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0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP. FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC CAMPUS DE MARÍLIA . MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP. Marília 2007 1 C P Carvalho, Marcio Ricardo de Percepção espacial, crime e medo: entre o real e o imaginário: um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marilia-SP. / Marcio Ricardo de Carvalho. – Marilia, 2007. 174 f,: 30 cm. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2007 Bibliografia: f. 155-164. Orientadora: Profª. Drª. Sueli Andruccioli Felix. 1. Percepção espacial. 2. Crime. 3. Medo. 4. Sociabili dades. 5. Marília/SP. I Autor. II Titulo. CDD 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP. FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC CAMPUS DE MARÍLIA . MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP. Texto apresentado como Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - UNESP “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília. Orientadora: Dra. Sueli Andruccioli Félix Marília 2007 3 MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP. Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - UNESP “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília sob avaliação da Banca Examinadora: __________________________ Drª. Sueli Andruccioli Felix Orientadora __________________________ Drª. Maria Teresa Miceli Kerbauy __________________________ Prof. Drª. Lívia de Oliveira Suplentes: _________________________ Drª. Noêmia Ramos Vieira _________________________ Dr. Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha Marília, 08 de Agosto de 2007. 4 DedicatóriaDedicatóriaDedicatóriaDedicatória Dedico este trabalho a todos os homens e mulheres que se enveredam na luta por uma vida livre de constrangimentos em meio à igualdade e à solidariedade de todos, para todos. 5 AgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentos Neste momento, de encerramento do trabalho desenvolvido, rememoramos as agruras desse caminho sinuoso da universidade pública paulista, em face de tantos constrangimentos e determinações que transcendem comer, morar, vestir-se, manter-se. Alcançar cada etapa na vida acadêmica exige de todos nós um esforço brutal de mediação severa contra os imperativos e as possibilidades do vir-a-ser. Porém, não fazemos quase nada sozinhos. Necessitamos de cada um daqueles que permanecem em nossas linhas, em cada pensamento que contribui para construir esse texto. Relembro-me de todos que compartilharam meus dias. De tantos nomes, seria exaustivo citá-los aqui. Suas consciências sabem o quanto lhes agradeço. Todos, amigos, colegas da Moradia Estudantil, do movimento estudantil, da biblioteca da faculdade, do laboratório de informática, do bar do Kanashiro, do trailer do Oswaldão, do Clube de Cinema de Marília, do Teatro do Sesi, dos cafezinhos do saguão, dos cigarros e cigarros – e mais cigarros... –, das viagens, de muitos lugares, que conseguiram trocar alguma experiência nestes anos de convivência e tentativa de construção de laços de solidariedade. Agradeço, em particular, aos colegas do G.U.T.O. que tanto me auxiliaram e souberam demonstrar a importância do esforço coletivo em meio aos caminhos tão solitários da vida universitária; ao Escritório de Pesquisa que sempre nos auxilia, apoiao e acompanha as expectativas de bolsas, relatórios e pareceres; à Banca Examinadora do Exame de Qualificação da Dissertação, Dr. Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha e Drª Maria Teresa Micele Kerbauy pelas valiosas contribuições; à Banca Examinadora do Exame Geral de Defesa da Dissertação, Drª Maria Teresa Micele Kerbauy e Drª Lívia de Oliveira pela avaliação profunda, crítica e generosa deste trabalho; e e à FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela bolsa de pesquisa concedida trazendo algum conforto material por nesses momentos, afinal, nem só de elogios vivemos. Ao Escritório de Pesquisa que sempre nos auxilia com toda a atenção que a [minha] miopia burocrática necessita. Por fim, devo sincera gratidão à Drª Sueli Andruccioli Félix por continuar me orientando apesar das ousadias “pueris” que denunciam nossa formação profundamente humanas, éticas e necessárias. À admiração e respeito dedicados, encontrei, nessa relação de paciência, seriedade e confiança, todos os elementos para torná-la emum verdadeiro “padrão de qualidade” em pesquisa. 6 O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os grandes frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Pensadores. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Volume II. Nova Cultural, 1999. p. 87) 7 RESUMO Percepção espacial, crime e medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e sociabilidades em Marília-SP. Como a cidade nos aparece na experiência cotidiana? É possível entender a flagrante segregação sócio-espacial e os receios e temores que advém da assim chamada “escalada da violência” sob a ótica dos moradores das cidades? Essas questões têm sido objeto de análise de uma série de estudiosos, da geografia à sociologia, da arquitetura à antropologia e orientaram nossa pesquisa sobre a percepção espacial – em especial, do crime e medo – nos diversos bairros de Marília/SP. Nosso objetivo foi apreender as condições sócio-espaciais – conforme os dados do IBGE – e dinâmica criminal – proveniente dos estudos do Grupo de Pesquisa e Gestão Urbana de Trabalho Organizado – GUTO/UNESP – e, finalmente, as percepções de moradores por meio de entrevistas semi-estruturadas gravadas. À luz do arcabouço teórico de Yi-Fu Tuan e seus conceitos de “topofilia” – de afeição e familiaridade com o lugar – e “topofobia” – de recusa ou temor de determinados lugares da cidade – e demais teóricos que se dedicam a apreender as sociabilidades que se tecem nas cidades, buscamos o confronto das diversaspercepções apreendidas. No conjunto, as percepções se revelaram de maneira múltipla e relativas às experiências, na cidade em particular e no urbano em geral, demonstrando a apreensão de uma espacialidade desigual. No entanto, quando se referiram a “outros” espaços da cidade, distante da experiência propriamente dita, contrariaram os dados criminais ao se alinharem aos preconceitos, estigmas e estereótipos correspondentes à tese pobreza e criminalidade. Assim, este trabalho aponta a percepção espacial como uma ferramenta que recupera os sujeitos e suas experiências na cidade ao mesmo tempo em que dota de complexidade a análise e crítica dos diversos fenômenos da realidade urbana. PALAVRAS-CHAVE: Percepção Espacial, Crime, Medo, Sociabilidades, Marília/SP. 8 RÉSUMÉ Perception spatiale, crime, peur: entre le réel et l'imaginaire. Un étude sur les caractéristiques socio-spatial et sociabilités dans la ville de Marília-SP Comment percevons nous la ville à travers nos expériences quotidiennes? Pouvons nous comprendre les mécanismes de ségrégation socio-spatiale ainsi que les craintes liées à une supposée “escalade de la violence” par la vision qu’en ont les propres habitants des villes ? Ces questions ont fait l’objet d’une série d’études, où la géographie et la sociologie autant que l’architecture et l’anthropologie ont orienté nos recherches sur la perception de l’espace – et en particulier sous les aspects liés au crime et à la peur qu’il inspire– dans plusieurs quartiers de la ville de Marilia, dans l’état de São Paulo. Notre objectif a été d’appréhender à la fois les conditions socio-spatiales – d’après des données de l’IBGE – la dynamique criminelle – à travers les données provenant des études du Grupo de Pesquisa e Gestão Urbana de Trabalho Organizado GUTO/UNESP – et enfin les perceptions des habitants au travers d’entretiens semi dirigés et enregistrés. En nous appuyant sur la charpente théorique de Yi-Fu Tuan et ses concepts de “topophilie” – désignant une affection et une certaine familiarité avec un lieu – et de “topophobie” – le rejet et la crainte liés à certains espaces urbains – ainsi que sur d’autres travaux théoriques tendant à appréhender les liens sociaux qui se nouent dans les villes, nous chercherons à confronter les diverses perceptions qui se dégagent de ces entretiens. De cet ensemble, ces différentes perceptions apparaissent multiples et très liées aux expériences particulières, de la ville en particulier et l’urbain en général, démontrant ainsi une inégalité dans l’appréhension des espaces. Cependant, quand on se réfère aux espaces “autres” de la ville, c'est-à-dire déconnectés de toute expérience propre, les perceptions s’éloignent des conclusions des données criminelles pour s’aligner sur les préjugés et les stéréotypes correspondant à la thèse comme quoi la criminalité serait le fait des pauvres. Ainsi, cette étude utilise la perception spatiale comme un outil, et prend comme objet d’étude l’expérience de la ville vécue par ses habitants, celle-ci venant questionner et enrichir l’analyse critique et théorique des divers phénomènes de la réalité urbaine. MOTS CLES: Perception Spatiale, Crime, Peur, Sociabilités/Lien Social, Marília/São Paulo. 9 ÍNDICE DE FIGURAS. Figura 01: População da micro-região de Marília, sua sede e alguns de seus municípios vizinhos ............................................................................................................................... 