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Indaial – 2019 História da Música: classicisMo ao conteMporâneo Prof. Luiz Roberto Lenzi 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof. Luiz Roberto Lenzi Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L575h Lenzi, Luiz Roberto História da música: classicismo ao contemporâneo. / Luiz Roberto Lenzi. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 224 p.; il. ISBN 978-85-515-0357-7 1. História da música. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 780 III apresentação Prezado acadêmico! Você tem em mãos o Livro Didático da História da Música: Classicismo ao Contemporâneo, e assim terá acesso a um conteúdo que lhe fornecerá dados históricos e também tendências artísticas que influenciaram o mundo ocidental. Grandes eventos e revoluções, assim como figuras importantes marcaram seu lugar na história e mudaram a maneira de ser das pessoas, delineando o caminho da vida social, econômica e cultural no mundo que conhecemos. Obviamente a música está inserida neste contexto e será o nosso personagem principal. Nosso ponto de partida nesta viagem histórica situa-se em 1750, com o estabelecimento de uma nova estética artística alicerçada pelos costumes sociais na Europa. O classicismo musical europeu tem seu marco inicial nesta época e, contudo, configura-se como um curto período, repleto de mudanças estéticas no qual os compositores procuraram expor as novas tendências. No entanto, apesar de tamanha produção em termos de composição musical na segunda metade do século XVIII em toda a Europa, os proeminentes nesta área são, sem sombra de dúvida, os compositores austríacos Joseph Haydn e Wolfgang Amadeus Mozart e o alemão Ludwig van Beethoven, que caracterizaram o estilo clássico da música. Nossa viagem continua e na Unidade 2 você mergulhará no romantismo musical, do início do século XIX. Após as guerras napoleônicas, as sociedades começaram a se reorganizar politicamente e as tempestuosas revoltas populares em toda a Europa fizeram eclodir um sentimento nacionalista, de amor à pátria, da valorização do indivíduo, em que a imaginação e a fantasia teriam lugar de destaque nas belas artes. Uma das figuras centrais da literatura alemã e que influenciou compositores também de outros países, deu-se na pessoa de Johann Wolfgang von Goethe, sobretudo na obra Fausto, um dos marcos do pensamento romântico do século XIX. Da mesma forma, as lendas nacionais e os heróis de cada nação foram uma riquíssima fonte de inspiração para os compositores, e países como a Rússia, a Noruega, a Polônia e tantos outros, tiveram sua identidade impressa na música e apreciada amplamente. O século XX é tema da Unidade 3 e você constatará que se trata de uma época repleta das mais intensas mudanças em termos de concepção estética da arte. Na transição do século XIX para o século XX, o compositor Gustav Mahler mostrou-se como o cerne artístico que ampliou a orquestra aos limites jamais vistos e abriu as portas para a atonalidade. Caro acadêmico, as concepções estéticas da arte neste período farão você questionar-se sobre os limites artísticos, ou melhor, sobre o que é música e todas as suas possibilidades. IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! Em um século de tantas inovações tecnológicas, a música deveria seguir igualmente com suas inovações e, neste quesito, encontraremos a música serial, a música atonal e a enigmática música dodecafônica, além de várias experiências eletrônicas. Ao que parece, no século XX, tudo foi inventado e não sobrou mais nada aos compositores da atualidade que não seja uma releitura de tendências passadas. No entanto, estamos apenas no primeiro quarto do século XXI. Alguma coisa já apareceu neste século em termos de música, mas nada que surpreenda os nossos ouvidos. Por outro lado, uma sinfonia clássica requer muito refinamento artístico musical para ser interpretada e da mesma forma a música romântica, que exige a herança clássica, requer uma compreensão da imaginação. Só assim entenderemos o que é a música moderna do século XX e essa bagagem cultural pode ajudar-nos a entender um pouco mais da música que nos cerca nos dias de hoje e tudo o que ainda vamos vivenciar. Desejo a você uma boa leitura! O autor. NOTA V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 – CLASSICISMO (1750-1810) ........................................................................................ 1 TÓPICO 1 – UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL ...................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O SURGIMENTO DE UM NOVO ESTILO .................................................................................... 4 2.1 A FORMAÇÃO DE UM NOVO PÚBLICO E SUA INFLUÊNCIA NA MÚSICA .................. 9 2.2 O CLASSICISMO VIENENSE ........................................................................................................ 15 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 21 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 23 TÓPICO 2 – PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES ............................... 25 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 25 2 A PRIMEIRA ESCOLA DE VIENA ................................................................................................... 25 2.1 FRANZ JOSEPH HAYDN (1732-1809) .......................................................................................... 26 2.2 WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791) ....................................................................... 34 2.3 LUDWIGVAN BEETHOVEN (1770-1827)................................................................................... 41 3 OUTROS REPRESENTANTES DO CLASSICISMO MUSICAL ................................................ 44 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 46 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 48 TÓPICO 3 – A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO ........................................... 51 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 51 2 GÊNEROS E FORMAS MUSICAIS .................................................................................................. 51 2.1 GÊNEROS E FORMAS BARROCAS ............................................................................................. 54 2.2 FORMA SONATA ............................................................................................................................ 56 2.3 O QUARTETO DE CORDAS ......................................................................................................... 58 2.4 A SINFONIA..................................................................................................................................... 58 2.5 A ÓPERA ........................................................................................................................................... 60 2.6 O CONCERTO ................................................................................................................................. 61 3 ALÉM DOS GÊNEROS E FORMAS CLÁSSICAS ......................................................................... 62 3.1 MÚSICA PARA PIANO .................................................................................................................. 62 3.2 A ESCOLA DE MANNHEIM ....................................................................................................... 63 3.3 A ORQUESTRA CLÁSSICA ........................................................................................................... 63 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 66 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 68 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 70 UNIDADE 2 – ROMANTISMO (1810-1900) ....................................................................................... 73 TÓPICO 1 – A ESTÉTICA ROMÂNTICA .......................................................................................... 75 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 75 2 O CONTEXTO DA MÚSICA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX ..................................................... 75 2.1 EFEITOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA E INVASÕES NAPOLEÔNICAS ......................... 77 2.2 CARACTERÍSTICAS DA MÚSICA ROMÂNTICA .................................................................... 78 suMário VIII 2.3 O PARADOXO ROMÂNTICO, A AUSÊNCIA DA MELODIA ................................................ 82 2.4 BEETHOVEN: TRANSIÇÃO PARA O ROMANTISMO ........................................................... 85 2.5 FRANZ SCHUBERT: O DESENVOLVIMENTO DO LIED ALEMÃO ..................................... 90 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 95 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 97 TÓPICO 2 – UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES ....................................................... 