, há muitas escolas e pa- radigmas dentro da Psicologia, que elegem diferen- tes objetos de estudo para a ciência psicológica. Se perguntarmos a um psicólogo comportamental, ele dirá que o objeto de estudo da Psicologia é o com- portamento humano, pois ele pressupõe que apenas os fenômenos observáveis devem ser estudados. Se perguntarmos a um psicólogo psicanalista, ele dirá que o objeto de estudo é o dinamismo inconsciente, pois pressupõe que grande parte de nossas atitudes provêm de uma instância não totalmente acessível pela racionalidade. Para um gestaltista, a Psicologia estuda a relação entre os diversos fatos psicológi- cos. Outros ainda dirão que é a consciência, ou a personalidade. Estas diferentes formas de estudar e compreender a Psicologia apontam para a diversida- 7 de própria do homem e sua capacidade múltipla de pensar sobre si mesmo. Nesta apostila, caminharemos apoiados, princi- palmente, nas noções da Psicologia Social para com- preender as relações humanas e o mundo do traba- lho. Na perspectiva da Psicologia Social, o universo subjetivo de uma pessoa é influenciado e também influencia as relações sociais em que ela está inseri- da, formando uma totalidade complexa que deve ser analisada em conjunto. Adotaremos, por uma ques- tão didática, a subjetividade como objeto de estudo da Psicologia. Bock, Furtado e Teixeira (2008), afir- mam que a subjetividade: é o ser humano em todas as suas expressões, as visíveis (o comportamento) e as invisíveis (os sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) – é o ser humano-corpo, ser humano-pensamento, ser humano-afeto, ser huma- no-ação e tudo isso está sintetizado no termo subjeti- vidade. (p.22) A Psicologia Social, como uma disciplina de fronteira entre a vivência psíquica, (individual) e o mundo socialmente construído, não se caracteriza por focalizar a subjetividade no homem separado de seu contexto, mas pela exigência de encontrar o homem 8 no campo intersubjetivo e horizontal das experiências compartilhadas no meio em que nos encontramos. Isto significa que o homem só pode ser compreendi- do e encontrado no meio de outros homens (GON- ÇALVES FILHO, 1998). A análise das experiências individuais se beneficia do estudo do tempo social, pela maneira como cada época organiza as relações dos homens entre si e com a natureza. 1.2 Psicologia e Relações Humanas A partir do que foi apresentado, podemos afir- mar que, para a Psicologia Social, a vida em sociedade é condição para nossa existência. Não há algo como uma natureza humana, pois, nosso aparato biológico não garante que tenhamos este ou aquele comporta- mento diante do mesmo estímulo. Quando fazemos a pergunta “quem somos?”, necessariamente, precisa- mos dizer dos nossos pais, das escolas que passa- mos, do bairro e da cidade que moramos, da época que nascemos e dos que vieram antes de nós. Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra, e a partir dela, os homens transformam a na- tureza e criam suas próprias condições (ARENDT, 1989) e a forma como nos relacionamos uns com os outros está sempre relacionada com essas condições e momento histórico. Toda nossa herança cultural, tudo o que o homem produziu ao longo da histó- 9 ria (materialmente, tecnicamente e artisticamente), é condição para nossa existência. Por outro lado, afirmar que o homem é um ser social não significa que ele seja determinado pelo social, pois, se assim fosse, uma geração seria sempre espelho da anterior. Como nos diz Arendt (1989), “o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém- -chegado possui a capacidade de iniciar algo novo”. Na nossa sociedade atual o sistema econômico cada vez mais passa a ser legitimado como forma reguladora dos vínculos sociais, passando a mediar suas relações com a família, trabalho, cidade e até com seu próprio corpo, com enormes perdas nas esferas ética, estética e erótica (BOSI, 1992). Nesse contexto, ao invés do novo, do singular, é esperado de cada um de seus membros certo tipo de compor- tamento, imposto por regras que tem como objetivo a “normalização”. Ao fazê-los “comportarem-se”, aboli-se a ação espontânea e a preocupação recai no equacionamento com a posição social. Daí o confor- mismo