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Indaial – 2019 História da Música: classicisMo ao conteMporâneo Prof. Luiz Roberto Lenzi 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof. Luiz Roberto Lenzi Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L575h Lenzi, Luiz Roberto História da música: classicismo ao contemporâneo. / Luiz Roberto Lenzi. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 224 p.; il. ISBN 978-85-515-0357-7 1. História da música. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 780 III apresentação Prezado acadêmico! Você tem em mãos o Livro Didático da História da Música: Classicismo ao Contemporâneo, e assim terá acesso a um conteúdo que lhe fornecerá dados históricos e também tendências artísticas que influenciaram o mundo ocidental. Grandes eventos e revoluções, assim como figuras importantes marcaram seu lugar na história e mudaram a maneira de ser das pessoas, delineando o caminho da vida social, econômica e cultural no mundo que conhecemos. Obviamente a música está inserida neste contexto e será o nosso personagem principal. Nosso ponto de partida nesta viagem histórica situa-se em 1750, com o estabelecimento de uma nova estética artística alicerçada pelos costumes sociais na Europa. O classicismo musical europeu tem seu marco inicial nesta época e, contudo, configura-se como um curto período, repleto de mudanças estéticas no qual os compositores procuraram expor as novas tendências. No entanto, apesar de tamanha produção em termos de composição musical na segunda metade do século XVIII em toda a Europa, os proeminentes nesta área são, sem sombra de dúvida, os compositores austríacos Joseph Haydn e Wolfgang Amadeus Mozart e o alemão Ludwig van Beethoven, que caracterizaram o estilo clássico da música. Nossa viagem continua e na Unidade 2 você mergulhará no romantismo musical, do início do século XIX. Após as guerras napoleônicas, as sociedades começaram a se reorganizar politicamente e as tempestuosas revoltas populares em toda a Europa fizeram eclodir um sentimento nacionalista, de amor à pátria, da valorização do indivíduo, em que a imaginação e a fantasia teriam lugar de destaque nas belas artes. Uma das figuras centrais da literatura alemã e que influenciou compositores também de outros países, deu-se na pessoa de Johann Wolfgang von Goethe, sobretudo na obra Fausto, um dos marcos do pensamento romântico do século XIX. Da mesma forma, as lendas nacionais e os heróis de cada nação foram uma riquíssima fonte de inspiração para os compositores, e países como a Rússia, a Noruega, a Polônia e tantos outros, tiveram sua identidade impressa na música e apreciada amplamente. O século XX é tema da Unidade 3 e você constatará que se trata de uma época repleta das mais intensas mudanças em termos de concepção estética da arte. Na transição do século XIX para o século XX, o compositor Gustav Mahler mostrou-se como o cerne artístico que ampliou a orquestra aos limites jamais vistos e abriu as portas para a atonalidade. Caro acadêmico, as concepções estéticas da arte neste período farão você questionar-se sobre os limites artísticos, ou melhor, sobre o que é música e todas as suas possibilidades. IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! Em um século de tantas inovações tecnológicas, a música deveria seguir igualmente com suas inovações e, neste quesito, encontraremos a música serial, a música atonal e a enigmática música dodecafônica, além de várias experiências eletrônicas. Ao que parece, no século XX, tudo foi inventado e não sobrou mais nada aos compositores da atualidade que não seja uma releitura de tendências passadas. No entanto, estamos apenas no primeiro quarto do século XXI. Alguma coisa já apareceu neste século em termos de música, mas nada que surpreenda os nossos ouvidos. Por outro lado, uma sinfonia clássica requer muito refinamento artístico musical para ser interpretada e da mesma forma a música romântica, que exige a herança clássica, requer uma compreensão da imaginação. Só assim entenderemos o que é a música moderna do século XX e essa bagagem cultural pode ajudar-nos a entender um pouco mais da música que nos cerca nos dias de hoje e tudo o que ainda vamos vivenciar. Desejo a você uma boa leitura! O autor. NOTA V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 – CLASSICISMO (1750-1810) ........................................................................................ 1 TÓPICO 1 – UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL ...................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O SURGIMENTO DE UM NOVO ESTILO .................................................................................... 4 2.1 A FORMAÇÃO DE UM NOVO PÚBLICO E SUA INFLUÊNCIA NA MÚSICA .................. 9 2.2 O CLASSICISMO VIENENSE ........................................................................................................ 15 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 21 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 23 TÓPICO 2 – PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES ............................... 25 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 25 2 A PRIMEIRA ESCOLA DE VIENA ................................................................................................... 25 2.1 FRANZ JOSEPH HAYDN (1732-1809) .......................................................................................... 26 2.2 WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791) ....................................................................... 34 2.3 LUDWIGVAN BEETHOVEN (1770-1827)................................................................................... 41 3 OUTROS REPRESENTANTES DO CLASSICISMO MUSICAL ................................................ 44 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 46 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 48 TÓPICO 3 – A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO ........................................... 51 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 51 2 GÊNEROS E FORMAS MUSICAIS .................................................................................................. 51 2.1 GÊNEROS E FORMAS BARROCAS ............................................................................................. 54 2.2 FORMA SONATA ............................................................................................................................ 56 2.3 O QUARTETO DE CORDAS ......................................................................................................... 58 2.4 A SINFONIA..................................................................................................................................... 58 2.5 A ÓPERA ........................................................................................................................................... 60 2.6 O CONCERTO ................................................................................................................................. 61 3 ALÉM DOS GÊNEROS E FORMAS CLÁSSICAS ......................................................................... 62 3.1 MÚSICA PARA PIANO .................................................................................................................. 62 3.2 A ESCOLA DE MANNHEIM ....................................................................................................... 63 3.3 A ORQUESTRA CLÁSSICA ........................................................................................................... 63 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 66 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 68 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 70 UNIDADE 2 – ROMANTISMO (1810-1900) ....................................................................................... 73 TÓPICO 1 – A ESTÉTICA ROMÂNTICA .......................................................................................... 75 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 75 2 O CONTEXTO DA MÚSICA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX ..................................................... 75 2.1 EFEITOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA E INVASÕES NAPOLEÔNICAS ......................... 77 2.2 CARACTERÍSTICAS DA MÚSICA ROMÂNTICA .................................................................... 78 suMário VIII 2.3 O PARADOXO ROMÂNTICO, A AUSÊNCIA DA MELODIA ................................................ 82 2.4 BEETHOVEN: TRANSIÇÃO PARA O ROMANTISMO ........................................................... 85 2.5 FRANZ SCHUBERT: O DESENVOLVIMENTO DO LIED ALEMÃO ..................................... 90 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 95 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 97 TÓPICO 2 – UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES ....................................................... 99 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 99 2 COMPOSITORES DA VIRADA PARA O SÉCULO XIX ...........................................................100 3 O DESENVOLVIMENTO DA ORQUESTRA ...............................................................................103 3.1 O REGENTE ROMÂNTICO .........................................................................................................104 3.2 A MÚSICA PARA PIANO ............................................................................................................105 4 A NOVA GERAÇÃO ..........................................................................................................................107 4.1 FRANZ LISZT (1811-1886) ...........................................................................................................107 4.2 FRÉDÉRIC CHOPIN (1810-1849) ................................................................................................110 4.3 ROBERT SCHUMANN (1810-1856) ............................................................................................112 4.4 RICHARD WAGNER (1813-1883) ...............................................................................................114 4.5 HECTOR BERLIOZ (1803-1869) ..................................................................................................116 4.6 FELIX MENDELSSOHN BARTHOLDY (1809-1847) ...............................................................118 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................119 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................121 TÓPICO 3 – A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX ...............................................................123 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................123 2 MÚSICA NACIONALISTA ..............................................................................................................123 3 O CENTRO DA MÚSICA OCIDENTAL E A ÓPERA ITALIANA ...........................................128 3.1 A ÓPERA ITALIANA ....................................................................................................................130 4 OS FILHOS DO SÉCULO XIX: OS PÓS-ROMÂNTICOS .........................................................131 4.1 JOHANNES BRAHMS (1833-1897) .............................................................................................132 4.2 ANTON BRUCKNER (1824-1896) ...............................................................................................133 4.3 PIOTR ILITCH TCHAIKOVSKY (1840-1893) ............................................................................134 4.4 JACQUES OFFENBACH (1819-1880) E GEORGES BIZET (1838-1875) .................................136 4.5 GUSTAV MAHLER (1860-1911) ...................................................................................................138 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................141 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................145 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................147 UNIDADE 3 – MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) ...................................................149 TÓPICO 1 – O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO .............................151 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1512 OS LIMITES DA EXPANSÃO ROMÂNTICA .............................................................................151 2.1 RICHARD STRAUSS (1864-1949) ................................................................................................153 2.2 NOVAS CONCEPÇÕES ESTÉTICAS .........................................................................................154 3 PRELÚDIO DO MODERNISMO ....................................................................................................157 3.1 DEBUSSY E AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES...............................................................................158 3.2 O NEOCLÁSSICO COMO REAÇÃO .........................................................................................161 3.3 POLITONALIDADE......................................................................................................................163 3.4 A CORRENTE NACIONALISTA NO SÉCULO XX .................................................................164 IX 4 PERSONALIDADES DO INÍCIO DO SÉCULO XX....................................................................165 4.1 MAURICE RAVEL (1875-1937) ....................................................................................................165 4.2 COMPOSITORES DA TRADIÇÃO .............................................................................................166 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................169 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................171 TÓPICO 2 – NOVAS LINGUAGENS MUSICAIS ..........................................................................173 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................173 2 A SEGUNDA ESCOLA DE VIENA .................................................................................................173 2.1 MÚSICA ATONAL, DODECAFÔNICA E SERIAL ..................................................................174 2.2 ARNOLD SCHOENBERG (1874-1951) .......................................................................................177 2.3 ALBAN BERG (1885-1935) E ANTON WEBERN (1883-1945) .................................................181 3 A MÚSICA ALÉM DA EUROPA .....................................................................................................183 3.1 HEITOR VILLA-LOBOS (1887-1959) ..........................................................................................184 3.2 IGOR STRAVINSKY (1882-1971) .................................................................................................187 3.3 MÚSICA NORTE-AMERICANA ................................................................................................189 4 O CULTO DO MAESTRO ................................................................................................................190 4.1 KONZERTMEISTER/KAPELLMEISTER X MAESTRO ...........................................................190 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................193 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................194 TÓPICO 3 – A MULTIPLICIDADE MUSICAL ...............................................................................197 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................197 2 PRÓLOGO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA ..........................................................................197 2.1 PAUL HINDEMITH (1895-1963) .................................................................................................198 2.2 OLIVIER MESSIAEN (1908-1992) ...............................................................................................200 2.3 MILTON BABBITT (1916-2011) ...................................................................................................202 3 O NASCIMENTO DA MÚSICA ELETRÔNICA ..........................................................................202 3.1 EDGAR VARÈSE (1883-1965) .......................................................................................................203 3.2 JOHN CAGE (1912-1992) ..............................................................................................................205 3.3 PIERRE SCHAEFFER (1910-1995) E A MÚSICA CONCRETA ...............................................207 4 MÚLTIPLAS TENDÊNCIAS ............................................................................................................209 4.1 PIERRE BOULEZ (1925-2016) ......................................................................................................211 4.2 KARLHEINZ STOCKHAUSEN (1928-2007) .............................................................................212 4.3 PERSPECTIVAS ..............................................................................................................................214 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................216 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................218 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................220 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................223 X 1 UNIDADE 1 CLASSICISMO (1750-1810) OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar e compreender os fatores históricos da segunda metade do século XVIII, que contribuíram para o desenvolvimento de uma nova linguagem musical; • aprofundar acerca de dados históricos e biográficos dos três principais nomes do classicismo musical e conhecer seu contexto social; • compreender os diferentes aspectos formais que constituem as obras musicais do período clássico. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL TÓPICO 2 – PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES TÓPICO 3 – A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 1 INTRODUÇÃO Você pode perceber, nos tempos atuais, que diversas tendências musicais surgem de maneira tão rápida, assim como também desaparecem. As mídias não se cansam de oferecer produtos artísticos em uma demanda tão rápida quanto são esquecidos. Trata-se de um comércio, no qual alguns ritmos estão na moda, são os chamados “hits do momento”. Normalmente são músicas muito simples, de fácil memorização, exatamente para um consumo rápido. Por outro lado, existe um tipo de música que não deixou de ser apreciada ou mesmo interpretada nas diversas culturas em todos os continentes. São obras musicais que permanecem vivas atravessando dezenas de anos e até mesmo séculos. Estamos falando aqui da música erudita, ou se você preferir outro sinônimo, a música clássica. Neste tópico, mostraremos a você, caro acadêmico, por exemplo, como obras musicais compostas há mais de 250 anos permanecem no repertório das grandes e pequenas orquestras – e muitas vezes, bem perto de você, em sua cidade. Para assimilarmos melhor estas questões, mergulharemos na história de vida de alguns personagens principais e entenderemos o contexto histórico em que tais obras estão inseridas. É fundamental este olhar histórico, no qual conheceremos um pouco sobre este contexto e, assim, entendermos melhor osentido das obras que atravessam séculos e que continuam com releituras e interpretações magníficas. Para que você tenha uma ideia de onde estaremos nos situando, apresentamos o quadro a seguir com os diferentes períodos históricos pelos quais a música se desenvolveu, desde os primórdios da civilização até os tempos atuais. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 4 FIGURA 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA DA MÚSICA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA GERAL FONTE: Pires e Lenzi (2016, p. 75) 2 O SURGIMENTO DE UM NOVO ESTILO O termo “clássico” no sentido popular é utilizado quando queremos dizer que determinado compositor ou determinada obra musical possui qualidades estéticas e culturais que permanecem na memória dos ouvintes e que podem atravessar gerações (DOURADO, 2004). Podemos afirmar que a música Aquarela Brasileira, de Ary Barroso (1903-1964), é um clássico do samba, assim como o compositor Tom Jobim (1927-1994) é considerado um clássico da bossa nova, ou mesmo a banda Led Zeppelin é considerada como um clássico do rock. Por outro lado, “música clássica” é também considerada como a música de concerto, independentemente de período histórico, executada em teatros ou igrejas, que não está em um contexto popular ou mesmo folclórico. É comum utilizar os dois termos, ou seja, música clássica e música erudita. Porém, ao sermos mais específicos, estaremos utilizando o termo “música clássica” para o período histórico que compreende aproximadamente os anos de 1750 até 1810. O período histórico/musical que antecede o nascimento do classicismo é considerado pelos historiadores como da música barroca, que vai do ano de 1600 até 1750. É importante observar que o período da música barroca possui aproximadamente 150 anos, enquanto que o período da música clássica abrange apenas 60 ou 70 anos. Vamos entender melhor algumas características do período barroco, para então entender melhor os caminhos do desenvolvimento da música. Segundo Dourado (2004, p. 44), o barroco é o Período da música europeia situado aproximadamente entre o início do século XVII e meados do século XVIII. É caracterizado pelo emprego do baixo contínuo, pelo surgimento de tonalidades maiores e menores e pelos contrastes: claro-escuro, forte-piano e suas variações, além dos contrastes timbrísticos, de ornamentações, registrações e movimentos. O período foi extremamente fértil para a música por ter marcado o surgimento da ópera, com Monteverdi, e pela volumosíssima obra de compositores como Schütz, Scarlatti, Bach, Vivaldi, Rameau, Tellemann, Händel e muitos outros, que se consagraram com diversos gêneros característicos da época, como a cantata, o concerto grosso, as paixões e as suítes. TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 5 O período barroco da música é marcado pelo estabelecimento de tonalidades em modo maior e/ou menor, o que caracteriza a música tonal. A tradição do contraponto, tão comum no período do Renascimento, dá lugar a uma ênfase na melodia, acompanhada por instrumentos harmônicos em progressão de acordes. Era uma prática comum e tradicional escrever um sistema de cifras na linha do baixo, orientando o instrumentista a tocar os acordes desejados pelo compositor e, assim, uma função de preenchimento harmônico se estabeleceu (BENNETT, 1986b). Quando se fala em “baixo”, estamos nos referindo a uma das vozes. Normalmente os compositores escrevem em duas, três, quatro ou mais vozes. As vozes principais são (do grave para o agudo) baixo, tenor, contralto e soprano. NOTA Normalmente esta linha de baixo era tocada por um violoncelo ou contrabaixo, mas também se utilizava um cravo (instrumento de teclado, antecessor do piano) ou um alaúde (antecessor do violão), tocando os acordes indicados e enriquecendo assim a melodia. Esta técnica ficou conhecida como baixo contínuo e consolidou-se como uma das grandes características da música barroca. FIGURA 2 – CIFRA BARROCA E A CIFRA POPULAR ATUAL FONTE: Pires e Lenzi (2016, p. 101) UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 6 A tradição de música para ser tocada na corte, entre os príncipes e a nobreza, foi algo que se estendeu ao período clássico. Havia música para as ocasiões mais diversas, como nos casamentos, nos funerais, e em todo tipo de solenidade. Compositores como Georg Friedrich Händel (Inglaterra) e o próprio Johann Sebastian Bach (Alemanha) dedicaram muitas obras à música da nobreza (MASSIN, 1997). No século XVIII, em paralelo à vida musical da corte europeia, uma música começa a surgir com a ascensão da burguesia, que também passa a ser tocada e cantada em público. A ópera séria, tão tradicional no barroco, abre espaço para a ópera cômica e uma cultura musical mais ampla e complexa começou a surgir em meio aos grandes centros da Europa. Trata-se de uma música que estaria se adaptando à classe média. O público burguês estava em plena ascensão e, no entanto, não possuía uma cultura musical que se pudesse comparar à tradição do público aristocrático. Havia muito interesse popular, mas muitas vezes mostrava-se um interesse medíocre e até mesmo vulgar (MASSIN, 1997). Para o aristocrata, a música era tratada como arte, com finalidade em si própria e até mesmo os empregados possuíam conhecimento musical para tal contemplação. Porém, para o burguês, a música deveria aliviar o estresse do dia a dia e também proporcionar certo status, pois assim se sentiria mais elevado socialmente. Para o burguês, os valores sociais eram mais intensos que os próprios valores estéticos da obra musical como obra de arte em si. Não obstante, no último quarto do século XVIII, a cultura já era algo que estava ao alcance de todos: “as peças de teatro começavam a retratar pessoas comuns, com emoções comuns. Até as maneiras e indumentárias foram afetadas: no início do século, a burguesia macaqueava a aristocracia; em 1780 já era a aristocracia que macaqueava as classes inferiores” (GROUT; PALISCA, 1988, p. 478). A promoção de concertos públicos entrou em moda, afinal, é algo que até então era prática dominante da aristocracia e eventos desse tipo acrescentavam muito à vida simples da burguesia. Organizadores e também compositores preparavam todo tipo de material musical, por exemplo, a execução de diversos fragmentos de melodias escritas em sequência ao que deram o nome de pot- pourri, assim como cortes de partes mais complexas de obras maiores, a fim de simplificar, tornar mais acessível ao público comum (MASSIN, 1997). O piano, um instrumento tão completo pelo seu alcance na altura dos sons – que vai das notas muito graves às mais agudas, tornou-se um símbolo de prosperidade da sociedade burguesa. Casas onde se pudesse encontrar um piano seria um símbolo de status e ascensão social. Da mesma forma, o estudo deste instrumento era prática comum, como sinal de boa educação. Esta tendência contribuiu para o crescimento de uma classe de músicos amadores, principalmente na Alemanha do século XVIII. No entanto, já data do século XVI uma educação musical voltada aos cantores de coros de música sacra. Porém, no classicismo, esta prática intensificou-se também no âmbito instrumental, trazendo grande benefício social e cultural para as comunidades. TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 7 Tamanho movimento musical trouxe também o nascimento da atividade crítica musical: na segunda metade do século XVIII, pensadores já se manifestavam a respeito de determinados compositores e determinadas obras, com julgamentos estéticos. Tais críticas eram publicadas em jornais em Londres, Paris e também pela Alemanha, o que contribuiu para o desenvolvimento da música como uma arte independente, repleta de valores estéticos e culturais. Destacamos que no último quarto do século XVIII surgiram também diversas manifestações de filósofos europeus acerca da problemática da estética e o belo da arte. Sem dúvida, o desenvolvimento da ópera no período clássico contribuiu para que a música alcançasse definitivamente sua importância artística, pois somentea música iria unir as artes cênicas e plásticas. Segundo Massin (1997, p. 415), a “função social da ópera mostra-se, no caso, mais uma vez, de singular importância: a ópera não era apenas um divertimento para as classes superiores; também era o cenário de uma luta entre diversas ideias filosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar toda uma série de outras atividades, como a dos pintores, dos dançarinos, dos coreógrafos etc.”