73 Figura 02: Origem dos entrevistados .................................................................................. 73 Figura 03: Evolução da mancha urbana de Marília - anos de 1970, 1980 e 1990 .............. 74 Figura 04: Escolaridade dos entrevistados........................................................................... 84 Figura 05: Índice geral de exclusão social de Marília, 2001................................................ 86 Figura 06: Índices de ocorrências atendidas pela Polícia Militar de Marília, por mil hab/ano, entre 1981-1991. ................................................................................................... 89 Figura 07: Índices de ocorrências atendidas pela Polícia Militar de Marília, por mil hab/ano, entre 1981-1991..................................................................................................... 89 Figura 08: Bairros com mais ocorrências, por mil habitantes/ano, atendidas pela Polícia Militar de Marília: períodos 1970-1980 e 1981-1991.......................................................... 91 Figura 09: Divisão em setores de bairros de Marília - ano de 1996; Marília: criminalidade geral, por mil hab. (1985-1993); Crimes contra o patrimônio, por mil hab (1985-1993); e Crimes violentos (contra o patrimônio), por mil hab. (1985-1993)............ 93 Figura 10: Total de BO’s por setores de bairros – 2001...................................................... 96 Figura 11: Total de BO’s por setores de bairros – 2002...................................................... 97 Figura 12: Concentração dos estudantes de 3º Grau nos Setores de bairros de 2001 ......... 98 Figura 13: Setores de bairro, população e entrevistas (1/5.000 hab)................................... 105 Figura 14: Entrevistados e respectivos setores de bairro (por gênero)................................ 106 Figura 15: Faixas etárias dos entrevistados.......................................................................... 107 Figura 16: Avaliação das condições do bairro pela oferta de serviços................................ 114 Figura 17: Participação ou freqüência nos equipamentos urbanos e eventos sociais ......... 115 Figura 18: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? – I ................................................................................................................. 121 Figura 19: Modelo de incivilidade e vizinhança de Herbert................................................ 125 Figura 20: Resposta à questão: “o seu bairro é perigoso?” – I ............................................ 129 Figura 21: Resposta à questão: “o seu bairro é perigoso?” – II .......................................... 130 10 Figura 22: Resposta à questão: “já sofreu ou ouviu falar de algum tipo de violência no bairro” – I............................................................................................................................. 131 Figura 23: Resposta à questão: “já sofreu ou ouviu falar de algum tipo de violência no bairro” – II............................................................................................................................ 132 Figura 24: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? – II ............................................................................................................... 138 Figura 25: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? Por quê?”...................................................................................................... 138 Figura 26: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir?” – I................................................................................................................ 140 Figura 27: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir?” – II............................................................................................................... 141 Figura 28: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir? Por quê?”......................................................................................................141 11 ÍNDICES DE TABELAS. Tabela 01: População do Estado de São Paulo, da Micro-Região de Marília/SP, sua sede e alguns de seus municípios vizinhos................................................................................... 72 Tabela 02: Equipamentos e serviços urbanos por mil hab. em Marília/SP, 2001................ 78 Tabela 03: Rendimento dos chefes de família em Marília/SP, 2001................................... 83 Tabela 04: Escolaridade dos chefes de família em Marília/SP, ano 2001........................... 83 Tabela 05: Abastecimento de água em Marília/SP, ano 2001............................................. 84 Tabela 06: Escoadouro de esgoto em Marília/SP, ano 2001............................................... 85 Tabela 07: Bairros de Marília agrupados em setores, ano de instalação e índice, 1996...... 92 Tabela 08: Criminalidade geral por setores de bairros – ano 2001...................................... 94 Tabela 09: Setores e respectivos bairros em Marília/SP (2001-2002)................................. 95 Tabela 10: Avaliação geral das condições do bairro pela oferta de serviços em Marília.... 114 Tabela 11: Marília: Índice de participação ou freqüência nos equipamentos urbanos e eventos sociais...................................................................................................................... 115 12 SUMÁRIO Introdução ......................................................................................................................... 13 Capítulo 1 – Percepção Espacial, Crime e Medo: Por uma breve reflexão desses temas da realidade urbana ................................................ 14 1.1. Percepção espacial: da Geografia Humanística às Ciências Sociais ....................... 19 1.2. Sobre a conceituação de crime e a assim chamada “escalada da violência”.......... 34 1.3. Medo urbano: sobre o novo (ou velho) “espectro” que ronda a cidade ................... 47 Considerações do Capítulo 1 ............................................................................................ 63 Capítulo 2 – Os lugares da cidade: Aspectos históricos, sócio-espaciais e criminais de Marília/SP ........................................ 66 2.1. Gênese e devir da “Capital da Alta Paulista”............................................................ 68 2.2. Sobre as desigualdades e segregações sócio-espaciais ............................................. 76 2.3. A geografia do crime: elementos para uma análise da dinâmica criminal ............... 88 Considerações do Capítulo 2 ............................................................................................ 100 Capítulo 3 – Percepções em confronto: Uma análise das percepções apreendidas em Marília/SP ................................................. 102 3.1. Notas metodológicas sobre as agruras e descobertas na pesquisa de campo ........... 104 3.2. Topofilia: sentimentos positivos em relação ao espaço ............................................. 111 3.3. Topofobia: sentimentos negativos na relação sujeito-espaço.................................... 124 3.4. Percepções sobre outros lugares da cidade ............................................................... 135 Considerações do Capítulo 3 ............................................................................................ 147 Breves Considerações ....................................................................................................... 152 Referências ........................................................................................................................ 155 Bibliografia Consultada .................................................................................................... 162 Anexos ............................................................................................................................... 