99 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 99 2 COMPOSITORES DA VIRADA PARA O SÉCULO XIX ...........................................................100 3 O DESENVOLVIMENTO DA ORQUESTRA ...............................................................................103 3.1 O REGENTE ROMÂNTICO .........................................................................................................104 3.2 A MÚSICA PARA PIANO ............................................................................................................105 4 A NOVA GERAÇÃO ..........................................................................................................................107 4.1 FRANZ LISZT (1811-1886) ...........................................................................................................107 4.2 FRÉDÉRIC CHOPIN (1810-1849) ................................................................................................110 4.3 ROBERT SCHUMANN (1810-1856) ............................................................................................112 4.4 RICHARD WAGNER (1813-1883) ...............................................................................................114 4.5 HECTOR BERLIOZ (1803-1869) ..................................................................................................116 4.6 FELIX MENDELSSOHN BARTHOLDY (1809-1847) ...............................................................118 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................119 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................121 TÓPICO 3 – A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX ...............................................................123 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................123 2 MÚSICA NACIONALISTA ..............................................................................................................123 3 O CENTRO DA MÚSICA OCIDENTAL E A ÓPERA ITALIANA ...........................................128 3.1 A ÓPERA ITALIANA ....................................................................................................................130 4 OS FILHOS DO SÉCULO XIX: OS PÓS-ROMÂNTICOS .........................................................131 4.1 JOHANNES BRAHMS (1833-1897) .............................................................................................132 4.2 ANTON BRUCKNER (1824-1896) ...............................................................................................133 4.3 PIOTR ILITCH TCHAIKOVSKY (1840-1893) ............................................................................134 4.4 JACQUES OFFENBACH (1819-1880) E GEORGES BIZET (1838-1875) .................................136 4.5 GUSTAV MAHLER (1860-1911) ...................................................................................................138 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................141 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................145 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................147 UNIDADE 3 – MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) ...................................................149 TÓPICO 1 – O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO .............................151 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1512 OS LIMITES DA EXPANSÃO ROMÂNTICA .............................................................................151 2.1 RICHARD STRAUSS (1864-1949) ................................................................................................153 2.2 NOVAS CONCEPÇÕES ESTÉTICAS .........................................................................................154 3 PRELÚDIO DO MODERNISMO ....................................................................................................157 3.1 DEBUSSY E AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES...............................................................................158 3.2 O NEOCLÁSSICO COMO REAÇÃO .........................................................................................161 3.3 POLITONALIDADE......................................................................................................................163 3.4 A CORRENTE NACIONALISTA NO SÉCULO XX .................................................................164 IX 4 PERSONALIDADES DO INÍCIO DO SÉCULO XX....................................................................165 4.1 MAURICE RAVEL (1875-1937) ....................................................................................................165 4.2 COMPOSITORES DA TRADIÇÃO .............................................................................................166 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................169 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................171 TÓPICO 2 – NOVAS LINGUAGENS MUSICAIS ..........................................................................173 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................173 2 A SEGUNDA ESCOLA DE VIENA .................................................................................................173 2.1 MÚSICA ATONAL, DODECAFÔNICA E SERIAL ..................................................................174 2.2 ARNOLD SCHOENBERG (1874-1951) .......................................................................................177 2.3 ALBAN BERG (1885-1935) E ANTON WEBERN (1883-1945) .................................................181 3 A MÚSICA ALÉM DA EUROPA .....................................................................................................183 3.1 HEITOR VILLA-LOBOS (1887-1959) ..........................................................................................184 3.2 IGOR STRAVINSKY (1882-1971) .................................................................................................187 3.3 MÚSICA NORTE-AMERICANA ................................................................................................189 4 O CULTO DO MAESTRO ................................................................................................................190 4.1 KONZERTMEISTER/KAPELLMEISTER X MAESTRO ...........................................................190 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................193 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................194 TÓPICO 3 – A MULTIPLICIDADE MUSICAL ...............................................................................197 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................197 2 PRÓLOGO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA ..........................................................................197 2.1 PAUL HINDEMITH (1895-1963) .................................................................................................198 2.2 OLIVIER MESSIAEN (1908-1992) ...............................................................................................200 2.3 MILTON BABBITT (1916-2011) ...................................................................................................202 3 O NASCIMENTO DA MÚSICA ELETRÔNICA ..........................................................................202 3.1 EDGAR VARÈSE (1883-1965) .......................................................................................................203 3.2 JOHN CAGE (1912-1992) ..............................................................................................................205 3.3 PIERRE SCHAEFFER (1910-1995) E A MÚSICA CONCRETA ...............................................207 4 MÚLTIPLAS TENDÊNCIAS ............................................................................................................209 4.1 PIERRE BOULEZ (1925-2016) ......................................................................................................211 4.2 KARLHEINZ STOCKHAUSEN (1928-2007) .............................................................................212 4.3 PERSPECTIVAS ..............................................................................................................................214 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................216 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................218 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................220 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................223 X 1 UNIDADE 1 CLASSICISMO (1750-1810) OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar e compreender os fatores históricos da segunda metade do século XVIII, que contribuíram para o desenvolvimento de uma nova linguagem musical; • aprofundar acerca de dados históricos e biográficos dos três principais nomes do classicismo musical e conhecer seu contexto social; • compreender os diferentes aspectos formais que constituem as obras musicais do período clássico. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL TÓPICO 2 – PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES TÓPICO 3 – A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 1 INTRODUÇÃO Você pode perceber, nos tempos atuais, que diversas tendências musicais surgem de maneira tão rápida, assim como também desaparecem. As mídias não se cansam de oferecer produtos artísticos em uma demanda tão rápida quanto são esquecidos. Trata-se de um comércio, no qual alguns ritmos estão na moda, são os chamados “hits do momento”. Normalmente são músicas muito simples, de fácil memorização, exatamente para um consumo rápido. Por outro lado, existe um tipo de música que não deixou de ser apreciada ou mesmo interpretada nas diversas culturas em todos os continentes. São obras musicais que permanecem vivas atravessando dezenas de anos e até mesmo séculos. Estamos falando aqui da música erudita, ou se você preferir outro sinônimo, a música clássica. Neste tópico, mostraremos a você, caro acadêmico, por exemplo, como obras musicais compostas há mais de 250 anos permanecem no repertório das grandes e pequenas orquestras – e muitas vezes, bem perto de você, em sua cidade. Para assimilarmos melhor estas questões, mergulharemos na história de vida de alguns personagens principais e entenderemos o contexto histórico em que tais obras estão inseridas. É fundamental este olhar histórico, no qual conheceremos um pouco sobre este contexto e, assim, entendermos melhor osentido das obras que atravessam séculos e que continuam com releituras e interpretações magníficas. Para que você tenha uma ideia de onde estaremos nos situando, apresentamos o quadro a seguir com os diferentes períodos históricos pelos quais a música se desenvolveu, desde os primórdios da civilização até os tempos atuais. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 4 FIGURA 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA DA MÚSICA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA GERAL FONTE: Pires e Lenzi (2016, p. 75) 2 O SURGIMENTO DE UM NOVO ESTILO O termo “clássico” no sentido popular é utilizado quando queremos dizer que determinado compositor ou determinada obra musical possui qualidades estéticas e culturais que permanecem na memória dos ouvintes e que podem atravessar gerações (DOURADO, 2004). Podemos afirmar que a música Aquarela Brasileira, de Ary Barroso (1903-1964), é um clássico do samba, assim como o compositor Tom Jobim (1927-1994) é considerado um clássico da bossa nova, ou mesmo a banda Led Zeppelin é considerada como um clássico do rock. Por outro lado, “música clássica” é também considerada como a música de concerto, independentemente de período histórico, executada em teatros ou igrejas, que não está em um contexto popular ou mesmo folclórico. É comum utilizar os dois termos, ou seja, música clássica e música erudita. Porém, ao sermos mais específicos, estaremos utilizando o termo “música clássica” para o período histórico que compreende aproximadamente os anos de 1750 até 1810. O período histórico/musical que antecede o nascimento do classicismo é considerado pelos historiadores como da música barroca, que vai do ano de 1600 até 1750. É importante observar que o período da música barroca possui aproximadamente 150 anos, enquanto que o período da música clássica abrange apenas 60 ou 70 anos. Vamos entender melhor algumas características do período barroco, para então entender melhor os caminhos do desenvolvimento da música. Segundo Dourado (2004, p. 44), o barroco é o Período da música europeia situado aproximadamente entre o início do século XVII e meados do século XVIII. É caracterizado pelo emprego do baixo contínuo, pelo surgimento de tonalidades maiores e menores e pelos contrastes: claro-escuro, forte-piano e suas variações, além dos contrastes timbrísticos, de ornamentações, registrações e movimentos. O período foi extremamente fértil para a música por ter marcado o surgimento da ópera, com Monteverdi, e pela volumosíssima obra de compositores como Schütz, Scarlatti, Bach, Vivaldi, Rameau, Tellemann, Händel e muitos outros, que se consagraram com diversos gêneros característicos da época, como a cantata, o concerto grosso, as paixões e as suítes. TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 5 O período barroco da música é marcado pelo estabelecimento de tonalidades em modo maior e/ou menor, o que caracteriza a música tonal. A tradição do contraponto, tão comum no período do Renascimento, dá lugar a uma ênfase na melodia, acompanhada por instrumentos harmônicos em progressão de acordes. Era uma prática comum e tradicional escrever um sistema de cifras na linha do baixo, orientando o instrumentista a tocar os acordes desejados pelo compositor e, assim, uma função de preenchimento harmônico se estabeleceu (BENNETT, 1986b). Quando se fala em “baixo”, estamos nos referindo a uma das vozes. Normalmente os compositores escrevem em duas, três, quatro ou mais vozes. As vozes principais são (do grave para o agudo) baixo, tenor, contralto e soprano. NOTA Normalmente esta linha de baixo era tocada por um violoncelo ou contrabaixo, mas também se utilizava um cravo (instrumento de teclado, antecessor do piano) ou um alaúde (antecessor do violão), tocando os acordes indicados e enriquecendo assim a melodia. Esta técnica ficou conhecida como baixo contínuo e consolidou-se como uma das grandes características da música barroca. FIGURA 2 – CIFRA BARROCA E A CIFRA POPULAR ATUAL FONTE: Pires e Lenzi (2016, p. 101) UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 6 A tradição de música para ser tocada na corte, entre os príncipes e a nobreza, foi algo que se estendeu ao período clássico. Havia música para as ocasiões mais diversas, como nos casamentos, nos funerais, e em todo tipo de solenidade. Compositores como Georg Friedrich Händel (Inglaterra) e o próprio Johann Sebastian Bach (Alemanha) dedicaram muitas obras à música da nobreza (MASSIN, 1997). No século XVIII, em paralelo à vida musical da corte europeia, uma música começa a surgir com a ascensão da burguesia, que também passa a ser tocada e cantada em público. A ópera séria, tão tradicional no barroco, abre espaço para a ópera cômica e uma cultura musical mais ampla e complexa começou a surgir em meio aos grandes centros da Europa. Trata-se de uma música que estaria se adaptando à classe média. O público burguês estava em plena ascensão e, no entanto, não possuía uma cultura musical que se pudesse comparar à tradição do público aristocrático. Havia muito interesse popular, mas muitas vezes mostrava-se um interesse medíocre e até mesmo vulgar (MASSIN, 1997). Para o aristocrata, a música era tratada como arte, com finalidade em si própria e até mesmo os empregados possuíam conhecimento musical para tal contemplação. Porém, para o burguês, a música deveria aliviar o estresse do dia a dia e também proporcionar certo status, pois assim se sentiria mais elevado socialmente. Para o burguês, os valores sociais eram mais intensos que os próprios valores estéticos da obra musical como obra de arte em si. Não obstante, no último quarto do século XVIII, a cultura já era algo que estava ao alcance de todos: “as peças de teatro começavam a retratar pessoas comuns, com emoções comuns. Até as maneiras e indumentárias foram afetadas: no início do século, a burguesia macaqueava a aristocracia; em 1780 já era a aristocracia que macaqueava as classes inferiores” (GROUT; PALISCA, 1988, p. 478). A promoção de concertos públicos entrou em moda, afinal, é algo que até então era prática dominante da aristocracia e eventos desse tipo acrescentavam muito à vida simples da burguesia. Organizadores e também compositores preparavam todo tipo de material musical, por exemplo, a execução de diversos fragmentos de melodias escritas em sequência ao que deram o nome de pot- pourri, assim como cortes de partes mais complexas de obras maiores, a fim de simplificar, tornar mais acessível ao público comum (MASSIN, 1997). O piano, um instrumento tão completo pelo seu alcance na altura dos sons – que vai das notas muito graves às mais agudas, tornou-se um símbolo de prosperidade da sociedade burguesa. Casas onde se pudesse encontrar um piano seria um símbolo de status e ascensão social. Da mesma forma, o estudo deste instrumento era prática comum, como sinal de boa educação. Esta tendência contribuiu para o crescimento de uma classe de músicos amadores, principalmente na Alemanha do século XVIII. No entanto, já data do século XVI uma educação musical voltada aos cantores de coros de música sacra. Porém, no classicismo, esta prática intensificou-se também no âmbito instrumental, trazendo grande benefício social e cultural para as comunidades. TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 7 Tamanho movimento musical trouxe também o nascimento da atividade crítica musical: na segunda metade do século XVIII, pensadores já se manifestavam a respeito de determinados compositores e determinadas obras, com julgamentos estéticos. Tais críticas eram publicadas em jornais em Londres, Paris e também pela Alemanha, o que contribuiu para o desenvolvimento da música como uma arte independente, repleta de valores estéticos e culturais. Destacamos que no último quarto do século XVIII surgiram também diversas manifestações de filósofos europeus acerca da problemática da estética e o belo da arte. Sem dúvida, o desenvolvimento da ópera no período clássico contribuiu para que a música alcançasse definitivamente sua importância artística, pois somentea música iria unir as artes cênicas e plásticas. Segundo Massin (1997, p. 415), a “função social da ópera mostra-se, no caso, mais uma vez, de singular importância: a ópera não era apenas um divertimento para as classes superiores; também era o cenário de uma luta entre diversas ideias filosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar toda uma série de outras atividades, como a dos pintores, dos dançarinos, dos coreógrafos etc.”