. A ópera cômica tornou-se gênero musical muito apreciado pela classe burguesa, um público completamente novo fiel durante todo o século. No classicismo, burgueses e aristocratas já se sentavam lado a lado para a apreciação de óperas e a música foi a grande responsável por este fenômeno social. A alta burguesia frequentava os salões da nobreza e juntos apreciavam música. Não somente os nobres desempenhavam o papel de mecenas dos artistas, como também uma elite burguesa se preocupou em ocupar este espaço como promotores das belas artes. Os acontecimentos que antecedem a Revolução Francesa, principalmente nos anos de 1770 e 1780, agravaram a situação econômica principalmente na França, trazendo profundas mudanças na vida social musical. Estes fatos históricos acabaram por contribuir para que a música evoluísse “da condição de ofício semifeudal, a serviço da Igreja, da cidade e da corte, à de profissão de livre iniciativa, voltada predominantemente ao mercado burguês” (MASSIN, 1997, p. 418). No período em que ocorreu a Revolução Francesa, precisamente entre os anos de 1789 até 1799, novas concepções de linguagem seriam produzidas entre ideias e a criação de novas instituições. Neste período turbulento, poucos compositores que fizeram alusão à Revolução aparecem no cenário musical, principalmente na França. São eles: Berton (1767-1844), Catel (1773-1830), Méhul (1763-1817), entre outros cuja produção musical revolucionária mostra-se em quantidade reduzida (MASSIN, 1997). Um dos elementos que chamam nossa atenção acerca do perfil dos compositores revolucionários reside no fato de serem estrangeiros e, assim, teriam aderido ao movimento não somente por convicção, mas também por oportunismo. Outro aspecto importante se traduz no fato de que a Revolução trazia consigo novos ares de possibilidades para a emancipação UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 8 dos músicos e, desta forma, uma tão sonhada independência, a exaltação de uma profissão estaria com plenas possibilidades de surgir. Esta independência viria dos lucros de concertos públicos e não mais da dependência de alguma instituição religiosa, ou uma vida assalariada. FIGURA 3 – A REVOLUÇÃO FRANCESA E O ILUMINISMO FONTE: <http://www.salom.com.tr/haber-103536-sag_ve_solun_olumu.html; http://www. librairiedobree.com/entretien-avec-xavier-martin/philosophes-de-lumieres>. Acesso em: 18 out. 2018. Nos momentos que precedem a Revolução, novas instituições já tendiam a eclodir como uma sociedade de concertos, mantidas pela própria sociedade, principalmente na França. Isto foi um importante aspecto no que diz respeito à independência dos compositores e músicos e seu viés musical percorria pelo gosto do público. Os benefícios foram significativos também no número de integrantes das orquestras: “a Loge Olympique empregava aproximadamente setenta músicos de altíssima qualidade, um número duas vezes e meio maior do que aquele com que contava Joseph Haydn na corte dos Estherhazy” (MASSIN, 1997, p. 584). Como veremos mais adiante, as orquestras neste período começaram a aumentar consideravelmente seu tamanho, em virtude também da introdução de novos instrumentos (com novos timbres), o que também contribuiu para uma linguagem musical durante a Revolução Francesa. No entanto, a partir de 1791, estas mesmas sociedades entraram em colapso pelas ações e movimentos oriundos da Revolução. Assim, a atividade dos mecenas começa a entrar em declínio. Se até então os compositores dedicavam suas obras aos seus patrocinadores, agora estariam voltados aos concertos públicos e a um comércio que estaria em expansão. A frequência às casas dos aristocratas tende a diminuir em contrapartida à crescente expansão dos concertos públicos. Há uma linha crescente no que diz respeito à criação de empresas de difusão artística, na popularização da música para o público consumidor. As cópias manuscritas tendem a diminuir, dando espaço para a indústria da impressão (MASSIN, 1997). Dessa forma, os próprios compositores, para que pudessem sobreviver como tal, buscavam conceber suas obras de acordo com o mercado estabelecido pelos editores. Não demorou muito TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 9 para que os próprios compositores encontrassem os próprios meios para que pudessem imprimir suas obras, tornando-se cada vez mais artistas independentes. Neste período, fatos interessantes também aconteceram, no que diz respeito à “pirataria”: editores gananciosos publicavam obras sem repasse de remuneração aos compositores e, por vezes, chegavam a assinar o nome de algum compositor de prestígio em qualquer obra, com a finalidade de vendê-la mais rapidamente. Ou seja, não havia qualquer proteção quanto à autoria das obras artísticas. De fato, as edições contribuíram para que determinadas obras musicais fossem conhecidas em vários espaços. Antes disso, as obras eram destinadas a uma única ocasião social. Ao final do século XVIII, os compositores já não sabiam para que qualidade técnica de orquestra suas obras seriam interpretadas e desconheciam os locais onde as obras seriam tocadas. O período clássico marca os primeiros passos para a independência, principalmente, dos compositores, mas este caminho ainda seria árduo, como veremos no Tópico 2 desta unidade, analisando a vida de compositores famosos deste período. Veremos a seguir alguns fatores que contribuíram e direcionaram os caminhos da música neste fascinante momento histórico que é o classicismo. 2.1 A FORMAÇÃO DE UM NOVO PÚBLICO E SUA INFLUÊNCIA NA MÚSICA Como você já viu, um dos principais fatores sociais na segunda metade do século XVIII foi a ascensão da burguesia. Em um movimento em paralelo à Revolução, o Iluminismo trouxe uma mudança no pensamento espiritual em conflito com o pensamento da Igreja e a religião sobrenatural. O Iluminismo pregou a valorização da natureza, a moral prática e o senso comum. Foi favorável à liberdade do indivíduo, “em prol da igualdade de direitos e da instrução universal” (GROUT; PALISCA, 1988, p. 475). Todo este movimento influenciou a maneira de pensar, estabelecendo as ideias principais, como a da eficácia do conhecimento aplicado à prática em favor à experimentação e à crença nos sentimentos naturais, que são universais a todas as pessoas. Esta maneira de pensar direciona os sistemas éticos e morais, influencia na criação de leis pelo Estado e, naturalmente, vai exercer influência no campo das artes, e assim, no campo da música. O século XVIII, no entanto, foi uma época em que as diferenças nacionais não eram importantes. É o que se chama de uma era cosmopolita, pois “eram numerosos os monarcas de origem estrangeira: reis alemães na Inglaterra, na Suécia e na Polônia, um rei espanhol em Nápoles, um duque francês na Toscânia, uma princesa alemã (Catarina II) como imperatriz da Rússia” (GROUT; PALISCA, 1988, p. 477). Esta internacionalização da sociedade e da maneira de pensar também teve seus reflexos na música, em que alguns pensadores já afirmavam que uma música universal e comum a todos já estava presente em toda a Europa. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 10 As luzes foram ainda, além de cosmopolitas, humanitárias. Os governantes não só protegiam as artes e as letras, como se empenhavam em programas de reformas sociais. O século XVIII foi a era dos déspotas iluminados: Frederico, o Grande, da Prússia, Catarina, a Grande, da Rússia, José II da Áustria e (na primeira parte do reinado) Luís XVI da França. Os ideais humanitários, o anseio pela fraternidadehumana universal, foram encarnados pelo movimento da maçonaria, que se difundiu rapidamente pela Europa ao longo do século XVIII e contou entre seus membros desde reis (Frederico, o Grande) até poetas (Goethe) e compositores (Mozart) (GROUT; PALISCA, 1988, p. 478). Um novo público surge, com muita vontade de apreender arte e, sobretudo, apreender a música. Os cômodos da nobreza ainda receberiam os concertos particulares, afinal, esta prática não cessou, no entanto, a burguesia sentiu a necessidade de criar espaços onde também pudesse desfrutar da boa cultura musical. Concertos particulares e públicos tornaram-se uma constante, onde se podia pagar para frequentar estes espaços que até então eram privados de música. A edição de partituras não era uma novidade, pois já existia no início do século XVI. Porém, pouco de obras musicais foi editado até o período barroco. Sabe-se que após a morte do compositor Johann Sebastian Bach, apenas quatro de suas obras estavam editadas. Isto porque simplesmente não era prática comum na época e também pelo fato de que Bach dedicou grande parte de sua obra para a música religiosa em cerimoniais específicos. Por outro lado, já no período clássico, várias obras de um único compositor, por exemplo, o austríaco Joseph Haydn, eram publicadas em vários países da Europa. Segundo Massin (1997), cerca de 150 mil sinfonias dos mais variados compositores foram escritas na Europa na segunda metade do século XVIII. O trabalho das editoras foi muito intenso e seus proprietários não mediam esforços para obter lucros. Haydn já gozava de grande reputação pela qualidade estética e formal de suas obras e os editores sabiam muito bem disso. O compositor austríaco escreveu 106 sinfonias, mas tomou conhecimento de que algumas de suas obras já estavam publicadas e vendidas apenas anos mais tarde, não obstante, sem qualquer remuneração. Os editores não hesitavam em colocar a assinatura de Haydn em obras de compositores de qualidade inferior a fim de obter um rápido lucro. Transcrições também eram encomendadas e, por “muitas vezes, os editores mutilavam as obras musicais, sabendo o que faziam. Em 1773, por exemplo, Venier publicou uma sinfonia composta por Haydn em 1764, a Sinfonia número 22 de Haydn, dita O Filósofo, só que o fez sem o primeiro movimento e sem o minueto; mas, para compensar, com um movimento suplementar de que ainda hoje se ignora a origem. Para o cúmulo do absurdo, uma parte escrita para trompas foi substituída por flautas. Uma sinfonia de Haydn em quatro movimentos foi, assim, transformada num subproduto de três movimentos, dos quais apenas dois – e com uma orquestração bem mais convencional, eram de sua autoria!” (MASSIN, 1997, p. 517). TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 11 Esta relação entre compositores e editores era algo que carecia de clareza e regras para as questões de autenticidade e direitos autorais. Por outro lado, o compositor também austríaco Wolfgang Amadeus Mozart passou a catalogar suas obras a partir de 1784, assinalando a data final de suas composições, com o objetivo de assegurar a autenticidade. No entanto, é a partir desta mesma época que Haydn passou “ele próprio a vender suas obras a diferentes editores”, prometendo exclusividade (MASSIN, 1997, p. 518), em Viena, Paris e Londres. Todo este movimento comercial auxiliou na difusão da música neste período em toda a Europa, algo que até então acontecia de forma branda. FIGURA 4 – PARTITURAS DE JOSEPH HAYDN E O HINO NACIONAL DA ÁUSTRIA FONTE: <https://osbmss146.files.wordpress.com/2010/08/haydn_salomon.jpg?w=237&h=300> e < https://haydn2009.files.wordpress.com/2008/11/02_reinschrift_hymne.jpg>. Acesso em: 29 out. 2018. Por outro lado, a independência social dos músicos compositores ainda estava em seus primórdios. Johann Sebastian Bach sempre foi mestre de capela, era sua função principal e não tinha permissão para dispensa de seus trabalhos. Haydn conheceu outro país depois dos seus 50 anos e sempre foi empregado do príncipe Estherházy. O jovem Mozart, nos anos de 1772 até 1781 viveu um regime de semiescravidão pelo arcebispo Colloredo, em Salzburgo. Sua tão sonhada independência viria anos mais tarde, por um curto período de tempo. A classe burguesa carecia de uma herança cultural que sustentasse uma tradição requintada no que diz respeito às belas artes. A contemplação da obra de arte pelo burguês que teve a sua vida socialmente elevada se deu pela simplicidade e pela subjetividade. A sociedade passa a valorizar a linha melódica e os sentimentos. Quando falamos em melodia, devemos imaginar uma linha horizontal, uma sucessão de notas em contrapartida à harmonia, que é justamente a sobreposição de notas, ou seja, um olhar vertical, pois várias notas são tocadas UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 12 ao mesmo tempo, formando os sons combinados. Ao falar de melodia, pensamos de forma sucessiva e não simultânea. Este movimento melódico e horizontal caracteriza o pensamento clássico, pois a melodia caminha também por contrastes. Estes contrastes se referem às emoções e, por isso, a subjetividade se faz presente na maneira de compor as obras musicais no período clássico. ESTUDOS FU TUROS Você verá mais adiante, no Tópico 3, os aspectos formais das obras mais comuns criadas neste período, com os contrastes de movimentos rápido-lento-rápido, mudanças de tonalidades e formas musicais. Como você viu, apenas no gênero chamado sinfonia, mais de 150 mil obras deste gênero foram compostas em um período de aproximadamente 50 anos. Porém, um número muito inferior é conhecido pelo grande público e até mesmo pelos mais aficionados classicistas da atualidade. Talvez este fenômeno se justifique pela genialidade de apenas três compositores que são o cerne musical definitivo do período clássico: Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e o jovem Ludwig van Beethoven. A estes três compositores são atribuídos os aspectos mais primorosos no que se refere à forma e estrutura da música, assim como aos valores estéticos de sua época. Trata-se de uma música escrita com extrema competência e qualidade, em que se observa a excelência da simplicidade e subjetividade. Não que outros compositores não tivessem êxito notório, mas, principalmente com Haydn e Mozart, o estilo clássico consolidou-se “expressivo e elegante, marcado pela preocupação tanto com os detalhes quanto com a concepção de conjunto e de efeitos dramáticos por vezes surpreendentes, mas logicamente motivados” (MASSIN, 1997, p. 525). A dramaticidade seria algo que iria fundamentar o estilo musical no último quarto do século XVIII. A representação do sentimento não seria mais suficiente para a expressividade musical, seria necessária uma ação dramática para o sentimento. As formas musicais no período barroco fluíam de forma uniforme enquanto que os compositores do estilo clássico passam a compor em episódios articulados e contrastantes (ROSEN, 1986). Percebe-se, ao longo das composições do período clássico, uma periodicidade das frases musicais e um conflito dramático articulado pelas mudanças de tonalidade e textura. TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 13 A textura em música refere-se às mudanças de timbre nas passagens musicais. Imagine uma melodia sendo tocada pelos violinos e um acompanhamento feito por trompas e clarinetes. Uma mudança de textura poderia ser a melodia sendo tocada pelos clarinetes e trompas, com acompanhamento pelos violinos. Textura refere-se a combinações de timbres. NOTA Nos primeiros anos do período clássico, o estilo é caracterizado pelo que ficou conhecido como estilo galante (BENNETT, 1986b). Trata-se de um estilo agradável, elegante, com a preocupação de agradar ao ouvinte, mas que, no entanto, sentiu-se uma falta de profundidade. O aspecto melódico ainda estava em desenvolvimento nesse momento e nesse sentido a contribuição de Carl Philip Emanuel Bach e Johann Christian Bach vem para elevar este quesito. Da mesma forma,o refinamento aparece nas primeiras obras de Joseph Haydn e Amadeus Mozart. Sobre os aspectos de dramaticidade e expressividade, Rosen (1986) explica que os anos 1755 até 1775 configuram uma transição para o novo estilo que estaria surgindo. Os compositores optavam ou pela surpresa dramática ou pela perfeição formal. Se fizessem uso de passagens elegantes, estas careciam de expressividade, dificilmente estes diferentes aspectos eram combinados. Assim, experiências foram uma constante, com bons acertos e também resultados insatisfatórios. A genialidade de Mozart e Haydn, no entanto, produziu obras repletas de efeito dramático, combinando elegância e expressividade, perfeição formal e surpresa dramática. Seguindo a lógica do pensamento horizontal, na periodicidade das frases musicais, uma das principais preocupações foi a continuidade, a superposição de frases, com o objetivo de manter a atenção da plateia. Em paralelo à ascensão da burguesia, no período de transição de 1750 até 1780, outros movimentos intelectuais influenciaram os caminhos da música, estabelecendo o estilo clássico. Na França, a influência do estilo Rococó, o que na música é o que se chama de estilo galante, e também o “Empfindsamer Stil” (estilo sentimental), e ainda, na Alemanha, o surgimento do “Sturm und Drang” (Tempestade e tensão). Este último é caracterizado pelo pensamento voltado à natureza e à valorização da subjetividade, o ser humano individual, em que o filósofo Wolfgang von Goethe (1749-1832) configura como o maior representante (CHAIM, 1998). Todo esse movimento intelectual culmina para uma supervalorização da melodia, onde até então, na música barroca, a melodia era caracterizada em uma simultaneidade de vozes, praticamente com igual importância. No classicismo, a predominância de uma das vozes, a melodia, passa a ser acompanhada por toda UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 14 a estrutura da orquestra. No chamado período de transição, o desenvolvimento do conceito melódico foi intenso, apoiando-se em melodias curtas extraídas da música popular e os resultados não foram satisfatórios, mostrando uma “falta de fôlego e de unidade” (MASSIN, 1997, p. 545). Johann Christian Bach, um dos representantes do Empfindsamkeit, aprimorou este conceito e juntamente com Mozart contribuiu para estabelecer o estilo melódico. Ao contrário da música barroca, a melodia classicista passou a ser periódica e articulada, ou seja, de maneira geral se mostra em frases de quatro ou oito compassos, com relações coerentes e que oferecem aspectos que permitem a geração de novas frases, continuidade com unidade. Exemplo disso – entre uma infinidade de outros – pode ser conferido na introdução da sinfonia número 104, de Haydn, denominada Sinfonia “Londres” (1795). A melodia possui dezesseis compassos divididos em dois períodos de oito compassos e estes podem ainda ser subdivididos em mais metades. Esta análise mais profunda permite perceber elementos que Haydn utilizou para compor toda a sequência, em diferentes maneiras. Mais especificamente, Haydn utilizou uma célula rítmica e melódica de dois compassos e que serviu de base sólida para a construção de todo o primeiro movimento da sinfonia Londres. “O material melódico de uma obra ‘clássica’, mesmo submetido às mais radicais modificações, conserva sua identidade para o ouvinte, graças principalmente a certa constância do ritmo” (MASSIN, 1997, p. 546). DICAS Ouça na plataforma Youtube esta obra de Joseph Haydn. Basta procurar por “sinfonia 104 Haydn” e você terá várias interpretações de diferentes orquestras e regentes. Compare estas performances e perceba as nuances de ritmo, intensidade, características subjetivas de cada regente na interpretação da mesma obra. O tratamento melódico foi também alicerçado por um novo uso no que diz respeito à tonalidade. Mozart e Haydn aperfeiçoaram esta linguagem em que, com eficaz coerência, podia-se modular, sair temporariamente da tonalidade e caminhar para qualquer tom, sem que se perdesse o sentido da tonalidade geral. Estes dois compositores estabeleceram a hierarquia das tonalidades na progressão da tônica para a dominante, ou seja, uma progressão de sustenidos (aumento de tensão) e também pela progressão da tônica para a subdominante, uma progressão de bemóis (distensão ou introspecção). Assim, a articulação entre tonalidades contribuiu para o efeito dramático nas melodias de maneira notável. O resultado são efeitos surpreendentes conduzindo o público a surpresas harmônicas aliadas à métrica melódica. Em grande parte, este artifício se traduz no humor de Haydn em suas sinfonias, assim como o êxito de Mozart em suas óperas (MASSIN, 1997). TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 15 Quase toda a música começava na tônica e terminava também na tônica, por exemplo, se a música começasse em Dó maior, terminaria em Dó maior, se fosse na tonalidade de Sol menor, terminaria em Sol menor. Isto é chamado de tonalidade principal. No decorrer da música, as frases poderiam terminar seus períodos na dominante – no caso da tonalidade de Dó maior, terminar um período em Sol maior. Os compositores Haydn e Mozart fizeram amplo uso deste artifício, colocando em plena evidência. Até o período barroco, o esquema harmônico era tônica-dominante e dominante-tônica, ou seja, o início da melodia (A) na tônica e terminando o período na dominante seguido de uma nova seção (B), partindo da dominante e terminando na tônica. Assim temos um esquema A-B/B-A. Com Haydn e Mozart, estas passagens foram enriquecidas de um grande efeito dramático, tornando-as ainda mais claras, em que eles trataram de Articular dramaticamente tanto a passagem à dominante como a volta à tônica; em outras palavras, em transformar com clareza, ainda que provisoriamente, a dominante em nova tônica, e a reafirmar com força a tônica depois de transcorridos dois terços da peça musical, às vezes até a partir da metade, e o mais tardar de três quartos. Estas duas dramatizações – sobretudo a segunda – explicam a impressão tripartida (não mais bipartida) deixada pela maioria das peças musicais do final do século XVIII, definindo-se as três partes não pelo seu comprimento, que não é obrigatoriamente o mesmo, mas pela articulação e, em última instância, pela função de cada uma delas (MASSIN, 1997, p. 548). O subjetivismo em ascensão na segunda metade do século XVIII foi fundamental para o nascimento e desenvolvimento do estilo clássico. Esta nova concepção não somente da música, mas também como uma mudança causada por acontecimentos políticos e intelectuais, encontra residência num dos grandes centros artísticos da Europa, a capital da Áustria, Viena. Ali seria o grande destino musical desejado por célebres compositores. 2.2 O CLASSICISMO VIENENSE Um conceito que transparece no cenário em que a música clássica está inserida é a ideia de um ambiente cosmopolita, ou seja, um ambiente que “não reconhece a diferença entre as nações e considera o mundo como pátria” (OLINTO, 2001, p. 136). Cosmopolita refere-se a uma pessoa ou lugar que é de todos os países, algo universal. Da mesma forma, uma grande cidade, um grande centro comercial e cultural tem sua trajetória trilhada pelo caráter de seus habitantes e também pela situação geográfica. Assim, de maneira geral, é como a cidade se manifesta quanto às influências exteriores, não obstante, influenciada também pelo seu regime político. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 16 A capital austríaca Viena corresponde ao grande centro das atenções na Europa no século XVIII e se caracteriza no modo cosmopolita de viver. Ao contrário de outros centros onde as comunidades estrangeiras viveram e continuam a manter sua identidade original, diferente da cultura do ambiente em que escolheram viver, a Viena já no século XVIII abraçou todos os estrangeiros constituindo um povo harmonioso entre as diferentes culturas que ali se instalavam. Viena é plena de uma história quecontribuiu para o fenômeno cosmopolita e configurou-se como o “grande centro das investidas militares rumo ao Oriente e feira perpétua para onde convergiam comerciantes de todas as regiões do Império Romano, Viena consolidou-se por toda a Idade Média e seu destino verdadeiramente imperial” (BRION, 1991, p. 12). Viena era governada por José II e seus habitantes viviam em harmonia e até mesmo com bom humor, quaisquer que fossem suas nacionalidades, ao contrário da França, por exemplo, com um comportamento de zombaria com os próprios conterrâneos. A grande aristocracia era formada por sobrenomes como Lobkowitz, Pallavicini, Kinsky, Liechtenstein, Harrach, Czernin, Estherhazy, Schwarzenberg e tantos outros e, por outro lado, famílias de comerciantes com os sobrenomes “Demetríades, Apfelgrün, Truka, Schwarzbrod, Benvenisti, Srp, Zuckerkandl, Vytlacil, Vertery von Vertesalja... isto é, a Hungria, a Tchecoslováquia, a Itália, o Oriente, a Alemanha” (BRION, 1991, p. 15), e todos esses nomes e muitos outros constituem a identidade e o estilo vienense. No que diz respeito ao movimento intelectual e espiritual, Viena mantinha uma devoção ao catolicismo, reconhecendo assim a autoridade da Igreja com todas suas práticas religiosas, o que incluía inúmeras festividades. O povo vienense, no entanto, não vivia a religião de uma maneira puritana, mas sim de maneira cordial, em um aspecto familiar de religiosidade. Observa-se que neste período a franco-maçonaria era um aspecto presente e que não se caracterizava como um movimento anticristão. “Se a Igreja via com inquietação a difusão das seitas iluministas, cujo poderio crescente seria capaz de um dia derrubar sua própria autoridade, os soberanos mostravam-se, em geral, mais tolerantes” (BRION, 1991, p. 26). O próprio Mozart frequentava assiduamente as peregrinações católicas como ao mesmo tempo frequentava duas lojas maçônicas, assim como o imperador José II. As pessoas mais esclarecidas e prudentes compreendiam que estes movimentos espirituais deveriam caminhar em harmonia, visto que esta época estava a um passo da Revolução Francesa. Os prazeres da cidade incluíam, além da grande preferência do vienense pelos passeios no campo, também os numerosos cafés no centro. Estes locais eram bem diferentes dos também numerosos salões de baile, pois se sentiam muito à vontade para estarem sozinhos ou acompanhados, em conversas com os vizinhos, jogando cartas ou xadrez, bebendo vinho para manter leve o espírito de longa conversa. Estes “Cafés”, como eram conhecidos os estabelecimentos vienenses, possuíam as mais diversas características, desde os mais sofisticados, os quais a alta burguesia e a aristocracia frequentavam e, assim, decorados com refinada mobília e disponibilizando alta gastronomia, até os mais simplórios e TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 17 de baixo nível, vendendo cerveja e recebendo os marinheiros do rio Danúbio. O vienense se mostrava um apreciador do bom vinho, o gosto pela cerveja ainda seria algo para gerações posteriores. Em Viena, houve cafés ilustres: alguns desapareceram, outros mantiveram durante muito tempo sua velha reputação; os mais apreciados eram aqueles em que as pessoas se encontravam depois do teatro, onde os frequentadores tinham oportunidade de ver sentado à mesa vizinha o ator ou cantor, que fora o herói da noite e que continuava, naturalmente, a interpretar o seu papel na vida diária (BRION, 1991, p. 63). Um importante personagem no campo das artes cênicas no cotidiano vienense figura na pessoa de Emmanuel Schikaneder, imortalizado pelo seu libreto da ópera A flauta mágica, de Mozart. Este organizador de espetáculos conhecia o gosto do vienense pela magia e pela música e combinou estes elementos na atuação das companhias de teatro que administrava. Os atores por ele contratados eram habilidosos em multitarefas; além de atuar, cantavam, dançavam e representavam peças diferentes todas as noites (BRION, 1991). O próprio Schikaneder interpretava diversos papéis que iam de galã, trágico ou camponês. Oferecia exatamente o que o público desejava com o objetivo de obter mais lucro e auditórios cheios: artifícios de grande efeito como fanfarras militares, engenhocas e as mais variadas fantasias. Por outro lado, interpretava os grandes autores da época, como Lessing, Shakespeare, Schiller e Voltaire. Brion nos conta sobre a habilidade de Schikaneder em lidar com o público vienense: Sem dúvida, ele hesitava em tomar liberdades com os grandes autores, como fez com um drama de Toning, Agnès Bernauer. Nessa peça, o ator Wellerschenk, que interpretava o ‘traidor’, fazia tão bem o seu papel, com tal convicção, que chegava a ser insultado na rua e quase foi morto num albergue, de tal forma o público o identificava com seu personagem, Vicedom. A cena que provocava maior impacto era aquela em que Agnès era atirada de cima da ponte e se afogava. Certa noite, o público não pôde mais suportar a visão da morte da inocente e pôs-se a gritar: ‘Ajudem-na! Afoguem Vicedom!’ Diante da gritaria, Schikaneder, sempre disposto a quaisquer concessões para manter a ordem e o sucesso de seu teatro, subiu ao palco e anunciou que naquela noite, excepcionalmente, para contentar o público, o afogado seria Vicedom e não a doce Agnès, o que lhe valeu hurras e aplausos (BRION, 1991, p. 100-101). Na sua atuação com Mozart na ópera A flauta mágica, Schikaneder usou cenários de um Egito mágico e fantástico que impressionou mais que a própria música. Ele mesmo aparecia na ópera, interpretando Papageno, um personagem extremamente carismático e encantador. Existia uma tendência do povo vienense a encarar o mundo como um espetáculo e esta característica pode ser fundamentada pelos traços latinos UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 18 mesclados ao espírito germânico e italiano de viver. Domadores de cães e saltimbancos circulavam pelas ruas vienenses apresentando seus pequenos espetáculos, competindo com cenas pitorescas entre brigas de cocheiros, as conversas dos comerciantes ambulantes e pastoras de cabras. Sempre alvo de atenção de qualquer transeunte, as atrações deste grande centro cosmopolita variavam desde a troca da guarda imperial até as manobras treinadas dos cães e seus adestradores em plena rua (BRION, 1991). Em outro aspecto, o espetáculo promovido pelos animais, principalmente o desfile do gado bovino pelas ruas com destino aos açougues vienenses, promovia uma verdadeira festa regada a trompetes e tímpanos, anunciando a “marcha” dos bois pelas ruas da cidade. O povo, ignorando as recomendações de fechar suas portas e janelas, dirigia-se às ruas com toda a família para apreciar a chegada destes animais, principalmente bois advindos da Hungria. Como todo povo espetaculoso, a esperança era de que acontecesse algo repentino, como por vezes acontecia com algum animal desgarrado fugindo pelas ruas vienenses. Tal espetáculo sanguinário era alvo de atenção das comunidades, assim como na França e Inglaterra, onde os burgueses pagavam caro por uma cadeira para apreciar o enforcamento de alguma pessoa condenada por motivo pífio (BRION, 1991). Como você pode conferir, algo de instinto selvagem e que atravessa os séculos reside nas multidões até os tempos atuais. No século XVIII havia espetáculos nos quais animais como leões, ursos e lobos mutilavam-se até a morte. Esta cruel tradição que remonta à Idade Média e talvez por isso tenha se fixado de forma tão natural entre o povo, encontrou seu fim com o Imperador Francisco I. Em Viena, a comunidade podia apreciar animais exóticos em vários zoológicos. Os próprios jornais noticiavam a chegada de novos espécimes com a mesma intensidade que se anunciava uma nova ópera. Em 1752, uma das grandes atrações de um zoológico era um elefante e as famílias visitavam os zoológicos e organizavam piqueniques regados a vinho e pão para o grande paquiderme. Quando este adoeceu, as pessoas acompanhavam as notícias de seu quadrode saúde no jornal local e sua morte provocou comoção nacional. Esta paixão pelos animais esteve presente no espírito vienense, pois não somente nos zoológicos estes animais eram exibidos, mas também nas feiras, em vários bairros pela cidade e até mesmo nas óperas cômicas. A música, no entanto, ocupa um lugar mais importante que o prazer ou mesmo pura diversão; mostra-se como uma necessidade cultural, pois em Viena a música penetra em todas as classes sociais. No último quarto do século XVIII, Viena era repleta de músicos cantores e instrumentistas, que, incansavelmente, buscavam lugar de prestígio entre o grande número de concorrentes a um posto em alguma das várias orquestras. A principal atividade musical era constituída pela Hofmusikkapelle, ou seja, a orquestra da corte que era formada por integrantes de um coro de igreja, TÓPICO 1 | UMA NOVA LINGUAGEM MUSICAL 19 músicos de orquestra, artistas de teatro lírico e de conservatório. Além disso, integravam também crianças talentosas e dentre os alunos estaria mais tarde o compositor Franz Schubert (1797-1828). A Hofmusikkapelle constitui uma das mais importantes instituições da Europa e sua fundação vem da época do reino de Maximiliano I, em meados de 1498. O próprio nome “capela” demonstra a origem eclesiástica da instituição. FIGURA 5 – IMPERADOR JOSÉ II E VIENA NO ANO DE 1780 FONTE: <https://geneall.net/images/album/name/p10424_3.jpg> e <http://www.edition-wh. at/wordpress/wp-content/uploads/2013/08/Edition-Winkler-Hermaden-Das-Alte-Wien-07.jpg>. Acesso em: 18 out. 2018. Não somente a Hofmusikkapele, mas também outra instituição, o chamado Stadtkonvikt, recebia e educava crianças com vocação para música, direcionando- as para o canto ou algum instrumento. Tal ensino era proporcionado de forma gratuita e, assim, toda a comunidade teria acesso à música. Crianças com bom desempenho já conseguiam algum serviço nas orquestras de Viena. Brion (1991) nos mostra que nesta época os concertos públicos ainda eram raros. A nobreza ostentava suas orquestras como símbolo de status e mantinha rivalidade entre a posse do maior número de artistas, sejam músicos ou bailarinos, em um culto à vaidade, ou apenas para si mesmos, em apresentações particulares para a família, amigos e convidados. Neste aspecto, encontramos o jovem Mozart, empregado do arcebispo Colloredo, que em suas visitas a Viena exibia o talento do jovem compositor nas festas oficiais. Destes fatos, brigas ocorreram entre Mozart e seu empregador, como veremos no Tópico 2 desta unidade. Não obstante, os nobres eram os protetores dos artistas, pois ali poderiam garantir uma vida com estabilidade financeira e assim poderiam manter seu ofício, como instrumentistas ou compositores. No entanto, este ofício não era algo de humilhante para o artista, havia o sentimento de que todos são iguais, visto que a própria formação educacional da nobreza permitia um relacionamento amigável e respeitoso para com os empregados, minimizando as distâncias sociais. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 20 De fato, a nobreza do século XVIII possuía uma tradição cultural com um bom relacionamento com os artistas. “Os Lobkowitz, os Schwarzenberg, os Estherhazy, os Lichnowsky são conhecidos, antes de tudo, pelas suas relações com Mozart, Haydn e Beethoven” (BRION, 1991, p. 85), e o gosto pelas belas artes destes nobres contribuiu para que os compositores pudessem ter condições mais favoráveis a uma vasta produção musical. Estes três últimos compositores a quem citamos receberam o abraço da cidade e foram acolhidos como filhos legítimos. Talvez a Viena do último quarto do século XVIII não seria a mesma sem a presença dos três, diante de tamanha criação musical, e da mesma forma estes compositores não teriam o destino comum não fosse a magia da capital cosmopolita. 21 Neste tópico, você aprendeu que: • Música clássica é considerada como música de concerto, independentemente de período histórico. O termo também se refere ao período histórico que compreende aproximadamente os anos de 1750 até 1830. • A tradição de fazer música na corte esteve presente também no período clássico, em todo tipo de solenidade. No entanto, a música passa a ser feita também em público, com a ascensão da burguesia. • A ópera cômica passa a ter grande importância, atendendo às vontades da burguesia. • Para a nobreza, a música era tratada como arte, com finalidade em si própria. Para o burguês, a música deveria aliviar o estresse do dia a dia e também proporcionar certo status, pois assim se sentiria mais elevado socialmente. • Organizadores e compositores preparavam todo tipo de material musical, entre estes, os populares pot-pourris: diversos fragmentos de melodias escritas em sequência, assim como cortes de partes mais complexas de obras maiores, a fim de tornar mais acessível ao público comum. • O piano seria um símbolo de ascensão social na burguesia. • A alta burguesia frequentava os salões da nobreza e juntos apreciavam música. Não somente os nobres desempenhavam o papel de mecenas dos artistas, como também uma elite burguesa se preocupou em ocupar este espaço como promotores das belas artes. • A Revolução Francesa trazia consigo novos ares de possibilidades para a emancipação dos músicos e, desta forma, uma tão sonhada independência, a exaltação de uma profissão estaria com plenas possibilidades de surgir no final do século XVIII. • Após a Revolução, a atividade dos mecenas começa a entrar em declínio. A frequência às casas dos aristocratas tende a diminuir em contrapartida à crescente expansão dos concertos públicos. Há uma linha crescente no que diz respeito à criação de empresas de difusão artística, na popularização da música para o público consumidor. • A edição de partituras ganha força e um movimento comercial das obras dos compositores começa a crescer. No entanto, os direitos autorais estariam longe de proteger a autenticidade das obras. RESUMO DO TÓPICO 1 22 • O Iluminismo contribuiu para uma nova maneira de se pensar a música, estabelecendo as ideias principais, na crença nos sentimentos naturais, que são universais a todas as pessoas. Assim, os pensadores já imaginavam uma música também universal e comum em toda a Europa. • O movimento melódico e horizontal caracteriza o pensamento clássico, alicerçado pelos contrastes. Estes contrastes se referem às emoções e, por isso, a subjetividade se faz presente na maneira de compor as obras musicais no período clássico. • Haydn, Mozart e Beethoven são os responsáveis pelos aspectos mais primorosos no que se refere à forma e estrutura da música, assim como os valores estéticos de sua época. • As composições do período clássico são caracterizadas pela periodicidade das frases musicais e um conflito dramático articulado pelas mudanças de tonalidade e textura. Mozart e Haydn produziram obras repletas de efeito dramático, combinando elegância e expressividade, perfeição formal e surpresa dramática. • O movimento “Sturm und Drang” (Tempestade e Tensão) é caracterizado pelo pensamento voltado à natureza e à valorização da subjetividade, o ser humano individual, em que o filósofo Wolfgang von Goethe (1749-1832) configura como o maior representante. • Viena caracterizou-se no grande centro musical da Europa no século XVIII pela sua característica cosmopolita, que coincide com o movimento do Iluminismo e mais tarde com os reflexos da Revolução Francesa. • O povo vienense encarava o mundo como um espetáculo, tinha predileção pelo campo, pelos bosques e cultuava a música como elemento essencial para o convívio em sociedade, em todas as classes sociais. • Em Viena, a principal atividade musical era constituída pela Hofmusikkapelle, ou seja, a orquestra da corte que era formada por integrantes de um coro de igreja, músicos de orquestra, artistas de teatro lírico e de conservatório. • O gosto pelas belas artes da nobreza contribuiu para que os compositores pudessem ter condiçõesmais favoráveis a uma vasta produção musical, visto que a independência artística viria a acontecer somente nas décadas posteriores. 23 1 O período clássico da história da música compreende os anos entre 1750 até aproximadamente 1810, embora alguns autores defenderem os anos de 1820 como final do período. Não obstante, este representa o período mais curto na história da música e no entanto está repleto de inovações, devido às mudanças estilísticas como resultados em movimentos como o Iluminismo e a Revolução Francesa. Caracterizado pela simetria, pela clareza e predominância da linha melódica, o surgimento deste novo estilo define o perfil de uma nova classe social que emerge na sociedade: a classe burguesa. Diante destes fatos, assinale a alternativa correta: a) ( ) As desavenças entre a burguesia e a nobreza culminaram na popularização e simplificação em técnicas próprias do período barroco, como o contraponto, o baixo contínuo e promoveram a ascensão da ópera cômica. b) ( ) A burguesia apreciava a música, principalmente os pot-pourris nos concertos públicos e a simplificação de obras mais complexas. Por outro lado, a nobreza mantinha restrições, não se envolvendo com o público burguês. c) ( ) Tendências como uma sociedade cosmopolita, principalmente em Viena, contribuíram para uma universalização da música. Neste sentido, nobreza e burguesia concordavam em aspectos como a moral prática e o senso comum. d) ( ) Após o ano de 1791, a atividade dos mecenas tende a decair e os compositores começam uma busca pela independência como artista. Os direitos autorais favoreceram o compositor, principalmente em Viena e Mannheim. e) ( ) A sociedade passa a valorizar a melodia e os sentimentos. Na busca do controle emocional, compositores tendem a reprimir a expressão dramática, valorizando assim os aspectos subjetivos característicos do classicismo. 2 Assinale a opção que completa a sequência correta no texto a seguir: Nos primeiros anos do período clássico, o estilo é caracterizado pelo que ficou conhecido como _________________ (BENNETT, 1986b). Trata-se de um estilo agradável, elegante, com a preocupação de agradar ao ouvinte, mas que, no entanto, sentiu-se uma falta de profundidade. A prática de tocar diversos fragmentos de melodias escritas em sequência tornou-se muito popular e a isto se chamou __________________, assim como cortes de partes mais complexas de obras maiores, a fim de simplificar, tornar mais acessível ao público comum (MASSIN, 1997). No classicismo, a predominância de uma das AUTOATIVIDADE 24 vozes, a ___________________, passa a ser acompanhada por toda a estrutura da orquestra. A genialidade de _____________________________ durante o classicismo produziu obras repletas de efeito dramático, combinando elegância e expressividade, perfeição formal e surpresa dramática. a) ( ) Estilo galante, ópera, melodia, Mozart e Salieri. b) ( ) Estilo galante, ópera, harmonia, Mozart e Salieri. c) ( ) Baixo contínuo, pot-pourri, melodia, Haydn e Bach. d) ( ) Baixo cifrado, ópera, melodia, Mozart e Haydn. e) ( ) Estilo galante, pot-pourri, melodia, Mozart e Haydn. 3 A capital austríaca, Viena, corresponde ao grande centro das atenções na Europa no século XVIII, se caracteriza no modo cosmopolita de viver e abraçou todos os estrangeiros, constituindo um povo harmonioso entre as diferentes culturas que ali se instalavam. Este movimento coincide com o processo de universalização da música. Este movimento teve seus reflexos na música, em que alguns pensadores já afirmavam que uma música universal e comum a todos já estava presente em toda a Europa. Assim, considere as seguintes afirmativas: I – Viena era governada pelos Estherhazy nos tempos de Haydn e Mozart. II – Nobres de vários países habitavam a Áustria, vivendo em harmonia. III – Os vienenses adoravam espetáculos, até mesmo os mais cruéis. IV – A Hofmusikkapele era a principal orquestra militar de José II, em Viena. V – A nobreza ostentava suas orquestras, símbolo de status e vaidade. Assinale a opção correta: a) ( ) Somente as alternativas I, III e V estão corretas. b) ( ) Somente as alternativas II, III e IV estão corretas. c) ( ) Somente as alternativas II, III e V estão corretas. d) ( ) Todas as alternativas estão corretas. e) ( ) Somente as alternativas I e III estão corretas. 25 TÓPICO 2 PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A história da música obviamente é marcada pelas obras musicais, que graças a seus registros na forma de partituras, sobrevivem ao tempo e atravessam os séculos, pelo trabalho dos musicólogos que buscam a autenticidade destas, sua proveniência, seu estilo e todo o contexto cultural e social a que elas pertencem. Porém, é importante lembrar que a história é feita por pessoas que fizeram algo diferente, desafiador e por este motivo seus nomes permanecem, juntamente com sua obra. Coisas comuns são corriqueiras e rotineiras, fazem parte do dia a dia e por isso passam despercebidas. Para fazer história, faz-se necessária uma mudança e toda e qualquer mudança gera desconforto. Não podemos estudar esta história somente nas obras musicais, o que por si só já é campo de intensa análise em um acervo gigantesco que oferece possibilidades teóricas e históricas em diversas correntes de estudo. Porém, é importante conhecer a vida das pessoas que nos deixaram todo esse legado musical que é a música clássica e que permanece vivo há mais de 200 anos. Vamos conhecer um pouco sobre a vida dos três principais compositores deste período e o contexto histórico que permeia suas obras. 2 A PRIMEIRA ESCOLA DE VIENA Aos 22 anos de idade, Beethoven deixou sua cidade natal para em Viena realizar seus sonhos como compositor. Um destes sonhos foi o de conhecer o genial Wolfgang Amadeus Mozart e, obviamente, obter lições valiosas com o compositor de Salzburgo. Porém, Mozart havia falecido um ano antes, isto é, em 1791. Assim, com a orientação de seu mecenas, o conde Wallstein, Beethoven iria para Viena encontrar nas mãos de Joseph Haydn o espírito de Mozart (ROSEN, 1986). De fato, entre Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van Beethoven, apenas Haydn conhecera os outros dois, com afinidade. Alguns historiadores argumentam sobre algum encontro entre Mozart e Beethoven, outros discordam sobre o assunto, dizendo que este encontro nunca aconteceu. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 26 Os três compuseram em uma grande variedade de gêneros: Haydn se destaca nas sinfonias e nos quartetos de cordas, Mozart, sobretudo na ópera, e Beethoven é o único dos três que vive a transição do classicismo e o romantismo e por isso, apenas ele segue na Unidade 2 deste caderno. Beethoven elevaria a forma sonata ao máximo e, após sua morte, seus compositores contemporâneos compreenderiam que o pleno desenvolvimento da música naquele período residia no talento dele. Caberia a eles prosseguir com a responsabilidade. Os críticos do final do século XVIII não hesitaram em considerar os três “vienenses” – apesar de nenhum deles ter nascido em Viena, mas assim eram considerados – como as três maiores figuras da música de sua época. Assim concordava E. T. A Hoffmann, um dos críticos musicais mais acirrados da época, que escrevera em 1814 que os três idealizaram “uma nova arte” (ROSEN, 1986, p. 23). Hoffmann complementa ainda que os três representam os novos “românticos”. Desta forma, Haydn, Mozart e Beethoven passariam a ser conhecidos como a primeira escola de Viena, não por terem criado alguma instituição, algo em conjunto, nem por terem acordado sobre questões de composição, mas pelo fato de os três, de maneira isolada, terem criado uma nova linguagem, uma nova e coerente concepção de composição. Iremos, a seguir, conhecer um pouco sobre cada um deles. 2.1 FRANZ JOSEPH HAYDN (1732-1809) Franz Joseph Haydn nasceu em uma região que faz fronteira entre a Áustria e a Hungria. Sua famíliadescende de camponeses com forte cultura germânica e também influência da cultura húngara. Seu pai, assim como seu avô, eram carpinteiros e construíam carruagens. O pai de Franz, Mathias Haydn (1699-1783) passou a morar numa pequena aldeia próxima ao rio Leitha, em Rohrau, na localidade de Hainburg. Casou-se com Anne Maria Koller (1707- 1754), com quem teve doze filhos, e destes sobreviveram apenas seis. Franz Joseph foi o segundo, Johann Michael (1737-1806) foi o sexto e também foi compositor; Johann Evangelist (1743-1805), que se tornou tenor, empregado dos Estherhazy, foi o décimo filho. O pai Mathias, além de exímio carpinteiro e um amador na música, exercia a função de juiz cantonal. Os vagos conhecimentos musicais de Mathias foram o suficiente para perceber no jovem Franz Joseph um talento musical singular. O menino cantava juntamente ao pai, enquanto este tocava melodias tradicionais na harpa. Assim, Mathias encaminhou o jovem Joseph aos cuidados de seu cunhado, Johann Mathias Franck, para que cuidasse de sua educação geral. Aos seis anos de idade, Joseph deixara sua terra natal, onde nunca mais retornaria. Ali Joseph aprendeu a ler, escrever e começou seus estudos em música. Aprendeu a tocar quase todos os instrumentos de sopro, cordas e também os tímpanos (SALVAT, 1984). A sorte sorriu para Joseph, quando da visita de Karl Georg Reutter (1708- 1772), compositor de música sacra em Viena, que durante uma visita em Hainburg estava à procura de jovens talentos para seu coro. Imediatamente ao ouvir Joseph, TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 27 recrutou-o e aos oito anos de idade, Joseph passou a viver em Viena. Esta época coincide com o falecimento de Carlos VI e também o falecimento do compositor Johann Joseph Fux. Maria Teresa sucedeu o falecido imperador e em 1741, quando Joseph tinha oito anos, nascia o futuro imperador José II. Ali Joseph integrou o coro de Reutter, onde contava com a participação de treze instrumentistas e doze cantores, seis dos quais eram meninos. As condições financeiras não eram confortáveis para Reutter e os integrantes eram forçados a se acostumarem com uma penosa dieta alimentar. Os anos foram passando e Joseph passou pela mudança natural de voz, o que afetou negativamente sua função no coro, e assim Reutter não demorou a dispensá-lo, sob qualquer pretexto. Joseph estaria, a partir de então, sozinho e sem trabalho em Viena. Seus pais o orientaram a retornar a Rohrau e encaminhar-se para estudos religiosos, mas Joseph não sentia inclinação para a igreja. Com muito esforço, conseguiu um pequeno clavicórdio onde tocava nas igrejas e também tocava violino em bailes e serenatas, para ganhar a vida. Neste período difícil, Joseph, além de trabalhar duramente e com pouquíssimo retorno financeiro, nunca desistiu de aprimorar-se, pois estudava com intensidade as sonatas de Carl Philipp Emanuel Bach e a obra de Fux. Tamanho esforço foi percebido pelo seu vizinho, o poeta e libretista Pietro Metastásio (1698-1782), que auxiliou Joseph na busca de novos alunos e o apresentou para o compositor Nicola Porpora (1686-1766). Aos vinte anos de idade Joseph já começava a receber encomendas para compor e a ser conhecido nos meios mais influentes da música e da nobreza. Um importante contato nesta época se dá com o barão Karl Joseph von Fürnberg (1720-1767), que organizava sessões de música de câmara na Baixa Áustria. Pela influência do barão Fürnberg, Joseph Haydn foi nomeado mestre de capela do conde Morzin, recebendo anualmente cerca de 200 florins. A ele Haydn dedicou suas primeiras sinfonias e divertimentos para instrumentos de sopro. Chama à atenção uma cláusula do contrato que mantinha com Morzin, pois neste documento rezava que Haydn não poderia se casar neste período. Sobre a vida amorosa de Haydn, sabe-se que matinha um namoro com Therese Keller, filha de um cabeleireiro onde o próprio Haydn morava. Therese entrou para o convento, para a infelicidade de Haydn. Porém, incentivado pelo próprio pai de Therese, Haydn passou a namorar a filha mais velha, Maria Anna (1729-1800). O casamento se deu em 1760 e esta união, porém, não foi feliz. Apesar de Joseph desrespeitar o contrato com Morzin, este fato não chegou a romper com seu contrato, pois por outros fatores Morzin se viu obrigado a romper o contrato não somente com Haydn, mas também com toda a orquestra que mantinha. Haydn não ficou sem trabalho, visto que o príncipe Paul Anton Estherhazy (1711-1762) já conhecia a qualidade do trabalho do nosso compositor e não hesitou em convidá-lo para que assumisse o cargo de mestre de capela em seu palácio. Haydn aceitou imediatamente o pedido do príncipe e assim, em 1761, integrava o palácio e ali trabalhou até o final de sua vida. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 28 A família Estherhazy não era das mais antigas da Hungria, mas era uma das mais ricas, poderosas e cultas. Sempre se distinguira pelos serviços prestados aos Habsburgos, o que lhe valeu que o cabeça fundador da família fosse nomeado barão em 1613, conde em 1626 e príncipe em 1687, dignidade esta que passou a ser hereditária em 1712. Desde 1622, a residência principal da família era em Eisenstadt, a 50km a sudoeste de Viena. O período de maior esplendor dos Estherhazy inicia-se com o príncipe Paul (1635-1713), que lançou as bases da capela musical que Haydn tornaria célebre. O príncipe Paul Anton, que admitiu Haydn ao seu serviço, era neto dele (SALVAT, 1984, p. 243). Obviamente, a contratação de Haydn nesta corte seguiu na assinatura do texto que redigia os direitos e deveres dos empregados da nobreza. Entre os deveres, rezava o contrato que Haydn deveria: • Comportar-se como compete a um funcionário digno de uma casa principesca. • Evitar qualquer violência aos seus subordinados. • Velar para que seus subordinados e ele próprio apareçam sempre de uniforme. • Evitar comportar-se de modo grosseiro a comer, a beber ou em qualquer outra circunstância. • Compor toda música que Sua Alteza julgasse conveniente pedir-lhe, sem comunicar as suas composições fosse a quem fosse e, sobretudo, sem as copiar, conservando-as para uso exclusivo de Sua Alteza. • Não compor para quem quer que seja sem que Sua Alteza o saiba ou o autorize previamente. • Apresentar-se duas vezes por dia na antecâmara para saber se Sua Alteza está ou não na disposição de assistir a uma audição musical. • A resolver as divergências, disputas e queixas entre os seus músicos, de modo a Sua Alteza não ser importunada por simples bagatelas. • A cuidar das partituras e seus instrumentos. • A obrigar os cantores a trabalhar, a fim de não esquecerem no campo o que aprenderam com sacrifício e grandes gastos em Viena. Estas representam algumas cláusulas de um contrato que era comum aos compositores contemporâneos a Haydn. No caso em particular do nosso compositor, observa-se que ele obteve privilégios no sentido de ultrapassar as fronteiras estabelecidas pelo príncipe Estherhazy, pois a obra de Haydn ficou conhecida em toda a Europa. Neste quesito, o príncipe tinha conhecimento de que a fama de seu compositor da corte traria consigo satisfação e honrarias. Como você já viu, a nobreza sentia prazer em exibir suas orquestras e mantinha uma espécie de competição cultural. Em 1779, o príncipe apresenta um novo contrato para Haydn, oferecendo os privilégios de uma maior liberdade na divulgação de sua obra (SALVAT, 1984). TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 29 FIGURA 6 – JOSEPH HAYDN, PRÍNCIPE PAUL ANTON E O PALÁCIO ESTERHÁZA FONTE: <https://goo.gl/LCEsuA>; <https://goo.gl/sJGBdk> e <https://goo.gl/WpN6p3>. Acesso em: 22 out. 2018. Na época de Haydn, os serviços na nobreza eram divididos em três categorias: “funcionários, lacaios de libré e criados. Haydn pertencia à primeira categoria” (SALVAT, 1984, p. 244). Haydn contava em 1761 com uma orquestra composta por uma flauta, dois oboés, dois fagotes, duas trompas, quatroinstrumentistas de cordas e três cantores e com este agrupamento foram feitas as sinfonias nº 6 (Le Matin), a nº 7 (Le midi) e a nº 8 (Le soir). Após a morte do príncipe Anton, sucedeu seu irmão Nikolaus (1714- 1790), o qual Haydn serviu por mais 28 anos. Ocorreu um período de muitas solenidades festivas que contribuíram para que Haydn pudesse compor para outros gêneros, entre os quais, a ópera Acide, composta em 1762. Em 1766 o novo príncipe passa a viver em seu novo palácio, situado nas margens do lago Neusiedl, residência que deu o nome de Esterháza. Neste palácio havia uma sala de concertos com a capacidade para receber até 400 pessoas. O novo palácio foi inaugurado completamente somente em 1784 e custou cerca de 13 milhões de florins. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 30 Neste local foram interpretadas várias obras, entre uma série de concertos, peças teatrais de Shakespeare, além de óperas, recebendo a mais alta nobreza não somente da Áustria, mas também de outros países da Europa. Somente em 1778, cerca de 240 solenidades foram realizadas no palácio, onde Haydn apresentou suas sinfonias e concertos, com seus músicos da mais alta qualidade. O ano de 1766 marca algumas mudanças no estilo de composição de Haydn, caracterizando-se no movimento “Stürm und Drang” – que já vimos no Tópico 1 desta unidade. Haydn mostra um estilo mais profundo, uma nova expressão mais madura e introspectiva que podem ser conferidas em passagens com forte tensão harmônica e em longas passagens modulatórias nos desenvolvimentos das sinfonias. O compositor manteve seu gosto pelo uso de melodias folclóricas de forma direta e uma audácia na escolha de tonalidades. Mas estes anos não seriam apenas de um progresso musical intenso, pois tamanho prestígio traria consigo a inveja de seus colegas de trabalho. O antigo mestre de capela, que nos cinco primeiros anos do contrato de Haydn acusava-o de “fabricante de melodias”, não hesitou em escrever ao príncipe acerca de indisciplina entre os membros da orquestra. O novo príncipe Nikolaus era um fervoroso admirador da gamba, um instrumento da família das cordas friccionadas (assim como o violino), e entre novas solicitações atentando para ordem em sua orquestra e disciplina em todos os aspectos, tanto musicais quanto os burocráticos, também solicitou a Haydn um maior número de obras escritas a este instrumento em particular. Haydn trabalhava entre seus músicos e o príncipe fazendo dessa forma a ponte entre a nobreza e seus empregados. Tal condição trouxe problemas em administrar os conflitos que ali surgiam. Por exemplo, o flautista de sua orquestra foi demitido por Haydn em 1765, por ter disparado sua arma contra pássaros que voavam perto do telhado do palácio, danificando o telhado. Em outra ocasião, em novembro de 1771, interviu em uma violenta briga em que “o violoncelista Franz Marteau e o flautista Pohl criaram em uma taberna em Eisenstadt, em que Pohl perdera um olho” (SALVAT, 1984, p. 246). Haydn foi sempre um líder primoroso e um artista dotado de extrema criatividade. Os traços de humor são encontrados em grande parte de sua obra. A expressão dramática encontrou neste compositor um caminho para manifestar- se de forma plena, como nunca havia sido constatado. Um dos exemplos desta dramaticidade e também da polidez com que Haydn tratava os conflitos entre os músicos e a administração da nobreza é descrito a seguir: O célebre episódio da sinfonia número 45, O Adeus, escrita em novembro de 1772, é apenas um caso entre muitos outros [...]. Entre os músicos do príncipe Estherhazy havia jovens recém-casados que, durante o verão, se viam obrigados a deixar as mulheres em Eisenstadt. Ao contrário do que era costume, o príncipe decidiu prolongar a sua TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 31 permanência em Esterháza algumas semanas mais. Os jovens maridos, consternados, dirigiram-se a Haydn pedindo-lhe que fizesse algo para mudar a situação. Haydn teve a ideia de compor uma sinfonia durante a qual os instrumentos se iriam calando um após outro. Essa sinfonia foi executada na presença do príncipe. Haydn recomendou aos músicos que, logo que acabassem de tocar a sua parte, apagassem a vela e saíssem com o instrumento debaixo do braço. O príncipe e todos os presentes compreenderam imediatamente e no dia seguinte foi dada a ordem de partida de Estherháza (SALVAT, 1984, p. 246). DICAS Veja no Youtube a sinfonia nº 45, sinfonia do adeus, de Joseph Haydn. São quatro movimentos: I – Allegro assai, II – Adagio, III – Menuett e o IV – Finale. Confira a interpretação atual onde os músicos vão se retirando aos poucos, na parte final do último movimento, como forma de protesto. Elementos considerados humorísticos são presentes na obra de Haydn. Contudo, devemos lembrar que Haydn viveu os processos de mudanças nas concepções estéticas da arte e, sobretudo, na música. Assim, novas concepções custam a serem aceitas no seio da crítica artística e muito do humor de Haydn em suas composições foi visto como “erro”, ou seja, o compositor foi criticado por supostamente cometer uma série destes “erros” em suas composições. Para os estudiosos da crítica do século XVIII, o chamado “erro” é um indicativo de mudanças das normas estabelecidas (LUCAS, 2008). Cabe lembrar que a Europa no final do século XVIII também viveu um movimento intelectual que promove a discussão do belo e os valores da estética, em autores como, por exemplo, Goethe e Schiller. No entanto, Haydn recebia críticas muito favoráveis a respeito de sua obra, e foi descrito como exímio conhecedor da tradição do contraponto e habilidoso em combinar esta tradição com aspectos novos, agradando aos amadores e aos mais exigentes conhecedores da boa música (LUCAS, 2008). O próprio Haydn sentiu o peso do isolamento em Esterháza, pois muito raramente podia realizar alguma viagem. Esta espécie de confinamento, no entanto, permitiu a Haydn toda a liberdade no sentido de experimentar todas as ousadias possíveis em termos musicais com a sua orquestra, trazendo assim uma originalidade ao seu nome como compositor. Não obstante, em março de 1770, dirigiu sua ópera Lo speziale em Viena e também na cidade cosmopolita apresentou o seu oratório Il retorno di Tobia. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 32 Em 1779 chega em Esterháza a cantora Luigia Polzelli e o príncipe Estherhazy passa a apreciar a ópera italiana. Este período foi muito intenso na vida de Haydn: passou a dirigir óperas de seus compositores contemporâneos, como Anfosse, Gazzaniga, Sarti, Cimarosa e outros italianos, ao mesmo tempo em que dirigia suas próprias, assim como a nova paixão pela cantora Luigia. Quanto às obras de seus contemporâneos, Haydn chegou a substituir partes que considerava inadequadas, o que era uma atitude normal na época. Em um curto espaço de dois anos, Haydn trabalhou em 96 óperas. Nos últimos anos em que passou em Esterháza, Haydn enviou quase toda sua produção artística para Viena, Paris e Londres. Como já falamos, obras de Haydn foram publicadas na Europa em 1764 sem o conhecimento do compositor e você já pôde conferir alguns aspectos editoriais da época. Em 1780, Joseph já cuidava da publicação de suas obras e também já recebia encomendas, como as feitas pelo Concert de la Loge Olympique de Paris (1784-85), as sinfonias de número 82 até a 87. Encomendas da Espanha e também de outros países, das mais variadas entidades e, sobretudo, não tão exigentes quanto os princípios em Esterháza, contribuíram para que um turbilhão de novas composições chegasse aos ouvidos de toda a Europa. Haydn se tornou, dessa forma, um célebre compositor, admirado e requisitado. Tamanha glória não aliviava o descontentamento do compositor, pois este vivia como empregado do príncipe. “O que me incomoda é viver no campo”, confessa o compositor, que apenas podia estar em Viena nas breves estadias do príncipe. Nestas estadias em Viena, Haydn conheceu o jovem WolfgangAmadeus Mozart, quem admirava profundamente. Os encontros entre os dois célebres compositores, ao que se sabe, foram poucos, mas suficientes para criar respeitosos vínculos de amizade e respeito. Em 1790 falecia o príncipe Nikolaus Estherhazy e seu filho e sucessor manteve Haydn em seu cargo, aumentou seu salário, sem exigir dele as obrigações permanentes e diárias. Joseph teve, pela primeira vez, condições de alçar-se em busca de sua independência como artista. Assim, o compositor viajou novamente a Viena, onde recebeu várias propostas de trabalho, entre as quais, aceitou a oferta de trabalho em Londres com todas as garantias que um compositor pudesse sonhar. Aos 58 anos, Joseph Haydn deixou a Áustria pela primeira vez em sua vida. Haydn permaneceu em Londres cerca de um ano e meio e ali soube da morte de seu amigo Wolfgang Mozart, notícia em que mal pôde acreditar. A estada de Haydn em Londres foi um triunfo, as salas de concerto o exacerbavam e recebeu em 1791 o título de honoris causa, pela Universidade de Oxford. Seus concertos eram descritos em toda a imprensa e seriam também recebidos pela realeza da Inglaterra. Desta época datam as seis primeiras Sinfonias Londres, as de nº 93 a 98, entre as quais a famosa sinfonia nº 94, denominada Surpresa. TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 33 No seu retorno a Viena, durante uma parada em Bad Godesberg, Joseph conheceu o jovem Ludwig van Beethoven, para o qual ministrou aulas em novembro de 1792 até no ano que segue. Para Beethoven ficou clara a contribuição de Haydn não somente nos aspectos técnicos e teóricos da música, mas também para o desenvolvimento da composição propriamente dita. Nos anos seguintes, Haydn retornou a Londres, compondo mais seis sinfonias londrinas, em que figuram as mais populares, como a Sinfonia Militar (nº 100), Sinfonia O Relógio (nº 101), O Rufo dos Tímpanos (nº 103), e a Sinfonia Londres (nº 104) (MASSIN, 1997). Haydn retornou definitivamente à Áustria e já é considerado o maior compositor vivo, tanto em seu país, como em outros países. Apenas em 1803, Beethoven começou a obter mais prestígio em suas composições, chegando perto da importância de Haydn, também pelo fato de Haydn deixar de compor neste período – já estava na casa dos 71 anos. Haydn retomava as funções de mestre de capela, mas estas já eram bem reduzidas e, no entanto, retornava a Viena para dirigir suas obras e, por vezes, lado a lado de Beethoven. Haydn mostrou-se como um grande sinfonista, manifestando uma importância muito grande à orquestra, fora dos estereótipos de sua época. Ao final de 1803, a frágil saúde de Haydn já o impedia de registrar sua criatividade nas composições. Alguns projetos mal saíram do papel e desde então, morando em um vilarejo de Viena, sua casa transformou-se em uma espécie de local de peregrinação entre seus admiradores. Recebia visitas de Constanze Weber (viúva de Wolfgang Mozart), os biógrafos Dies e Griesinger e o compositor Cherubini. “Em maio de 1808, Haydn lá recebeu toda a capela Estherhazy, que foi visitá-lo por ocasião de um concerto que viera a realizar em Viena sob a direção de Hummel (1778-1837)” (MASSIN, 1997, p. 564). Neste ano registrou-se sua última aparição em público, na ocasião da apresentação de Die Schöpfung, dirigido por Antonio Salieri (1750-1825), compositor da corte de José II. Nesta ocasião, Beethoven, que curiosamente foi seu único discípulo, beijou as mãos de Joseph Haydn. Morreu em 31 de maio de 1809, em sua casa em Gumpendorf. Franz Joseph Haydn é criador de aproximadamente 750 obras e cerca de 300 arranjos para canções. Destacam-se neste número, as sinfonias (104 ao todo) para orquestra e seus quartetos de cordas (83 quartetos), nos quais reside sua maior contribuição no que diz respeito à forma e estrutura da música. Este compositor elevou o conceito de sinfonia, assim como o quarteto, elevando ao mais alto nível de sua época. Foi o primeiro a utilizar a forma sonata e explorar com eficiência todas as possibilidades que esta forma fornece, em termos de possibilidades melódicas e transições de tonalidades. Neste sentido, Haydn ensinou aos seus contemporâneos e aos que viriam após, uma nova maneira de compor. Na música vocal, o compositor nos deixa uma série de cantatas, árias e solos, duetos, trios e quartetos de vozes com muita influência do folclore. Você pode apreciar a música de Joseph Haydn nas solenidades oficiais de seu país natal, pois é de sua autoria o Hino Nacional da Áustria. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 34 2.2 WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791) Em 27 de janeiro de 1756, nasceu em Salzburgo, na Áustria, um dos maiores compositores não só do período clássico, como também um dos grandes nomes da música universal. Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart foi o caçula de seus seis irmãos e raramente usou os dois primeiros nomes. Quanto ao nome Wolfgangus ele preferiu a forma germânica, Wolfgang, e “Theophilus” traduziu do grego para a forma latina, ou seja, “Amadeus”. No entanto, quando assinava em italiano utilizava “Amadeo”, ou em francês, adotava “Amédé”. Da família de sete filhos, apenas dois chegaram à idade adulta, Wolfgang e sua irmã (quatro anos mais velha) Maria Anna Walpurgis Ignatia, a qual sua família tratava pelo diminutivo “Nannerl”. O pai de Wolfgang, Leopoldo Mozart (ou na forma germânica, Leopold), nasceu em Augsburgo em 1719 e mudou-se para Salzburg em 1737, onde dois anos mais tarde conseguiu a vaga de violinista na orquestra do conde de Thurn- Valsassina e Taxis. Em 1743 conseguiu ingressar na orquestra do príncipe- arcebispo e seu ofício também incluía o ensino de violino para jovens. Casou- se em 1747 com Ana Maria Pertl. O ano de nascimento de Wolfgang é marcado também pela publicação de um importante tratado pedagógico escrito por Leopold, que discursa acerca da interpretação da música de seu tempo. Versuch einer gründlichen Violinschule (Ensaio de um método para violino) configura-se como um importante e raro registro técnico e estético de interpretação da música clássica. Ao longo da infância, Wolfgang esteve sempre ao lado de Leopold, que também era compositor. Ele é autor de missas, salmos, cantatas, sinfonias e concertos, entre outros gêneros. Quando percebeu a genialidade do pequeno Wolfgang (e também da jovem Nannerl), deixou de compor e de ministrar aulas particulares. Toda e qualquer atividade além de seu ofício com o príncipe- arcebispo fora excluída em favorecimento à educação musical de seus filhos. FIGURA 7 – NANNERL, WOLFGANG E LEOPOLD E MOZART NA ÁUSTRIA FONTE: <https://goo.gl/xfSCxL>; <https://goo.gl/r8aqER>. Acesso em: 19 out. 2018. TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 35 Leopold era um pai de família com profundo sentimento religioso. Músico extremamente competente e dotado de denso conhecimento musical, percebeu, principalmente no pequeno Wolfgang, um talento que julgava como um presente de Deus. Desta forma, sentiu uma responsabilidade em educá-los musicalmente, da melhor maneira possível, entendendo esta tarefa como uma missão divina a ser cumprida. Wolfgang interpretava de memória várias composições tocadas ao cravo. Antes de Wolfgang completar cinco anos de idade, seu pai o levou para que se apresentasse na Universidade de Salzburgo, causando um grande espanto e admiração dos músicos daquela orquestra, pela qualidade musical da criança. Anos mais tarde, em 1762, Leopold levou os filhos para Munique com o objetivo de se apresentarem à nobreza. Outras viagens sucederam a esta, para Viena no palácio real e na presença da imperatriz Maria Teresa. Leopold viu os filhos alcançarem um sucesso estrondoso, pois todos queriam saber das pequenas crianças-prodígio. Uma das características mais impressionantes de Wolfgang, ainda quando tinha apenas seis anos de idade, além de apresentar uma destreza técnica comparável a qualquer músico adulto com vasta experiência, era sua incrível capacidadede improvisação. Qualquer tema que lhe fosse apresentado, o menino de Salzburgo poderia desenvolver novas ideias, tanto quanto sua inesgotável imaginação lhe permitisse. Assim é que Mozart começou a registrar suas ideias na forma de partituras, com o auxílio de Leopold. No entanto, esta vida como artista precoce teve duras consequências na vida de Wolfgang, visto que praticamente toda sua infância foi repleta de incontáveis viagens, estudos ao cravo e ao violino, sendo a música sua única e exclusiva vida. As constantes viagens e a rotina musical intensa contribuíram para a fragilidade da saúde de Wolfgang, que já sofria com doenças que o acompanhariam até o final de sua breve vida. Nos anos de 1770-73 em suas visitas à Itália, Mozart escreveu duas óperas, Mitridate e Lucio Silla, familiarizando-se assim com o estilo italiano de fazer música. Logo após, regressou para Viena, na esperança de conseguir algum trabalho permanente. Mozart permaneceu em sua cidade natal, Salzburgo, entre 1774 até 1777, ocupando o ofício de konzermeister na corte do príncipe-arcebispo (SADIE, 1994). O compositor sabia de seu valor como artista e entendia que em Salzburgo as condições para uma vida musical promissora seriam mínimas e, assim, partiu com sua mãe para a cidade de Mannheim, permanecendo lá por quatro meses na esperança de conseguir trabalho. Neste pequeno espaço de tempo, ele compôs música para piano e flauta. Em Mannheim, Mozart entra em contato com a famosa orquestra (como veremos no Tópico 3) e faz o seguinte registro em seu diário: “aqueles que nada sabiam de mim olharam-me sem esconder seus risos; será que porque sou pequeno e jovem imaginam que não possa existir em mim nada de grande e maduro? Pois bem, logo eles vão se dar conta disso!” (MASSIN, 1997, p. 572). Suas tentativas de obter trabalho em Mannheim foram infrutíferas e, assim, seguiu então para Paris. Ali ele compôs sua Sinfonia nº 31, denominada Paris. A recepção por parte do público a esta obra foi ínfima, pois a obra mostrou- UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 36 se sofisticada além do gosto estético daquela comunidade. Em Paris, Mozart se apaixona pela jovem cantora Aloysa Weber, sendo rejeitado meses mais tarde. Ainda em Paris, Mozart sofreu uma grande perda, sua mãe veio a falecer. Cansado dos revezes que sofreu, Mozart anuncia “juro pela minha honra que não posso mais suportar nem Salzburgo, nem as pessoas de lá – a fala, a maneira de viver delas, são insuportáveis” (MASSIN, 1997, p. 573) e, não obstante, regressou uma vez mais a Salzburgo a pedido do pai Leopold. Entre 1779 e 1780, em Salzburgo, compôs música dramática, concertos, serenatas e sinfonias. No entanto, a ópera sempre foi alvo de fascínio para o compositor e neste período, por encomenda de uma instituição em Munique, Mozart escreveu a ópera Idomeneu, alcançando enorme sucesso. Esta obra mostra- se “muito rica em informações sobre sua abordagem do drama musical. Nela, Mozart retratou emoções dramáticas e heroicas com uma riqueza sem paralelo em suas outras obras, com uma atraente escrita orquestral e uma abundância de recitativos orquestrais profundamente expressivos” (SADIE, 1994, p. 626). Neste período ele novamente era empregado do príncipe-arcebispo Colloredo e os desentendimentos entre os dois seriam acirrados meses mais tarde. FIGURA 8 – ARCEBISPO-PRÍNCIPE HIERONYMUS VON COLLOREDO, O COMPOSITOR DA CORTE ANTONIO SALIERI E EMANUEL SCHIKANEDER FONTE: <https://goo.gl/ZnX154>; <https://goo.gl/Ek9ePn> e <https://goo.gl/fNuUTn>. Acesso em: 19 out. 2018. O ano de 1781 foi um marco na vida de Mozart. Depois da morte da imperatriz Maria Teresa, a convite do novo imperador José II, o príncipe-arcebispo Colloredo viajou até Viena, acompanhado também de seus criados músicos. Mozart, porém, veio diretamente de Munique, em virtude das apresentações da ópera Idomeneo e em Viena percebeu a dura reação de Colloredo, sendo tratado com hostilidade: “eu não sabia que era um empregado doméstico, foi isso que me fez perder a cabeça” (MASSIN, 1997, p. 573). O rompimento de Mozart com Colloredo se deu de forma ríspida e em 9 de maio de 1781, Mozart pediu demissão. TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 37 A ruptura só se consumou realmente em 8 de junho, quando o conde Arco, mestre das cozinhas (o que hoje corresponderia ao cargo de chefe de pessoal), segurando Mozart pelos fundilhos, atirou-o no olho da rua. Mas, desde o dia 9 de maio, Mozart, entrando de volta em casa, ‘com febre, braços e pernas trementes, cambaleando na rua como um bêbado’, já escrevia a seu pai: ‘Hoje começa a minha felicidade’. Hoje... E faltava-lhe viver dez anos e meio (MASSIN, 1997, p. 573). De fato, Mozart encontraria o descanso eterno em 1791, mas até lá uma série de verdadeiras obras-primas da música seriam compostas. A esta altura do nosso texto, você já sabe o que o nosso jovem compositor austríaco iria encontrar em Viena, ou seja, glórias, mas também toda sorte das grandes dificuldades de tentar uma vida como músico independente. Ao chegar à capital do Império, como de costume em tantas outras de suas viagens, escreve ao seu pai: Cheguei ontem, ou seja, dia 16, numa diligência onde viajei, graças a Deus, totalmente sozinho. Quase esqueço de relatar a hora: 9 da manhã. Até Unterhaag fiz o caminho de diligência, mas a essa altura o meu traseiro já estava tão dolorido que eu não aguentava mais, e assim, pretendia continuar a viagem pelo serviço regular dos correios. [...] Onde o senhor acha que escrevo esta carta? Na Landstrasse, no jardim dos Messmer. A velha dama não está em casa, apenas a ex-senhorita Franzl, agora senhor Bosch, que não apenas disse mas também me encarregou de transmitir suas 1000 saudações ao senhor e à minha irmã. Honestamente, imagine, mal a reconheci de tão gorda e obesa está [...]