165 13 Introdução Eu classifico São Paulo assim. O Palácio é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos (JESUS, 1960, p. 33). Essas são as palavras de Carolina Maria de Jesus, moradora de uma das muitas favelas de uma próspera cidade de São Paulo na década de 50. Essa escritora expôs em diários e livros os pensamentos de sua trajetória urbana em todos os sentidos – sobre o trabalho, seus filhos, as ruas, a favela, o preconceito. No trecho acima está a cidade tal como Carolina compreende. É seu relato/retrato ao percorrer ruas e avenidas da cidade em busca dos restos urbanos e retornar à sua moradia em uma favela no bairro do Canindé. Desde a iniciação científica temos nos inspirado em percepções dessa natureza, não somente de Carolina, mas de tantos outros sujeitos, em metrópoles como São Paulo ou em cidades médias como Marília, a 450 quilômetros da capital. Essas cidades, guardadas as devidas proporções, apresentam uma enorme variedade de formas no que se referem a todos os elementos que as constituem. Conhecer as historicidades que as conformam sempre nos pareceu uma tarefa inadiável, afinal, por que moramos em cidades com tais formatos razoavelmente diferentes, mas sempre desiguais? Além disso, como os sujeitos que nelas vivem, percebem as disparidades e explicam para suas próprias razões o fato de morar em um determinado bairro ou outro? Como os fenômenos são entendidos pelos sujeitos como, por exemplo, a violência e a criminalidade na cidade, quando o medo do crime urbano se coloca tão presente nos meios midiáticos e nas políticas urbanas a partir do receio de vitimização e da sensação crescente de insegurança? Captar o que pensam homens e mulheres sobre as cidades em que vivem tem nos parecido fundamental para entender as compreensões sobre os diversos aspectos da realidade urbana, pois entendemos que os lugares onde se vive e os espaços que se percorre dotam de significados nossas percepções sobre o mundo e sobre a própria história individual e coletiva. É por essa razão que escolhemos a percepção espacial como o aporte necessário para adentrar nesses sentidos que os sujeitos atribuem à experiência urbana vivida. Neste aspecto, à formação das ciências sociais, agregamos os conceitos e o arcabouço teórico de Yi-Fu Tuan (1980, 1982, 1983 e 2005) de maneira que pudéssemos reunir as ferramentas imprescindíveis para chegar aos sujeitos que moram nesta cidade de Marília, nosso campo de pesquisa mais imediato. Na iniciação científica realizamos uma pesquisa em três regiões da cidade com base em 254 questionários e seus resultados justificaram a continuidade dos estudos na pós- 14 graduação1. Naquela pesquisa, o grande número de questionários exigia uma investigação a partir de “entrevistas” rápidas e dirigidas (pesquisa direta) sendo que, sem o uso de gravador, as respostas dos entrevistados, muitas vezes reveladoras, ficaram nos limites da memória e do bloco de anotações. Assim, os resultados foram compreendidos como um “espectro” da percepção, portanto, uma idéia da percepção espacial. Um “espectro” que nos levou a novas investidas em torno da percepção e dos conflitos urbanos relativos à relação sujeito-espaço, de porte do gravador, com uma amostragem menor e que alcançasse todos os bairros de Marília. Neste aspecto, a pesquisa aqui apresentada teve por horizonte a percepção espacial, crime e medo, buscando realizar a relação entre as evidências sócio-espaciais organizadas nos trabalhos do Grupo de Pesquisa e Gestão Urbana de Trabalho Organizado – GUTO/UNESP e as sociabilidades na cidade de Marília, identificadas por meio de entrevistas semi-estruturadas gravadas. Os escritos de Tuan (1980), Felix (1996) e outros autores com pesquisas e reflexões correlatas compuseram o quadro de análisefundamental para a pesquisa de campo e, finalmente, dos capítulos que se seguem. Em razão da necessidade de estabelecer os apontamentos teóricos que circunscrevem os temas percepção espacial, crime e medo, reunimos as reflexões no primeiro capítulo como uma maneira de apresentar os pressupostos exigidos para a pesquisa de campo. Desse modo, abordaremos: a percepção espacial da geografia humanística de Tuan (1983) como possibilidade teórico-metodológica de estudo da relação entre os sujeitos e a cidade; uma análise crítica do crime e da “escalada da violência” que explicita estigmas e criminalizações, as quais estão sempre presentes nas instituições estatais dessa sociedade de classes; e, finalmente, o medo urbano como a caracterização mais corrente da relação desses temas, percepção espacial e crime/violência, na formatação das cidades e nas sociabilidades vividas. Em seguida, apresentamos a cidade de Marília em aspectos históricos, sócio-espaciais e da dinâmica criminal a partir dos estudos de Felix (1996 e 2003) e do GUTO/UNESP. Esse segundo capítulo compreende: os principais elementos que conformaram a organização do espaço da cidade; sua caracterização sócio-espacial marcada por uma flagrante fragmentação e segregação dos sujeitos nos diversos bairros e regiões; e a dinâmica criminal em uma processualidade histórica e o diagnóstico sobre os anos mais recentes, fundamentais para o confrontamento com as percepções da violência ou criminalidade. 1 Para não nos determos nos resultados apresentados na iniciação científica, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq e que compôs nosso trabalho de conclusão de curso, sugerimos o acesso em um dos artigos produzidos: http://www.espacoacademico.com.br/061/61carvalho.htm 15 O terceiro e último capítulo contém a pesquisa de campo nos termos da percepção espacial, crime e medo. Inicialmente, as notas metodológicas que demonstram os passos da pesquisa na consecução deste trabalho e, a partir disso, o contato com as percepções dos sujeitos conforme: o sentimento de “topofilia” de Tuan (1980), tendo em vista as percepções positivas na relação com bairros da cidade; a “topofobia” ou “paisagens do medo”, também de Tuan (2005) relacionados aos dados criminais; e, finalmente, as idéias sobre outros espaços da cidade, colocando em confronto as diversas percepções captadas na cidade. De maneira geral, todos esses capítulos oferecem uma possibilidade de análise da realidade urbana, tendo em vista a construção de alguns nexos entre: as diversas compreensões de cidade que se impõem; e a necessidade cada vez mais premente de se evidenciar a maneira como os sujeitos sentem, percebem e compreendem os espaços em que vivem. Almejamos, com isso, demonstrar que as percepções dos sujeitos, advindas da experiência na cidade com todos os seus imperativos, podem contribuir para uma crítica necessária ao modelo de cidade vigente e às políticas urbanas que se colocam em todos os níveis, desde a organização desigual do espaço às políticas de segurança que insistem em agravar as contradições econômicas dessa sociedade. Estamos convencidos de que não é possível pensar a cidade e qualquer projeto político, social, econômico ou de segurança pública, sem a explicitação e confronto das diversas e antagônicas relações que os sujeitos estabelecem com a cidade e seus bairros – pautadas por diferentes condições de moradia e trabalho – dotando de complexidade todo e qualquer fenômeno que constitui isto a que chamamos mundo. 16 Capítulo 1 Percepção Espacial, Crime e Medo Por uma breve reflexão desses temas da realidade urbana 17 Enquanto sujeitos que vivenciam o mundo, observamos e sofremos todas as suas feições e meandros, a partir do lugar onde se mora, se trabalha, se relaciona, por espaços urbanos ou rurais, pequenas cidades, metrópoles, bairros, vilas, favelas, como pedestres ou ocupantes de veículos (carros ou transportes coletivos), em casas térreas ou apartamentos, enfim, em toda a diversidade contraditória que este mundo nos oferece. Um hieróglifo social com cores, relevos e texturas diferenciados. Lugares distintos, diminutos ou suntuosamente amplos. Humildes ou requintados. Vivenciados ou inacessíveis. Uma multiplicidade aparentemente caótica, mas para muitos um todo estruturado – coerentemente contraditório, mas cognoscível. Uma realidade que se revela para nós em paisagens e sociabilidades que nos provocam a questionar: é possível apreender suas evidências mais perceptíveis e organizá-las em algo razoável? Qual pode ser o ponto de partida para uma análise profunda da realidade de maneira que possamos esboçar alguma compreensão crítica e, quiçá, propositiva às demandas e necessidades que nos são apresentadas? Essas são algumas inquietações que afloram nas ciências sociais e nas que se propõem a pensar a cidade, o urbano ou o lugar, especialmente em apreender tais conceitos para além das formas mais aparentes e alcançar as relações sociais que produzem e reproduzem essas mesmas formas. O desafio é problematizar essa paisagem urbana à luz das sociabilidades que se tecem e que, por vezes, explicam ou obscurecem o trágico e complexo mundo vivido. Aqui, neste texto, temos a preocupação, portanto, de inscrever as reflexões que buscam as razões humanas que se revelam nas sociabilidades, em especial, aquelas pautadas nos problemas sempre referenciados como a violência ou a criminalidade e, finalmente, o medo urbano como a caracterização mais corrente da relação desses temas com a realidade urbana. A discussão sobre a percepção espacial em torno do crime e do medo é o que norteia nosso texto e é, neste aspecto, que apresentamos as proposições de Tuan (1980 et al) enquanto redirecionamento da produção geográfica às relações humanas no espaço. Dessa maneira, relacionamos, ainda que timidamente, as teses desse geógrafo humanista às proposições não menos humanistas da análise marxista sobre a produção do espaço e as apropriações humanas de um espaço de conflitos nos marcos do capitalismo. Não se trata, portanto, de um tratado sobre as aproximações entre a produção fenomenológica que orienta os escritos de Tuan e as formulações marxistas, mas um ensaio dessas possibilidades teórico-metodológicas. Além desse preâmbulo que inscreve essa razão humanista por meio da percepção espacial na apreensão da realidade e dos conflitos teóricos presentes, nos preocupamos em situar as conceituações correntes de crime e violência nos termos consagrados das ciências 18 sociais. Isso significa considerá-los enquanto conceitos partícipes de um fenômeno social mais abrangente que incorpora os aspectos políticos e culturais que permeiam a produção acadêmica dedicada a compreendê-los. É desse modo que orientamos nossos escritos na tentativa de entender a percepção do crime tal como historicamente tem sido tecida e, particularmente, na necessidade de evidenciá-la como um campo de análise possível, sobretudo pelo fato de circunscrever o terceiro e último tema desse primeiro capítulo: a percepção do medo ou o medo urbano propriamente dito. Assim, apontaremos algumas das reflexões sobre o medo na cidade apresentadas sob o quadro de “paisagens do medo”, “ecologia do medo”, “arquitetura do medo” ou “estetização cultural do medo” que, no conjunto, adensam as compreensões sobre a violência e a criminalidade. Ao incorporar as percepções dos sujeitos e suas vivências na cidade, propomos uma complexização teórica de tais fenômenos dirigindo-nos ao assim chamado “medo urbano”: um novo (ou velho) “espectro” que ronda a cidade. 