típico da sociedade moderna, onde a igual- dade perde seu status de prerrogativa para a liberda- de para se reduzir a questões privadas do indivíduo (ARENDT,1981). Entender essa relação entre condicionamento da sociedade e aparição da singularidade na forma- ção do indivíduo, ou do contrário, no fenômeno da 10 adesão cega a um líder ou uma ideologia (como no caso do nazifascismo) foi uma das questões que mais influenciaram as pesquisas em Psicologia Social ao longo do século XX. 1.3 Dinâmica de Grupo Vários autores em psicologia estudaram como os grupos humanos são formados, como se dão as relações entre os membros do grupo ou com outros grupos, como se mantém coesos ou desmancham, como seus modos de acontecer se cristalizam ouse modificam. Por exemplo, temos as pesquisas de Solomon Asch, as de Kurt Lewin (Psicologia Dinâ- mica), que foram fundamentais para a compreensão das relações humanas no mundo moderno. Asch interessa-se em compreender como os indivíduos são levados a se conformarem com as normas do grupo ao realizarem julgamentos, ainda quando é evidente que estes julgamentos estão in- corretos (ASCH, 1966). Em uma de suas experiên- cias sobre a força de influencia social e processos intergrupais, um sujeito é colocado diante de uma si- tuação aparentemente simples: comparar o compri- mento de linhas em um quadro. Neste experimento, o sujeito é colocado num grupo com mais 19 pessoas (cúmplices do experimentador), que são orientadas a dizer o contrário do que seus olhos veem (apontar a 11 linha maior como menor, sendo que a diferença de tamanho é significativa). O perturbador desse expe- rimento é que, em muitos casos, o sujeito acaba por concordar com a maioria, negando a própria per- cepção. Outros apresentam resistência a opinião do grupo e afirmam o que percebem. Entretanto, nem os que aderiram ao grupo de controle nem os que se opuseram o fizeram de forma tranquila: é sempre angustiante a experiência de ter uma percepção mui- to diferente daquela do seu grupo de pertencimento. A realidade é socialmente construída, e não é sem grande esforço nem sem angústia que se consegue “descolar” desses sentidos. Kurt Lewin foi um dos mais influentes pesqui- sadores sobre processos grupais do século passado, contribuindo com estudos pioneiros sobre o com- portamento em climas sociais experimentalmente manipulados e cunhando a expressão “dinâmica de grupo” em um de seus artigos (MAILHIOT, 1998). Para Lewin, é mais fácil alterar o comporta- mento de um grupo, como um todo, que o com- portamento dos membros isolados. Ele afirmava que o indivíduo, inserido num grupo, modifica o seu comportamento e induz mudanças nos comporta- mentos dos restantes membros do grupo, e que não podemos compreender esses comportamentos sem considerar aspectos do ambiente (“externos” à pes- soa) e de personalidade (“internos” à pessoa). Num 12 de seus experimentos sobre liderança, dividiu crian- ças em grupos com um controle experimental dos comportamentos dos líderes adultos, que consistiu em fazer com que cada um dos líderes de agisse de maneira preestabelecida. Foi proposto o estudo de três tipos de liderança: a democrática, a autocrática e a permissiva (laissez-faire). Foi uma pesquisa pionei- ra, e, pelo tema, muito criticada. A influência de cada tipo de grupo sobre o comportamento individual dependeu da atmosfera que caracterizou o grupo, por exemplo, no grupo autocrático, foi observado um aumento da agressividade entre os componen- tes. Outra aspecto é que quanto mais o indivíduo concorda com os valores do grupo, mais ele adquire valência positiva e adere a influência do grupo. Pelo tema e pelo pioneirismo, Lewin foi muito criticado em relação as suas pesquisas. 13 Exercícios de Fixação 1) Explique, com suas palavras, qual a relação entre indivíduo e sociedade. 