. A ópera cômica tornou-se gênero musical muito apreciado pela classe burguesa, um público completamente novo fiel durante todo o século. No classicismo, burgueses e aristocratas já se sentavam lado a lado para a apreciação de óperas e a música foi a grande responsável por este fenômeno social. A alta burguesia frequentava os salões da nobreza e juntos apreciavam música. Não somente os nobres desempenhavam o papel de mecenas dos artistas, como também uma elite burguesa se preocupou em ocupar este espaço como promotores das belas artes. Os acontecimentos que antecedem a Revolução Francesa, principalmente nos anos de 1770 e 1780, agravaram a situação econômica principalmente na França, trazendo profundas mudanças na vida social musical. Estes fatos históricos acabaram por contribuir para que a música evoluísse “da condição de ofício semifeudal, a serviço da Igreja, da cidade e da corte, à de profissão de livre iniciativa, voltada predominantemente ao mercado burguês” (MASSIN, 1997, p. 418). No período em que ocorreu a Revolução Francesa, precisamente entre os anos de 1789 até 1799, novas concepções de linguagem seriam produzidas entre ideias e a criação de novas instituições. Neste período turbulento, poucos compositores que fizeram alusão à Revolução aparecem no cenário musical, principalmente na França. São eles: Berton (1767-1844), Catel (1773-1830), Méhul (1763-1817), entre outros cuja produção musical revolucionária mostra-se em quantidade reduzida (MASSIN, 1997). Um dos elementos que chamam nossa atenção acerca do perfil dos compositores revolucionários reside no fato de serem estrangeiros e, assim, teriam aderido ao movimento não somente por convicção, mas também por oportunismo. Outro aspecto importante se traduz no fato de que a Revolução trazia consigo novos ares de possibilidades para a emancipação UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 8 dos músicos e, desta forma, uma tão sonhada independência, a exaltação de uma profissão estaria com plenas possibilidades de surgir. Esta independência viria dos lucros de concertos públicos e não mais da dependência de alguma instituição religiosa, ou uma vida assalariada. FIGURA 3 – A REVOLUÇÃO FRANCESA E O ILUMINISMO FONTE: <http://www.salom.com.tr/haber-103536-sag_ve_solun_olumu.html; http://www. librairiedobree.com/entretien-avec-xavier-martin/philosophes-de-lumieres>. Acesso em: 18 out. 2018. Nos momentos que precedem a Revolução, novas instituições já tendiam a eclodir como uma sociedade de concertos, mantidas pela própria sociedade, principalmente na França. Isto foi um importante aspecto no que diz respeito à independência dos compositores e músicos e seu viés musical percorria pelo gosto do público. Os benefícios foram significativos também no número de integrantes das orquestras: “a Loge Olympique empregava aproximadamente setenta músicos de altíssima qualidade, um número duas vezes e meio maior do que aquele com que contava Joseph Haydn na corte dos Estherhazy” (MASSIN, 1997, p. 584). Como veremos mais adiante, as orquestras neste período começaram a aumentar consideravelmente seu tamanho, em virtude também da introdução de novos instrumentos (com novos timbres), o que também contribuiu para uma linguagem musical durante a Revolução Francesa. No entanto, a partir de 1791, estas mesmas sociedades entraram em colapso pelas ações e movimentos oriundos da Revolução. Assim, a atividade dos mecenas começa a entrar em declínio. Se até então os compositores dedicavam suas obras aos seus patrocinadores, agora estariam voltados aos concertos públicos e a um comércio que estaria em expansão. A frequência às casas dos aristocratas tende a diminuir em contrapartida à crescente expansão dos concertos públicos. Há uma linha crescente no que diz respeito à criação de empresas de difusão artística, na popularização da música para o público consumidor. As cópias manuscritas tendem a diminuir, dando espaço para a indústria da impressão (MASSIN, 1997). Dessa forma, os próprios compositores, para que pudessem sobreviver como tal, buscavam conceber suas obras de acordo com o mercado estabelecido pelos editores. Não demorou muito TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 9 para que os próprios compositores encontrassem os próprios meios para que pudessem imprimir suas obras, tornando-se cada vez mais artistas independentes. Neste período, fatos interessantes também aconteceram, no que diz respeito à “pirataria”: editores gananciosos publicavam obras sem repasse de remuneração aos compositores e, por vezes, chegavam a assinar o nome de algum compositor de prestígio em qualquer obra, com a finalidade de vendê-la mais rapidamente. Ou seja, não havia qualquer proteção quanto à autoria das obras artísticas. De fato, as edições contribuíram para que determinadas obras musicais fossem conhecidas em vários espaços. Antes disso, as obras eram destinadas a uma única ocasião social. Ao final do século XVIII, os compositores já não sabiam para que qualidade técnica de orquestra suas obras seriam interpretadas e desconheciam os locais onde as obras seriam tocadas. O período clássico marca os primeiros passos para a independência, principalmente, dos compositores, mas este caminho ainda seria árduo, como veremos no Tópico 2 desta unidade, analisando a vida de compositores famosos deste período. Veremos a seguir alguns fatores que contribuíram e direcionaram os caminhos da música neste fascinante momento histórico que é o classicismo. 2.1 A FORMAÇÃO DE UM NOVO PÚBLICO E SUA INFLUÊNCIA NA MÚSICA Como você já viu, um dos principais fatores sociais na segunda metade do século XVIII foi a ascensão da burguesia. Em um movimento em paralelo à Revolução, o Iluminismo trouxe uma mudança no pensamento espiritual em conflito com o pensamento da Igreja e a religião sobrenatural. O Iluminismo pregou a valorização da natureza, a moral prática e o senso comum. Foi favorável à liberdade do indivíduo, “em prol da igualdade de direitos e da instrução universal” (GROUT; PALISCA, 1988, p. 475). Todo este movimento influenciou a maneira de pensar, estabelecendo as ideias principais, como a da eficácia do conhecimento aplicado à prática em favor à experimentação e à crença nos sentimentos naturais, que são universais a todas as pessoas. Esta maneira de pensar direciona os sistemas éticos e morais, influencia na criação de leis pelo Estado e, naturalmente, vai exercer influência no campo das artes, e assim, no campo da música. O século XVIII, no entanto, foi uma época em que as diferenças nacionais não eram importantes. É o que se chama de uma era cosmopolita, pois “eram numerosos os monarcas de origem estrangeira: reis alemães na Inglaterra, na Suécia e na Polônia, um rei espanhol em Nápoles, um duque francês na Toscânia, uma princesa alemã (Catarina II) como imperatriz da Rússia” (GROUT; PALISCA, 1988, p. 477). Esta internacionalização da sociedade e da maneira de pensar também teve seus reflexos na música, em que alguns pensadores já afirmavam que uma música universal e comum a todos já estava presente em toda a Europa. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 10 As luzes foram ainda, além de cosmopolitas, humanitárias. Os governantes não só protegiam as artes e as letras, como se empenhavam em programas de reformas sociais. O século XVIII foi a era dos déspotas iluminados: Frederico, o Grande, da Prússia, Catarina, a Grande, da Rússia, José II da Áustria e (na primeira parte do reinado) Luís XVI da França. Os ideais humanitários, o anseio pela fraternidadehumana universal, foram encarnados pelo movimento da maçonaria, que se difundiu rapidamente pela Europa ao longo do século XVIII e contou entre seus membros desde reis (Frederico, o Grande) até poetas (Goethe) e compositores (Mozart) (GROUT; PALISCA, 1988, p. 478). Um novo público surge, com muita vontade de apreender arte e, sobretudo, apreender a música. Os cômodos da nobreza ainda receberiam os concertos particulares, afinal, esta prática não cessou, no entanto, a burguesia sentiu a necessidade de criar espaços onde também pudesse desfrutar da boa cultura musical. Concertos particulares e públicos tornaram-se uma constante, onde se podia pagar para frequentar estes espaços que até então eram privados de música. A edição de partituras não era uma novidade, pois já existia no início do século XVI. Porém, pouco de obras musicais foi editado até o período barroco. Sabe-se que após a morte do compositor Johann Sebastian Bach, apenas quatro de suas obras estavam editadas. Isto porque simplesmente não era prática comum na época e também pelo fato de que Bach dedicou grande parte de sua obra para a música religiosa em cerimoniais específicos. Por outro lado, já no período clássico, várias obras de um único compositor, por exemplo, o austríaco Joseph Haydn, eram publicadas em vários países da Europa. Segundo Massin (1997), cerca de 150 mil sinfonias dos mais variados compositores foram escritas na Europa na segunda metade do século XVIII. O trabalho das editoras foi muito intenso e seus proprietários não mediam esforços para obter lucros. Haydn já gozava de grande reputação pela qualidade estética e formal de suas obras e os editores sabiam muito bem disso. O compositor austríaco escreveu 106 sinfonias, mas tomou conhecimento de que algumas de suas obras já estavam publicadas e vendidas apenas anos mais tarde, não obstante, sem qualquer remuneração. Os editores não hesitavam em colocar a assinatura de Haydn em obras de compositores de qualidade inferior a fim de obter um rápido lucro. Transcrições também eram encomendadas e, por “muitas vezes, os editores mutilavam as obras musicais, sabendo o que