191.1. Percepção espacial: da Geografia Humanística às Ciências Sociais De que maneira um geógrafo contribui para o bem estar humano como, por exemplo, no projeto de um meio ambiente físico melhor? Seu colega científico pode sugerir um sistema de transporte mais eficiente, ou localizações ideais para novas indústrias ou para as estações de esgoto. O que pode fazer o humanista? [...] a competência de um humanista repousa na interpretação da experiência humana em sua ambigüidade e complexidade. Sua principal função como geógrafo é esclarecer o significado dos conceitos, dos símbolos e das aspirações, à medida que dizem respeito ao espaço e ao lugar (TUAN, 1983, p. 162). A percepção espacial, uma perspectiva íntima da relação sujeito-espaço, na análise sobre o urbano como o aporte conceitual, teórico e metodológico nos provoca a ampliar o espectro da análise dos fenômenos que compõe o nosso mundo e, no nosso caso específico, as cidades em seus diversos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. A percepção espacial, conceitualmente, nos remete à dimensão de como os sujeitos apreendem e se apropriam de tudo aquilo que se observa, vivencia e transforma. Isso significa dizer que, em busca de agregar elementos para uma perspectiva que se proponha crítica e necessariamente pungente sobre o modo como nossas vidas são orientadas em nossos países, cidades e bairros, nos dirigimos à reflexão sobre a maneira como os sujeitos se apropriam dessas realidades de modo a traduzi-las às suas cruciais necessidades e aspirações. Nesse sentido, a análise pautada na percepção espacial exige uma apreensão de múltiplos aspectos imperativos às experiências que se tecem nos contextos sociais identificando as perspectivas dos sujeitos sobre esses próprios imperativos. Dessa maneira, a percepção espacial necessita, enquanto categoria de análise, de uma vigilância epistemológica conseqüente capaz de nos orientar para uma relação fidedigna às reflexões que detalharam essa dimensão afetiva correspondente à percepção espacial e, se possível, que estabeleceram análises dos imperativos sociais presentes nas diversas percepções.2 2 Para Bourdieu (1999, p. 17), quando uma ciência como a sociologia se utiliza de conceitos emprestados de outras ciências sociais, é necessária uma conseqüente vigilância epistemológica: “é necessário submeter a prática científica a uma reflexão que aplica-se não à ciência já constituída, mas à ciência em vias de se fazer”. No entanto, para não recair em uma sociologia espontânea, deve-se compreender que “a pesquisa científica organiza-se em torno de objetos construídos que não tem nada em comum com as unidades separadas pela percepção ingênua” (BOURDIEU, 1999, p. 45). Portanto, para Bourdieu (1999, p. 11), “é necessário submeter as operações da prática sociológica à polêmica da razão epistemológica para definir e, se possível, inculcar uma atitude de vigilância que encontre no conhecimento adequado do erro e dos mecanismos capazes de engendrá-lo um dos meios de superá-lo” e, ainda, acrescenta que a utilização de conceitos como “relativismo cultural” por determinados sociólogos da “cultura popular”, buscando outras “culturas” em uma mesma sociedade, esquece que: “diferentes culturas que se encontram na mesma sociedade estratificada estão objetivamente situadas umas em relação às outras porque os diferentes grupos se situam uns em relação aos outros, em particular, quando se referem a elas; pelo contrário, a relação entre culturas que fazem parte de sociedades diferentes pode existir 20 Tal como se apresentam as palavras iniciais deste texto, Tuan (1983) nos questiona sobre o papel que se revelava quase técnico do geógrafo, esse estudioso das relações humanas sobre o espaço. “Esclarecer o significado dos conceitos, dos símbolos e das aspirações, à medida que dizem respeito ao espaço e ao lugar” nos parece uma máxima antropológica, tal como diversos antropólogos que Tuan (1983, 1982, 1983 e 2005) recorre para pensar a relação sujeito-espaço sob uma perspectiva cultural, histórica e humanista. Antes de tudo, é necessário considerarmos a origem das preocupações de Tuan ao propor tal perspectiva humanista na história da Geografia, seus desdobramentos e ramificações. Segundo Christofoletti (1982, p. 12), “embora lançando raízes históricas ao longo dos séculos, foi somente no século XIX que a Geografia começou a usufruir do status de conhecimento organizado, penetrando nas universidades”. Desde então, a Geografia se caracterizou por uma fase tradicional e, a partir de 1950, surgiram movimentos que questionaram suas formulações, entre eles a Geografia Humanística e a Geografia Radical. Conforme um “texto-manifesto” da Geografia Humanística, publicado inicialmente em junho de 1976, Tuan (1982) descreve a urgência da ciência geográfica em ampliar o raio de análise dos fenômenos e temas humanos sobre o espaço, propondo um viés centrado nas ações, sentimentos e pensamentos humanos. Para ele, os estudos geográficos que se restringiam às ferramentas oriundas das ciências exatas e naturais reduziam, por sua vez, o papel dos homens na apreensão dos fenômenos espaciais, naturalizando-o. Sua orientação fundava-se em uma necessidade inadiável aos geógrafos humanistas: dirigir-se à filosofia de modo a buscar exemplificações no mundo real às grandes questões filosóficas e, principalmente, delimitar seu ponto vista fundamental.3 As perspectivas humanistas de Tuan correspondiam às demandas expostas por Edmund Husserl (1859-1938) que, quase um século antes, estabeleceu uma crítica severa às ciências humanas como a psicologia. De acordo com a fenomenologia de Husserl, ao observar os homens e suas vicissitudes a partir de um empirismo pragmático e sem o devido questionamento das categorias e conceitos utilizados, a psicologia “matematizava” a vida humana de acordo com os propósitos e imperativos de uma sociedade que se industrializava e a tudo “objetificava”. Para Husserl, era necessário negar essas análises e “voltar às coisas unicamente na e pela comparação operada pelo etnólogo” (BOURDIEU, 1999, p. 63). Neste caso, os conceitos de “percepção espacial”, devem ser verificados constantemente em seus limites e possibilidades de utilização na análise da realidade urbana. 3 Segundo Tuan (1982, Nota 24, p. 161), sua afiliação epistemológica refere-se aos fenomenologistas e filósofos preocupados com o símbolo, particularmente Merleau-Ponty, Cassirer, Susanne Langer e Nelson Goodman. 21 mesmas” [züruck zu dem Sachen selbst] sem desconsiderar os avanços empíricos e, tampouco, retornar aos sistemas filosóficos (DARTIGUES, 1973). Segundo Dartigues (1973, p. 19), Husserl negava os apriorismos da psicologia experimental ao fazer suas análises do comportamento humano e não se indagando sobre o que significava cada um dos seus conceitos primordiais, como por exemplo: o que é consciência, inteligência, percepção, sensação, memória. O naturalismo característico desse psicologismo confundia a “descoberta das causas externas de um fenômeno com a natureza própria deste fenômeno”. Assim, somente o estudo do fenômeno superaria essa proposição empiricista sem cair nas concepções filosóficas do passado, pois, para Dartigues (1973, p. 20): [...] o caminho que Husserl busca e que comandará até suas últimas obras a concepção da fenomenologia é uma via média entre esses dois escolhos: como pensar a sua natureza e em cada uma de suas nuanças – e, portanto, sem jamais ultrapassá-los – os dados da experiência em sua totalidade. Todo fenômeno e nada mais que o fenômeno, poder-se-ia dizer. O postulado que funda tal empresa, é que o fenômeno está mais penetrado no pensamento, dologos, e que por sua vez, o logos se expõe e só se expõe no fenômeno. Apenas sob essa condição é possível uma fenomenologia. Isso significava refundar as ciências dos homens a partir dos fenômenos – por isso, “fenomeno-logia” – em que a experiência humana, o “ser” no “mundo na vida” [Lebenswelt], se revelaria enquanto categoria primeira de compreensão da realidade. Dessa maneira, tratava-se de romper com a dualidade sujeito-objeto, propalada pela filosofia cartesiana com reverberações nas ciências humanas por meio do positivismo. Segundo alguns autores, a fenomenologia e o marxismo se propuseram a realizar tal tarefa, de maneira que, para Smart (1978, p. 150), ao buscar entender o nível em que a ciência predominante no século XIX encerrava o homem, Husserl empenha-se numa análise radical, “de uma maneira rigorosamente histórica e crítica”, semelhante à afirmação e prática de Marx, de que para ser radical é necessário retornar às raízes do problema, às origens. Tanto no caso da análise da ciência em geral por Husserl, como da crítica da ciência da economia política em particular, por Marx, o entendimento só se materializa pela revelação da realidade que existe sob a aparência, pela revelação de que a experiência e o estudo científico de um “mundo objetivamente verdadeiro” se fundamentam e são produto da base intersubjetiva das relações entre os membros de um determinado mundo.4 4 Nas relações que Smart (1978) encontram-se um conjunto de pensadores notadamente considerados seguidores da fenomenologia de Husserl e daqueles consagrados como teóricos do marxismo do século XX. O raciocínio do autor obedece às análises de membros do grupo Telos, que se dispuseram a revisar a análise marxista, trabalhando na área geral da fenomenologia e marxismo, sendo estes Rovatti, Marcuse, Kosik, Piccone, Miller e O’Neill. Um conjunto de autores que se amplia quando somados a Paci, Labriola, Gramsci e Lucács, incorporados aos temas que Smart (1978) considera comuns entre as duas correntes. 