2) Outro pesquisador que modificou a forma de pensar as relações humanas no contexto do trabalho foi Elton Mayo. Faça uma pesquisa sobre a “Experi- ência Hawthorne” e o que ele descobriu sobre rela- ções humanas no trabalho e compare com a maneira como a empresa onde trabalha (ou sua experiência mais recente) organiza as relações de trabalho. Sugestão de Sites para Pesquisa Conselho Federal de Psicologia: http://www. cfp.org.br/ Conselho Regional de Psicologia: http://www. crpsp.org.br/portal/ Associação Brasileira de Psicologia Social: http://www.abrapso.org.br/ Teoria das Relações Humanas (Experiência de Hawthorne): http://www.professorcezar.adm.br/ Textos/Teoria%20das%20relacoes%20humanas. pdf 15 Unidade 2 Psicologia e Acidentes de Trabalho 2.1 Psicologia e relações de trabalho na atualidade O trabalho é, atualmente, matéria de estudo de inúmeras disciplinas, que o estuda em seus diversos aspectos: Engenharia, Medicina, Psicologia, Nutri- ção, Economia, Sociologia, Filosofia, entre muitas outras, debruçam-se para compreender a relação en- tre homem e trabalho. Essa importância se dá por- que o trabalho ocupa um lugar central na relação do homem com o mundo e muitos autores defendem que a humanidade surgiu com o trabalho (BOCK, FURTADO E TEIXEIRA, 2008). Dentre as muitas formas de se aproximar do trabalho, escolhemos analisar segundo a forma como está organizado no sistema capitalista atual. Este sis- tema revolucionou as relações de trabalho porque transforma o próprio trabalho em mercadoria e tam- bém porque esse sistema promoveu (e promove) o acumulo de capital ao mesmo tempo em que promete uma igualdade entre todos que não é possível. No início do século XX, com as evoluções tec- nológicas da produção, surgiu a necessidade de uma melhor organização do trabalho e de diminuir custos com o treinamento de pessoal. A Psicologia compa- rece aqui desenvolvendo testes e formas de seleção de pessoal, sendo que grande parte dos estudos e das 16 práticas se constituiu vinculada a um ideário de con- trole e adaptação do indivíduo, próximos da política do “homem certo no lugar certo” do Taylorismo e do Fordismo. Na atualidade a opção neoliberal, que se tornou hegemônica no campo econômico, leva as organi- zações as sofrerem constantes transformações tanto nas estruturas administrativas quanto na execução do trabalho, que revertem para os trabalhadores em perdas salariais e sociais, com aumento do ritmo e das jornadas de trabalhos. Também observamos uma perda do poder de negociação, já que o discurso da competitividade necessária e a constante ameaça de demissão geram controle disciplinar. 2.2 Aspectos Psicológicos dos Acidentes de Trabalho É muito comum, ao assistirmos à televisão ou lermos as notícias diárias, encontrarmos nas man- chetes: acidente no transito envolvendo um cami- nhão e uma moto, uma laje desaba num canteiro de obras, um operário é ferido numa fábrica, entre mui- tos outros. Como compreender as razões dos aci- dentes e evitá-los? Os acidentes do trabalho constituem a face visí- vel de um processo de desgaste e destruição física de parcela da força de trabalho no sistema capitalista e são responsáveis por centenas de milhares de mortes 17 no mundo, além de provocar doenças ocupacionais em milhões de trabalhadores (VILELA, 2003). O trabalhador, no momento que executa sua função em qualquer ambiente de trabalho, está ex- posto às condições ligadas a este ambiente, tanto no seu aspecto físico, químico, biológico como aos aspectos de higiene e segurança. Os aspectos do ambiente estão relacionados com as cargas físicas e, estas, com o sofrimento do corpo. A organização do trabalho, abrangendo aspectos de divisão do traba- lho, conteúdo da tarefa, sistema hierárquico, modalidades de comando, relações de poder e responsabilidades está relacionada com as cargas mentais e com o sofrimento ao nível mental do trabalhador (GONÇALVES, XAVIER & KOVA- LESKI, 2005). Dentro deste contexto, a compreensão dos acidentes de trabalho tem sido historicamente no sentido de cul- pabilizar o trabalhador, como agente que comete atos inseguros, não seguindo as recomendações e normas de segurança. O campo da análise acidentológica vem apresentando muitos avanços, entretanto, as concep- ções baseadas no binômio, atos inseguros-condições inseguras mantém seu vigor e poder de sedução (OLI- VEIRA, 2007). 