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APG 14 - Síndrome do abdome agudo 1. Compreender os tipos (inflamatório, obstrutivo, perfurativo, hemorrágico, isquêmico e traumático), manifestações clínicas e diagnóstico (anamnese, exame físico, manobras, exames complementares) das síndromes abdominais agudas 2. Analisar as causas abdominais e extra-abdominais do abdome agudo (Harrison) Abdome agudo inflamatório Patogênese É o tipo mais comum de abdome agudo. Habitualmente, o processo se inicia com a obstrução mecânica de vísceras ocas normais, ou anatomicamente alteradas (divertículos, por exemplo), originando diversos fenômenos inflamatórios na parede da víscera, com tendência à progressão para infecção franca e comprometimento da vascularização do órgão. Manifestações clínicas O início do quadro geralmente é insidioso, com sintomas a princípio vagos (dor abdominal incaracterística, náuseas, anorexia, vômito, alteração do trânsito intestinal). A dor abdominal pode levar de uma a várias horas para atingir seu pico, ocasionalmente até dias, sendo inicialmente mal definida. Com o evoluir da doença, e com o acometimento do peritônio parietal adjacente ao órgão afetado, a dor torna-se bem localizada e piora progressivamente. É comum a presença de massas à palpação do abdome, resultantes da reação do peritônio à agressão, na tentativa de limitar o processo e preservar o restante da cavidade. ➔ Apendicite Constitui a causa mais comum de abdome agudo do cirúrgico. A fase inicial apresenta dor epigástrica ou periumbilical, tipo visceral, seguida por anorexia, náuseas e vômito (menos comuns), e posterior localização da dor em quadrante inferior direito, tipo somática. A constipação intestinal e a parada de eliminação de flatos é comum, mas ocasionalmente pode haver diarreia. A febre é baixa e a leucocitose moderada (até 15.000), com desvio para a esquerda. Ao exame físico Sinal de McBurney ou Blumberg – descompressão brusca dolorosa – dor após a retirada de uma compressão lenta e profunda no abdome Sinal de Rosving – palpação profunda e contínua no quadrante inferior esquerdo que produz dor intensa no quadrante inferior direito Sinal do Obturador – dor na região hipogástrica durante a rotação interna da coxa previamente fletida até o seu limite Sinal de Lapinsky (ou do músculo Psoas) - dor à compressão do ceco contra a parede posterior do abdome enquanto se eleva o membro direito estendido Em alguns pacientes é palpável plastrão em Fossa Ilíaca Direita, correspondendo a bloqueio por epíplon e alças intestinais ao processo inflamatório local Diagnóstico Os raios X simples mostram achados inespecíficos, mas recentemente descreveu-se um novo sinal radiológico, constituído por imagem de acúmulo de fezes no ceco, identificado em cerca de 90% dos casos de apendicite. A ultrassonografia apresenta uma sensibilidade de 94%, confirmando o diagnóstico clínico, especialmente ao demons- trar o apêndice inflamado, visto como uma estrutura tubular aperistáltica, não compressível, com paredes espessadas, ou a imagem “em alvo” no corte transversal. A tomografia pode ser necessária, avaliando diretamente o apêndice inflamado, e, principalmente, dando informações sobre diagnósticos alternativos naqueles casos atípicos, o que pode reduzir o número de cirurgias não terapêuticas. ➔ Colecistite A colecistite está associada à litíase biliar em 95% dos casos. A dor inicialmente é epigástrica, visceral, acompanhada de náuseas e vômito, e posteriormente mais intensa e localizada no quadrante superior direito, podendo irradiar-se para as regiões lombar direita e escapular direita. A febre geralmente é baixa, e a leucocitose, moderada (até 15.000). A presença de icterícia intensa no início do quadro faz pensar em colangite. Ao exame físico Sinal de Murphy – dor intensa, interrupção da respiração e contratura de defesa quando é pressionado o ponto cístico Em 1/3 dos casos pode ocorrer a presença de massa no hipocôndrio direito que representa bloqueio do epíplon à vesícula biliar em resposta ao processo inflamatório. Diagnóstico O método de imagem de escolha para o diagnóstico é a ultrassonografia abdominal. ➔ Pancreatite A principal causa de pancreatite aguda é a litíase biliar. O quadro clínico é polimorfo, sendo