22 A aproximação dessas duas correntes, fenomenologia e marxismo, é de difícil mediação, mesmo a partir dessa recusa dos apriorismos e da dualidade sujeito-objeto, sob um viés histórico e crítico que recupera as ações humanas como a centralidade no devir histórico e na definição do que seja a realidade5. Assim sendo, Kosik (1969, 23) aponta que: Os problemas estudados pela fenomenologia sob a denominação de “intencionalidade para alguma coisa”, “intenção significativa para alguma coisa” ou então de vários “modos de percepção” foram justificados por Marx sobre pressupostos materialistas, como diversos aspectos de apropriação do mundo pelos homens (grifo nosso). Dessa maneira, cabe salientar que as nossas preocupações podem assim serem descritas: diante de uma série de fenômenos existentes no mundo, suas conexões e complexidades, está o homem. Logo, na relação com as coisas da realidade, os homens ao “perceberem-nas” ou delas se “apropriam”, também se “fazem” enquanto homens e, portanto, estabelecem todas as relações entre si e o mundo. Se, nas acepções de Marx (1963) os estudos devem se pautar na relação primeira que constitui a “qualidade de homem” é o “trabalho” (compreendendo ser o “trabalho” a capacidade do homem em se realizar enquanto “humano” ao transformar as coisas do mundo)6; na Geografia Humanística, a “experiência” é o ponto de partida de observação e investigação das relações entre o homem e o espaço e, decorrentemente, de explicação dos inúmeros fenômenos que compõem a vida dos homens. Segundo Tuan (1983) na “experiência” no espaço, ao vivenciarem o meio ambiente os homens sentem, percebem e tomam consciência do mundo vivido. Logo, é necessário captar 5 É importante notar a afirmação de Kosik (1969, p. 11) de que, tal como o marxismo, a fenomenologia de Husserl se propôs a romper com a pseudo-concreticidade, compreendida por “o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural”. Além disso, Kosik (1969, Nota 05, p. 17) discorre em uma extensa nota sobre o confronto entre marxismo e fenomenologia elaborado por Tran-Duc-Thao em “Phenomenologie et materialisme dialectique” (1951), considerando que este autor descobriu “o sentido autentico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do século XX” e termina por afirmar que: “o autor [Thao] define expressivamente o caráter paradoxal e rico da destruição fenomenólogica da pseudo-concreticidade”. 6 Nas palavras de Marx (1963, 161-165), “A economia política esconde a alienação na natureza do trabalho porquanto não examina a imediata relação entre o trabalhador (trabalho) e a produção. [...] A relação imediata do trabalho aos seus produtos é a relação do trabalhador aos objectos de sua produção” (p. 161). Essa imediaticidade na relação “trabalhador-produto”, “sujeito-objeto” é que deve ser o ponto de partida para a compreensão do homem em sua “genericidade”, pois, “[é] precisamente ao trabalhar o mundo objectivo que o homem primeiro se prova de maneira efetiva como um ser genérico. Tal produção é a sua vida genérica activa. Através dela, a natureza aparece como a sua obra e a sua realidade. Por conseguinte, o objecto do trabalho é a objectivação da vida genérica do homem: ao reproduzir-se não só intelectualmente, como na consciência, mas activamente, ele duplica-se de modo real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. Pelo que, na medida em que o trabalho alienado subtrai aos homens o objecto de usa produção, furta-lhe sua vida genérica, a sua objectividade real como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua vantagem sobre o animal porquanto lhe é arrebatada a natureza, o corpo inorgânico”. 23 os sentidos atribuídos aos fenômenos de modo a apreendê-los cada qual em seu contexto sob o percurso de conhecimento do mundo proposto por Tuan (1983, p. 09) que, gradativamente, se elabora entre a emoção e o pensamento: Experiência sensação, percepção, concepção EMOÇÃO emoção pensamento PENSAMENTO É através da “experiência” que “uma pessoa conhece e constrói a realidade”, desde os sentidos mais diretos como o olfato, paladar e tato até a percepção visual e os modos de simbolização. Para tratar da “experiência”, Tuan (1980 e 1982) se apóia, primeiramente, em uma perspectiva que contempla as condições físicas e psicológicas dos corpos humanos com o mundo afirmando a existência de diferentes percepções conforme a idade – fases infantil, adulta e velhice – e o sexo, quando da diferença entre os papéis de masculino e feminino. Num segundo momento, Tuan (1980) demonstra que as relações dos homens com o espaço se baseiam em simbolismos e esquemas cosmológicos a partir das “oposições binárias”, estudadas por Levi-Strauss (1970) como céu/terra, claro/escuro, esquerda/direita, novo/velho etc.; do etnocentrismo; e, finalmente, da delimitação entre “sagrado” e “profano”; do conhecimento meramente estético, para visitantes, ou familiar, para nativos. Valores que, no conjunto, compõem em grande medida o sentimento de “topofilia”, um elo afetivo do homem com o espaço propriamente humano: espaço como “produção”, “meio ambiente” e “habitat” dos homens para os homens; meio de defesa das hostilidades da natureza; ou, ainda, de expressão humana sobre a natureza. Os textos e proposições de Tuan (1983), nesse sentido, orientavam os estudos geográficos para os modos como os homens apreendem o mundo e fazem dele uma compreensão organizada. Assim, tal como nas correntes que romperam com o positivismo nas ciências sociais ou o funcionalismo no tratamento da cidade e do urbano,esse geógrafo dotava de um sentido eminentemente humano, ou humanista, às relações sócio-espaciais. É preciso ressaltar que essas considerações não significam um redirecionamento dos estudos geográficos ou das relações entre o homem e o mundo para um “subjetivismo”, mas uma ciência social fundada em pressupostos distintos das projeções das ciências naturais 24 sobre as ciências humanas7. Vale citar, neste aspecto, que a fenomenologia de Husserl pretendia uma “nova racionalidade” a partir dos eventos propriamente humanos, como considera Leoncini (2003, p. 150): O objetivo [...] foi fundar uma nova base racional para a ciência, buscando captar a essência das coisas por meio da compreensão que nega o subjetivismo e o relativismo, afirmando o mundo vivido como possibilidade de viver a experiência sensível e de simultaneamente poder pensá-la de forma racional. Contemplando essa preocupação, Buttimer (1982), outra geógrafa que inscreve suas reflexões na perspectiva humanista, mostrou que a apreensão do mundo vivido não se limita a uma compreensão meramente subjetivista, mas a uma “intersubjetividade” das experiências8. Segundo Buttimer (1982, p. 175), [...] enquanto o modo subjetivista concentra-se na experiência individual única, e o modo objetivista procura a generalização, o modo “intersubjetivo” ou o modo fenomenológico esforçar-se-ia para elucidar um diálogo entre as pessoas individuais e a “subjetividade” do seu mundo.9 De um lado, a perspectiva de Buttimer rejeita o positivismo que ignora a experiência humana ao separar o observador daquele que é observado e, por outro, o idealismo que afirma existir um mundo real fora da consciência (JOHNSTON, 1986)10. Assim, a fenomenologia seria o caminho para uma compreensão, 7 Do ponto de vista da fenomenologia na sociologia, Schutz propõe a Sociologia do Conhecimento que, em crítica severa de Bastos (1984), faz um elogio exagerado às “coisas” da realidade do senso-comum. Para Bastos (1984), a Sociologia Fenomenológica de Schutz, ao considerar o mundo do senso comum o limite da participação social, “permitiria o conhecimento de uma parte bastante restrita do mundo social”. 