. Beijo-lhe as mãos mil vezes, um abraço de todo o coração à minha irmã, sou para sempre seu filho obediente (MOZART, 2004, p. 20-21). Este fragmento de uma das várias cartas que Mozart endereçava à sua família ilustra o caráter respeitoso para com seu pai e sua irmã em sempre informar de suas atividades e pretensões. A família dos Messmer a quem Mozart se refere eram conhecidos dos Mozart há quinze anos e a ópera Bastien e Bastienne foi executada na casa deles, por cantores amadores, no outono de 1768. A respeito da correspondência de Mozart, percebe-se um refinamento singular: palavras em código, letras do alfabeto trocadas propositalmente e uma constante mudança no idioma, alternando o alemão, francês e italiano. Em seus primeiros anos em Viena, encontrou prestígio e várias oportunidades de trabalhos temporários, em concertos ao ar livre, nos quais a burguesia desejava apreciar a boa música. Nestes anos estão inseridas obras como a ópera O Rapto do Serralho, a Sinfonia Haffner, sonatas e concertos, a Grande Missa em Dó Menor, a qual representa uma das mais importantes obras litúrgicas de Mozart, e a Sinfonia Linz. Também neste período dedicou ao amigo Joseph Haydn a série dos Seis Quartetos para Cordas, onde o próprio Haydn escreveria a Leopold, “seu filho é o maior compositor que eu conheço, pessoalmente, ou de nome” (MASSIN, 1997, p. 574). UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 38 Mozart alcançara a tão sonhada independência como compositor, possuía muitos amigos e admiradores e suas obras alcançavam um sucesso sem igual. Neste momento ímpar de sua vida, casa-se (4 de agosto de 1782) com Constanze Weber, irmã mais nova da antiga namorada Aloysa. Porém, sabe-se que Mozart manteve casos extraconjugais, com Theresa von Trattner em 1784, e a cantora Nancy Storace. A estas duas temporárias amantes, Mozart dedicou belíssimas obras. Talvez este comportamento se explique no fato de que Mozart nunca se sentia satisfeito como artista e ele próprio descreve em cartas a respeito de “uma espécie de vazio que me faz muito mal, uma certa aspiração que nunca se satisfaz e por isso constante, quedura sempre e que a cada dia cresce mais” (MASSIN, 1997, p. 574). O comportamento de Mozart neste período é descrito por muitos contemporâneos: um caráter sempre insatisfeito, mostrando ao mesmo tempo bom humor e introspecção, vestindo-se de maneira desleixada, fazendo brincadeiras de todo o tipo. Observa-se em Mozart uma ironia que ele próprio mantinha, no contraste de suas ideias musicais divinas com a vulgaridade da vida cotidiana (MASSIN, 1997). Neste momento de crise, Mozart ingressa na franco-maçonaria, em 1784, e sua dedicação nesta nova fase de sua vida espiritual e intelectual mostra-se intensa a ponto de conquistar a adesão de seu pai Leopold e de seu amigo Joseph Haydn. Ali Mozart dedicou muitas obras, entre as quais a célebre ópera A Flauta Mágica. Desta conversão intelectual, Mozart transita para um amadurecimento de sua obra musical, não se preocupando muito com as exigências e o gosto do público. Uma série de obras que transparecem esta maturidade musical pode ser conferida no Concerto para piano em fá, em ré menor, e em dó (K 467), em mi bemol, em lá e em dó menor e o Concerto para Piano em dó K 503, a Sinfonia Praga, entre outras obras, num curto período de dois anos, e ainda com outra de suas obras definitivas, a ópera Le Nozze di Figaro, a qual representa um marco na expressão dramática, característica tão marcante no classicismo e que teve estreia em 1º de maio de 1786 (MASSIN, 1997). O ano de 1787 foi marcado pelo triunfo e glória de Mozart com sua ópera Le Nozze di Figaro em Praga, recebendo a encomenda de uma nova ópera. Neste mesmo ano, viveu tristes momentos pela partida de sua amante Nancy, pela morte de um amigo próximo e sobretudo pela morte de seu pai Leopold. Deste período datam a famosa Serenata Noturna para Cordas (Eine Kleine Nachtmusik) e a Sonata para piano e violino em lá K 526. Em setembro do mesmo ano, Mozart retornou a Praga para finalizar a ópera Don Giovanni, obra com a qual Mozart anunciou os aspectos românticos pelos quais a música caminharia. Curiosamente, esta ópera representa o ápice do trágico nas obras de Mozart, em um momento em que estava profundamente entusiasmado com a composição e cercado de muitos amigos em Praga. Ao contrário do sucesso estrondoso em Praga, Don Giovanni foi um fracasso em Viena (1788). O imperador José II reagiu com o comentário “isso não TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 39 é prato para os meus vienenses” (MASSIN, 1997, p. 578), e Mozart se defendeu argumentando que é preciso tempo para mastigar. A sociedade vienense via em Mozart um homem de 32 anos acabado, que teve uma infância como um prodígio, mas que agora estaria em pleno declínio. Suas dívidas só aumentaram e tanto a saúde de Wolfgang quanto a de Constanze também seguiriam em declínio. Em junho e agosto de 1788, Mozart recebeu um pedido para escrever sinfonias e desta encomenda resultaram a Sinfonia em Mi bemol e a Sinfonia em Sol menor K550, e ainda a Sinfonia em Dó (Sinfonia Júpiter), e nenhuma delas foi apresentada em concerto na ocasião, por falta de promoção. O ano que se seguiu é marcado por viagens que Wolfgang fez para Praga, Berlim, Dresden e Leipzig, na tentativa de conseguir trabalho. Retornou a Viena sem nenhum resultado, porém, muito motivado com as análises de motetos de Johann Sebastian Bach, partituras estas que encontrou em Leipzig. São épocas difíceis para o compositor de Salzburgo, mas que ainda recebeu uma encomenda do imperador José II para a elaboração de uma nova ópera. Assim Mozart compôs Così fan Tutti. Observa-se nas óperas de Mozart a destreza com a qual o compositor usa as técnicas de orquestração, fazendo da orquestra o elemento dramático mais criativo que a própria atuação e libreto da ópera. Em janeiro de 1790, com a morte de José II, a situação de Mozart ficou ainda pior, pois o sucessor do Império estava mais preocupado com os efeitos da Revolução Francesa do que com as manifestações artísticas. Em março de 1791, um amigo de longa data, Emanuel Schikaneder, então diretor do teatro An der Wien, encomendou a Mozart uma ópera. Os dois trabalharam no libreto, com o auxílio de Ignaz von Born, um dos líderes da franco- maçonaria vienense (MASSIN, 1997). Tratava-se da última ópera de Mozart, A Flauta Mágica, e a este trabalho foram dedicadas suas últimas energias, pois sua saúde já era extremamente frágil – como em toda a sua vida. Em paralelo à composição da ópera, Mozart trabalhou na encomenda de um réquiem e também outra ópera (séria) para Praga, intitulada La Clemenza di Tito. Apenas A Flauta Mágica foi inteiramente finalizada pelo compositor, enquanto que as outras duas obras, Mozart deixou orientações e esboços para o término. DICAS Um importante registro cinematográfico acerca da vida de Mozart, você pode conferir no longa-metragem “Amadeus”, do cineasta americano Milos Forman. Esta produção de 1984 foi vencedora de oito Oscars e fala com precisão sobre os detalhes da vida vienense e de Mozart. No entanto, ao contrário do que mostra o filme, Mozart e Salieri (o compositor da corte de José II) tinham uma amigável relação e a encomenda do Réquiem se deu por um conde que queria homenagear a esposa falecida, preferindo o anonimato. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 40 Mozart e Constanze tiveram seis filhos, dos quais apenas dois sobreviveram. Em 19 de novembro de 1791, Mozart adoeceu seriamente e de sua residência não mais saiu, vindo a falecer à 1h da manhã do dia 5 de dezembro de 1791. Constanze casou-se anos mais tarde com Nissen, que pediu à irmã mais nova de Constanze, Sophie, que descrevesse sobre a morte de Mozart, para que Nissen pudesse incluir na biografia em que estava trabalhando. Sophie relata que ficou no leito de Mozart com sua Constanze a pedido do compositor: “Como é bom, querida Sophie, que esteja aqui. Deve ficar aqui esta noite para ver como eu vou morrer! Pois já sinto o gosto da morte na língua, sinto-lhe o cheiro! E quem estará ao lado de minha cara Constanze se a senhora não ficar?” (MOZART, 2004, p. 272). Antes dos últimos suspiros, seu amigo Süssmayr recebeu de Mozart as últimas instruções de como finalizar o Réquiem. Horas depois ardeu em febre e não recobrou mais os sentidos. Sophie conclui seu relato: Por último, ainda como se tivesse imitado com a boca os tímpanos do seu Réquiem. Ainda ouço! Depois, logo veio Müller da galeria de arte e pressionou no gesso o rosto pálido do morto. É-me impossível descrever [...] a infelicidade infinita com que sua fiel esposa jogou-se sobre os joelhos e implorou ajuda ao Todo-Poderoso. Não conseguia se separar dele, por mais que eu lhe pedisse. Se sua dor pudesse ter sido aumentada ainda, isso teria ocorrido, quando no dia que se seguiu a essa noite terrificante, os homens vieram em grupos, choravam por Mozart e rompiam em soluços (MOZART, 2004, p. 272 e 273). Wolfgang Amadeus Mozart é autor de mais de 650 obras e representa um dos mais importantes compositores de toda a história da música, ao lado de Joseph Haydn e Ludwig van Beethoven. FIGURA 9 – CONSTANZE MOZART NA JUVENTUDE E ÚLTIMA FOTORAFIA DE CONSTANZE, EM 1840 (PRIMEIRA, DA ESQUERDA PARA A DIREITA) FONTE: <https://ais.badische-zeitung.de/piece/04/0a/fb/6f/67828591-h-720.jpg>; <https:// www.youbioit.com/files/newimages/2/232/constanze_mozart_1840.preview.jpg>. Acesso em: 19 out. 2018. TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 41 2.3 LUDWIG VAN BEETHOVEN (1770-1827) Beethoven nasceu em 16 de dezembro de 1770 em Bonn, Alemanha. Seu avô, Louis van Beethoven, foi quem se fixou nesta cidade, pela sua atividade como músico. Seu filho foi Johann, seguiu a mesma profissão do pai. Johann casou-se com Maria Magdalena Keverich, com quem teve sete filhos, e destes, apenas três sobreviveram: Ludwig, Karl e Johann. A infância destas crianças foi marcada por dificuldades que contribuíram para o desenvolvimento de um gênio difícil na personalidade de Ludwig: além da perda dos irmãos,seus pais caíram no vício do alcoolismo. O jovem Ludwig, no entanto, já mostrara disposição para a música, mas sua primeira educação musical por parte do pai foi de maneira agressiva e até brutal. Também as primeiras instruções gerais foram praticamente nulas até seus primeiros onze anos de idade. No entanto, foi com o músico Christian Neefe que Ludwig encontrou um feliz caminho para o estudo da música, analisando com profundidade a obra O Cravo Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach. Assim, Ludwig começaria a compor aos onze anos e publicou sua primeira obra, as Nove variações para cravo sobre uma marcha de Dressler (MASSIN, 1997). Ainda em 1782, Ludwig conheceria um estudante de medicina, Franz Wegeler (cinco anos mais velho) e com o qual se tornou amigo fiel, inclusive da família. Ali Ludwig encontrou os meios para suprir sua precária primeira instrução e obteve contato com obras dos pensadores do Iluminismo e também do movimento Sturm und Drang, principalmente com Goethe e Schiller. FIGURA 10 – LUDWIG VAN BEETHOVEN, GOETHE E SCHILLER FONTE: <http://twixar.me/09Y1>; <http://twixar.me/L9Y1>; <http://twixar.me/W9Y1>. Acesso em: 29 out. 2018. UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 42 Aos treze anos, Ludwig integrava a orquestra da corte e acumulava funções de ensaiador e organista adjunto, visto que seu pai já apresentava irresponsabilidades quanto ao trabalho. Desta forma, o jovem Ludwig assumia as condições de chefe de família, “o que decerto reforçou ainda mais a gravidade um tanto feroz de seu temperamento” (MASSIN, 1997, p. 600). No ano de 1784, o arquiduque Maximiliano Francisco chegou em Bonn, acompanhado pelo camarista, o conde Waldstein, que reconheceu em Ludwig um potencial musical que mereceria ser aprimorado. Assim, o conde tornou-se seu mecenas e o enviou para Viena, com o objetivo de ter aulas com Mozart, mas, como já sabemos, sobre este fato encontramos discordâncias entre os historiadores. Duas semanas após estar em Viena, foi chamado às pressas para acompanhar os últimos suspiros de sua mãe, que morreria de tuberculose. Os anos seguintes foram marcados pelo ingresso de Ludwig na Universidade de Bonn, precisamente em 1789, assistindo cursos de literatura. Seu profundo interesse pelos temas literários fez com que Beethoven se distanciasse de Haydn e Mozart, aproximando-se mais de jovens compositores como Franz Schubert e Robert Schumann. Tinha um interesse também pelos escritores Homero, Plutarco e Shakespeare, e também uma predileção por Goethe e Schiller, considerando estes textos como estímulos para compor música. Beethoven queria compor em uma linha de pensamento que exaltasse a expressão dos sentimentos e as aspirações do coração humano. E assim o fez, dedicando uma obra musical que leva o nome de uma peça teatral de Goethe, Egmont, seguindo as ideias filosóficas deste autor, Beethoven lhe escreve em 12 de abril de 1811: Sua Excelência! Esta ocasião premente oferece-me apenas alguns momentos, pois um amigo meu, e grande admirador de Sua Excelência (como eu próprio), está partindo daqui agora, e através dele posso enviar os meus agradecimentos pelo longo tempo que nos conhecemos (pois conheço Sua Excelência desde a minha infância): isso é tão pouco por tanto! Bettina Brentano garantiu-me que o senhor receberia minha aproximação com benignidade ou até com amizade. Todavia como poderia eu conceber tal recepção se apenas posso me dirigir a Sua Excelência com a maior reverência, com profundo, inefável sentimento pelas suas esplêndidas criações? Sua Excelência logo receberá, de Leipzig por meio da firma Breitkopf e Härtel, a música para o Egmont, esse glorioso Egmont, que escrevi no calor da primeira leitura, tentando pensar e sentir de acordo com o senhor. Gostaria muito de saber a sua opinião a respeito da obra; mesmo suas críticas adversas seriam proveitosas a mim e à minha arte e seriam recebidas da mesma forma que o mais elevado louvor. Grande admirador de Sua Excelência, Ludwig van Beethoven (BEETHOVEN, 2006, p. 62) O filósofo Goethe respondeu a esta carta em junho do mesmo ano, em profundo agradecimento e reconhecendo a genialidade musical de Beethoven. TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 43 Voltemos aos anos de 1790, nesta fase de sua vida que mostra uma inclinação aos acontecimentos políticos: um de seus professores de literatura foi Euloge Schneider, um fervoroso partidário da Revolução Francesa (MASSIN, 1997). Beethoven aderiu às ideias de Schneider em igual fervor. Aos vinte anos, já tinha traços de personalidade muito bem concretizados e, no entanto, mostrou-se uma pessoa introspectiva, voltado para si mesmo. No campo da música, sabia de seu incomparável talento como compositor. Não obstante, ainda era um jovem, com um longo caminho de estudos a ser percorrido. Haydn estaria regressando de Londres, quando ouviu falar sobre obras de Beethoven. Haydn se interessou pelo talento do jovem Ludwig, e desta vez o convidou para que tivesse aulas regulares com ele, em Viena. Com o auxílio do conde Waldstein, Beethoven conseguiu sua licença para viajar até Viena e assim o fez neste mesmo ano de 1792. Haydn cuidou para que seu pupilo fosse mais criterioso em sua maneira de compor (MASSIN, 1997). Além dos estudos regulares com o compositor dos Estherhazy, Beethoven obteve aulas de composição com Albrechtsberger, aulas de canto com Salieri e técnica de violino com Krumpholz. Logo estes mestres perceberiam em Ludwig um aluno-compositor “inadaptável a qualquer tipo de ensinamento justamente por causa de sua irredutível originalidade” (MASSIN, 1997, p. 602). Beethoven era fiel às suas convicções e sem o consentimento de seus mestres publicou, em 1795, três trios atribuindo o número de opus 1. Sua fama como compositor, porém, veio depois da fama como improvisador ao piano, pois rapidamente tornou-se um fenômeno como pianista. Seus concertos para piano publicados em 1795 alcançaram grande sucesso. Nesta época, seu pai Johann falecera e seus dois irmãos vieram para Viena a pedido de Ludwig. Os anos não foram fáceis para o compositor, que sobrevivia dando aulas e compondo obras mais simples, para arrecadar recursos financeiros. No ano seguinte, retornando de apresentações bem-sucedidas em Praga, Berlim, Dresden e Leipzig, seu estado de saúde – sempre relativamente precário, agravou-se com doenças intestinais que o acompanhariam até o fim de sua vida, além dos primeiros sintomas de perda de audição. Beethoven mantinha suas anotações em seu diário pessoal, afirmações como “Fazer todo o bem que se possa / Amar acima de tudo a liberdade / E, mesmo que em troca de um trono / Jamais trair a verdade” (MASSIN, 1997, p. 603). O compositor de Bonn continuava a compor mais do que nunca e apesar dos tratamentos médicos a que se submeteu, sua surdez avançava cada vez mais, escondendo este sofrimento por longos dez anos. Em 1806 Beethoven sentiu-se forçado a assumir publicamente sua surdez, que progrediu fortemente até tornar- se quase definitiva. A notícia, contudo, fez com que o compositor fosse admirado mais do que qualquer outro, pois a surdez seria uma das piores doenças que poderiam afligir a um compositor. Como diria Victor Hugo, “parece que se vê um deus UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 44 cego criar o Sol” (MASSIN, 1997, p. 604). A surdez de Beethoven, segundo seus biógrafos, parecia incomodar mais Beethoven em suas relações amorosas e no convívio social, do que em sua rotina como compositor. Na verdade, Beethoven não deixou de compor menos por causa da surdez. Em seu silêncio interior, nada mais, nenhum som ecoava mais do que suas ideias musicais e sua poderosa força criadora, alicerçada a uma sólida convicção pessoal, contribuíram para que Beethoven, já em total surdez, compusesse suas obras mais importantes e grandiosas. ESTUDOS FU TUROS Neste ponto de nossa leitura, faremos uma pausa nesta biografia, pois, como já dissemos, Beethoven transita para operíodo romântico da história da música e, assim, retomaremos este tema na Unidade 2. No entanto, você verá em seguida um pouco de outros compositores importantes do classicismo. 3 OUTROS REPRESENTANTES DO CLASSICISMO MUSICAL Da família Bach, seguiram alguns filhos de Johann Sebastian nos caminhos da música. Carl Philip Emanuel Bach (1714-1788) foi o terceiro filho de Johann Sebastian e é considerado um dos representantes do estilo sentimental, suas obras são caracterizadas na transição do barroco para o estilo clássico. Escreveu sinfonias, concertos para flauta, violoncelo, cravo e oboé, sonatas para cravo, flauta e piano, além de obras sacras, com as Paixões e Oratórios. Johann Christoph Friedrich Bach (1732-1795) é o nono filho de J. S., autor de sinfonias e outros gêneros. Johann Christian Bach (1735-1782), décimo primeiro filho de J. S., é um compositor importante que veio a influenciar Haydn, Mozart e Beethoven. Os três representantes da primeira escola de Viena tinham por Johann Christian uma grande admiração. Mozart tinha apenas oito anos de idade quando conheceu J. C. Bach. Compositor de onze óperas, sinfonias, concertos, sonatas e outros gêneros, viveu seus últimos vinte anos em Londres, onde também alcançou enorme reputação. Carl Friedrich Abel (1723-1787) era um virtuose da viola da gamba, aluno de Johann Sebastian Bach, compôs sinfonias, aberturas e concertos, entre outros gêneros. Abel era alemão e em suas obras percebe-se a influência da música italiana. Luigi Boccherini (1743-1805) foi um compositor e violoncelista italiano, admirador e influenciado pela obra de Haydn. Viveu grande parte de sua vida na Espanha, onde faleceu praticamente na miséria. Boccherini deixou uma vasta produção musical com um estilo que incorpora uma grande qualidade estética e TÓPICO 2 | PERSONAGENS DO CLASSICISMO: OS COMPOSITORES 45 formal, colocando-o como um dos grandes representantes do período Clássico. Juntamente com Haydn, é considerado como um dos criadores das composições para quarteto e quinteto de cordas. Muzio Clementi (1752-1836) era pianista e compositor nascido na Itália, mas que viveu a maior parte de sua vida na Inglaterra. Exerceu, com seu conjunto de obra, grande influência na música para piano. “Sua coleção de 100 estudos para piano, Gradus ad Parnassum, publicada em 1817, é considerada como a obra fundamental da técnica pianística. Compôs ainda sinfonias, concertos e mais de 100 sonatas para piano” (CHAIM, 1998, p. 34). Luigi Cherubini (1760-1842) é um dos representantes do classicismo nascido na Itália, mas que passou quase toda sua vida na França. Cherubini escreveu mais de vinte óperas e uma vasta coleção de obras sacras. Influenciou compositores europeus do período Romântico, como Robert Schumann, Johannes Brahms, Richard Wagner, os quais dedicavam profundo respeito e admiração. O próprio Ludwig van Beethoven exaltava a genialidade de Cherubini, como um dos maiores compositores dramáticos da Europa (CHAIM, 1998). FIGURA 11 – QUADRO DE COMPOSITORES DO CLASSICISMO 1750 1760 1780 1790 1800 1810 18201770 1773 1767 1764 1757 Quantz 1764Locatelli Scarlatti 1759Haendel Telemann Rameau 1770Tartini 1757 1768 1782 1732 1809 Stamitz Porpora 1779Boyce 1809Albrechtsberger J. Ch. Bach 1783Soler 17911756 Mozart Sammartini 1775 Leclair 1764 Geminiani 1762 1750 Salieri 1757 Pleyel 1752 Clementi 1788C. Ph. E. Bach 1785Galuppi Haydn 1760 Cherubin 1770 Beethoven 1749 Cimarosa Boccherini1743 1805 Piccini 1800 Gretry1741 1813 Cronologia dos compositores do Classicismo FONTE: O autor 46 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Franz Joseph Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van Beethoven representam a primeira escola de Viena. • Haydn integrou na corte dos Estherhazy (uma das mais ricas e poderosas da Hungria, mas que mantinham residência na Áustria), em 1761, com seus serviços musicais, e ali permaneceu até o final de sua vida. • O ano de 1766 marca mudanças no estilo de composição de Haydn, caracterizando-se no movimento Stürm und Drang, em um estilo mais profundo, uma expressão mais madura e introspectiva. • Haydn foi sempre um líder primoroso e um artista dotado de extrema criatividade. Os traços de humor são encontrados em grande parte de sua obra. • Em 1790, faleceu o príncipe Nikolaus Estherhazy e seu sucessor forneceu a Haydn condições de alçar-se em busca de sua independência como artista. • Em 1791, Haydn recebeu o título de honoris causa, pela Universidade de Oxford, em Londres, ano em que escreveu grande parte das Sinfonias Londres. • Beethoven foi o único pupilo de Joseph Haydn. • Franz Joseph Haydn é criador de aproximadamente 750 obras e cerca de 300 arranjos para canções. Destacam-se neste número as sinfonias (104 ao todo) para orquestra e seus quartetos de cordas (83 quartetos). • Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em Salzburgo, em 1756, filho de Leopold, um exímio professor de violino e compositor. • A infância de Mozart, assim como a de sua irmã Nannerl (quatro anos mais velha e também dotada de talentos musicais), foi marcada por intensas viagens pelas principais cidades da Europa, promovidas pelo pai dele. • Mozart rompeu com seu principal empregador em 1781, deixando Salzburgo para viver como músico independente em Viena. • Alcançando significativo sucesso em Viena, Mozart possuía muitos amigos e admiradores. Neste momento ímpar de sua vida, casou-se (4 de agosto de 1782) com Constanze Weber. 47 • Em 1784, Mozart ingressou na franco-maçonaria e sua produção musical passou a ser influenciada por este movimento, resultando em obras com grande profundidade. Conquistou também a adesão do pai Leopold e do amigo Haydn neste movimento. • A partir de 1788, a vida de Mozart começou a sofrer um declínio, assolado por dívidas e falta de trabalho. Neste período de má sorte, obras-primas da música foram compostas. • Em 1791, último ano de sua vida, Mozart compôs o enigmático Réquiem e uma das mais populares óperas da história, A Flauta Mágica, libreto em conjunto com Emmanuel Schikaneder. • Ludwig van Beethoven compôs sua primeira obra aos onze anos, as Nove variações para cravo sobre uma marcha de Dressler. • Beethoven foi influenciado por obras dos pensadores do Iluminismo e também do movimento Stürm und Drang, principalmente por Goethe e Schiller. • Beethoven tornou-se um fervoroso adepto aos ideais da Revolução Francesa. • Em 1806, Beethoven sentiu-se forçado a assumir publicamente sua surdez, que progrediu fortemente até tornar-se quase definitiva. 48 1 A história da música, obviamente, é marcada pelas obras musicais, que graças às partituras, sobrevivem ao tempo e atravessam os séculos, pelo trabalho dos musicólogos que buscam a originalidade destas e todo o contexto cultural e social a que elas pertencem. As obras, no entanto, foram escritas por pessoas e conhecer o contexto social em que os gênios da música estiveram envolvidos é imprescindível para compreender o estilo clássico. Diante dos aspectos históricos sobre os três gênios que formam a primeira escola de Viena, classifique as sentenças em V para as verdadeiras e F para as falsas. ( ) Haydn escreveu sua Sinfonia Nº 45 (O Adeus) em uma forma de crítica contra as piratarias promovidas pelas próprias editoras europeias. ( ) Beethoven perdeu progressivamente sua audição e em um espaço de dez anos, esforçou-se em esconder este sofrimento, revelando-o em 1806. ( ) A ópera Don Giovanni de Mozart foi um sucesso estrondoso em Praga e Viena. A obra anuncia os primeiros aspectos característicos do romantismo. ( ) Peça literária de Goethe, Egmont, foi inspiração para Beethoven criar uma obra musical com o mesmo nome e dedicada ao filósofo. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) V – V – V – F. b) ( ) F – V – F – V. c) ( ) V – V – F – F. d) ( ) V – F – V – V. 2 Leia o seguinte texto sobre a música clássica e assinale a alternativa que compreende o seu devido compositor:Em 1779, chegaria a cantora Luigia Polzelli e o príncipe passou a apreciar a ópera italiana. Este período foi muito intenso na vida do compositor: dirigiu óperas de seus compositores contemporâneos, como Anfosse, Gazzaniga, Sarti, Cimarosa e outros italianos, ao mesmo tempo em que dirigia suas próprias, assim como a nova paixão pela cantora Luigia. Quanto às obras de seus contemporâneos, chegou a substituir partes que considerava inadequadas, o que era uma atitude normal na época. Em um curto espaço de dois anos, trabalhou em 96 óperas. a) ( ) Ludwig van Beethoven b) ( ) Joseph Haydn c) ( ) Paul Anton Estherhazy d) ( ) Wolfgang Amadeus Mozart e) ( ) Leopold Mozart AUTOATIVIDADE 49 3 Assinale a alternativa que compreende a descrição do compositor: Nascido na Itália, quatro anos antes de Wolfgang Amadeus Mozart, foi pianista e compositor, e viveu a maior parte de sua vida na Inglaterra, exercendo com seu conjunto de obra grande influência na música para piano. “Sua coleção de 100 estudos para piano, Gradus ad Parnassum, publicada em 1817, é considerada como a obra fundamental da técnica pianística. Compôs ainda sinfonias, concertos e mais de 100 sonatas para piano” (CHAIM, 1998 p. 34). a) ( ) Carl Friedrich Abel. b) ( ) Johann Christoph Friedrich Bach. c) ( ) Luigi Boccherini. d) ( ) Muzio Clementi. e) ( ) Luigi Cherubini. 50 51 TÓPICO 3 A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Durante o período clássico da música, você já viu que uma série de mudanças aconteceram no desenvolvimento de valorização da melodia. Aspectos característicos do período barroco foram abandonados, dando lugar a novas técnicas, novos artifícios de composição e mesmo novos instrumentos com funções diferentes nas obras musicais. Era uma música para novos ambientes e também um novo público, assim como uma concepção de estética não somente musical, mas das belas artes em geral. Analisaremos neste tópico, caro acadêmico, alguns aspectos formais da música barroca que foram desenvolvidos para a manifestação do estilo clássico. Para isto, mergulharemos no repertório dos três grandes autores do classicismo, Mozart, Haydn e Beethoven, analisando justamente os pontos mais característicos do estilo, em algumas partituras. Neste momento de nosso estudo, será muito importante ouvir as obras que serão mencionadas, pois, por mais que analisemos a estrutura harmônica, melódica e rítmica de uma partitura, de nada vale se não a ouvirmos e assim sentir e identificar todos os aspectos técnicos analisados. Não se preocupe, os exemplos que utilizaremos estão amplamente divulgados na internet, principalmente, no canal Youtube. 2 GÊNEROS E FORMAS MUSICAIS Para elaborar uma música, o compositor pode a princípio ter em mente alguma melodia, mas para começar a estruturá-la, terá que pensar em dois aspectos: no gênero e na forma. Trata-se de um plano geral da obra e isto vai determinar o tipo de música que será a composição final. Quando se pensa em gênero, referimo-nos ao tipo de música, por exemplo, se a composição será um rock, uma valsa, um samba, uma valsa, polca, poema sinfônico, jazz e tantos outros. Isto porque uma melodia pode encaixar-se perfeitamente em qualquer gênero, mas obviamente, os compositores normalmente seguem uma linha artística, seguem um estilo musical e não se 52 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) aventuram em territórios longe de seu domínio estilístico. Bandas de rock tocam rock, assim como orquestras sinfônicas transitam no repertório sinfônico e fusões destes dois exemplos normalmente resultam em no máximo uma bagunça de gêneros. Portanto, gênero é algo que vai tratar da estrutura externa de uma obra – enquanto que a forma irá tratar da estrutura interna dela. O gênero musical, segundo Dourado (2004, p. 146), “designa formas consolidadas de composição, como o rock e o jazz, o lírico ou o sinfônico. De maneira mais restrita, pode indicar uma variedade de estilos e correntes musicais que comungam de certa identidade entre si”. Perceba que falamos sobre aspectos externos de uma obra musical. Por outro lado, a forma musical é uma ferramenta mais ampla que apresenta uma infinidade de recursos de composição. Algumas formas já existentes no período barroco foram amplamente desenvolvidas no classicismo, ampliadas a ponto de criarem novas subestruturas, como veremos adiante. Dourado nos explica que a forma é a “estrutura ou plano musical de uma composição. Princípio de organização de uma obra em seus elementos musicais, como tonalidade, tema, repetições, variações. Designa, de modo específico, a organização dos elementos de construção de sonatas ou rondós, por exemplo” (2004, p. 137). Bennett (1986b) explana que a forma trata também do equilíbrio e da continuidade de uma obra, de como as ideias musicais estão organizadas. Ao tratar da forma, o compositor utiliza recursos de composição, como repetição e contraste: apenas uma melodia seria insuficiente para uma obra e, por outro lado, a utilização de várias melodias daria a impressão de falta de identidade. Então, o compositor encontrará o equilíbrio utilizando poucas melodias (ou temas) combinadas com o recurso de repetição e contraste. Outro aspecto técnico acerca da melodia é a sua construção a partir de motivos (incisos). O motivo é a menor unidade reconhecível em música, e a repetição deles (pequenos fragmentos), porém com notas diferentes, irá gerar uma melodia. Isto é fundamental para composição. IMPORTANT E Uma melodia poderá ser ouvida algumas vezes durante a mesma obra e isto contribui para sua identidade e sua unidade. O contraste, por outro lado, poderá ser no uso de uma melodia completamente nova ou a mesma tocada em TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 53 instrumentos diferentes. Isto traz interesse e variedade, sem perder a unidade (BENNETT, 1986a). O contraste pode ser feito de outras maneiras, como uma troca de tonalidade, uma mudança no modo maior ou menor, intensidade diferente, timbres (diferentes instrumentos), articulação com notas mais suaves ou mais agressivas. Assim, o compositor poderá utilizar um ou dois, ou ainda muitos destes elementos combinados para criar contraste. Outro aspecto concernente à forma da música pode ser conferido no quesito da escolha da tonalidade. Uma obra musical é escrita em uma tonalidade central, mas no decorrer da obra, é interessante para o ouvido escutar algo diferente, falando metaforicamente, um passeio em lugares diferentes (outras tonalidades) para depois voltar à sua casa (tonalidade central). A construção das frases musicais (ou sentenças) será alicerçada pela combinação dos motivos e normalmente estas frases irão possuir uma métrica de oito compassos. Subdivisões podem ser facilmente encontradas, em semifrases de quatro compassos, estruturas menores em dois compassos, até a fragmentação total nos motivos. Existem também frases com números ímpares de compassos, mas estas não são comuns. Os finais destas frases são harmonicamente elaborados com o que chamamos de cadência, que é a Relação harmônica conclusiva de uma frase, que define a tonalidade de um trecho ou aquele que virá a seguir. A cadência perfeita, final ou autêntica consiste na resolução de acorde de dominante para tônica (V – I). A imperfeita termina no acorde de dominante, a interrompida ou de engano resolve para um grau inesperado da escala (por exemplo, VI), enquanto a plagal termina em um acorde de tônica que é antecedido por uma subdominante (DOURADO, 2004, p. 62). Assim, as cadências concluem as frases e nos dão a sensação de um final, ou de uma continuidade, ou ainda um efeito de pergunta e resposta. No classicismo e, sobretudo, na obra de Mozart, as cadências também terminavam em um dos tempos fracos do compasso e assim foi chamada de cadência feminina. Por outro lado, quando o final da cadência coincidisse em tempo forte do compasso, seria então a cadência masculina.Finalmente, outro recurso muito importante é a modulação. Em música, trata-se de “processo de modificação harmônica de um trecho em determinada tonalidade próxima (dó maior para sol maior) ou distante (dó maior para si menor, por exemplo)” (DOURADO, 2004, p. 210). Neste aspecto, entramos em uma área que para compreendermos melhor, necessitamos de estudo aprofundado em harmonia, o que não é necessariamente objeto de nosso estudo neste momento. Assim, recomendamos leituras acerca deste assunto, para aprimorar seus conhecimentos. 54 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 2.1 GÊNEROS E FORMAS BARROCAS Na época do barroco, uma das formas mais presentes era a suíte. Neste gênero, é muito comum utilizar-se também suas traduções: partita, ouverture, ordre, porém tratam da mesma forma. As suítes podem iniciar com um prelúdio, que pode variar em prelúdio abertura, ou simplesmente abertura ou ainda abertura francesa. A outra variação é simplesmente prelúdio. Com ou sem prelúdio, a suíte segue com uma série de danças organizadas na forma binária barroca, apresentando um único tema – monotemáticas. As danças mais frequentes são a Allemande, a Courante, a Sarabande e a Giga. Danças de corte francesas também podem integrar e são chamadas de Galanteries, constituídas pelo Menuet, Gavota, Bourré, Passepied e Forlane. Normalmente o esquema das suítes de Johann Sebastian Bach se apresenta da seguinte forma: I – Prelúdio, II – Allemande, III – Courante, IV – Sarabande, V – Galanteries, VI – Giga. Algumas destas danças possuem andamento lento (Sarabande), outras possuem andamento moderado (Allemande, Menuet, Forlane) enquanto que outras são rápidas (Courante, Giga). A sequência das danças normalmente obedece a um esquema rápido-lento-rápido. Existem ainda outras formas de danças encontradas fora do esquema da suíte. Esta forma também é conhecida como forma AB. FIGURA 12 – A FORMA BINÁRIA BARROCA FONTE: O autor Ainda no barroco, outra forma muito frequente é a forma ternária, que consiste em partes independentes seguindo o esquema A-B-A. Esta terceira seção denominada novamente como “A”, é idêntica à primeira, porém com acréscimo de ornamentos. Segundo Bennett (1986a), a forma ternária é uma forma sanduíche, na qual o episódio B contrasta com A – e pode-se pensar em ABA’, já que a última seção apresenta novos elementos, mas que ainda mantém as características de A. Estas são as formas mais básicas no período barroco e que fundamentalmente estarão presentes nas composições do período clássico, romântico, até os tempos atuais. Outras formas musicais também são utilizadas, como o rondó, que consiste em uma seção principal (A) que intercala seções contrastantes (ABACADA). Esta forma foi utilizada por Bach, Mozart e posteriormente pelos românticos Beethoven, Mendelssohn, Brahms, Tchaikovsky e outros mais. TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 55 Outra forma que seguiu com mudanças em sua estrutura é a forma Minueto (ou menuet). Dança característica com três tempos por compasso, era uma elegante dança da corte francesa e muito popular na corte de Luís XIV, no século XVII. Assim como outras danças francesas, esta forma conquistou a nobreza de outros países da Europa. Os minuetos eram frequentemente escritos aos pares – o segundo minueto contrastando com o primeiro de alguma forma. Para torná- los uma peça mais extensa, eram tocados em forma de sanduíche: minueto I : minueto II : minueto I. O segundo minueto era geralmente em nova tonalidade e frequentemente no modo oposto ao anterior [...]. Devido à prática de instrumentar o segundo minueto sempre para três instrumentos, ele acabou sendo conhecido como trio (BENNETT, 1986a, p. 40). De início a sonata designava uma peça destinada a instrumentos (sem a voz humana), para solistas, em oposição à cantata (obra com solo para vozes). O termo “sonata” tem origem no idioma italiano, “suonar” (tocar, e não cantar) e derivou da forma do período medieval, a canzone, e mantinha apenas um movimento. No período barroco, esta forma passou a ter mais movimentos, principalmente com Corelli, em uma estrutura de quatro movimentos (lento – rápido – lento – rápido). Seu desenvolvimento no barroco deu-se pelas danças allemande, courante, sarabanda e giga. Com o tempo, o quesito de ter um instrumento solista foi perdendo força, dando lugar a uma instrumentação mais complexa. Outra forma antiga é a variação, que remonta ao período do início da música instrumental. Nesta forma um tema é sucessivamente reapresentado sempre com modificações. No barroco ficou conhecido como tema e variações e teve na figura de Johann Sebastian Bach um de seus maiores expoentes (por exemplo, com as Variações Goldberg, de 1742). Mozart, Haydn e Beethoven fizeram amplo uso desta forma (DOURADO, 2004). Esta é uma das formas que atravessou os séculos até os dias atuais. Existem outras formas musicais nos períodos históricos e que sofreram mudanças durante os séculos. Apenas para mencionar, outras técnicas de composição podem até se confundir como formas: o baixo ostinato, o cânone, cantus firmus, o contraponto, a fuga, a imitação. Por outro lado, existe uma grande variedade de gêneros e subgêneros na música vocal e instrumental. NOTA 56 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 2.2 FORMA SONATA Agora que você já viu sobre as ferramentas que o compositor dispõe para construir e registrar seu discurso musical, podemos seguir verificando as formas mais significativas utilizadas no classicismo pelos compositores da primeira escola de Viena. Uma das formas que mais se caracterizam como um dos fundamentos das formas clássicas é a forma sonata. Trata-se de uma Estrutura consolidada no Classicismo, aplica-se a um movimento ou peça como uma forma ternária evoluída. Consiste, basicamente, de três seções (exposição, desenvolvimento e recapitulação, à qual podem ser acrescentados elementos introdutórios e conclusivos (introdução e coda, respectivamente). O modelo da forma sonata consolidou-se de tal maneira na música ocidental que, mesmo com o advento do atonalismo e das técnicas modernas, continuou a ser frequentemente empregado durante o século XX entre compositores como Hindemith e Schönberg, por exemplo (DOURADO, 2004, p. 138). A forma sonata, no entanto, não é uma invenção do classicismo, mas sim encontrou neste período um desenvolvimento como nunca antes e consolidou-se através dos demais períodos. A forma sonata deriva das formas barrocas e uma rápida análise já permite observar semelhanças entre formas binárias e ternárias. Na figura a seguir, temos os elementos fundamentais da forma sonata: exposição, desenvolvimento, reexposição – o que por si já nos remete a uma forma ternária, ABA. A Exposição pode ser precedida por uma Introdução e a reexposição pode ser seguida por um Coda. Esta parte final chamada coda tem a função de reafirmar a tonalidade e encaminhar o ouvinte para o final do movimento. Quando utilizamos o termo “tema” nos referimos a uma melodia e assim, a exposição apresenta as melodias. Observe que o símbolo II: e o mesmo espelhado: II, indica a repetição do trecho. O Desenvolvimento vai reunir elementos da exposição em que haverá muito movimento harmônico, o baixo só vai estar em cadência perfeita na preparação para a reexposição. Segue-se a reexposição, uma música que já está na mente do ouvinte e finalmente a coda, dando-nos a certeza de que o movimento chegou ao seu fim. FIGURA 13 – FORMA SONATA NO CLASSICISMO FONTE: O autor TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 57 ATENCAO Existe a “forma sonata”, mas também um “gênero sonata”. Como gênero, a sonata compreende vários movimentos (assim como a suíte). No século XVII havia a “sonata pré-clássica”, com todas as suas variações em termos de estrutura (sonata da chiesa, sonata da câmera, sonata a tre...). Finalmente, pelos anos de 1760, a sonata clássica fixa-se como gênero musical, com seus movimentos já bem estruturados. Normalmente,a sonata clássica possui um primeiro movimento em allegro (rápido), o segundo em menueto e o terceiro como finale, em que o primeiro movimento assumiria a forma sonata propriamente. No classicismo, quase todas as sonatas são compostas por três movimentos. Partiremos agora para um exercício de escuta e análise, com a overture (abertura) da ópera Don Giovanni (Il dissoluto punito, ossia Il Don Giovanni / Don Juan), de Wolfgang Amadeus Mozart, composta em 1787 e sob registro K527. O libreto é de Lorenzo da Ponte e é baseado nas aventuras de Don Juan, um conquistador de mulheres. A primeira performance desta ópera foi no Teatro Nacional de Praga, Tchecoslováquia, em 29 de outubro 1787. Mozart utilizou para esta obra, além dos elementos obrigatórios que compõem uma orquestra, como primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos; instrumentos de madeira como duas flautas, dois oboés, dois clarinetes e dois fagotes; instrumentos de metal como duas trompas e dois trompetes e na percussão, um par de tímpanos. Esta abertura está completamente estruturada na forma sonata clássica. De acordo com a análise na figura a seguir, procure ouvir esta overture Don Giovanni no canal Youtube, no qual você vai encontrar diversas versões. Normalmente as primeiras opções a aparecerem são as melhores. Trata-se de um excelente exemplo de como os compositores do classicismo trabalhavam com a forma sonata. FIGURA 14 – OVERTURE DON GIOVANNI, NA FORMA SONATA FONTE: O autor 58 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) 2.3 O QUARTETO DE CORDAS Os últimos anos do período barroco culminaram para o nascimento de um gênero musical voltado para um pequeno grupo exclusivamente com cordas friccionadas, normalmente formado por dois violinos, uma viola e um violoncelo. Joseph Haydn foi o grande responsável por consolidar esta formação instrumental com uma literatura musical própria, firmando assim o quarteto de cordas como um gênero musical. Haydn estabeleceu, neste tipo de composição, quatro movimentos para cada composição (obra), explorando ao máximo o timbre e as características técnicas das cordas friccionadas. “Em seus quartetos op. 33 (1781), que introduzem no gênero scherzo, Haydn conseguiu uma nova clareza de estrutura e equilíbrio de textura (ainda que uma escrita brilhante para o primeiro violino tenha permanecido sempre como parte de seu estilo). Em seu op. 76 desponta um novo experimentalismo, com aspectos que antecipam Beethoven” (SADIE, 1994, p. 754). Mozart também compôs quartetos de cordas, com uma qualidade ao nível das composições de Haydn e, no entanto, uma série de outros compositores assim o fizeram, não de forma tão brilhante, mas contribuíram para a popularidade do gênero. São eles: Bocherini e Vanhal (com cerca de 100 obras cada um), assim como Ordonez. Estas composições seguiram os estilos de seus compositores, porém, seguindo as estruturas características do gênero. O quarteto de cordas prosseguiu nos períodos musicais subsequentes até os tempos atuais, sendo um importante gênero referente à música de câmara. DICAS Um belo exemplo deste gênero é o Quarteto de Cordas Op. 64, Nº 5, de Joseph Haydn, conhecido como A Cotovia. Trata-se de um importante exemplo de como as melodias recebem o destaque por meio de leveza e clareza no momento de sua composição. Procure ouvir esta obra na plataforma Youtube! 2.4 A SINFONIA Considerada como a principal forma de escrita instrumental, a sinfonia foi plenamente desenvolvida no período clássico. A sinfonia nasceu da abertura italiana barroca (que possuía uma estrutura de movimentos rápido-lento-rápido) e posteriormente recebeu um terceiro movimento derivado de uma dança barroca, o minueto. Este gênero teve como seus principais palcos os grandes centros da Europa, como Londres, Mannheim, Paris e Viena. Novamente se destacam Mozart e Haydn neste gênero. Em sua orquestra na corte de Estherhazy, Haydn explorou com intensidade as sinfonias: utilizando apenas um único tema, explorou TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 59 variações e desenvolvimentos inusitados e destacam-se as sinfonias Paris (1785), “com suas inéditas culminâncias de engenhosidade, humor e intelectualidade despretensiosa; as últimas sinfonias (nº 93-104), escritas para Londres, superam até mesmo essas em amplitudes de concepção, sedução melódica e magistral domínio do gênero” (SADIE, 1994, p. 869). Em suas sinfonias Londres, Haydn utilizou o seguinte esquema de movimentos: FIGURA 15 – MOVIMENTOS DAS SINFONIAS LONDRES, DE HAYDN Sinfonia Nº 93, em Ré maior (1791) I. Adagio-Allegro assai II. Largo cantábile III. Menuetto: Allegretto IV. Finale: Presto ma non tropo Sinfonia Nº 96, em Ré maior (“O Milagre”, 1791) I. Adagio – Allegro II. Andante III. Menuetto: Allegretto IV. Finale: Vivace assai Sinfonia Nº 94, em Sol maior (“Surpresa”, 1791) I. Adagio cantábile – Vivace assai II. Andante III. Menuetto Allegro molto IV. Finale: Allegro di molto Sinfonia Nº 97, em Dó maior (1792) I. Adagio – Vivace II. Adagio ma non tropo III. Menuetto: Allegretto IV. Finale: Presto assai Sinfonia Nº 95 em Dó menor (1791) I. Allegro moderato II. Andante III. Menuetto IV. Finale: Vivace Sinfonia Nº 98, em Si bemol maior (1792) I. Adagio – Allegro II. Adagio cantábile III. Menuetto: Allegro IV. Finale: Presto FONTE: O autor Como podemos verificar, raramente uma obra leva um “nome”, um título que a possa definir. Haydn, assim como todos os demais compositores, identificava sua obra com o gênero e o número de sua composição, por exemplo, Sinfonia nº 94 em Sol maior e eventuais denominações eram adicionadas por terceiros, às vezes pelos editores, a fim de facilitar as vendas. Os intérpretes então possuíam suas partituras e todas as indicações para suas performances. Porém, em relação aos movimentos, perceba que diferente da suíte barroca, em que os movimentos são constituídos por danças – Allemande, courante, sarabande e assim por diante, cada qual com sua velocidade –, os nomes dos movimentos da sinfonia são elaborados a partir da forma musical combinada às expressões que orientam quanto ao tempo da música. Por exemplo, a Sinfonia Nº 94, em seu primeiro movimento, começa com uma introdução no tempo Adagio cantábile e segue na forma sonata no tempo Vivace assai. Adágio se refere a um tempo lento, enquanto que vivace se refere a um tempo rápido. Com a adição do termo assai, formando assim vivace assai, temos a tradução “muito rápido”. 60 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) Procure ouvir algumas destas sinfonias de Joseph Haydn na plataforma Youtube. Chamamos atenção em especial para a Sinfonia Nº 94, para o segundo movimento, intitulado “Andante”. Ali reside uma das razões por esta sinfonia chamar-se Sinfonia “Surpresa”. O tema é apresentado imediatamente nos primeiros oito compassos, num pizzicato (dedilhado, sem o arco) com as cordas, começando a primeira frase numa dinâmica em “piano” (fraco) e a segunda frase em “pianíssimo” (muito fraco). Segue inesperadamente um acorde de sol maior com toda a orquestra numa dinâmica fortíssima. Para nós não seria nada extraordinária uma “surpresa” dessas, mas aos ouvidos de 1791, isso provavelmente soou como uma estrondosa novidade. Eis um dos exemplos do humor de Haydn. Este movimento está estruturado como “tema e variações”, em que habilmente Haydn domina os timbres e faz bom humor utilizando um tema quase infantil em passagens de extrema dramaticidade e elegância. NOTA Mozart realizou grande contribuição neste gênero, pois desde criança já conhecia o estilo italiano das sinfonias e por intermédio de Johann Christian Bach, o compositor de Salzburgo introduziu maior sutileza e refinamento no fraseado, escolheu cuidadosamente os instrumentos de sopro que acompanham as cordas e promoveu uma estrutura harmônica mais complexa. Após sua visita a Mannheim, Mozart passa a utilizar o estilo característico daquela escola, combinando o estilo italiano de compor. Noentanto, tamanhas diferenças estilísticas gerariam algum conflito e estes foram resolvidos de forma eficiente, quando analisamos suas últimas obras-primas, as sinfonias de número 38 a 41. 