faziam. Em 1773, por exemplo, Venier publicou uma sinfonia composta por Haydn em 1764, a Sinfonia número 22 de Haydn, dita O Filósofo, só que o fez sem o primeiro movimento e sem o minueto; mas, para compensar, com um movimento suplementar de que ainda hoje se ignora a origem. Para o cúmulo do absurdo, uma parte escrita para trompas foi substituída por flautas. Uma sinfonia de Haydn em quatro movimentos foi, assim, transformada num subproduto de três movimentos, dos quais apenas dois – e com uma orquestração bem mais convencional, eram de sua autoria!” (MASSIN, 1997, p. 517). TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 11 Esta relação entre compositores e editores era algo que carecia de clareza e regras para as questões de autenticidade e direitos autorais. Por outro lado, o compositor também austríaco Wolfgang Amadeus Mozart passou a catalogar suas obras a partir de 1784, assinalando a data final de suas composições, com o objetivo de assegurar a autenticidade. No entanto, é a partir desta mesma época que Haydn passou “ele próprio a vender suas obras a diferentes editores”, prometendo exclusividade (MASSIN, 1997, p. 518), em Viena, Paris e Londres. Todo este movimento comercial auxiliou na difusão da música neste período em toda a Europa, algo que até então acontecia de forma branda. FIGURA 4 – PARTITURAS DE JOSEPH HAYDN E O HINO NACIONAL DA ÁUSTRIA FONTE: <https://osbmss146.files.wordpress.com/2010/08/haydn_salomon.jpg?w=237&h=300> e < https://haydn2009.files.wordpress.com/2008/11/02_reinschrift_hymne.jpg>. Acesso em: 29 out. 2018. Por outro lado, a independência social dos músicos compositores ainda estava em seus primórdios. Johann Sebastian Bach sempre foi mestre de capela, era sua função principal e não tinha permissão para dispensa de seus trabalhos. Haydn conheceu outro país depois dos seus 50 anos e sempre foi empregado do príncipe Estherházy. O jovem Mozart, nos anos de 1772 até 1781 viveu um regime de semiescravidão pelo arcebispo Colloredo, em Salzburgo. Sua tão sonhada independência viria anos mais tarde, por um curto período de tempo. A classe burguesa carecia de uma herança cultural que sustentasse uma tradição requintada no que diz respeito às belas artes. A contemplação da obra de arte pelo burguês que teve a sua vida socialmente elevada se deu pela simplicidade e pela subjetividade. A sociedade passa a valorizar a linha melódica e os sentimentos. Quando falamos em melodia, devemos imaginar uma linha horizontal, uma sucessão de notas em contrapartida à harmonia, que é justamente a sobreposição de notas, ou seja, um olhar vertical, pois várias notas são tocadas UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 12 ao mesmo tempo, formando os sons combinados. Ao falar de melodia, pensamos de forma sucessiva e não simultânea. Este movimento melódico e horizontal caracteriza o pensamento clássico, pois a melodia caminha também por contrastes. Estes contrastes se referem às emoções e, por isso, a subjetividade se faz presente na maneira de compor as obras musicais no período clássico. ESTUDOS FU TUROS Você verá mais adiante, no Tópico 3, os aspectos formais das obras mais comuns criadas neste período, com os contrastes de movimentos rápido-lento-rápido, mudanças de tonalidades e formas musicais. Como você viu, apenas no gênero chamado sinfonia, mais de 150 mil obras deste gênero foram compostas em um período de aproximadamente 50 anos. Porém, um número muito inferior é conhecido pelo grande público e até mesmo pelos mais aficionados classicistas da atualidade. Talvez este fenômeno se justifique pela genialidade de apenas três compositores que são o cerne musical definitivo do período clássico: Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e o jovem Ludwig van Beethoven. A estes três compositores são atribuídos os aspectos mais primorosos no que se refere à forma e estrutura da música, assim como aos valores estéticos de sua época. Trata-se de uma música escrita com extrema competência e qualidade, em que se observa a excelência da simplicidade e subjetividade. Não que outros compositores não tivessem êxito notório, mas, principalmente com Haydn e Mozart, o estilo clássico consolidou-se “expressivo e elegante, marcado pela preocupação tanto com os detalhes quanto com a concepção de conjunto e de efeitos dramáticos por vezes surpreendentes, mas logicamente motivados” (MASSIN, 1997, p. 525). A dramaticidade seria algo que iria fundamentar o estilo musical no último quarto do século XVIII. A representação do sentimento não seria mais suficiente para a expressividade musical, seria necessária uma ação dramática para o sentimento. As formas musicais no período barroco fluíam de forma uniforme enquanto que os compositores do estilo clássico passam a compor em episódios articulados e contrastantes (ROSEN, 1986). Percebe-se, ao longo das composições do período clássico, uma periodicidade das frases musicais e um conflito dramático articulado pelas mudanças de tonalidade e textura. TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 13 A textura em música refere-se às mudanças de timbre nas passagens musicais. Imagine uma melodia sendo tocada pelos violinos e um acompanhamento feito por trompas e clarinetes. Uma mudança de textura poderia ser a melodia sendo tocada pelos clarinetes e trompas, com acompanhamento pelos violinos. Textura refere-se a combinações de timbres. NOTA Nos primeiros anos do período clássico, o estilo é caracterizado pelo que ficou conhecido como estilo galante (BENNETT, 1986b). Trata-se de um estilo agradável, elegante, com a preocupação de agradar ao ouvinte, mas que, no entanto, sentiu-se uma falta de profundidade. O aspecto melódico ainda estava em desenvolvimento nesse momento e nesse sentido a contribuição de Carl Philip Emanuel Bach e Johann Christian Bach vem para elevar este quesito. Da mesma forma,o refinamento aparece nas primeiras obras de Joseph Haydn e Amadeus Mozart. Sobre os aspectos de dramaticidade e expressividade, Rosen (1986) explica que os anos 1755 até 1775 configuram uma transição para o novo estilo que estaria surgindo. Os compositores optavam ou pela surpresa dramática ou pela perfeição formal. Se fizessem uso de passagens elegantes, estas careciam de expressividade, dificilmente estes diferentes aspectos eram combinados. Assim, experiências foram uma constante, com bons acertos e também resultados insatisfatórios. A genialidade de Mozart e Haydn, no entanto, produziu obras repletas de efeito dramático, combinando elegância e expressividade, perfeição formal e surpresa dramática. Seguindo a lógica do pensamento horizontal, na periodicidade das frases musicais, uma das principais preocupações foi a continuidade, a superposição de frases, com o objetivo de manter a atenção da plateia. Em paralelo à ascensão da burguesia, no período de transição de 1750 até 1780, outros movimentos intelectuais influenciaram os caminhos da música, estabelecendo o estilo clássico. Na França, a influência do estilo Rococó, o que na música é o que se chama de estilo galante, e também o “Empfindsamer Stil” (estilo sentimental), e ainda, na Alemanha, o surgimento do “Sturm und Drang” (Tempestade e tensão). Este último é caracterizado pelo pensamento voltado à natureza e à valorização da subjetividade, o ser humano individual, em que o filósofo Wolfgang von Goethe (1749-1832) configura como o maior representante (CHAIM, 1998). Todo esse movimento intelectual culmina para uma supervalorização da melodia, onde até então, na música barroca, a melodia era caracterizada em uma simultaneidade de vozes, praticamente com igual importância. No classicismo, a predominância de uma das vozes, a melodia, passa a ser acompanhada por toda UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 14 a estrutura da orquestra. No chamado período de transição, o desenvolvimento do conceito melódico foi intenso, apoiando-se em melodias curtas extraídas da música popular e os resultados não foram satisfatórios, mostrando uma “falta de fôlego e de unidade” (MASSIN, 1997, p. 545). Johann Christian Bach, um dos representantes do Empfindsamkeit, aprimorou este conceito e juntamente com Mozart contribuiu para estabelecer o estilo melódico. Ao contrário da música barroca, a melodia classicista passou a ser periódica e articulada, ou seja, de maneira geral se mostra em frases de quatro ou oito compassos, com relações coerentes e que oferecem aspectos que permitem a geração de novas frases, continuidade com unidade. Exemplo disso – entre uma infinidade de outros – pode ser conferido na introdução da sinfonia número 104, de Haydn, denominada Sinfonia “Londres” (1795). A melodia possui dezesseis compassos divididos em dois períodos de oito compassos e estes podem ainda ser subdivididos em mais metades. Esta análise mais profunda permite perceber elementos que Haydn utilizou para compor toda a sequência, em diferentes maneiras. Mais especificamente, Haydn utilizou uma célula rítmica e melódica de dois compassos e que serviu de base sólida para a construção de todo o primeiro movimento da sinfonia Londres. “O material melódico de uma obra ‘clássica’, mesmo submetido às mais radicais modificações, conserva sua identidade para o ouvinte, graças principalmente a certa constância do ritmo” (MASSIN, 1997, p. 546). DICAS Ouça na plataforma Youtube esta obra de Joseph Haydn. Basta procurar por “sinfonia 104 Haydn” e você terá várias interpretações