8 Os pressupostos filosóficos de Buttimer (1982. p. 166) percorrem os raciocínios de Martin Heidegger e o conceito de dwelling – traduzido por “habitação” que significava compreender que “habitar implica mais que morar, cultivar ou organizar o espaço. Significa viver de um modo pelo qual se está adaptado aos ritmos da natureza, ver a vida da pessoa como apoiada na história humana e direcionada para um futuro, construir um lar que é o símbolo de um diálogo diário com o meio ambiente ecológico e social da pessoa”; Tuan; Merleau-Ponty, Husserl; T. Hägerstrand; Kierkegaard; Schutz, entre outros. Schutz, citado na nota anterior, é criticado por Buttimer (1982, Nota 51, p. 182) ao sugerir o conceito weberiano de verstehen como uma forma de conhecimento, quando, para a autora, Weber afirma que verstehen [compreender] abarcava tanto os significados atribuídos por um ator à sua própria conduta quanto o significado atribuído a ele por um observador externo. Para Buttimer (1982), após definir a “apreensão” – ou compreensão – como “empatética” ou “racional”, Weber não procedeu fenomenologicamente ao enfatizar o modo racional, por meio do “tipo ideal”, como uma condição “pura”, deixando de examinar “as suposições tácitas ou subjacentes de sua posição teorética ou metodológica”. 9 Uma das indicações nesse sentido é posta por Capalbo (1987, p. 30) quando afirma que: “O problema que surge para a fenomenologia é o de saber como essas vivências podem ser não só válidas para mim, mas válidas para qualquer pessoa. Como se dá a comunicação das vivências?”. 10 Segundo Buttimer (1982, p. 174), embora os positivistas tivessem argumentado que suas noções científicas do espaço estavam assentadas na experiência, a generalização da experiência no espaço por meio de categorias científicas, lógicas e matemáticas reduzia as experiências sobre o espaço em relações geométricas. Dessa maneira, essa geógrafa, então, que “do ponto de vista fenomenológico, entretanto, o ‘espaço é um conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um significado. É o horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas’”. 25 [...] mais clara das questões dos valores, que envolvem o modo de vida normal de qualquer pessoa, e uma apreciação sobre os tipos de educação e socialização que seriam apropriados para pessoas cujas vidas podem oscilar entre vários ambientes (BUTTIMER,1976 Apud JOHNSTON, 1986, p. 214). É desse modo que ao se investir no desafio de compreender a realidade a partir das percepções, como “um retorno às coisas mesmas” como diria Husserl, e tal como sugere a análise antropológica de Tuan, busca-se uma relação com os diversos autores que consideram essa perspectiva na análise de fenômenos sociais “sensíveis” como a violência, o crime e o medo na cidade. Não se trata de uma revelação da percepção do mundo como a explicação mais razoável dos fenômenos da realidade, mas, antes de tudo, a possibilidade de utilizá-la como aporte para uma reflexão das sociabilidades que se engendram nas cidades, quem sabe com a intensidade que a tarefa fenomenológica sugere, na leitura de Dartigues (1973, p. 29): [...] analisar as vivências intencionais da consciência para perceber como aí se produz o sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global chamado mundo.11 E é, nesse aspecto, que chamamos a atenção para as alterações sugeridas por Tuan (1982) no que se refere aos temas tratados pela Geografia Humanística: 1) o “conhecimento geográfico” não poderia se limitar às compreensões acadêmicas do espaço geográfico, pois o espaço não é apenas um espaço medido e quantificado, mas também apreendido e organizado a partir da experiência vivida, se assim podemos considerar os “mapas mentais” que os homens elaboram a partir de suas vivências. Esse questionamento dos limites do conhecimento geográfico predominante na academia acompanha as pretensões dos geógrafos do período em que Tuan escrevia seu “texto-manifesto”, em 1976. Em 1977, Lacoste (1997) publicava uma crítica radical à geografia acadêmica afirmando que “a geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra” e, por essa razão, provoca o aparecimento do termo Geografia Radical, onde se concentraram os estudos marxistas sobre o espaço geográfico – por muito tempo foi considerada pejorativa a nomeação de “radical” para essa nova interpretação da geografia. Assim, o “conhecimento geográfico” antes de qualquer pretensão cientificista, continha um conteúdo superior ao modelo fragmentário e disciplinar ensinado nas escolas e universidades, quando pensado por exércitos e empresas em suas estratégicas sobre o espaço geográfico.12 11 No mesmo sentido, para Capalbo (1987, p. 39) a fenomenologia se volta “para os problemas da constituição, i. é, os modos pelos quais meu corpo, a existência dos outros e do mundo aparecem em minha experiência”. 12 Para Lacoste (1977), tratava-se, portanto de transcender as cisões metodológicas da “geografia dos professores” (aspectos sociais, físicos, climáticos, cartográficos, econômicos, urbanos, rurais) e estabelecer uma 26 Além disso, esse contexto questionador sobre a própria produção do conhecimento geográfico exigia a fundamentação em etnologias, etnografias e até mesmo na literatura para, conforme as preocupações de Tuan (1982, p. 147), observar que: Algumas pessoas têm falta de um senso formalizado de espaço e lugar, elas podem achar seu caminho no seu mundo, mas esta habilidade não é transformada em conhecimento que possa ser passado adiante verbalmente e ou em mapas e diagramas. 2) “lugar e território”,por sua vez, merecem outras definições na medida em que, para Tuan (1982 e 1983), “lugar” é um “ponto de parada” que ultrapassa as necessidades fisiológicas quando se vincula à referência aos espaços de morte e de vida. Segundo os etologistas, os animais vivem em seus nichos ecológicos, “ponto de parada”, território que varia de animal para animal, mas se compõe do lugar onde pode satisfazer necessidades como acasalar, descansar, comer ou beber, além de se defender de intrusos. Para os homens, isso é até aplicável, desde que se questione o papel da emoção e do pensamento na ligação ao lugar. A peculiaridade humana encontra-se na significação de nascimento e morte, o que justifica o nascimento das cidades ao redor dos santuários. Além disso, o sentido de lugar para os homens, tem se complexizado em todos os âmbitos da vida social, de tal maneira que o colo da mãe é o primeiro lugar do homem, mas o Estado-nação também se configura por meio da língua e território comum, numa abrangência que transcende a capacidade individual de apreciar suas grandezas.13 3) “modo de vida e economia” devem ser entendidos para além dos mesmos pragmatismos fisiológicos relativos ao raciocínio de conservação da espécie, incompatível com uma economia que coloca em risco não apenas a espécie humana. Nesse tema, Tuan (1982, p. 151-152) considera que “todos os animais são quase exclusivamente econômicos”, compreendendo que economia signifique “atividades de sustentação da vida”. Contudo, o mundo humano, em seu “modo de vida”, dispensa pouco de sua energia para essas atividades mais preocupadas com a vida biológica, na medida em que, “até mesmo para os povos mais primitivos, o ganhar a vida é colorido por objetivos e valores não zoológicos”. Na sociedade moderna e industrial, “a produção de armamento, p. e., é um geograficidade, na medida em que a apreensão do espaço em diferentes ordens escalares de grandeza ampliaria o “conhecimento geográfico” para uma análise crítica do espaço como “totalidade”. Sumariamente, deve-se fazer juz ao precursor dessa concepção de espaço: Élisée Reclus, socialista libertário do começo do século XX que atentava sobremaneira para os aspectos geopolíticos, mas esquecido no processo de cisão da geografia humana e geografia física, cisão característica da geografia tradicional, até ser lembrado por Lacoste (1997). 13 Tuan (1982 e 1983) faz menção às obras de Suzanne Langer que critica o modelo etológico aplicado ao comportamento humano e à obra de Edward Relph: “Place and Placelessness”, de 1976. 27 empreendimento econômico que proporciona meio de vida para muitos operários, mas está em dúvida a sua contribuição para a sobrevivência da espécie”.14 4) a “religião”, no espaço geográfico, não deve ser pensada apenas a partir da localização dos templos e dos locais considerados sagrados, que na especialização das disciplinas estaria restrita à geografia da religião. Para Tuan (1982), “religião” é um “impulso por coerência e significação” e uma “compreensão de mundo”, tal como a ciência e as ideologias, tendo por função reunir as coisas – no sentido de religare – e estruturar a vida social15; e, finalmente, 5) “aglomeração humana e privacidade” tema que mais se aproxima de nosso objeto: a recusa da premissa de que o adensamento populacional como explicação quantitativa dos conflitos sociais como a violência. Para Tuan (1982, p. 150), não é possível se pautar nesta assertiva quando Los Angeles tem baixa densidade, mas elevados índices criminais e, em contrapartida, as apinhadas aglomerações urbanas orientais, por sua vez, não são mais propensas ao crime que as cidades americanas. Para ele, a sensação de aglomeração e a necessidade de privacidade, embora sejam temas presentes em diversas sociedade e situações espaciais, “o modo como a cultura é medianeira entre a densidade da população e o comportamento é um desafio para o cientista social e como para o humanista”. Mais do que isso, Tuan (1983, p. 67) considera a importância das relações entre as pessoas para caracterizar um determinado lugar em “espaciosidade” e “apinhamento” que até a sensação de solidão traz: A solidão é uma condição para adquirir a sensação de imensidade. A sós, nossos pensamentos vagam livremente no espaço. Na presença de outros, os pensamentos recuam devido ao fato de que outras pessoas projetam seus próprios mundos na mesma área. O medo do espaço muitas vezes vai junto com o medo da solidão. A companhia de seres humanos – mesmo de uma 14 Aqui nos remetemos às contribuições de Mauss (2003) e Malinowski (1978) sobre o “modo de vida” a partir das dávidas presentes nas relações entre os diversos grupos sócio-culturais da polinésia meridional: a relação do Kula entre os tro’biandeses. Estes autores expõem a complexidade das trocas de bens e mulheres entre os grupos como uma relação social, que não se equivale às trocas comerciais entre as sociedades ocidentais, por assim dizer, mercantilizadas. Outros valores e significados estariam presentes nestas trocas de maneira que a recorrência das dádivas, atribuídas e retribuídas, ordenava e reorganizava as relações sociais, econômicas, religiosas e políticas entre os diversos grupos. 