18 Na velha visão baseada na Teoria da Culpa, o acidente de trabalho seria causado ou por um “ato inseguro” (toda falha humana que pode levar à aci- dentes) ou por “condição insegura” (situação gerada por uma falha material). Lamentavelmente no Bra- sil predomina esta visão simplista e preconceituosa, que não tem como produzir efetivas modificações que avancem para um ambiente com produção se- gura (VILELA, 2003). Esta concepção dicotômica emonocausal está ultrapassada há décadas em países desenvolvidos, mas continua prevalecendo aqui. O empresariado brasileiro tem tratado as nor- mas apenas como exigência legal. Como um aciden- te do trabalho pode originar demanda na justiça por indenizações, acabam cumprindo os requisitos míni- mos para evitar problemas com a fiscalização e a jus- tiça do trabalho. A preocupação com o todo, quando ocorre, é motivado apenas pelo problema jurídico que um acidente de trabalho pode gerar. Olhar a realidade da segurança do trabalho é enxergar os opostos de uma realidade, onde, infelizmente, por enquanto, ainda estamos longe das condições ideais (GONÇALVES, XAVIER & KOVALESKI, 2005). Oliveira (2007) aponta que os conceitos de ato inseguro e condição insegura são centrais na “teoria dos dominós”, elaborada por Herbert Heinrich na década de 1930. Nesta teoria, o acidente seria cau- sado por uma cadeia linear de fatores, semelhante a 19 uma sequência de dominós justapostos, que termi- naria na lesão. A primeira peça seria os “fatores so- ciais e ambientais prévios” responsáveis pela forma- ção do caráter dos operários. Os comportamentos inadequados dos trabalhadores seria a segunda peça, que poderiam vir a constituir-se em comportamen- tos de risco que, associados à presença de condições inseguras (atos e condições inseguros são a terceira peça do dominó), levariam à ocorrência do acidente e à lesão, formando a quarta e a quinta peças da se- quência de dominós. Essa compreensão sobre o fenômeno do aci- dente do trabalho provocou, ao longo do tempo, um processo de naturalização dos riscos, que sig- nifica acreditar que as condições em que o trabalho é realizado não têm uma perspectiva de mudança num horizonte próximo. Dessa forma, os riscos são tratados como “inevitáveis” ou “inerentes ao trabalho”, o que limita muito as possibilidades de prevenção, já que a única dimensão do traba- lho que pode ser alterada é o próprio trabalhador (OLIVEIRA, 2007). Essa compreensão se tornou hegemônica ao longo do século passado, e os ma- teriais de campanha de prevenção de acidentes de trabalho ajudaram a diluir a responsabilidade do empregador frente aos acidentes do trabalho: a di- minuição aconteceria pelo treinamento e/ou por uma melhor seleção de pessoal. 20 Um exemplo de naturalização dos riscos é acre- ditar que o processo de trabalho que envolve o uso de britadeira não possa ser melhorado no sentido de diminuir os riscos de acidente ou de doenças ocupacionais; ou que o instrumento britadeira (que sabidamente provoca múltiplas lesões em quem a opera) não possa ser modificado para proteção do trabalhador, ou ainda acreditar que esse instrumento é insubstituível, não levando em conta a possibili- dade que se use (ou crie) outro instrumento menos danoso a saúde do trabalhador. Em seu artigo, Oliveira (opus cit) estuda as compreensões sobre acidentes de trabalho numa empresa metalúrgica de grande porte, e nele apre- senta um exemplo de modificação no processo de trabalho que teve efeito desnaturalizador. O se- tor de montagem, que tinha número considerável de acidentes envolvendo prensamento de dedos e mãos, conseguiu que diminuísse muito esses aci- dentes através da introdução de talhas para sus- pender e transportar objetos pesados. Esse evento mostrou aos trabalhadores que certos riscos que pareciam fazer parte da natureza de sua atividade de trabalho poderiam ser eliminados com a sim- ples introdução de melhorias técnicas. Como con- sequência, outros setores passaram a reivindicar as talhas, reconhecendo-as como forma de pre- venção de acidentes. 