de diferentes orquestras e regentes. Compare estas performances e perceba as nuances de ritmo, intensidade, características subjetivas de cada regente na interpretação da mesma obra. O tratamento melódico foi também alicerçado por um novo uso no que diz respeito à tonalidade. Mozart e Haydn aperfeiçoaram esta linguagem em que, com eficaz coerência, podia-se modular, sair temporariamente da tonalidade e caminhar para qualquer tom, sem que se perdesse o sentido da tonalidade geral. Estes dois compositores estabeleceram a hierarquia das tonalidades na progressão da tônica para a dominante, ou seja, uma progressão de sustenidos (aumento de tensão) e também pela progressão da tônica para a subdominante, uma progressão de bemóis (distensão ou introspecção). Assim, a articulação entre tonalidades contribuiu para o efeito dramático nas melodias de maneira notável. O resultado são efeitos surpreendentes conduzindo o público a surpresas harmônicas aliadas à métrica melódica. Em grande parte, este artifício se traduz no humor de Haydn em suas sinfonias, assim como o êxito de Mozart em suas óperas (MASSIN, 1997). TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 15 Quase toda a música começava na tônica e terminava também na tônica, por exemplo, se a música começasse em Dó maior, terminaria em Dó maior, se fosse na tonalidade de Sol menor, terminaria em Sol menor. Isto é chamado de tonalidade principal. No decorrer da música, as frases poderiam terminar seus períodos na dominante – no caso da tonalidade de Dó maior, terminar um período em Sol maior. Os compositores Haydn e Mozart fizeram amplo uso deste artifício, colocando em plena evidência. Até o período barroco, o esquema harmônico era tônica-dominante e dominante-tônica, ou seja, o início da melodia (A) na tônica e terminando o período na dominante seguido de uma nova seção (B), partindo da dominante e terminando na tônica. Assim temos um esquema A-B/B-A. Com Haydn e Mozart, estas passagens foram enriquecidas de um grande efeito dramático, tornando-as ainda mais claras, em que eles trataram de Articular dramaticamente tanto a passagem à dominante como a volta à tônica; em outras palavras, em transformar com clareza, ainda que provisoriamente, a dominante em nova tônica, e a reafirmar com força a tônica depois de transcorridos dois terços da peça musical, às vezes até a partir da metade, e o mais tardar de três quartos. Estas duas dramatizações – sobretudo a segunda – explicam a impressão tripartida (não mais bipartida) deixada pela maioria das peças musicais do final do século XVIII, definindo-se as três partes não pelo seu comprimento, que não é obrigatoriamente o mesmo, mas pela articulação e, em última instância, pela função de cada uma delas (MASSIN, 1997, p. 548). O subjetivismo em ascensão na segunda metade do século XVIII foi fundamental para o nascimento e desenvolvimento do estilo clássico. Esta nova concepção não somente da música, mas também como uma mudança causada por acontecimentos políticos e intelectuais, encontra residência num dos grandes centros artísticos da Europa, a capital da Áustria, Viena. Ali seria o grande destino musical desejado por célebres compositores. 2.2 O CLASSICISMO VIENENSE Um conceito que transparece no cenário em que a música clássica está inserida é a ideia de um ambiente cosmopolita, ou seja, um ambiente que “não reconhece a diferença entre as nações e considera o mundo como pátria” (OLINTO, 2001, p. 136). Cosmopolita refere-se a uma pessoa ou lugar que é de todos os países, algo universal. Da mesma forma, uma grande cidade, um grande centro comercial e cultural tem sua trajetória trilhada pelo caráter de seus habitantes e também pela situação geográfica. Assim, de maneira geral, é como a cidade se manifesta quanto às influências exteriores, não obstante, influenciada também pelo seu regime político. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 16 A capital austríaca Viena corresponde ao grande centro das atenções na Europa no século XVIII e se caracteriza no modo cosmopolita de viver. Ao contrário de outros centros onde as comunidades estrangeiras viveram e continuam a manter sua identidade original, diferente da cultura do ambiente em que escolheram viver, a Viena já no século XVIII abraçou todos os estrangeiros constituindo um povo harmonioso entre as diferentes culturas que ali se instalavam. Viena é plena de uma história quecontribuiu para o fenômeno cosmopolita e configurou-se como o “grande centro das investidas militares rumo ao Oriente e feira perpétua para onde convergiam comerciantes de todas as regiões do Império Romano, Viena consolidou-se por toda a Idade Média e seu destino verdadeiramente imperial” (BRION, 1991, p. 12). Viena era governada por José II e seus habitantes viviam em harmonia e até mesmo com bom humor, quaisquer que fossem suas nacionalidades, ao contrário da França, por exemplo, com um comportamento de zombaria com os próprios conterrâneos. A grande aristocracia era formada por sobrenomes como Lobkowitz, Pallavicini, Kinsky, Liechtenstein, Harrach, Czernin, Estherhazy, Schwarzenberg e tantos outros e, por outro lado, famílias de comerciantes com os sobrenomes “Demetríades, Apfelgrün, Truka, Schwarzbrod, Benvenisti, Srp, Zuckerkandl, Vytlacil, Vertery von Vertesalja... isto é, a Hungria, a Tchecoslováquia, a Itália, o Oriente, a Alemanha” (BRION, 1991, p. 15), e todos esses nomes e muitos outros constituem a identidade e o estilo vienense. No que diz respeito ao movimento intelectual e espiritual, Viena mantinha uma devoção ao catolicismo, reconhecendo assim a autoridade da Igreja com todas suas práticas religiosas, o que incluía inúmeras festividades. O povo vienense, no entanto, não vivia a religião de uma maneira puritana, mas sim de maneira cordial, em um aspecto familiar de religiosidade. Observa-se que neste período a franco-maçonaria era um aspecto presente e que não se caracterizava como um movimento anticristão. “Se a Igreja via com inquietação a difusão das seitas iluministas, cujo poderio crescente seria capaz de um dia derrubar sua própria autoridade, os soberanos mostravam-se, em geral, mais tolerantes” (BRION, 1991, p. 26). O próprio Mozart frequentava assiduamente as peregrinações católicas como ao mesmo tempo frequentava duas lojas maçônicas, assim como o imperador José II. As pessoas mais esclarecidas e prudentes compreendiam que estes movimentos espirituais deveriam caminhar em harmonia, visto que esta época estava a um passo da Revolução Francesa. Os prazeres da cidade incluíam, além da grande preferência do vienense pelos passeios no campo, também os numerosos cafés no centro. Estes locais eram bem diferentes dos também numerosos salões de baile, pois se sentiam muito à vontade para estarem sozinhos ou acompanhados, em conversas com os vizinhos, jogando cartas ou xadrez, bebendo vinho para manter leve o espírito de longa conversa. Estes “Cafés”, como eram conhecidos os estabelecimentos vienenses, possuíam as mais diversas características, desde os mais sofisticados, os quais a alta burguesia e a aristocracia frequentavam e, assim, decorados com refinada mobília e disponibilizando alta gastronomia, até os mais simplórios e TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 17 de baixo nível, vendendo cerveja e recebendo os marinheiros do rio Danúbio. O vienense se mostrava um apreciador do bom vinho, o gosto pela cerveja ainda seria algo para gerações posteriores. Em Viena, houve cafés ilustres: alguns desapareceram, outros mantiveram durante muito tempo sua velha reputação; os mais apreciados eram aqueles em que as pessoas se encontravam depois do teatro, onde os frequentadores tinham oportunidade de ver sentado à mesa vizinha o ator ou cantor, que fora o herói da noite e que continuava, naturalmente, a interpretar o seu papel na vida diária (BRION, 1991, p. 63). Um importante personagem no campo das artes cênicas no cotidiano vienense figura na pessoa de Emmanuel Schikaneder, imortalizado pelo seu libreto da ópera A flauta mágica, de Mozart. Este organizador de espetáculos conhecia o gosto do vienense pela magia e pela música e combinou estes elementos na atuação das companhias de teatro que administrava. Os atores por ele contratados eram habilidosos em multitarefas; além de atuar, cantavam, dançavam e representavam peças diferentes todas as noites (BRION, 1991). O próprio Schikaneder interpretava diversos papéis que iam de galã, trágico ou camponês. Oferecia exatamente o que o público desejava com o objetivo de obter mais lucro e auditórios cheios: artifícios de grande efeito como fanfarras militares, engenhocas e as mais variadas fantasias. Por outro lado, interpretava os grandes autores da época, como Lessing, Shakespeare, Schiller e Voltaire. Brion nos conta sobre a habilidade de Schikaneder em lidar com o público vienense: Sem dúvida, ele hesitava em tomar liberdades com os grandes autores, como fez com um drama de Toning, Agnès Bernauer. Nessa peça, o ator Wellerschenk, que interpretava o ‘traidor’, fazia tão bem o seu papel, com tal convicção, que chegava a ser insultado na rua e quase foi morto num albergue, de tal forma o público o identificava com seu personagem, Vicedom. A cena que provocava maior impacto era aquela em que Agnès era atirada de cima da ponte e se afogava. Certa noite, o público não pôde mais suportar a visão da morte da inocente e pôs-se a gritar: ‘Ajudem-na! Afoguem Vicedom!’ Diante da gritaria, Schikaneder, sempre disposto a quaisquer concessões para manter a ordem e o sucesso de seu teatro, subiu ao palco e anunciou que naquela noite, excepcionalmente, para contentar o público, o afogado seria Vicedom e não a doce Agnès, o que lhe valeu hurras e aplausos (BRION, 1991, p. 100-101). Na sua atuação com Mozart na ópera A flauta mágica, Schikaneder usou cenários de um Egito mágico e fantástico que impressionou mais que a própria música. Ele mesmo aparecia na ópera, interpretando Papageno, um personagem extremamente carismático e encantador. Existia uma tendência do povo vienense a encarar o mundo como um espetáculo e esta característica pode ser fundamentada pelos traços latinos UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 18 mesclados ao espírito germânico e italiano de viver. Domadores de cães e saltimbancos circulavam pelas ruas vienenses apresentando seus pequenos espetáculos, competindo com cenas pitorescas entre brigas de cocheiros, as conversas dos comerciantes ambulantes e pastoras de cabras. Sempre alvo de atenção de qualquer transeunte, as atrações deste grande centro cosmopolita variavam desde a troca da guarda imperial até as manobras treinadas dos cães e seus adestradores em plena rua (BRION, 1991). Em outro aspecto, o espetáculo promovido pelos animais, principalmente o desfile do gado bovino pelas ruas com destino aos açougues vienenses, promovia uma verdadeira festa regada a trompetes e tímpanos, anunciando a “marcha” dos bois pelas ruas da cidade. O povo, ignorando as recomendações de fechar suas portas e janelas, dirigia-se às ruas com toda a família para apreciar a chegada destes animais, principalmente bois advindos da Hungria. Como todo povo espetaculoso, a esperança era de que acontecesse algo repentino, como por vezes acontecia com algum animal desgarrado fugindo pelas ruas vienenses. Tal espetáculo sanguinário era alvo de atenção das comunidades, assim como na França e Inglaterra, onde os burgueses pagavam caro por uma cadeira para apreciar o enforcamento de alguma pessoa condenada por motivo pífio (BRION, 1991). Como você pode conferir, algo de instinto selvagem e que atravessa os séculos reside nas multidões até os tempos atuais. No século XVIII havia espetáculos nos quais animais como leões, ursos e lobos mutilavam-se até a morte. Esta cruel tradição que remonta à Idade Média e talvez por isso tenha se fixado de forma tão natural entre o povo, encontrou seu fim com o Imperador Francisco I. Em Viena, a comunidade podia apreciar animais exóticos em vários zoológicos. Os próprios jornais noticiavam a chegada de novos espécimes com a mesma intensidade que se anunciava uma nova ópera. Em 1752, uma das grandes atrações de um zoológico era um elefante e as famílias visitavam os zoológicos e organizavam piqueniques regados a vinho e pão para o grande paquiderme. Quando este adoeceu, as pessoas acompanhavam as notícias de seu quadrode saúde no jornal local e sua morte provocou comoção nacional. Esta paixão pelos animais esteve presente no espírito vienense, pois não somente nos zoológicos estes animais eram exibidos, mas também nas feiras, em vários bairros pela cidade e até mesmo nas óperas cômicas. A música, no entanto, ocupa um lugar mais importante que o prazer ou mesmo pura diversão; mostra-se como uma necessidade cultural, pois em Viena a música penetra em todas as classes sociais. No último quarto do século XVIII, Viena era repleta de músicos cantores e instrumentistas, que, incansavelmente, buscavam lugar de prestígio entre o grande número de concorrentes a um posto em alguma das várias orquestras. A principal atividade musical era constituída pela Hofmusikkapelle, ou seja, a orquestra da corte que era formada por integrantes de um coro de igreja, TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 19 músicos de orquestra, artistas de teatro lírico e de conservatório. Além disso, integravam também crianças talentosas e dentre os alunos estaria mais tarde o compositor Franz Schubert (1797-1828). A Hofmusikkapelle constitui uma das mais importantes instituições da Europa e sua fundação vem da época do reino de Maximiliano I, em meados de 1498. O próprio nome “capela” demonstra a origem eclesiástica da instituição. FIGURA 5 – IMPERADOR JOSÉ II E VIENA NO ANO DE 1780 FONTE: <https://geneall.net/images/album/name/p10424_3.jpg> e <http://www.edition-wh. at/wordpress/wp-content/uploads/2013/08/Edition-Winkler-Hermaden-Das-Alte-Wien-07.jpg>. Acesso em: 18 out. 2018. Não somente a Hofmusikkapele, mas também outra instituição, o chamado Stadtkonvikt, recebia e educava crianças com vocação para música, direcionando- as para o canto ou algum instrumento. Tal ensino era proporcionado de forma gratuita e, assim, toda a comunidade teria acesso à música. Crianças com bom desempenho já conseguiam algum serviço nas orquestras de Viena. Brion (1991) nos mostra que nesta época os concertos públicos ainda eram raros. A nobreza ostentava suas orquestras como símbolo de status e mantinha rivalidade entre a posse do maior número de artistas, sejam músicos ou bailarinos, em um culto à vaidade, ou apenas para si mesmos, em apresentações particulares para a família, amigos e convidados. Neste aspecto, encontramos o jovem Mozart, empregado do arcebispo Colloredo, que em suas visitas a Viena exibia o talento do jovem compositor nas festas oficiais. Destes fatos, brigas ocorreram entre Mozart e seu empregador, como veremos no Tópico 2 desta unidade. Não obstante, os nobres eram os protetores dos artistas, pois ali poderiam garantir uma vida com estabilidade financeira e assim poderiam manter seu ofício, como instrumentistas ou compositores. No entanto, este ofício não era algo de humilhante para o artista, havia o sentimento de que todos são iguais, visto que a própria formação educacional da nobreza permitia um relacionamento amigável e respeitoso para com os empregados, minimizando as distâncias sociais. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 20 De fato, a nobreza do século XVIII possuía uma tradição cultural com um bom relacionamento com os artistas. “Os Lobkowitz, os Schwarzenberg, os Estherhazy, os Lichnowsky são conhecidos, antes de tudo, pelas suas relações com Mozart, Haydn e Beethoven” (BRION, 1991, p. 85), e o gosto pelas belas artes destes nobres contribuiu para que os compositores pudessem ter condições mais favoráveis a uma vasta produção musical. Estes três últimos compositores a quem citamos receberam o abraço da cidade e foram acolhidos como filhos legítimos. Talvez a Viena do último quarto do século XVIII não seria a mesma sem a presença dos três, diante de tamanha criação musical, e da mesma forma estes compositores não teriam o destino comum não fosse a magia da capital cosmopolita. 21 Neste tópico, você aprendeu que: • Música clássica é considerada como música de concerto, independentemente de período histórico. O termo também se refere ao período histórico que compreende aproximadamente os anos de 1750 até 1830. • A tradição de fazer música na corte esteve presente também no período clássico, em todo tipo de solenidade. No entanto, a música passa a ser feita também em público, com a ascensão da burguesia. • A ópera cômica passa a ter grande importância, atendendo às vontades da burguesia. • Para a nobreza, a música era tratada como arte, com finalidade em si própria. Para o burguês, a música deveria aliviar o estresse do dia a dia e também proporcionar certo status, pois assim se sentiria mais elevado socialmente. • Organizadores e compositores preparavam todo tipo de material musical, entre estes, os populares pot-pourris: diversos fragmentos de melodias escritas em sequência, assim como cortes de partes mais complexas de obras maiores, a fim de tornar mais acessível ao público comum. • O piano seria um símbolo de ascensão social na burguesia. • A alta burguesia frequentava os salões da nobreza e juntos apreciavam música. Não somente os nobres desempenhavam o papel de mecenas dos artistas, como também uma elite burguesa se preocupou em ocupar este espaço como promotores das belas artes. • A Revolução Francesa trazia consigo novos ares de possibilidades para a emancipação dos músicos e, desta forma, uma tão sonhada independência, a exaltação de uma profissão estaria com plenas possibilidades de surgir no final do século XVIII. • Após a Revolução, a atividade dos mecenas começa a entrar em declínio. A frequência às casas dos aristocratas tende a diminuir em contrapartida à crescente expansão dos concertos públicos. Há uma linha crescente no que diz respeito à criação de empresas de difusão artística, na popularização da música para o público consumidor. • A edição de partituras ganha força e um movimento comercial das obras dos compositores começa a crescer. No entanto, os direitos autorais estariam longe de proteger a autenticidade das obras. RESUMO DO TÓPICO 1 22 • O Iluminismo contribuiu para uma nova maneira de se pensar a música, estabelecendo as ideias principais, na crença nos sentimentos naturais, que são universais a todas as pessoas. Assim, os pensadores já imaginavam uma música também universal e comum em toda a Europa. • O movimento melódico e horizontal caracteriza o pensamento clássico, alicerçado pelos contrastes. Estes contrastes se referem às emoções e, por isso, a subjetividade se faz presente na maneira de compor as obras musicais no período