2.5 A ÓPERA A ópera é um gênero que combina praticamente todas as manifestações artísticas. Além de combinar a música instrumental com a vocal em todos os sentidos (coro, solistas nas vozes soprano, contralto, tenor e baixo), temos nela inseridas as artes cênicas e também as artes visuais em toda a produção de cenários e figurinos, além das danças. Orfeu (1607) de Monteverdi foi provavelmente a primeira ópera a ser escrita. No século XVIII, a ópera foi evoluindo na complexidade dos enredos e na quantidade de segmentos. Neste gênero, um dos nomes que mais se destaca é o de Christoph Willibald Gluck (1714-1787), o qual se preocupou em romper padrões em que a ópera vinha sendo engessada. “Os cantores assumiram tamanha importância que a música frequentemente era composta mais para servi-los do que realmente às exigências do libreto” (BENNETT, 1986a, p. 53). Gluck começou a romper com este tipo de atitude. Sua ópera mais conhecida é Orfeu e Eurídice (1762), apresentada em Viena, e explana sobre a mesma lenda grega que inspirou Monteverdi em sua Orfeu, de 1607. Gluck impôs um novo ritmo no desenrolar de uma ópera: TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 61 A música teria de estar a serviço do enredo, refletindo o drama e a emoção da poesia. Não deveria haver tanta distinção entre ária e recitativo, e a ação teria de ser mais contínua, evitando-se interrupções apenas para atender às exigências dos cantores em termos de demonstração vocal. A escolha e o uso de instrumentos deveria ser de acordo com cada situação da história, e a abertura deveria preparar a plateia para a natureza do drama que se iria desenrolar (BENNETT, 1986b, p. 53). Se Gluck traçou as novas estruturas da ópera, Mozart a transformou pela criatividade dramática. O compositor soube com habilidade intercalar as árias com os diálogos em recitativos. Uma ária consiste em uma canção isolada, na qual normalmente os personagens da ópera demonstram seu caráter e auxiliam a desenvolver o enredo. Já o recitativo, por sua vez, é gênero vocal que dá ênfase ao texto falado, com acentuações rítmicas nas sílabas tônicas, em palavras-chave que o autor quer destacar. Normalmente estas ênfases são incrementadas por acordes da orquestra. A ópera pode apresentar temas diversos e assim possuir classificações. Na opera buffa, o enredo é cômico e de origem italiana. Normalmente tem curta duração, com no máximo três atos e textos recitativos. Já a ópera cômica vem da França, quase no mesmo formato que a opera buffa, com textos caracterizados em fantasias cômicas. A ópera de câmara possui um pequeno formato, acompanhada por uma pequena orquestra. Esta classificação operística sobreviveu até o século XX. A ópera semisséria é proveniente também da Itália, assim como a ópera séria, de origem napolitana, abordando temas trágicos e heroicos e caracteriza-se por uma oposição às óperas cômicas e populares de sua época. Além destas classificações operísticas, outras ainda variam neste repertório, como a ópera-balada, a ópera-balé, a ópera-oratório, a opera pasticcio e a opereta (DOURADO, 2004). 2.6 O CONCERTO Quando falamos de uma obra instrumental em que temos um solista com a parte principal e como destaque, na verdade estamos nos referindo a um concerto. Trata-se de um diálogo entre um único instrumento para com a orquestra em que esta conversa acontece em discursos individuais e simultâneos. Normalmente obedece a uma estrutura de três movimentos (moderadamente rápido – lento – rápido), correspondendo aos movimentos de uma sinfonia, porém, com a ausência do menuetto. A forma segue o padrão sonata, porém com alterações, com uma dupla exposição – a primeira delas feita pela orquestra, com um grupo de temas na tônica. Depois segue a segunda exposição com o instrumento solista, com temas mais completos e com variações. Ao final do desenvolvimento e a reexposição, acontece um momento muito interessante, que é a cadência, uma passagem na qual somente o solista toca, exibindo seu virtuosismo e técnica. Originalmente a cadência era feita conforme a vontade do intérprete e posteriormente passou a ser escrita pelo compositor e normalmente seu final é indicado por um trinado – a repetição constante e rápida de duas notas, indicando assim a resolução em que a orquestra retoma para o final (BENNETT, 1986a). 62 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) DICAS Procure ouvir pela internet o Concerto para Piano Nº 3, de Beethoven, assim como o Concerto para Trompa em Mi bemol Nº 3, de Mozart. Observe o contraste entre solista e orquestra, o material temático que aparece na orquestra e nos solos, assim como a riqueza na variação de timbres utilizados por Beethoven e Mozart. 3 ALÉM DOS GÊNEROS E FORMAS CLÁSSICAS O classicismo aprimorou e viu nascerem novas tendências de acordo com a estética de seu tempo. Para além dos gêneros e formas, instituições marcaram seu lugar nessa história, assim como o desenvolvimento da luteria, do aperfeiçoamento e a criação de instrumentos musicais, enriquecendo as possibilidades na expressão dramática. 3.1 MÚSICA PARA PIANO No classicismo, pela primeira vez na história da música, o tratamento instrumental passa a ter maior importância que a voz humana. Um dos instrumentos mais completos, por assim dizer, é o piano. Isto porque este instrumento tem o maior alcance de notas entre todos os outros, com a capacidade de tocar na mesma altura as notas mais graves do contrabaixo e subir até as notas mais agudas da flauta. Inventado na Itália por Bartolomeu Cristofori, no final do século XVII e início do século XVIII, este instrumento ficou conhecido por gravicembalo col piano i forte, ou seja, um cravo com fraco e forte. No cravo, as cordas são tangidas, “beliscadas” por um mecanismo acionado ao tocar suas teclas e, assim, possui apenas uma intensidade. No instrumento de Cristofori, as cordas são batidas por martelos e a intensidade varia de acordo com o grau de força empregado. Esta inovação abriu enormes possibilidades em termos de expressão musical, pois o instrumentista poderia também controlar a ligação entre as notas, resultando em uma articulação bem definida conforme a maneira de tocar. Somente ao final do século XVIII o cravo caiu em completo desuso e até este momento, as composições para teclados sugeriam ao intérprete que poderia tocar ou com o cravo ou com o piano forte. Em 1747, Johann Sebastian Bach aprovaria esta inovação e em vários países da Europa e também nos Estados Unidos o piano forte já era fabricado, sempre em busca de inovações em seus complexos mecanismos. Mozart escreveu 23 concertos para piano, enquanto que Beethoven seria um dos maiores adeptos deste instrumento. TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 63 3.2 A ESCOLA DE MANNHEIM A cidade de Mannheim, localizada na confluência dos rios Reno e Neckar, próxima a Heidelberg, foi palco de um intenso movimento musical envolvendo experiências inovadoras na área de interpretação musical, sobretudo, na música orquestral. O eleitor palatino Carl Theodor, que reinou em Mannheim de 1742 até o ano de 1778, contratou compositores para exercerem trabalhos com sua orquestra. Ali estavam reunidos competentes artistas, contratados por Johann Stamitz (1717-1757), entre eles, Cannabich, Fils, Toeschi, os próprios filhos de Stamitz, Fränzl, Wendling e os Lebrun. Os trabalhos de coordenação musical (kapellmeister) ficaram a cargo de Holzbauer, nos anos de 1753 até 1778 (SADIE, 1994). Nenhuma orquestra desta época na Europa reunia tantos talentos como a competência dos músicos da orquestra de Mannheim. Os aspectos concernentes à interpretação foram enriquecidos com efeitos até então nunca realizados, por exemplo, os efeitos de crescendo – quando uma frase musical passa a ser tocadade maneira mais forte, gradativamente (anotação “cresc.” na partitura) e os efeitos de decrescendo – diminuindo a intensidade (anotação “dim.” na partitura). Estes artifícios passaram a ser grafados nas partituras, onde até então a tradição rezava que tais efeitos estariam a critério dos próprios músicos intérpretes, já que o compositor não se preocupava com estes aspectos. Como já dissemos, a interpretação era muito livre e não havia regras estabelecidas neste sentido. Compositores como Wolfgang Amadeus Mozart estiveram em Mannheim e ficaram impressionados com a qualidade musical e tamanha técnica. Outro efeito consolidado na orquestra de Mannheim e que ficou igualmente famoso foi o “suspiro de Mannheim”, uma figura de Appoggiatura, atacando com uma nota dissonante (estranha ao acorde desejado) e resolvendo na nota de acorde. Da mesma forma, outro efeito foi o “foguete de Mannheim”, que consiste em arpejar (tocar as notas do acorde, uma após a outra) de forma ascendente. Não somente Mozart, mas outros compositores também foram influenciados pelas novas maneiras interpretativas da música instrumental, em especial nas inovações concernentes às sinfonias (SADIE, 1994). 3.3 A ORQUESTRA CLÁSSICA O nome de orquestra pode ser dado a qualquer formação de músicos instrumentistas, com um número considerável de integrantes. Normalmente este número pode variar de acordo com as necessidades impostas pelo compositor em sua determinada obra. Até os anos de 1750, as formações orquestrais possuíam muitas variantes. “A primeira grande orquestra de que se tem realmente notícia, formada por 33 músicos, é a que foi reunida para a execução da ópera Orfeu, de Monteverdi, em 1607” (MASSIN, 1997, p. 35). Não obstante, o grupo formado por Monteverdi era numeroso para a sua época, porém, carecia de homogeneidade. 64 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) Já no período clássico, você já viu que Haydn tinha uma pequena orquestra. No entanto, esta orquestra foi ampliada para 23 músicos nos tempos em que trabalhava para o príncipe Estherhazy – o que não era muito diferente da orquestra que Johann Sebastian Bach utilizou. Em outros lugares, como em Paris, no Concert Spirituel, entre os anos de 1770 a 1780, a orquestra teria de 60 a 80 músicos (MASSIN, 1997). Porém, não somente o número de integrantes da orquestra iria aumentar no classicismo, mas também as funções dos instrumentos de sopro, com papéis cada vez mais específicos, qualificando sua função que, a princípio, era a de promover a substituição do baixo contínuo. Mozart utilizou em sua Sinfonia nº 31, K 297, denominada Paris, 43 instrumentistas de cordas (11 primeiros violinos, 11 segundos violinos, seis violas, nove violoncelos e seis contrabaixos), 12 instrumentos de sopros (duas flautas, dois oboés, duas clarinetes, dois fagotes, duas trompas e dois trompetes), além de um par de tímpanos; totalizando assim 56 músicos na estreia em Paris, no ano de 1778. Se por um lado a orquestra começa a ganhar corpo com novos instrumentos em inéditas funções, também a interpretação começa a estabelecer-se conforme as exigências do compositor. No período barroco, o compositor deixava a cargo do intérprete a confiança de uma “boa” interpretação, o executante da música teria um papel central na interpretação musical. Até o final do século XVIII havia uma confiança entre o compositor e o intérprete, na aplicação das dinâmicas – o uso de passagens tocadas de maneira mais forte, ou mais fraca, passagens que vão crescendo ou diminuindo na intensidade. Os intérpretes, até o final do século XVIII, “pareciam essencialmente preocupados com o estado da linguagem musical, e não com a notação de suas técnicas” (MASSIN, 1997, p. 112). Assim, não seria uma preocupação para o compositor anotar todas as nuances de dinâmicas, pois muito deste quesito estaria na confiança de seus intérpretes. Com o aumento da complexidade das orquestras, sobretudo no final do século XVIII, os compositores começaram a se preocupar em anotar as dinâmicas desejadas. A liberdade do intérprete começa a diminuir e este passa a ser mais fiel às ideias do compositor. Esta é uma tendência que coincide com os primeiros passos acerca dos direitos morais do compositor sobre sua obra, algo que naquela época era carente de critérios. O classicismo musical não viu nenhuma lei que pudesse proteger os direitos autorais, pelo contrário, era atitude comum, como você já viu, mudanças a gosto do intérprete, seja no número de integrantes da orquestra, na substituição de instrumentos, na abstração e substituição de trechos e movimentos inteiros. TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 65 FIGURA 16 – ESTRUTURAÇÃO DA ORQUESTRA CLÁSSICA FONTE: O autor Atualmente, as orquestras, ao interpretarem obras do período clássico, buscam autenticidade também na quantidade de instrumentistas, para que a sonoridade fique mais próxima do que era feito na época. Por exemplo, a Sinfonia Praga, de Mozart, necessita duas flautas, significando que são duas vozes diferentes e, portanto, uma flauta para cada voz. Isto vale para todos os outros instrumentos de sopro e percussão, e assim teremos um tratamento quase como solista. Nas cordas sempre há a ideia de multiplicidade, para uma maior sonoridade. No entanto, diferente de hoje, Mozart orientava os executantes, em uma prática muito comum, pois nem sempre havia a disposição completa que determinada obra necessita. Mozart sugeria que “fosse dada aos executantes a faculdade de escolher entre tocá-los com a orquestra completa, em que se incluiriam oboé e trompa, ou somente a quatro” (MASSIN, 1997, p. 114). A maior preocupação dos compositores foi em escrever, registrar as autênticas e geniais ideias nas partituras. Ao que nossos estudos indicam até aqui, os três gênios vienenses sabiam que estariam sendo imortalizados por intermédio da sua arte, impressa em tantas partituras. Se havia dificuldade em termos de fidelidade em relação às performances de suas obras, se havia falta de valorização dos direitos do compositor, de certa forma, os três vienenses já imaginavam que chegaria o tempo em que estes obstáculos seriam superados. Não fosse essa superação, sua música não estaria tão presente nos ouvidos das pessoas, em todos os continentes. 66 UNIDADE 1 | CLASSICISMO (1750-1810) LEITURA COMPLEMENTAR UM “CASAMENTO DE MENDIGOS” Bauerlé também conta, em seu Diário, uma história engraçada, que remonta à sua infância, ilustrando a situação social das diversas “camadas” do povo vienense. Certo dia, indo com seu pai à cervejaria de Penzing, os dois foram surpreendidos pela animação do local, pela profusão de lustres que iluminavam a sala de jantar e pelo barulho provocado por uma orquestra. O pai de Bauerlé indagou ao dono do bar os grandes personagens que eram festejados e ele lhe respondeu que se tratava de um “casamento de mendigos”. Os pais da moça eram muito conhecidos na cidade, o pai mantinha o seu ponto principal na ponte de Pierre; chamava-se Duckerl; sua mulher pedia esmola em Burgtor e o negócio era tão lucrativo que viviam folgadamente, podendo até mesmo economizar algumas centenas de florins por ano; por isso, tinham condição de dar à filha um dote de milhares de florins e celebrar luxuosamente o seu casamento. Tinham escolhido a cervejaria Penzing, acrescentou o dono, porque eram muito conhecidos na cidade, onde não poderiam festejar, à vontade, sem despertar o espanto, a inveja e talvez o escândalo, embora o vienense não costumasse escandalizar-se com coisa alguma. No subúrbio, pelo contrário, nos albergues da floresta vienense, para onde se dirigiam de carruagem, ninguém os conhecia ou reconhecia, podendo festejar tranquilamente o casamento, como fidalgos, com acompanhamento de músicos e cantores. O pai de Bauerlé teve a curiosidade de perguntar sobre a qualificação dos jovens esposos: eles também exerciam a honrosa atividade de mendigos? Não exatamente, explicou o proprietário:a moça remexe o lixo que é deixado na rua e muitas vezes encontra um objeto precioso jogado fora por negligência, uma peça de ouro, uma colher de prata, até mesmo uma joia, sendo que esse trabalho lhe fornece os meios para viver folgadamente. O esposo, por sua vez, faz o comércio de ossos que recolhe dos restos de cozinha, vendendo-os aos fabricantes de botões. Não existe trabalho estúpido... Não se trata de uma brincadeira. O autor cômico Schildbach compôs uma peça intitulada O milionário, baseada no tema dos mendigos prósperos, que foi encenada centenas de vezes no teatro de Schickaneder, colaborador de Mozart em A flauta mágica, um dos mais originais e interessantes homens de teatro de Viena na época. O “desfecho” do espetáculo era o casamento dos mendigos numa taberna de subúrbio, representada ao natural, tal como Bauerlé assistira com seu pai. TÓPICO 3 | A PRODUÇÃO MUSICAL NO PERÍODO CLÁSSICO 67 Reichsl, por sua vez, no livro onde se encontra essa história, estabeleceu uma classificação curiosa dos mendigos vienenses e de sua hierarquia na ordem da mendicância; é evidente que Duckerl e a mulher pertenciam à categoria superior, isto é, aquela que tinha um ponto fixo, reconhecido e respeitado por todos; os pobres de categoria inferior recorriam à piedade dos transeuntes nas estradas, exibindo toda a espécie de chagas, reais ou inventadas, expostas de modo ostensivo. Alguns inventavam o ardil de enterrar as pernas num buraco cavado no chão; ao lado de falsos homens-troncos, que se lamentavam miseravelmente, ficava um garotinho chorão, correndo até às portas das carroças e diligências, importunando os viajantes até conseguir alguma coisa. FONTE: BRION, Marcel. Viena no tempo de Mozart e de Schubert. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 20 e 21. 68 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O gênero musical designa formas consolidadas de composição, como o rock e o jazz, o lírico ou o sinfônico. De maneira mais restrita, pode indicar uma variedade de estilos e correntes musicais que comungam de certa identidade entre si. • Quando falamos em gênero musical, nos referimos à estrutura externa de uma obra, enquanto que a forma musical irá tratar da estrutura interna dela. • Para compor uma obra, o músico utilizará recursos como repetição e contraste. Construirá suas melodias a partir de pequenas unidades, motivos musicais. A combinação destes motivos formará a melodia. • A altura das frases musicais será estabelecida conforme a tonalidade que o compositor escolherá. A junção das frases formará os períodos musicais. Nos finais das frases, o compositor utiliza o recurso harmônico chamado cadência. • A modulação é um recurso no qual o compositor pode transitar entre as tonalidades, dando ares de novidades em sua obra. • As suítes barrocas eram formadas por danças da corte, com andamentos preestabelecidos. Compostas na forma binária barroca, foram precursoras das formas do período clássico. A forma binária também é conhecida como forma AB. • Outra forma do barroco é a ternária ou forma ABA, que consiste em um episódio contrastante (B). • Na forma rondó, um tema é intercalado com temas contrastantes, resultando em um esquema ABACADA. • Dança de origem francesa e com três tempos por compasso, o minueto possuía uma segunda seção, intitulada Minueto II. No classicismo, o Minueto II passou a ser chamado de trio e sua interpretação passou a ser minueto-trio-minueto. • O gênero sonata refere-se a uma composição instrumental de três ou mais movimentos. Já a forma sonata refere-se à estrutura de cada movimento. Esta forma é a principal estrutura utilizada no classicismo. 69 • O quarteto de cordas é um gênero da música de câmara. Formado por apenas quatro instrumentistas (dois violinos, uma viola e um violoncelo), consolidou- se no classicismo por intermédio, principalmente, de Joseph Haydn, seguido por Mozart. • Derivada da abertura italiana barroca, a sinfonia clássica foi um grande gênero da música instrumental. Normalmente, é formada por três, quatro ou mais movimentos, em que o primeiro está bem estruturado na forma sonata. Em seguida, um movimento mais lento, o terceiro, normalmente, um minueto, e o último sempre em andamento muito rápido. • A ópera é um gênero que combina praticamente todas as manifestações artísticas. Além de combinar a música instrumental com a vocal em todos os sentidos, temos nela inseridas as artes cênicas e também as artes visuais em toda a produção de cenários e figurinos, além das danças. • A ópera pode apresentar temas diversos e assim possuir classificações. Existem ainda as que possuem enredo cômico, como a opera buffa e a ópera cômica. A ópera de câmara possui um pequeno formato e a ópera semisséria é proveniente também da Itália, assim como a ópera séria, de origem napolitana, abordando temas trágicos e heroicos. Além destas, temos a ópera-balada, a ópera-balé, a ópera-oratório, a opera pasticcio e a opereta. • O concerto é uma obra instrumental para um instrumento solista com acompanhamento da orquestra. No classicismo, os compositores utilizaram a forma sonata e a adaptaram para o concerto. • Em Mannheim, na Alemanha, um grupo de compositores realizou inovações em sua escola no que diz respeito à interpretação instrumental. Artifícios como crescendo e diminuendo passaram a ser grafados nas partituras. • Outro efeito consolidado na orquestra de Mannheim e que ficou igualmente famoso foi o “suspiro de Mannheim”, uma figura de Appoggiatura, atacando com uma nota dissonante (estranha ao acorde desejado) e resolvendo na nota de acorde. Da mesma forma, outro efeito foi o “foguete de Mannheim”, que consiste em arpejar (tocar as notas do acorde, uma após a outra) de forma ascendente. • No classicismo, o tamanho das orquestras variou entre 15 a 20 integrantes e, no último quarto do século XVIII, algumas orquestras já contavam com um efetivo de 60 a 70 músicos. 70 1 Uma das características mais importantes do período clássico é a valorização da frase periódica combinando a expressão dramática. Esta nova maneira de pensar a música também levou os compositores a expandirem as formas musicais tradicionais do período barroco em favor de um estilo que valoriza o sentimento, o subjetivismo. Nas obras-primas da música clássica se observa o equilíbrio de contrastes, o discurso harmônico coerente e a unidade temática que gera a identidade, culminando assim em uma música não nacionalista, mas de caráter cosmopolita. Com base nesta exposição, numere a coluna da direita de acordo com os elementos musicais da coluna da esquerda: (01) Prelúdio ( ) Compositor da ópera Idomeneu. (02) Forma sonata ( ) Obra instrumental com solista e orquestra. (03) Ópera buffa ( ) Compositor do Quarteto de Cordas A Cotovia. (04) Wolfgang A. Mozart ( ) Abertura da Suíte Barroca. (05) Crescendo e diminuendo ( ) Exposição, desenvolvimento e reexposição. (06) Concerto ( ) Compositor da ópera Orfeu e Eurídice. (07) Joseh Haydn ( ) É considerada uma forma “sanduíche”. (08) Forma ternária ABA ( ) Escola de Mannheim. (09) Christoph W. Gluck ( ) Uma seção principal que intercala seções contrastantes. (10) Forma rondó ( ) Ópera de origem italiana, de curta duração. 2 Para elaborar uma obra musical, o compositor pode a princípio ter em mente alguma melodia, mas para começar a estruturá-la, terá que pensar em dois aspectos: no gênero e na forma. Trata-se de um plano geral da obra e isto vai determinar o tipo de música que será a composição final. Dourado nos explica que a forma é a “estrutura ou plano musical de uma composição. Princípio de organização de uma obra em seus elementos musicais, como tonalidade, tema, repetições, variações. Designa, de modo específico, a organização dos elementos de construção de sonatas ou rondós, por exemplo” (2004, p. 137). Assim,assinale a alternativa correta que compreende alguns dos recursos de composição: a) ( ) Repetição e contraste, tonalidade, lírico ou sobrenatural. b) ( ) Frases e semifrases, temas e variações, improvisação. c) ( ) Tonalidade, tema e sarabande, frases e modulação. d) ( ) Repetição e contraste, frases, a capella ou apenas vozes. e) ( ) Repetição e contraste, tonalidade, frases e modulação. AUTOATIVIDADE 71 3 Até os anos de 1750 as formações orquestrais possuíam muitas variantes. “A primeira grande orquestra de que se tem realmente notícia, formada por 33 músicos, é a que foi reunida para a execução da ópera Orfeu, de Monteverdi, em 1607” (MASSIN, 1997, p. 35). Haydn tinha uma pequena orquestra que foi ampliada para 23 músicos nos tempos em que trabalhava para o príncipe Estherhazy – o que não era muito diferente da orquestra que Johann Sebastian Bach utilizou. Mozart, por sua vez, foi um mestre em orquestração, enriquecendo a sonoridade da orquestra com os mais variados timbres. De acordo com o enunciado, assinale a alternativa que compreende alguns dos instrumentas utilizados por Mozart em suas sinfonias: a) ( ) Oboés, fagotes, saxofones, trompas e cordas. b) ( ) Flautas, oboés, fagotes, clarone e cordas. c) ( ) Flautas, oboés, fagote e contrafagote, cordas. d) ( ) Oboés, trompetes, trompas, tímpanos e cordas. e) ( ) Flautas, oboés, recitativos, trompas e cordas. 72 73 UNIDADE 2 ROMANTISMO (1810-1900) OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar os fatores que contribuíram para que a música tomasse um significado que fosse de acordo com as tendências estéticas do pensa- mento romântico; • compreender que o conjunto da obra de alguns compositores ajudou e in- fluenciou o desenvolvimento da música através das décadas posteriores; • reconhecer as obras e a vida de compositores do século XIX, dentro do seu contexto e as influências que constituem o pensamento romântico e pós-romântico. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – A ESTÉTICA ROMÂNTICA TÓPICO 2 – UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES TÓPICO 3 – A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 74 75 TÓPICO 1 A ESTÉTICA ROMÂNTICA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O romantismo foi um movimento artístico, político e literário. As ideias consideradas românticas começaram a aparecer sobretudo na literatura europeia, ao final do século XVIII, em um primeiro momento na Inglaterra e posteriormente em Paris e na Alemanha. Após os eventos da Revolução Francesa (1789-1799), o sentimento patriótico começa a eclodir nas manifestações artísticas, e na música este movimento não seria diferente. O termo romantismo se refere a “romanesco, imaginoso, misterioso e fantasioso; na música, aplica-se (como na literatura e na pintura) a obras em que a fantasia e a imaginação são, por si mesmas, mais importantes do que aspectos clássicos como equilíbrio, moderação e bom gosto” (SADIE, 1994, p. 795). Como já vimos os períodos da história da música, não há data precisa de início e término, o que acontece são transições que levam até décadas para que os ideais estéticos de uma época se consolidem nas belas artes. Assim, o período romântico da música tem seu início transitando no final do século XVIII e início do século XIX e se esgota aproximadamente na década de 1910. 