21 Os acidentes do trabalho, na atualidade, pas- saram a ser vistos como fenômenos complexos e multicausais (VILELA, 2003). Dwyer (1989) afirma são influenciados por fatores relacionados à situa- ção imediata de trabalho (o maquinário, a tarefa, o meio técnico ou material) e também pelas relações de trabalho. A abordagem tradicional, além de culpabilizar a vítima, não tem promovido mudanças efetivas, pois parte da fantasia do ser humano ideal, do “operário padrão”: este não erra, não se cansa, não fica doente, não envelhece, não se apressa nem se mantém lento. Se a pessoa está cansada, não caberia uma análise básica da causa deste cansaço? Se a posição é de- feituosa, não cabe perguntar o que determina esta postura? Ela não pode ser ocasionada por exigências das tarefas ou da própria concepção do equipamen- to? (VILELA, MENDES & GONÇALVES, 2007). Vilela (2003) nos aponta que a visão sistêmi- ca do fenômeno acidente seria uma outra maneira de compreender os acidentes do trabalho. Nela, os processos de trabalho são concebidos, projetados e executados de modo a suportar, como naturais, as falhas humanas: leva-se em consideração as limi- tações biológicas, fisiológicas e psicológicas do ser humano. Este é o princípio ‘da falha segura’, onde a prevenção parte da premissa que os processos, me- canismos e sistemas de trabalho já devem antecipar e 22 prever as possíveis falhas ou erros humanos, criando condições e ambientes de trabalho que os abriguem. O acidente, nesta visão, aponta que as capacidades de controle do sistema forma excedidas, e que o aci- dente era previsível antes de sua ocorrência. Vários autores (OLIVEIRA, 2007; VILELA, opus cit.; VILELA, MENDES & GONÇALVES, opus cit.) concordam que se faz necessário uma mu- dança profunda na cultura dos profissionais envolvi- dos na área de segurança do trabalho, no sentido de superar a barreira ideológica que representa o “ato inseguro” como o causador dos acidentes do tra- balho. No planejamento de ações transformadoras devemos difundir os exemplos de intervenções e da elaboração de propostas consistentes de mudanças. Dentre essas, é fundamental criar uma estrutura que contemple a fala dos trabalhadores sobre os proces- sos de trabalho, proposição de mudanças e sobre os acidentes que eles testemunharam ou sofreram. 23 Exercícios de Fixação 1) Explique o que é “ato inseguro” e “condi- ções inseguras”. 2) Faça análise sobre a Teoria da Culpa, expli- cando porque ela é ineficiente para promover mu- danças que levem à diminuição de riscos e de aciden- tes do trabalho. Site para Pesquisar Portal do site Segurança do Trabalho Online, onde há centenas de artigos publicados, de profissio- nais de diversas áreas, sobre acidentes do trabalho: http://www.segurancaetrabalho.com.br/t-aci- dentes.php 24 Unidade 3 Treinamento de Pessoal 3.1 Treinamento e Segurança no Trabalho Segurança do Trabalho é o conjunto de recur- sos e técnicas aplicadas, de forma preventiva ou cor- retiva, para proteger os trabalhadores dos riscos de acidentes implicados em um processo de trabalho ou na realização de uma tarefa (TAVARES, 2007). De acordo com Vilela (2003), foi a partir do advento da corrida por certificações de qualidade com as normas internacionais no final da década de 90 (BS 8800 - Guide to occupational helth and safety management systens e a OHSAS 18001- Occupational Helth and Safety Assessment Se- ries), que a seriedade no tratamento da segurança do trabalho vem avançando nas organizações. Po- demos apontar como um dos principais avanços a mudança da visão baseada na proteção para a visão baseada na prevenção. Atualmente, é possí- vel indicar a repetição de eventos precursores para pelo menos estimar de maneira razoável a proba- bilidade de um acidente. O sinal precursor deve possuir algumas propriedades, tais como: caráter desfavorável, adverso, negativo, contrário à segu- rança do complexo industrial, repetitivo e poten- cialmente perigoso. 25 Infelizmente, em sua maioria, o empresariado brasileiro ainda trata as normas apenas como exi- gência legal, muitas vezes cumprindo os requisitos mínimos somente para evitar problemas com a fis- calização e a justiça do trabalho. A preocupação com o todo, quando ocorre, é motivado por um acidente de trabalho apenas pelo problema jurídico quedis- so decorre (GONÇALVES, XAVIER & KOVA- LESKI, 2005). Para o Técnico em Segurança do Trabalho (TST), que se ocupa da proteção do trabalhador em seu local de trabalho, o treinamento de pessoal é uma de suas principais ferramentas a fim de preve- nir riscos e de acidentes nas atividades de trabalho. Segundo Tavares (opus cit.) o TST