clássico. • Haydn, Mozart e Beethoven são os responsáveis pelos aspectos mais primorosos no que se refere à forma e estrutura da música, assim como os valores estéticos de sua época. • As composições do período clássico são caracterizadas pela periodicidade das frases musicais e um conflito dramático articulado pelas mudanças de tonalidade e textura. Mozart e Haydn produziram obras repletas de efeito dramático, combinando elegância e expressividade, perfeição formal e surpresa dramática. • O movimento “Sturm und Drang” (Tempestade e Tensão) é caracterizado pelo pensamento voltado à natureza e à valorização da subjetividade, o ser humano individual, em que o filósofo Wolfgang von Goethe (1749-1832) configura como o maior representante. • Viena caracterizou-se no grande centro musical da Europa no século XVIII pela sua característica cosmopolita, que coincide com o movimento do Iluminismo e mais tarde com os reflexos da Revolução Francesa. • O povo vienense encarava o mundo como um espetáculo, tinha predileção pelo campo, pelos bosques e cultuava a música como elemento essencial para o convívio em sociedade, em todas as classes sociais. • Em Viena, a principal atividade musical era constituída pela Hofmusikkapelle, ou seja, a orquestra da corte que era formada por integrantes de um coro de igreja, músicos de orquestra, artistas de teatro lírico e de conservatório. • O gosto pelas belas artes da nobreza contribuiu para que os compositores pudessem ter condiçõesmais favoráveis a uma vasta produção musical, visto que a independência artística viria a acontecer somente nas décadas posteriores. 23 1 O período clássico da história da música compreende os anos entre 1750 até aproximadamente 1810, embora alguns autores defenderem os anos de 1820 como final do período. Não obstante, este representa o período mais curto na história da música e no entanto está repleto de inovações, devido às mudanças estilísticas como resultados em movimentos como o Iluminismo e a Revolução Francesa. Caracterizado pela simetria, pela clareza e predominância da linha melódica, o surgimento deste novo estilo define o perfil de uma nova classe social que emerge na sociedade: a classe burguesa. Diante destes fatos, assinale a alternativa correta: a) ( ) As desavenças entre a burguesia e a nobreza culminaram na popularização e simplificação em técnicas próprias do período barroco, como o contraponto, o baixo contínuo e promoveram a ascensão da ópera cômica. b) ( ) A burguesia apreciava a música, principalmente os pot-pourris nos concertos públicos e a simplificação de obras mais complexas. Por outro lado, a nobreza mantinha restrições, não se envolvendo com o público burguês. c) ( ) Tendências como uma sociedade cosmopolita, principalmente em Viena, contribuíram para uma universalização da música. Neste sentido, nobreza e burguesia concordavam em aspectos como a moral prática e o senso comum. d) ( ) Após o ano de 1791, a atividade dos mecenas tende a decair e os compositores começam uma busca pela independência como artista. Os direitos autorais favoreceram o compositor, principalmente em Viena e Mannheim. e) ( ) A sociedade passa a valorizar a melodia e os sentimentos. Na busca do controle emocional, compositores tendem a reprimir a expressão dramática, valorizando assim os aspectos subjetivos característicos do classicismo. 2 Assinale a opção que completa a sequência correta no texto a seguir: Nos primeiros anos do período clássico, o estilo é caracterizado pelo que ficou conhecido como _________________ (BENNETT, 1986b). Trata-se de um estilo agradável, elegante, com a preocupação de agradar ao ouvinte, mas que, no entanto, sentiu-se uma falta de profundidade. A prática de tocar diversos fragmentos de melodias escritas em sequência tornou-se muito popular e a isto se chamou __________________, assim como cortes de partes mais complexas de obras maiores, a fim de simplificar, tornar mais acessível ao público comum (MASSIN, 1997). No classicismo, a predominância de uma das AUTOATIVIDADE 24 vozes, a ___________________, passa a ser acompanhada por toda a estrutura da orquestra. A genialidade de _____________________________ durante o classicismo produziu obras repletas de efeito dramático, combinando elegância e expressividade, perfeição formal e surpresa dramática. a) ( ) Estilo galante, ópera, melodia, Mozart e Salieri. b) ( ) Estilo galante, ópera, harmonia, Mozart e Salieri. c) ( ) Baixo contínuo, pot-pourri, melodia, Haydn e Bach. d) ( ) Baixo cifrado, ópera, melodia, Mozart e Haydn. e) ( ) Estilo galante, pot-pourri, melodia, Mozart e Haydn. 3 A capital austríaca, Viena, corresponde ao grande centro das atenções na Europa no século XVIII, se caracteriza no modo cosmopolita de viver e abraçou todos os estrangeiros, constituindo um povo harmonioso entre as diferentes culturas que ali se instalavam. Este movimento coincide com o processo de universalização da música. Este movimento teve seus reflexos na música, em que alguns pensadores já afirmavam que uma música universal e comum a todos já estava presente em toda a Europa. Assim, considere as seguintes afirmativas: I – Viena era governada pelos Estherhazy nos tempos de Haydn e Mozart. II – Nobres de vários países habitavam a Áustria, vivendo em harmonia. III – Os vienenses adoravam espetáculos, até mesmo os mais cruéis. IV – A Hofmusikkapele era a principal orquestra militar de José II, em Viena. V – A nobreza ostentava suas orquestras, símbolo de status e vaidade. Assinale a opção correta: a) ( ) Somente as alternativas I, III e V estão corretas. b) ( ) Somente as alternativas II, III e IV estão corretas. c) ( ) Somente as alternativas II, III e V estão corretas. d) ( ) Todas as alternativas estão corretas. e) ( ) Somente as alternativas I e III estão corretas. 25 TÓPICO 2 PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A história da música obviamente é marcada pelas obras musicais, que graças a seus registros na forma de partituras, sobrevivem ao tempo e atravessam os séculos, pelo trabalho dos musicólogos que buscam a autenticidade destas, sua proveniência, seu estilo e todo o contexto cultural e social a que elas pertencem. Porém, é importante lembrar que a história é feita por pessoas que fizeram algo diferente, desafiador e por este motivo seus nomes permanecem, juntamente com sua obra. Coisas comuns são corriqueiras e rotineiras, fazem parte do dia a dia e por isso passam despercebidas. Para fazer história, faz-se necessária uma mudança e toda e qualquer mudança gera desconforto. Não podemos estudar esta história somente nas obras musicais, o que por si só já é campo de intensa análise em um acervo gigantesco que oferece possibilidades teóricas e históricas em diversas correntes de estudo. Porém, é importante conhecer a vida das pessoas que nos deixaram todo esse legado musical que é a música clássica e que permanece vivo há mais de 200 anos. Vamos conhecer um pouco sobre a vida dos três principais compositores deste período e o contexto histórico que permeia suas obras. 2 A PRIMEIRA ESCOLA DE VIENA Aos 22 anos de idade, Beethoven deixou sua cidade natal para em Viena realizar seus sonhos como compositor. Um destes sonhos foi o de conhecer o genial Wolfgang Amadeus Mozart e, obviamente, obter lições valiosas com o compositor de Salzburgo. Porém, Mozart havia falecido um ano antes, isto é, em 1791. Assim, com a orientação de seu mecenas, o conde Wallstein, Beethoven iria para Viena encontrar nas mãos de Joseph Haydn o espírito de Mozart (ROSEN, 1986). De fato, entre Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van Beethoven, apenas Haydn conhecera os outros dois, com afinidade. Alguns historiadores argumentam sobre algum encontro entre Mozart e Beethoven, outros discordam sobre o assunto, dizendo que este encontro nunca aconteceu. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 26 Os três compuseram em uma grande variedade de gêneros: Haydn se destaca nas sinfonias e nos quartetos de cordas, Mozart, sobretudo na ópera, e Beethoven é o único dos três que vive a transição do classicismo e o romantismo e por isso, apenas ele segue na Unidade 2 deste caderno. Beethoven elevaria a forma sonata ao máximo e, após sua morte, seus compositores contemporâneos compreenderiam que o pleno desenvolvimento da música naquele período residia no talento dele. Caberia a eles prosseguir com a responsabilidade. Os críticos do final do século XVIII não hesitaram em considerar os três “vienenses” – apesar de nenhum deles ter nascido em Viena, mas assim eram considerados – como as três maiores figuras da música de sua época. Assim concordava E. T. A Hoffmann, um dos críticos musicais mais acirrados da época, que escrevera em 1814 que os três idealizaram “uma nova arte” (ROSEN, 1986, p. 23). Hoffmann complementa ainda que os três representam os novos “românticos”. Desta forma, Haydn, Mozart e Beethoven passariam a ser conhecidos como a primeira escola de Viena, não por terem criado alguma instituição, algo em conjunto, nem por terem acordado sobre questões de composição, mas pelo fato de os três, de maneira isolada, terem criado uma nova linguagem, uma nova e coerente concepção de composição. Iremos, a seguir, conhecer um pouco sobre cada um deles. 2.1 FRANZ JOSEPH HAYDN (1732-1809) Franz Joseph Haydn nasceu em uma região que faz fronteira entre a Áustria e a Hungria. Sua família
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