a dor de início súbito, contínua, localizada em epigástrio, hipocôndrios ou região umbilical. A dor tipicamente é em faixa, com irradiação dorsal, acompanhada de náuseas e vômito frequentes, além de distensão abdominal. Ao exame físico Sinal de Grey-Turner – presença de equimoses em flancos: indicativo de hemorragia intraperitoneal Sinal de Cullen – presença de equimoses em região periumbilical: indicativo de hemorragia intraperitoneal Sinal de Giordano – dor à percussão na região lombar Diagnóstico Na avaliação laboratorial, observa-se elevação da amilase e da lipase; essas enzimas podem elevar-se em outras situações de abdome agudo Leucograma, hematócrito, ionograma, glicemia, cálcio, gasometria arterial e principalmente a PCR são exames importantes para avaliação do quadro e indicação prognóstica. O papel da ultrassonografia na pancreatite aguda é, sobretudo, identificar colelitíase. A tomografia é o método ideal para avaliação do parênquima pancreático, determinando a gravidade da doença e fornecendo critérios prognósticos (critérios de Balthazar). ➔ Diverticulite A localização mais comum da diverticulite é no sigmoide, onde, associados ao cólon descendente, encontram-se 90% dos divertículos do cólon. Doença comum em idosos manifesta-se clinicamente por dor em quadrante inferior esquerdo, febre e constipação intestinal. Náuseas e vômito não são proeminentes, mas há distensão abdominal leve. Pode haver disúria e polaciúria devido à proximidade com a bexiga. Leucocitose é comum. Ao exame físico Sinal de McBurney ou Blumberg – descompressão brusca dolorosa – dor após a retirada de uma compressão lenta e profunda no abdome Uma massa em fossa ilíaca esquerda é palpável em aproximadamente 20%dos pacientes devido inflamação pericolônica ou abscesso peridiverticular. Diagnóstico O método de imagem de escolha na fase aguda é a tomografia, sendo um exame seguro, com risco de perfuração negligenciável, além de causar menos desconforto. Deve-se evitar a realização da colonoscopia na fase aguda, devido ao risco de perfuração. ➔ Doença inflamatória pélvica As pacientes com DIP geralmente cursam com dor à palpação em andar inferior do abdome ou à mobilização cervical. Não é rara a presença de massa anexial palpável ao exame físico abdominal. Pacientes com evolução insatisfatória podem cursar com abscesso pélvico, febre e corrimento vaginal de odor fétido. O exame físico completo é fundamental, com exame especular (inspeção do colo do útero para friabilidade secreção mucopurulenta) e exame bimanual para avaliação uterina, dor à mobilização cervical ou anexial e massas pélvicas Abdome agudo perfurativo Trata-se de uma das causas mais frequentes de cirurgia abdominal de urgência. A dor tem início súbito, geralmente dramático, já começando de forma intensa, rapidamente atingindo seu pico. Os pacientes costumam precisar a hora exata do início do sintoma. O problema advém do extravasamento de secreção contida no trato gastrintestinal para a cavidade peritoneal, o que é traduzido por peritonite. A dor tipo somática vem da irritação química do peritônio, e, quanto menor o pH, maior a irritação. As perfurações costumam ser divididas em altas (gastroduodenal e delgado proximal) e baixas (delgado distal e cólon). Nas perfurações mais baixas de delgado, a dor abdominal é mais discreta, e os sinais de irritação peritoneal são menos exuberantes, mas originam quadros sépticos mais precoces, em função da flora bacteriana local. Perfurações do delgado proximal comportam-se como as gastroduodenais, com dor abdominal intensa e grande irritação peritoneal. Perfurações do intestino grosso traduzem manifestações clínicas e peritoneais intensas, com evolução rápida para peritonite fecal, devido ao conteúdo altamente infectado desse segmento. Ao exame físico Demonstrasilêncio abdominal e rigidez muscular, detectada como “abdome em tábua”. A temperatura é normal, e náuseas e vômito podem estar presentes. Sinal de Jobert – sons timpânicos ao invés de maciços na região da linha hemiclavicular direita – área hepática: indicativo de ar livre na cavidade abdominal (perfuração de víscera oca, pneumoperitônio) A radiografia simples revela pneumoperitônio, sendo o exame de imagem de escolha para o diagnóstico. Em 12 h de