deve estar apoia- do nas normas, nos sinais precursores e no conhe- cimento dos processos de trabalho, para promover debates, encontros, campanhas e treinamentos, com o objetivo de evitar acidentes do trabalho e doenças profissionais e do trabalho. De forma geral, podemos conceituar treina- mento como “um processo de assimilação cultural em curto prazo, que objetiva repassar ou reciclar conhecimento, habilidades ou atitudes relacionadas diretamente à execução de tarefas ou à sua otimiza- ção no trabalho” (MARRAS 2001, p. 145). Treino implica em aprendizado, e uma das formas de com- preender aprendizado é “adquirir competências e, 26 por conseguinte, melhorar desempenho” (SOUZA, 2009). Para Chiavenato (1999, p. 294) o treinamento é “uma maneira eficaz de delegar valor às pessoas, à organização e aos clientes”, e implica num enrique- cimento do patrimônio humano. 2.2 Planejamento Para Borges-Andrade (1986), treinamento pode ser definido como o modo como os profissionais de educação e treinamento conhecem, compreendem e predizem as questões relativas às mudanças de de- sempenho de uma pessoa e o que é feito para que a mudança seja obtida. Os elementos que compõem o treinamento são: avaliação de necessidades, plane- jamento de treinamento e avaliação de treinamento. É nesse sentido que é função do TST, apoia- do nas normas de segurança, avaliar o ambiente e processos de trabalho, assim como questionar como treinar o trabalhador para que conheça os proces- sos e riscos envolvidos em sua função e, a partir daí, assuma atitudes seguras. É importante ressaltar que não adianta apenas qualificá-lo para o seu melhor desenvolvimento dentro da organização, faz-se ne- cessário também motivar o indivíduo a não adotar comportamentos de risco. Vilela (2003), ao fazer uma análise dos mate- riais de campanha de prevenção de acidente (carta- 27 zes, livros de formação dos TST, vídeos), aponta que a sugestão para criar um programa de “motivação adequada nos trabalhadores” (grifos do autor), é sempre adaptar o trabalhador aos riscos existentes ao processo produtivo, numa clara transferência de responsabilidade da empresa para vítima. Esse ainda é o sentido observado nos treinamentos e em mate- riais de campanhas distribuídos pelas empresas. Marras (2001, p. 150) afirma que para um trei- namento ser eficiente, é necessário a avaliação das necessidades, e que o objetivo desta avaliação é res- ponder basicamente a duas questões iniciais: 1. Quem deve ser treinado? 2. O que deve ser aprendido? A resposta óbvia para a primeira pergunta se- ria: o trabalhador. Entretanto, se quisermos real- mente proporcionar uma mudança de cultura na área de segurança, precisamos ampliar a questão: como mobilizar todos os atores envolvidos na- quele processo de trabalho, desde o trabalhador (que lida diretamente com o risco), os gerentes (que acompanham e organizam o trabalho) até os diretores (que decidem o que vai ser feito e em que condições), para que os acidentes de trabalho sejam prevenidos? Dessa forma, trazemos para o foco da responsabilidade sobre os acidentes não só para o trabalhador, mas para aqueles que esco- lhem os instrumentos, locais de trabalho e proces- sos que serão utilizados. 28 A resposta para a segunda questão começa com as normas internacionais e as nacionais que regem a segurança do trabalho. Apontamos também outras duas fontes importantes para a construção do que vai ser ensinado: os estudos sobre os acidentes de trabalho e os próprios trabalhadores, que conhecem melhor que qualquer especialista as dificuldades e riscos envolvidos na atividade Vilela (opus cit.) aponta que uma investigação criteriosa sobre a origem dos acidentes de trabalho deve possibilitar a compreensão da atividade real de trabalho numa situação sem o acidente e com aciden- te, para que se possa perceber o que houve de mudan- ça para que fosse desencadeado o acidente. O autor ainda faz a ressalva de que, nessa investigação, situa- ção sem acidente não é o mesmo que atividade pres- crita ou norma de segurança, já que muitas vezes são distintas da atividade realizada. Deve-se utilizar todos os recursos disponíveis (fotos, documentos, entrevis- tas) para se responder a estas perguntas em situação normal e na situação alterada: O que faz e porque faz?; Com quem e como faz?Em que tempo faz? Com o que faz? Quando e onde faz?Em que condições faz? As respostas vão nos levar ao encontro dos fa- tores situados na origem dos acidentes, o que nos leva à busca das causas das causas, que devem ser o alvo para as medidas de prevenção, pois, quando sanadas, evitam que outros acidentes ocorram. 