15 Essa concepção de “religião” parece corroborar com a concepção de Durkheim (1996) ao desmitificar a religião de misticismos e apreendê-la a partir da análise do totemismo como uma forma de organizar o mundo concretamente, entre sagrado e profano, como pensamento científico pretérito. Outra abordagem interessante é a de Levi-Strauss (1970) sob a máxima de que o mito presente nas sociedades “primitivas” não se trata de uma criação sem parâmetro na realidade vivenciada por elas, mas uma forma de estruturar o mundo conforme a apreensão das evidências da natureza como uma “ciência do concreto”. Segundo Levi-Strauss (1970), para alcançar esse nível de compreensão do pensamento mítico, é fundamental que o antropólogo entenda de botânica e zoologia, uma vez que a realidade vivida pelos grupos que analisa, pode não ter sido apreendida pela ciência moderna e que, portanto, as classificações dos fenômenos da natureza – que encontram sua organização nos mitos conforme outra organização, como uma bricolage – estão diretamente atreladas às experiências dos grupos que percebe as mínimas diferenças entre os fenômenos. Munido dessas ferramentas da botânica ou zoologia, o antropólogo poderia inclusive contribuir para uma classificação do meio ambiente, nos termos das ciências modernas, e captar o pensamento selvagem, não como exoticamente rico, mas dotado de complexa taxinomia. 28 única pessoa – produz uma diminuição do espaço e ameaça a liberdade. Por outro lado, à medida que as pessoas penetram no espaço, para cada uma chega um ponto em que a sensação de espaciosidade para ao seu oposto – apinhamento. O que é apinhamento? Podemos dizer que uma floresta está apinhada de árvores e um quarto está apinhado de bugigangas. Mas são basicamente as pessoas que nos apinham; elas mais do que as coisas, podem restringir nossa liberdade e nos privar de espaço.16 No conjunto, esses apontamentos de Tuan (1982), recorrentes em suas demais obras na formulação e descrição de suas perspectivas, demonstram sua compreensão de que todos os fenômenos que compõem isso que chamamos mundo, embora existam compreensões parciais dadas às técnicas disciplinares que parcelarizam e especializam os conhecimento, devem todos serem mediados pela cultura. Isso significa dizer que, tudo o que compreendemos como sendo simplesmente expressão de uma natureza dada, só pode ser entendido quando relacionado aos valores e sentimentos, história e cultura, daqueles que sob determinado fenômeno vivenciam.17Portanto, o “espaço”, o “lugar”, a “cidade”, o “crime”, o “medo”, tantos e tantos outros conceitos merecem ser realinhados sob a compreensão de que depende de onde se fala, de quem se fala, ou ainda, de qual relação social se trata. Isso não significa relativizar, mas historicizar, sempre, evidenciando-os a partir das relações sociais tidas como predominantes, sem desconsiderar as que nem sempre são perceptíveis. A cidade e a sociabilidade que se vive neste momento de supremacia do capital e da organização do espaço às vicissitudes da acumulação estratégica e de sua produção de mercadorias, define uma espacialidade sempre confrontada com as intempéries relativas à sociedade de classes.18 É claro que a percepção dos sujeitos, conforme a possibilidade aventada por Tuan (1982), pode encontrar seus limites nas características de uma paisagem programada e, por vezes, com a aparência caótica. Neste aspecto, Santos (1988), nos termos marxistas, caracteriza a percepção como um ponto de partida, mas também como um limite na apreensão 16 Tuan (1982) faz referências aos escritores existencialistas, particularmente Sartre em “Being and Nothingness” (1966), para a análise do problema da existência dos outros. 17 Kosik (1969, p. 240), de maneira similar, depreende os fenômenos “simples” que se colocam aos olhos de cada homem, após afirmar que a “práxis” objetiva da realidade é por onde se conjugam cada grau de conhecimento humano sensível ou racional, cada modo de apropriação da realidade, ligada a todos os vários modos. Em suas palavras: “O homem sempre vê mais do que aquilo que percebe imediatamente. A casa diante da qual me encontro, não a percebo como um conjunto de formas geométricas, de qualidades físicas do material de construção, de meras relações quantitativas; dela tomo consciência antes de tudo como habitação humana e como harmonia, não claramente percebida, de formas, cores, superfícies, etc”. 18 As análises de muitos geógrafos e urbanólogos acerca deste espaço característico de nossa sociedade, em constante conflitualidade espacial, merecem a devida atenção ao afirmarem, tal como considera Carlos (2001, p. 15) que: “[...] o espaço produzido assume a característica de fragmentado (em decorrência da ação dos empreendedores imobiliários e da generalização do processo de mercantilização do espaço), homogêneo (pela dominação imposta pelo Estado ao espaço) e hierarquizado (pela divisão espacial do trabalho)”. 29 da paisagem, caso outras inferências não sejam alcançadas. Porém, é válido afirmar que, na vida cotidiana, as determinações da totalidade se efetivam em níveis diferenciados e, inclusive, para Santos (2000a, p. 114) encontram resistências: O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que nele se instalam para impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles se produz uma contra-ordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados. Crescentemente reunidas em cidade cada vez mais numerosas e maiores, e experimentando a situação de vizinhança (que, segundo Sartre é reveladora), essas pessoas não se subordinam de forma permanente à racionalidade hegemônica, por isso, com freqüência podem se entregar a manifestações que são a contraface do pragmatismo. Assim, junto à busca da sobrevivência, vemos produzir-se na base da sociedade, um pragmatismo mesclado com a emoção, a partir dos lugares e das pessoas juntos. Esse é, também, um modo de insurreição em relação à globalização, com a descoberta de que, a despeito de sermos o que somos, podemos também desejar ser outra coisa. Nessa concepção de território e lugar como “esquizofrênicos”, Santos (2000b, p. 63) considera que neles estão conjugadas as potencialidades não somente do que “está-aí”, mas também do “vir-a-ser”, pois “no local tem-se a obediência e a revolta. Há sempre as duas coisas”. Por isso, em outra passagem Santos (2000a, p. 114) afirma que: Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo.19 Igualmente fundado nas inquietações marxistas, Lefebvre (2001) cunha a categoria de “usadores”20 para encontrar os sujeitos da cidade, longe da conceituação de “consumidores”, consagrada por políticos e urbanistas “planejadores”.21 Para Lefebvre (2001, p. 04), a cidade se forma como um centro de vida social e política onde não se acumulam apenas as riquezas, mas também conhecimentos, técnicas e obras. Neste sentido, a própria cidade é uma obra que contrasta com o dinheiro e a 19 Sobre o mundo se realiza no lugar, em Santos (2000b, p. 52) encontramos novamente essa reflexão: “[...] o mundo não existe em si, o mundo existe para os outros. É o lugar que da conta do mundo. Há nele uma empiricização do mundo [...] que o geógrafo precisa] conhecer para reformular o conhecimento”. 20 O termo utilizado por Lefebvre (1967, Apud CARLOS, 2001) para contrapor a concepção de cidadão “consumidor” é o do cidadão “usador” que categoriza os homens e mulheres que se apropriam do espaço, mas que nem sempre, quase nunca, detém o controle da produção e organização do espaço em que vivem. 21 Para Tuan (1980, p. 243), a distância entre o planejador e aquele que “usa”, “habita” ou “mora” aparece neste trecho: “[a] idéia de bairro do planejador dificilmente coincide com a do morador. Um distrito bem definido de acordo com as suas características físicas e denominado no plano da cidade com um nome proeminente pode não ter realidade para os habitantes locais. As palavras ‘bairro’ e ‘distrito’ tendem a evocar na mente dos estranhos, imagens de formas geométricas simples, quando de fato os canais de atos amistosos, que definem o bairro, podem ser extremamente complexos e variam entre os pequenos grupos que vivem muito próximos”. 30 mercantilização dos produtos: “a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa [...]”