evolução do quadro, a peritonite química torna-se bacteriana, aparecendo os sinais de infecção. ➔ Úlcera peptica A causa mais comum de perfuração Inicialmente, a dor se localiza no epigástrio, seguida de dor abdominal difusa. A dor pode simular apendicite aguda à medida que migra para o quadrante inferior direito, refletindo o escoamento do líquido extravasado pela goteira parietocólica. O paciente procura manter-se imóvel, com restrição respiratória, devido à irritação peritoneal. Diagnóstico Os exames laboratoriais revelam leucocitose e possível hiperamilasemia. O pneumoperitônio está presente em 80% dos casos. Endoscopia digestiva não deve ser realizada na suspeita de perfuração. Nas perfurações de intestino delgado, as causas mais frequentes são as doenças inflamatórias e infecciosas, os corpos estranhos deglutidos e os tumores. Abdome agudo obstrutivo O sintoma cardinal do abdome agudo obstrutivo é a cólica intestinal, demonstrando o esforço das alças para vencer o obstáculo que está impedindo o trânsito normal. A dor é visceral, localizada em região periumbilical, nas obstruções de delgado, e hipogástrica, nas obstruções de cólon, intercalada com período livre de dor no início da evolução. Os episódios de vômito surgem após a crise de dor, inicialmente reflexos, e são progressivos, na tentativa de aliviar a distensão das alças obstruídas. O peristaltismo está aumentado, exacerbado, e é chamado de peristaltismo de luta. Este é mais bem caracterizado quando se ausculta o abdome no momento da crise dolorosa e se manifesta por uma cascata de ruídos. Quanto mais alta a obstrução, mais precoces, frequentes e intensos serão os vômitos, menor a distensão abdominal e mais tardia a parada de eliminação de gases e fezes. Quanto mais baixa a obstrução, maior distensão abdominal, mais precoce a parada de eliminação de flatos e fezes, e, devido ao super crescimento bacteriano no segmento obstruído, os vômitos, que são tardios, adquirem aspecto fecaloide. Com o progredir da doença, ocorre o comprometimento da vascularização do segmento obstruído, surgindo irritação do peritônio parietal, manifesta por dor somática, contínua, e contratura da parede abdominal, o que geralmente indica sofrimento de alça. Diagnóstico O método de imagem de eleição são raios X simples de abdome em três incidências, que revelam níveis hidroaéreos, edema e distensão das alças, além de localizar o nível e o grau de obstrução, possibilitando também a identificação de corpos estranhos. Radiografia contrastada tem valor limitado, podendo entretanto ser utilizada em casos de obstrução intestinal parcial. A ultrassonografia não é de uso rotineiro. A tomografia é útil em distinguir as obstruções simples das em alça fechada (hérnia, vólvulo), que tendem a estrangular mais facilmente e devem ser operadas precocemente. A tomografia pode identificar espessamento de paredes das alças ou do mesentério, bem como a presença de gás na parede intestinal ou líquido livre na cavidade, o que pode definir a indicação cirúrgica imediata pela suspeita de complicação vascular. Abdome agudo vascular A fisiopatologia envolve uma lesão isquêmica inicial, decorrente da redução do fluxo arterial ou venoso (o que leva a lesões precoces na mucosa, tornando-se posteriormente transmurais), perpetuada pelo vasospasmo reflexo da circulação mesentérica e completada pela lesão de reperfusão (principalmente pela formação e ação de radicais livres de oxigênio, que desencadeiam a síndrome da resposta inflamatória sistêmica, podendo evoluir para falência de múltiplos órgãos). A dor abdominal é o sintoma inicial, geralmente muito intenso, fora de proporções com os achados clínicos, que são inespecíficos. A chave para o diagnóstico precoce é valorizar os sinais, ainda que inespecíficos, em pacientes com fatores de risco para isquemia mesentérica aguda (maiores de 60 anos, portadores de doença aterosclerótica, infarto agudo do miocárdio recente, arritmias cardíacas, em especial a fibrilação atrial, passado de eventos tromboembólicos em outros segmentos do organismo, situações de baixo débito cardíaco como insuficiência cardíaca congestiva, estados hiperdinâmicos com má perfusão periférica, como na sepse, uso de vasoconstritores, e uso de nutrição enteral, pelo