29 A segunda fonte de informações para plane- jarmos os treinamentos são os trabalhadores. Atual- mente, é valido afirmar que os treinamentos e reso- luções de trabalho que são mais efetivos são aqueles em que o conhecimento dos trabalhadores é leva- do em conta. Essa é uma atitude nova dentro dos processos organizacionais, já que tradicionalmente o controle sobre todos os processos envolvendo o trabalho fica centralizado nos gestores e na figura do especialista (administradores, engenheiros, advo- gados, entre outros), cabendo ao trabalhador apenas a adequação a tarefa. Essa situação também afeta as condições de segurança no trabalho já que, por exemplo, apesar dos trabalhadores terem obrigação de verificar as condições de trabalho e de não aceitar condições inseguras, revelam o medo de recusarem- -se a trabalhar, de “ficarem marcados” pelas chefias e de serem alvos de retaliações. (OLIVEIRA, 2007). Essa forma de gestão é baseada no modelo de administração taylorista que descoletivizou os traba- lhadores. Entretanto, é comum os trabalhadores ado- tarem formas de contra-controle que visam ao mesmo tempo garantir a programação do trabalho (interesse da gerência) e continuamente manter o controle por parte dos trabalhadores, respeitando o limite subjeti- vo (SATO, 1993). Essas práticas foram chamadas por Sato (opus cit) de ações adaptativas¸ e modificam o trabalho planejado, podem ser sadias ou provocar au- 30 mento de risco para a segurança do trabalhador e/ou para a qualidade do produto ou do serviço. O profissional de segurança, diante desta situ- ação, precisa buscar caminhos para superar os con- flitos e criar canais institucionais para encaminhar as questões relativas a segurança que surgem no cotidia- no. Ao trazermos o trabalhador para o processo de planejamento do trabalho, a intenção é considerar ex- plicitamente tanto o aspecto técnico (que envolve os materiais e instrumentos disponíveis, conhecimentos e processos de trabalho) quanto o aspecto humano (mundo social e mundo subjetivo, ou seja, desejos, valores, limites pessoais e demandas). Quando a or- ganização do processo de trabalho amplia o controle por parte dos trabalhadores, não apenas cuidamos da saúde do trabalhador, mas também damos suporte a produtividade e a qualidade do produto. Ao planejar e executar treinamentos alguns cui- dados precisam ser considerados, pois, dependendo da forma ou do contexto em que ele ocorre, ele pode não provocar o efeito desejado. Bley (2004) afirma que, “uma vez decretada ‘a causa’ do acidente, os envolvidos no evento normalmente tem um desti- no único: a sala de treinamento” (p. 1), mostrando que o treinamento acaba por assumir uma função de punição ou instrumento de correção, empregando enorme quantidade de horas de vários profissionais e não demonstrando correlação com a diminuição 31 do número de acidentes. Outro equívoco comum é aapropriação simplificada de conceitos da Psicologia e sua aplicação distorcida em treinamentos, como, por exemplo, alguns programas de incentivo com distribuição de brindes e as apresentações de vídeos e fotos de acidentes como forma de conscientização. Além de infantilizar o trabalhador, torna o momen- to de treinamento ora um recreio ora uma punição, deixando em segundo o plano sua principal função: promover a saúde, em suas várias dimensões, e a qualidade de vida dos trabalhadores. A mudança de paradigma, da proteção para a prevenção, implica em pensar a promoção da saúde no trabalho, e essa transformação vai depender da ação conjunta de trabalhadores, sindicalistas e técni- cos na formação de agentes multiplicadores atuando nas bases, visando sempre o coletivo do trabalho, não aos indivíduos isoladamente. 