. Tendo Lefebvre (2001) como referência, Carlos (1999, p. 184) afirma que o uso da cidade parte do corpo do sujeito: O uso enquanto forma de apropriação realiza-se enquanto expressão do corpo, isto é, o espaço é vivenciado pelo corpo com o emprego dos sentidos, dos membros, que forma a base prática da percepção do mundo exterior. Nesta relação espaço-corpo, Carlos (1999) se fundamenta em Lefebvre, de maneira que nos lembra o raciocínio de Tuan (1982) sobre a “experiência”, exposto acima: “a prática social tomada globalmente supõe o uso do corpo, emprego das mãos, membros, órgãos sensoriais, gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho (...) o corpo é um elemento espacial (...) o espaço foi produzido antes de ser lido e não é produto para ser lido, mas para ser vivido por pessoas que tem um corpo e uma vida no contexto urbano (...) O homem prova o espaço com todo o seu corpo, o cheiro, as pernas, o ouvido, que percebe os ruídos com o olho que vai vendo (...) é a partir do corpo que o homem se percebe e vive o espaço, isso significa que há uma relação imediata entre o corpo e o seu espaço, entre o deslocamento no espaço e a ocupação do espaço (...); antes de se produzir e se reproduzir, cada corpo vivo é um espaço, o corpo com suas energias disponíveis, o corpo vivo que cria e produz seu espaço. A produção do espaço, inicialmente, aquela do corpo vai até a produção do habitar que serve ao mesmo tempo de instrumento e meio, compreende relações e movimentos, seguem-se para o corpo os lugares fundamentais, os indicativos do espaço são inicialmente qualificados pelo corpo, corpoem ato objeto de um dispêndio de energia, agressão ou desejo”. (LEFEBVRE, 1974 Apud CARLOS, 1999, p. 185). É nesse sentido que, sob as conceituações marxistas, se revela o “estranhamento”, “distanciamento” ou “desencontro” entre o sujeito e a obra, quando a cidade “se produz como exterioridade em relação ao sujeito” (CARLOS, 2001, p. 329) como “desconhecido e do não identificado”22. Essa concepção dialética que expõe a cidade enquanto “obra” e “produto” e, consequentemente, o uso/apropriação por parte dos sujeitos em “encontro” e “desencontro”, confirma o campo de possibilidades que reside no lugar, como vimos em Santos (2000a): O topos é o lugar de possibilidades e potencialidades. Os usos da rua são permeados por relações determinadas pela articulação espaço-temporal, sendo submetidos à lógica capitalista que impõe o produtivismo transforma o tempo em quantificação (uma quantidade abstrata) e o espaço numa distância a ser percorrida. As relações de propriedade criam os limites do uso, com a tendência à destruição do espaço público ou espaço acessível. Com isso limitam, pelo exercício do poder, uma ação que destrói o espaço da 22 Conforme a exposição de Carlos (2001, p. 331), “como produto social, a cidade se opõe ao sujeito, que surge na relação imediata como estranhamento, o desencontro entre a vida como modo de apropriação e a cidade como produto, condição e produto da reprodução do capital”. 31 sociabilidade e proximidade, substituindo-o por aquele dos interditos em nome da lei e da ordem (CARLOS, 1999, p. 185). 23 Dessa maneira, mesmo de matizes teóricas distintas, as preocupações humanistas de Tuan (1982) e outros geógrafos, particularmente os marxistas, caminham para essa particularidade na totalidade da experiência humana: o “lugar”. Em sua tentativa de relacionar as diferentes acepções do “lugar” geográfico, Leite (1998, p. 18)24 afirma que, Carlos (1996), ao acrescentar uma dimensão histórica, sob o viés marxista, “diz respeito à prática cotidiana, ou seja, às concepções que surgem do plano do vivido, e neste sentido é bastante similar à percepção humanística”25. Além disso, essa geógrafa considera a relevância cada vez maior dos “lugares” na análise de Santos (1988), conforme vimos acima, especialmente quando este afirma que “quanto mais os lugares se mundializam, mais se tornam singulares e específicos, isto é, únicos” (LEITE, 1998, p. 34). Para nos aproximarmos do fim desse tópico, a concepção de “lugar” cada vez mais “único” nos remete aos chamados “não-lugares” de Augé (1994), que colorem todos os apontamentos feitos até agora, a partir de Certeau e Merleau-Ponty. Certeau estabelece uma diferença entre “lugar” e “espaço” afirmado que “espaço” é o “lugar praticado” – o que nos parece uma inversão dos termos de Tuan (1982), mas igualmente interessante: “O espaço, [para Certeau], é um ‘lugar praticado’, ‘um cruzamento de forças motrizes’: são os passantes que transformam em espaço a rua geometricamente definida pelo urbanismo como lugar” (AUGÉ, 1994, p. 75). Por sua vez, Merleau-Ponty, em sua “Fenomenologia da percepção”, compreende o “espaço geométrico” como sendo distinto do “espaço antropológico”: um espaço “existencial”, “lugar de uma experiência de relação com o mundo de um ser essencialmente situado ‘em relação ao meio”’ (AUGÉ, 1994, p. 75). Outra referência que define “lugar” e “espaço”, a partir de Merleau-Ponty, está na fala e no ato de locução. Idéia presente também na acepção de Certeau que, ao refletir sobre os 23 Em Lefebvre (1991, p. 39), o lugar enquanto potencialidade que se revela na vida cotidiana aparece nos seguintes termos “A vida cotidiana se define como um lugar social desse feedback. Um lugar desdenhado e decisivo que aparece sob um duplo aspecto: é o resíduo (de todas as atividades determinadas e parcelares que podemos considerar e abstrair da prática social) e o produto do conjunto social. Lugar de equilíbrio é também o lugar em que se manifestam os desequilíbrios ameaçadores. Quando as pessoas numa sociedade assim analisada, não podem mais continuar a viver sua cotidianeidade, então começa uma revolução. Só então. Enquanto puderem viver o cotidiano, as antigas relações se reconstituem”. 24 As formulações de Leite (1998) compreendem Tuan (1982 e 1983), Buttimer (1982), Relph (1976) e Mello (1990) no campo da fenomenologia; e Harvey (1992), Corrêa (1997), Carlos (1996) e Santos (1988), no campo marxista. 25 E continua Leite (1998, p. 18), falando sobre Carlos (1999): “[para] ela, pensar o lugar ‘significa pensar a história particular (de cada lugar), se desenvolvendo, ou melhor, se realizando em função de uma cultura/tradição/língua/hábitos que lhe são próprios, construídos ao longo da história e o que vem de fora, isto é, que se vai construindo e se impondo como conseqüência do processo de constituição do mundial”’. 32 nomes próprios dados aos diversos lugares, como aqueles observados nos mapas e estradas, compreende que se coloca aí uma “qualidade negativa” ao transformá-los em “passagens”. Ao mesmo tempo em que em que “praticado”, o “lugar”, ao ser repleto de nomes próprios, distante de um caráter identitário, relacional e histórico, torna-se um “não-lugar”. A idéia de Augé (1994) passa a se compor então no entorno da experiência dos viajantes, aqueles que vivenciam uma homogeneização cada vez maior dos lugares, aeroportos, estradas, shoppings. A expressão mais interessante que se sobressai neste movimento que constrói os “não- lugares”, é manifestação de diversas cidades que recorrem a serem “capitais” ou “centros” de algo singular para chamar a atenção dos passantes/viajantes.26 Tuan (1980), neste aspecto, aborda os “rótulos de urbano” que são muito característicos e atrativos e as cidades brasileiras, como Marília, também não se furtam em construir os seus próprios cognomes27. Assim, os cognomes, embora pareçam ser uma identidade de “lugar” (em alguns casos, pode até ser mesmo), quando se trata de um fenômeno recorrente no capitalismo da “supermodernidade”, como afirma Augé (1994, p. 74), parece-nos a necessidade cada vez mais premente da consagração de uma identidade que se escorre na homogeneização característica dos “não-lugares”, “prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero [...] como uma polaridade fugidia”.28 Finalmente, depois todas essas relações expostas neste primeiro tópico, aproximamos de Caldeira (2000) e seu ponto de partida para compreender a cidade, sua espacialidade, os sujeitos e as relações com a história da violência e da criminalidade, tendo em vista as “falas do crime” como o substrato simbólico, jurídico ou ideológico que garante a configuração de São Paulo em “cidade de muros”. Caldeira (2000) se fundamenta na concepção de que a arte 26 Augé (1994, p. 65) faz referências às diversas placas e dizeres “seja bem-vindo” e “volte sempre” nas estradas, atentando à particularidade significativa da cidade: “[se] Lyon, que é uma metrópole, reivindica, entre outros títulos, o de ‘capital da gastronomia’, uma cidade pequena como Thiers pode se dizer ‘capital da cutelaria’, [...] Digouin, ‘capital da cerâmica’, [...] e Janzé, ‘berço do frango caipira’”. 27 São diversos os pretextos identitários que se forjam sobre as cidades. Tuan (1980) cita vários exemplos que se apóiam na localização (São Francisco, a “Rainha do Oeste”); nos fatos históricos (relativos aos processos migratórios: nos Estados Unidos muitas cidades chamadas de “portal” ou “porta” para o oeste), nas vantagens ambientais (Hawaí como “Paraíso” e Las Vegas, “A cidade abençoada com um clima ideal o ano todo”, além da farta utilização do “orgulho pelas façanhas industriais, identificando a cidade às suas indústrias e produtos (“Cidade
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