aumento não regulável do consumo de oxigênio no intestino). Passada a fase inicial de dor abdominal, vem a fase intermediária, caracterizada por peritonite, que frequentemente confunde o quadro clínico com outras causas de abdome agudo inflamatório. Na terceira fase, acentuam-se os sinais abdominais, surgindo a instabilidade hemodinâmica, o choque refratário e o óbito. Diagnóstico Os exames laboratoriais também são inespecíficos, não exis- tindo marcadores de isquemia ou necrose intestinal, mas hemoconcentração, leucocitose e acidose metabólica, associados aos achados clínicos de distensão, defesa e ausência de peristaltismo sugerem doença avançada. A radiologia convencional afasta outras causas de abdome agudo e pode mostrar espessamento da parede das alças intestinais, alças tubuliformes, fixas e imutáveis, e pneumoperitônio, o que indica lesões em fase bem avançada. A ultrassonografia, principalmente associada ao recurso Doppler, pode identificar a obstrução vascular e estudar o fluxo dos vasos mesentéricos, especialmente dos segmentos proximais. A angiotomografia e a angiorressonância podem ser muito úteis, ao mostrar as alterações isquêmicas nas paredes intestinais e demonstrar o local da obstrução mesentérica, mas um exame normal não exclui o diagnóstico de isquemia mesenté- rica. O diagnóstico de certeza é dado pela arteriografia, que é considerada o padrão-ouro no estudo da isquemia mesentérica, por suas possibilidades diagnósticas e terapêuticas. A arteriografia só deve ser realizada no paciente hemodinamicamente estável. Se o paciente já apresenta sinais de irritação peritoneal no momento do diagnóstico, a arteriografia está contraindicada, devendo o paciente ser encaminhado imediatamente à cirurgia. Se a arteriografia é normal, mas existem sinais de irritação peritoneal, está indicada a laparotomia, pois a causa do abdome agudo pode ser outra que não a vascular. Abdome agudo hemorrágico Nos quadros de abdome agudo hemorrágico, além da dor súbita, chama a atenção o rápido comprometimento hemodinâmico, com palidez intensa e hipovolemia acentuada. Apesar da forte dor, não se encontra contratura muscular no hemoperitônio, visto que o sangue não é tão irritante para a serosa peritoneal. Os exames mostram queda progressiva dos níveis hematimétricos. A ruptura espontânea de vísceras parenquimatosas e a ruptura vascular não são situações comuns, e o abdome agudo hemorrágico é mais frequentemente associado ao trauma, ao pós-operatório e a complicações pós-procedimentos (biopsias hepáticas, por exemplo). Na mulher em idade fértil, sempre ponderar a possibilidade de gravidez ectópica rota. O tratamento é a cirurgia imediata, mas a arteriografia pode ser terapêutica em alguns casos. Nos casos de hematomas pós-operatórios estáveis, a conduta é expectante. Nos pacientes em uso de anticoagulantes, com formação de hematomas abdominais, a conduta também é expectante a princípio, com a suspensão da anticoagulação. A ruptura de aneurisma de aorta abdominal acomete geralmente pacientes idosos do sexo masculino, população na qual a incidência de aneurisma é maior. A aterosclerose é a causa principal, mas trauma, infecção (sífilis) e arterites são causas possíveis. A apresentação clássica é dor abdominal difusa, intensa, associada a hipotensão e massa abdominalpulsátil. Antes da ruptura, o aneurisma passa por um processo de distensão aguda (dito expansão), o que leva ao estiramento do plexo nervoso perivascular, gerando dor intensa nos flancos ou no dorso. Ao exame físico Sinal de Fox - Equimose em região inguinal e base do pênis. Indicativo de hemorragia retroperitoneal. Pode ser encontrado em pancreatite necro-hemorrágica. Sinal de Laffont - Dor referida no ombro direito. É indicativo de hemorragia retroperitoneal, pois o sangue na cavidade peritoneal irrita o nervo frênico. Sinal de Kehr - Dor referida na região infra escapular. O sinal de Kehr no ombro esquerdo é um sinal clássico de ruptura de baço. Falso abdome agudo O falso abdome agudo é definido quando uma doença extra- abdominal evolui com dor abdominal aguda intensa, especialmente quando associada a náuseas, vômito e distensão abdominal. Os maiores responsáveis são infarto agudo do miocárdio, embolia pulmonar e pneumonia de base