32 Exercícios de Fixação 1) De acordo com o proposto na apostila, o que precisamos levar em conta quando planejamos um treinamento, tentando superar o binômio atos inseguros-condições inseguras? 2) O cinema, que pode tanto ser usado para do- minação cultural e ideológica, também pode ser usa- do para convidar a uma reflexão crítica. No brilhante filme de Chaplin, Tempos Modernos (Modern Ti- mes, 1936), há uma crítica ao Taylorismo-Fordismo e à fraqueza do operário frente à linha de monta- gem e as máquinas. À luz do que foi estudado nesta unidade, assista ao filme e faça um exercício: pensar que tipos de intervenções, no ambiente apresentado, você faria para melhorar a qualidade de vida do tra- balhador e prevenir acidentes? Sugestão de Sites para Pesquisa Serviço Brasileiro de apoio às Micro e Pequenas Empresas - Sebrae www.sebrae.com.br Associação Brasileira de Treinamento e Desen- volvimento http://portal.abtd.com.br/portal/home.html 35 Referências Bibliográficas ASCH, Solomon Eliot. Psicologia Social. Trad. Dante Mo- reira Leite e Miriam Moreira Leite São Paulo: Nacional, 1966 2ed. ARENDT, Hannah. A condição Humana. Rio de Janei- ro: Editora Forense-Universitária Ltda, 1981. 360p BLEY, Juliana Zilli. Variáveis que caracterizam o proces- so de ensinar comportamentos seguros no trabalho. Disserta- ção de Mestrado em Psicologia, UFSC, 2004. BOCK, Ana Mercês Bahia Bock; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias – Uma in- trodução ao estudo de Psicologia. São Paulo : Saraiva S.A. – Li- vreiros Editores, 2009. BORGES-ANDRADE, Jairo Eduardo. (1986). Por uma competência técnica no treinamento. In: Psicologia, Ciência e Profissão, 2, 9-17. CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: O novo papel dos recursos humanos nas organizações. 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1999. DEJOURS, Christophe. (2003) - A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez – Oboré. 36 DWYER, Tom. Acidentes do trabalho: em busca de uma nova abordagem. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 19-31, 1989. ____________. Uma Concepção Sociológica dos aciden- tes de trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. 81, vol. 22:15-19, 1994. GONÇALVES, S. P. G.; XAVIER, A. A. de P.; KOVA- LESKI, J. L. A visão da ergonomia sobre os atos inseguros como causadores de acidentes de trabalho. In: Encontro Na- cional de Engenharia de Produção, 25., 2005, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, 2005. GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação Social – um problema político em psicologia. Psicologia USP, 1998, vol. 9, nº 2, p. 11-67. ISSN 0103-6564. MAILHIOT, Gérald Bernard. Dinâmica e Genese dos Grupos: Atualidades das descobertas de Kurt Lewin. São Paulo : Duas Cidades, 1998. MARRAS, Jean Pierre. Administração de Recursos Hu- manos: Do Operacional ao Estratégico. 4. ed. São Paulo: Fu- tura, 2001. OLIVEIRA, Fábio de. A persistência da noção de ato inseguro e a construção da culpa: os discursos sobre os acidentes 37 de trabalho em uma indústria metalúrgica. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007. SATO, Leny. A representação social do trabalho penoso. In: SPINK, M.J.; org. O conhecimento no cotidiano: as repre- sentações sociais na perspective da psicologia social. São Paulo, Brasiliense, 1993. SOARES, Antonio Rodrigues. A Psicologia no Brasil. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 30 (núm. esp.), 8-41, 2010. SOUZA, Claudemir dos Santos. Estratégias de Compe- tência e Aprendizagem no Trabalho. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília : 2009. TAVARES, José da Cunha. Tópicos de Administração aplicada à segurança do trabalho. São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2007. VILELA, Rodolfo Andrade Gouveia. Teoria da Culpa: a conveniência de um modelo para perpetuar a impunidade na investigação das causas dos AT. In: XXIII Encontro Nacional de Engenharia de Produção. Ouro Preto-MG, 2003. VILELA, Rodolfo Andrade de Gouveia; MENDES, Re- nata Wey Berti; GONÇALVES, Carmen Aparecida H. Gon- çalves. Acidente do trabalho investigado pelo CEREST Pira- 38 cicaba: confrontando a abordagem tradicional da segurança do trabalho. In: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 32, 29-40 (115) São Paulo, 2007.
Compartilhar