2 O CONTEXTO DA MÚSICA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX As ideias românticas encontrariam pleno desenvolvimento no início do século XIX, que configurou o cenário ideal, pois havia um público mais numeroso e formado, em sua maioria, pela burguesia. Por este motivo, alguns pensadores classificam todo o período clássico como uma ponte entre o barroco e o romântico, visto que o período clássico da música é relativamente curto em comparação aos demais. Os patronos e mecenas deram lugar aos empresários da música e também os próprios músicos instrumentistas se organizavam em concertos públicos. Teatros e casas de ópera em Munique e Dresden, que anteriormente recebiam concertos exclusivos da corte, agora recebiam todo tipo de concerto UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 76 público (MASSIN, 1997). No que diz respeito a esta nova filosofia da música, podemos dizer que o pensamento romântico é baseado em inquietação e angústia, provenientes do conflito entre as leis da sociedade e as aspirações do indivíduo. Esta inquietação e angústia, por sua vez, tem origem na busca do ideal e as manifestações artísticas se mostrarão ineficientes para transmitir algo que só é possível no plano das ideias. Ao longo de todo nosso texto, procuramos indicar algumas performances para que você aprecie no portal Youtube. Estamos citando as obras mais significativas de cada compositor, e mesmo assim, como você já percebeu, já configura um número muito grande de obras. Assim, sugerimos que você amplie seu repertório além de nossas sugestões, procurando apreciar (no portal Youtube) também as obras presentes em nosso texto, que estão sempre destacadas em itálico. IMPORTANT E O filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805) já assinalava que “o que deve ser apresentado tem de surgir livre e vitorioso do elemento de apresentação e, apesar de todos os grilhões da linguagem, estar presente em toda a sua verdade, vivacidade e personalidade diante da imaginação” (SCHILLER, 2002, p. 118). O que o filósofo quer dizer é que a obra de arte – música, artes plásticas e todas as belas artes – necessita como quesito estético a superação da forma de sua apresentação, deve transcender as palavras de um poema, precisa ir além das notas musicais lidas na partitura. Enquanto que no classicismo o equilíbrio, o bom senso e a ponderação seriam as principais características, na música romântica elementos fantasiosos e misteriosos começam a ter destaque. O artista começa a buscar o incomunicável na sua produção baseado em sentimentos como fé, sonho e fantasia, em oposição às formas clássicas que primam pelo equilíbrio. Assim, o romantismo representa uma ruptura incisiva com as técnicas e estilos do classicismo que entrariam em certo colapso no desgaste da concepção iluminista da música (SALVAT, 1984). As concepções estéticas no classicismo cerceavam a poesia como a “filha dócil” da música, segundo o próprio Mozart, enquanto que a concepção iluminista tratava a música como uma arte que carecia de expressividade verbal. Os românticos inverteram este conceito, na ideia de que justamente pela música carecer de expressividade verbal, é que reside sua qualidade assemântica. Ou seja, na concepção romântica, a música expressa o que não pode ser explicado em palavras e isto seria um sinal de honra (SALVAT, 1984). Enquanto que a concepção iluminista trata a arte como imitação da natureza, o romantismo do século XIX enxerga a natureza sob as lentes do artista, condicionada à sua imaginação e fantasia. TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 77 2.1 EFEITOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA E INVASÕES NAPOLEÔNICAS A situação social e política não seria mais a mesma após os eventos da Revolução Francesa (1789-1799), influenciando o desenvolvimento no mundo ocidental. A participação política das classes populares intensificou-se e, apesar dos ideais iniciais da revolução - liberdade, igualdade e fraternidade -, os anos que se seguiram foram de terror. Instaurou-se uma desconfiança política que levou à decapitação de muitos nobres e até mesmo de pessoas que eram a favor da revolução. Um dos costumes que caiu em desuso após a revolução você pode perceber no uso das perucas. Símbolo de nobreza, ostentavam o luxo e ampliavam as diferenças sociais e que, no entanto, eram apreciadas pela sociedade de maneira geral, como você pode conferir nas figuras 3, 5, 6, 7 e 8 da Unidade 1 deste livro didático. As decapitações de muitos nobres ocorridas na França põem um fim nesse costume. Toda a instabilidadee desconfiança política que havia na administração da França culminaram com a ascensão de uma personalidade militar: Napoleão Bonaparte (1769-1821). Os anos pós-revolução mostram um golpe de Estado promovido por Napoleão, que seguiu promovendo invasões militares até mesmo além da Europa. Não obstante, Napoleão tinha adoração pela música, especialmente a música da Revolução Francesa, razão pela qual protegeu seus compositores. Durante seus anos de poder, preferiu a música militar de seu Império, que se destaca pela beleza. A ópera também teve seu lugar na apreciação de Napoleão, sobretudo a italiana, devido à sua ascendência. O imperador francês sabia do poder e influência que a música exerce: De todas as belas-artes, a música é a que mais influência tem sobre as paixões e aquela que mais deve ser incentivada pelo legislador. Uma peça de música moral, composta por mão de mestre, toca infalivelmente o sentimento e tem muito mais influência que um bom tratado de moral que convence a razão sem influir em nossos costumes (Carta de Napoleão aos inspetores do Conservatoire de Musique) (MASSIN, 1997, p. 595). Entretanto, a produção musical do império napoleônico logo se confundiu com a produção musical da Europa, mas os importantes e catastróficos eventos da revolução e também os da pós-revolução influenciaram os sistemas políticos em todo o mundo e, assim também, o desenvolvimento estético das belas artes. No período em que a Revolução se instaurou, o trono da Áustria era ocupado por Francisco II, que demonstrava uma postura dura e severa contra a liberdade, declarando guerra à França. Francisco II chegou a proibir apresentações de A Flauta Mágica, suspeitando que elementos revolucionários estariam presentes sutilmente na simbologia maçônica. No entanto, os vienenses se adaptaram à severidade do regime político de Francisco II, que, sob a névoa dos conflitos com a França, tinha seus problemas internos fora das atenções. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 78 Em 13 de novembro de 1805, as tropas de Napoleão invadiram Viena, trazendo crise econômica. Coincide com as apresentações da ópera de Beethoven, Fidelio, em que os teatros estavam com a audiência praticamente formada por soldados franceses. Idas e vindas das tropas francesas à capital austríaca, novamente, em 1809 os vienenses viram os franceses às suas portas. “O velho Joseph Haydn podia, de sua casa em Gumpendorf, ouvir o troar dos canhões” (SALVAT, 1984, p. 94). Em 1812 as tropas de Napoleão começaram a se retirar de Moscou e em 11 de abril de 1814 Napoleão abdicou. E assim foram abertas as portas para o Congresso de Viena onde, na capital austríaca, mais de cem mil estrangeiros estiveram lá para as assembleias internacionais. Governantes de vários países lá estiveram para traçar os novos rumos da Europa e a obra escolhida para a abertura do célebre acontecimento foi Fidelio, de Beethoven. O Congresso de Viena foi presidido por Klemens Wenzel von Metternich (1773-1859), estadista do Império Austríaco, que procurava manter o controle das decisões, desviando a atenção de seus participantes. Uma nova era de festejos começava, o espetáculo dos fogos de artifício e os bailes populares. Nestas festas ao ar livre o minueto já se mostrava antiquado e os vienenses mergulharam no ritmo em compasso ¾, assim como o minueto, mas agora com a valsa. Napoleão, no entanto, não se deu por vencido e reaparece na França em março de 1815 no chamado Império dos cem dias. Porém, em junho do mesmo ano, na Batalha de Waterloo, Napoleão foi definitivamente aniquilado, garantindo a Francisco II o ápice do seu prestígio. Viena seguiu na sua velha rotina cosmopolita: “enquanto um austríaco puder consumir cerveja e salsichas, não haverá revolução”, alfinetava Beethoven (SALVAT, 1984, p. 96). 2.2 CARACTERÍSTICAS DA MÚSICA ROMÂNTICA Uma obra literária que influenciou profundamente os compositores com os ideais românticos foi o texto do escritor alemão Johann Goethe, Fausto, publicado definitivamente em 1808. A obra trata da busca do significado da vida e é baseado em uma lenda medieval. “A busca de Fausto pela imortalidade e pela experiência sensual transcendente, levando-o a misturar-se com as forças da escuridão, tipificam algumas tendências do primeiro romantismo” (SADIE, 1994, p. 795). Assim, os compositores começavam a transitar em âmbitos transcendentais na concepção da obra musical. TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 79 Procure se inteirar sobre a obra de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Fausto. Escrita em forma de peça de teatro, é considerada uma das obras literárias mais importantes da Alemanha, influenciando profundamente os compositores desde sua publicação, como você verá no decorrer do nosso texto. É fundamental que você conheça um pouco mais acerca desta obra, pois assim compreenderá um pouco mais sobre os conceitos românticos do século XIX. Você pode encontrar resenhas da obra no portal Youtube ou mesmo encontrar nas livrarias. IMPORTANT E As formas musicais passam por desenvolvimentos para uma adequação aos novos sentimentos e também são criados novos gêneros, como o poema sinfônico e o noturno. Como veremos mais adiante, o poema sinfônico trata- se de uma obra orquestral inspirada em alguma história ou mesmo retratando algum fundo literário. No entanto, a expressão romântica encontrou seu lugar não somente na composição, mas também na figura do intérprete. Músicos como o pianista polonês e compositor Fréderic Chopin (1810-1849) e o também pianista húngaro Franz Liszt (1811-1886), que se tornaram célebres em toda a Europa pela virtuosidade, apresentando um brilhantismo heroico (SADIE, 1994). Da mesma forma, o violinista e compositor italiano Niccolò Paganini (1782-1840) foi um grande virtuose, que revolucionou a maneira de tocar violino (BENNETT, 1986b). É importante ressaltar que o sentimento romântico carrega em si um sentimento nacionalista, a valorização das lendas nacionais e seus heróis, e desta forma, os músicos virtuoses passariam a ser vistos como uma espécie de heróis nacionais. Tal sentimento promove a valorização da música folclórica, rica em subjetividade e identidade de suas comunidades, em vários países europeus, que no início do século XIX já alcançavam maturidade e, por vezes, independência política. Assim, os compositores voltavam às suas raízes, evocando os próprios sentimentos nacionalistas. Da mesma forma, o movimento da musicologia desperta para a restauração de obras de compositores que já começavam a ser esquecidos, como Johann Sebastian Bach, Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594) e Heinrich Schütz (1585-1672). O romantismo contribuiu para uma diferenciação mais ampla entre os estilos subjetivos de cada compositor. Com o nascimento de escolas nacionalistas, além do surgimento de compositores de diversos países, como Polônia, Rússia, Croácia, Dinamarca, Suécia, Noruega, Espanha e Hungria, a diversidade já ocupava o lugar da homogeneidade da música clássica. Se de um lado o pensamento cosmopolita alicerçou o pensamento do período clássico, o romantismo acentuou as diferenças para a valorização da identidade, da cultura subjetiva das comunidades. Esta é uma das características do compositor romântico: individualismo e revolta contra a sociedade (MASSIN, 1997). UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 80 A atividade autônoma do compositor demonstra seus primeiros passos no início do século XIX. Os compositores necessitavam de tempo para registrar sua arte nas partituras, mas dependiam do meio social no qual estavam inseridos. Frequentemente compunham uma música “comercial” para sua própria sobrevivência, dividindo este tempo que definitivamente era a contragosto, com suas mais altas pretensões artísticas (que estavam além das exigências do público). Este desconforto era comum na vida dos compositores: por vezes havia a valorização e, por outras, uma espécie de marginalização. Beethoven, por outro lado, elevou sua atividadeao nível de profissão missionária e “conseguiu uma forma de distanciamento social de sua época que lhe permitiu consagrar-se inteiramente e sem interferências externas à arte, que, por sinal, não concebia como um fim em si mesma” (MASSIN, 1997, p. 670). FIGURA 1 – PERSONALIDADES DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Da esquerda para a direita: Carl Maria von Weber, Niccolò Paganini, o crítico Eduard Hanslick, o Imperador da Áustria Francisco II com Napoleão, antes da batalha de Austerlitz. FONTE: <https://goo.gl/LoKj3F>; <https://goo.gl/YKzTBP >; <https://goo.gl/RSCLwr>; <https://goo.gl/KvzKLK>. Acesso em: 17 dez. 2018. TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 81 Os compositores românticos nascidos ao final do século XVIII e início do século XIX eram leitores por hábito e cultivavam interesse pelas artes plásticas. Compositores, pintores e poetas mantinham relações de amizade, resultando em obras musicais inspiradas em telas, em poemas e contos, traduzidos em fantasia e imaginação, contos de fada, mistérios, magia e um encanto pelo sobrenatural. Tais elementos podem ser encontrados na primeira e significativa ópera do período romântico da música: Der Freischütz (O Franco-atirador), do alemão Carl Maria von Weber (1786-1826). A obra “baseia-se em um conto fantástico alemão, sobre um caçador que fica de posse de sete balas mágicas. As seis primeiras balas atingem qualquer alvo que ele deseje, mas a sétima fica por conta do diabo” (BENNETT, 1986b, p. 58). DICAS Ouça no Youtube esta obra de Weber, especialmente o final do segundo ato, a cena da “grota do lobo”. Pesquise por “der freischütz wolf's glen scene” e perceba o nível de tensão que o compositor imprime na música, levando o ouvinte a uma atmosfera sinistra. Weber utiliza tonalidade menor, o que por si já evoca ares mais dramáticos e várias passagens com trêmolos nas cordas, que remetem a calafrios. Sem dúvida, os compositores e virtuoses gozavam de prestígio, pois a demanda artística proporcionava condições favoráveis. Sociedades e instituições de músicos foram criadas, de maneira democrática, envolvendo integrantes de várias camadas sociais. Tamanho era o movimento, que gerou desconfianças pelas autoridades na Áustria, por exemplo, fazendo com que estas sociedades trabalhassem sob censura e sob vigia. Não obstante, os concertos públicos promovidos por tais entidades recebiam milhares de pessoas em grandes salas de concerto (MASSIN, 1997). Como você já viu, acadêmico, no século XVIII, a simples presença em uma sala de concerto trazia consigo um status de nobreza, pois ser visto nestes locais trazia uma afirmação social. Esta herança cultural tomou grandes dimensões na primeira metade do século XIX, que também para os músicos, tornou-se uma espécie de afirmação profissional, e a sociedade, de maneira geral, usou este tipo de evento para os mais diversos fins sociais, além de sua finalidade estética em si. Esta organização da classe musical em si, culminou com a criação de importantes orquestras, ativas até mesmo em nossos tempos. As sociedades de orquestras sinfônicas ou filarmônicas ocupam até hoje um lugar de grande prestígio não somente no meio musical, mas também em todo o âmbito cultural e político. Orquestras como do “Gewandhaus de Leipzig que, sob a direção de Mendelssohn entre 1835 e 1847, tornou-se uma das primeiras da Europa. Até o século XX, ela continuou a ter à frente regentes da categoria de Nikisch e Furtwängler” (MASSIN, 1997, p. 663). UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 82 O período romântico da música marca o nascimento de uma cultura musical de massa, pois tamanha procura pelas salas de concerto gerou oferta de trabalho para todos os gostos e rapidamente essas diferenças se manifestariam. De um lado, era crescente a procura por uma música que servisse como puro entretenimento, mais acessível e superficial, com a finalidade de aliviar o estresse do dia a dia. Neste viés, a maioria dos compositores e editores seguiu em busca da valorização de um novo e fácil comércio. Por outro lado, uma tendência mais exigente e aprimorada seguia alicerçando suas composições ao passado, seguidos por um público mais restrito e exigente. Logo surgiram os termos “música ligeira” para a música popular e comercial e, por outro lado, a “música séria e erudita”. Este comércio, tanto da música popular quanto da música séria, impulsionou a atividade crítica musical. No período clássico, os críticos caracterizavam-se por serem músicos experientes e teóricos. Na primeira metade do século XIX, a atividade crítica era exercida principalmente em jornais, também por músicos, compositores experientes como Hector Berlioz (1803-1869) e Robert Schumann (1810-1856), como também pessoas competentes na área da música buscavam expor suas concepções. Enfim, todos queriam manifestar sua opinião sobre música. Em Paris, surgiu uma nova forma de crítica, que alcançou grande popularidade: o folhetim, com críticas, resumos e informações sobre todo tipo de música (MASSIN, 1997). Uma das obras de maior destaque, que reflete uma das correntes do pensamento romântico do século XIX, são os textos de Eduard Hanslick (1825-1904), Do Belo Musical, publicado em 1854. Crítico musical famoso e polêmico em Viena, Hanslick foi influenciado pela filosofia de Kant e Hegel e defende que a beleza da música reside unicamente na contemplação pura da forma e não nos sentimentos do compositor ou do ouvinte. Estas concepções filosóficas musicais encontraram forte oposição em compositores como Richard Wagner e Franz Liszt. Você poderá desfrutar um pouco do conteúdo Do Belo Musical na leitura complementar desta unidade. 2.3 O PARADOXO ROMÂNTICO, A AUSÊNCIA DA MELODIA No romantismo, algumas questões da filosofia da música seriam atenuadas, como a experiência estética da imaginação na contemplação da obra de arte. Sabe-se que, segundo Schiller, o belo se dá na contemplação e na concordância entre a razão e o sentimento, em que a imaginação tem papel importante, criando vínculos da obra de arte em questão com os nossos próprios sentimentos que nos remetem ao objeto. “Há detalhes musicais que não podem ser ouvidos, mas apenas imaginados, e, mesmo, certos aspectos da forma musical que não podem ser colocados em som, mesmo que através da imaginação” (ROSEN, 2000, p. 25). Como já dissemos, a imaginação e a fantasia seriam uma constante na música romântica. TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 83 Beethoven tornou-se um mestre neste sentido: entendeu o sentido entre ideia e realização, do que se pode escrever e o que se pode imaginar, e este fenômeno está mais fortemente presente na música para piano. Da mesma forma, o compositor Robert Schumann (1810-1856) utilizou o conceito de uma melodia inaudível, a qual pode-se apenas imaginar e, por vezes, não está na partitura. No classicismo, a melodia está completamente presente ou, nos casos mais raros, perfeitamente audível, mas no romantismo, o conceito de uma melodia inaudível – apenas imaginada pelo ouvinte ou pelo intérprete seria objeto de experiências pelos compositores. Um dos exemplos mais impressionantes deste artifício encontramos na obra de Schumann, intitulada Humoreske Opus 20, escrita em 1839 e em sete movimentos, alternando a tonalidade de Si bemol maior para sua tonalidade relativa, Sol menor (ROSEN, 2000). Schumann foi um mestre em ocultar melodias e sugerir sutilezas fantasiosas ao ouvinte. Assim como Franz Liszt (1811-1886), na obra pianística de Schumann a sonoridade tem uma importância tão grande, ao ponto de interferir na forma. Em alguns casos, a partitura pode indicar uma sequência AA-BA-BA-BA, como pode ser visto na obra Carnaval – Eusebius, de Schumann: O que se escuta, o que se sente, na verdade é uma forma simples ABA, que não tem relação com a melodia. É a primeira vez que o timbre interferiria na forma musical. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 84 FIGURA 2 – HUMORESKE – HASTIG, DE ROBERT SCHUMANN FONTE: <https://imslp.org/wiki/Humoreske%2C_Op.20_(Schumann%2C_Robert)>.Acesso em: 12 dez. 2018. TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 85 No segundo movimento de Humoreske Opus 20, denominado “Hastig”, Schumann coloca três pentagramas: clave de sol para a mão direita e mais dois pentagramas na clave de fá, para serem tocados na mão esquerda. Como você pode ver na figura anterior, o pentagrama do meio possui uma melodia (uma escrita bem diferente dos outros pentagramas), no qual está assinalado a instrução “innere Stimme”, ou seja, “voz interior”. Trata-se de uma parte que não é para ser tocada e, ao ouvir este trecho, temos a sensação de um eco de uma voz que não existe, uma sombra de melodia, algo que nos faz refletir, imaginando que algo a mais está presente, mas que ao mesmo tempo é inaudível. Procure ouvir este movimento de Humoreske – Hastig, de Schumann e tente perceber o fenômeno. 2.4 BEETHOVEN: TRANSIÇÃO PARA O ROMANTISMO Em 2 de abril de 1800, Viena ouviu a primeira interpretação da Primeira Sinfonia de Beethoven, obra escrita em quatro movimentos e que apresenta todas as características da música clássica. Beethoven, com 29 anos, já estava em alto grau de surdez e este mal tornou-se pior com o tempo. Em 1802 ele foi aconselhado a repousar no campo, para poupar seus frágeis ouvidos, e lá se estabeleceu em um período de seis meses, marcados por momentos de desespero. Em suas caminhadas pelo campo, percebeu que não podia mais ouvir os sons dos bosques, o canto dos pássaros, e tal percepção o levou a pensamentos como o suicídio. Beethoven relata em seu diário que “foi a arte, e apenas ela, que me reteve. Ah, parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado tudo o que ainda germinava em mim! Divindade, tu vês do alto o fundo de mim mesmo, sabes que o amor pela humanidade e o desejo de fazer o bem habitam-me” (MASSIN, 1997, p. 607). FIGURA 3 – EQUIPAMENTOS DE ESCUTA DE BEETHOVEN, DEDICATÓRIA A NAPOLEÃO RASURADA NA SINFONIA Nº 3 E NAPOLEÃO BONAPARTE FONTES: <https://slideplayer.com/slide/8789679/Beethoven>, <https://www.metropolitana.pt/ Default.aspx?ID=5811>; <https://seuhistory.com/hoje-na-historia/nasce-napoleao-bonaparte- militar-e-imperador-da-franca>. Acesso em: 13 dez. 2018. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 86 Neste momento de sua vida, Beethoven revelou a um amigo que não estava satisfeito com a obra dele, manifestando a vontade de ousar em caminhos da composição até então não trilhados. Assim, os primeiros esboços de sua Sinfonia nº 3, intitulada Heroica, são escritos. Se, por um lado, o talento de Beethoven como virtuose ao piano mostrava-se limitado (ou melhor, definitivamente encerrado) em virtude de sua surdez, o campo da composição estaria como uma imposição, sua única alternativa de esperança, ainda que necessitasse de uma série de apetrechos para tentar ouvir o mínimo de som do piano (figura anterior). Aprisionado em seu eu interior, Beethoven tornou-se um compositor excluído do mundo dos sons, percebendo somente a complexa rede de encadeamentos de acordes dentro de si. Ironicamente, obras musicais da maior grandiosidade da música foram escritas quando Beethoven estava quase completamente surdo e, assim, nunca ouviu suas obras finais. Mozart escreveu pouco mais de 40 sinfonias (visto sua morte prematura), enquanto que em Haydn, nos seus 77 anos, podemos encontrar 104 sinfonias. Beethoven, em seus 57, escreveu apenas nove sinfonias. Existem teorias acerca destes números, a mais coerente parece ser a de que sua surdez tornou lento o processo de criação e registro em partituras. O compositor de Bonn concluiu sua grandiosa terceira sinfonia em meados de 1804 e seu título era Sinfonia Bonaparte, obviamente dedicada aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, na figura de seu maior expoente até então, Napoleão. Nesta obra, Beethoven expande a forma sonata de maneira grandiosa. São quatro movimentos: I – Allegro com brio, II – Marcia fúnebre: Adagio assai, III – Scherzo: Allegro vivace e IV – Finale: Allegro molto. Beethoven intencionava viajar a Paris, com sua sinfonia finalizada. Mas rasgou a folha em que estava escrito o título primitivo quando soube que se tornara imperador aquele que o compositor ainda considerava como o herói da República. Beethoven quisera, nessa obra, exaltar o arrebatamento vitorioso e o novo futuro humano que a Revolução inaugurava a seus olhos, e por isso construiu o finale a partir de um tema que evocava o mito de Prometeu. Preferiu permanecer fiel ao espírito revolucionário de Prometeu a associar sua sinfonia à glória tirânica de Napoleão (MASSIN, 1997, p. 608). Posteriormente, nos anos de 1805 e 1806, Beethoven apresentou a sua única ópera, intitulada Fidelio, introduzindo não uma, mas três aberturas sucessivas. Esta ópera trata de amor conjugal e a paixão pela liberdade, aspirações de Beethoven. A sua Quinta Sinfonia (1808) se tornou mundialmente popular, talvez um dos temas mais conhecidos da história da música. Observe a figura anterior e procure ouvir o primeiro movimento da 5ª Sinfonia: as quatro primeiras notas já apresentam o motivo principal da sinfonia, que nos remete a alguém batendo à porta. Talvez também por este motivo a 5ª Sinfonia seria conhecida como a Sinfonia do Destino que “bate à sua porta”. Ao analisar seu início, vemos que a melodia passa pelos instrumentos e você perceberá que existe uma fragmentação da mesma, ou seja, um único instrumento não comporta a sequência e sim, a melodia é construída como um quebra-cabeças no qual cada instrumento toca um motivo e esta sequência resultará no reconhecimento da melodia. Lembre-se TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 87 de que no período clássico a primazia pela melodia era um fator fundamental e, no romantismo, começa um fenômeno de fragmentação desta e até mesmo efeitos de ocultamento da melodia. Próprio do pensamento romântico, ocultar ou fragmentar uma melodia traz ares fantasiosos e distantes, excluindo a evidência e sugerindo subjetividades. FIGURA 4 – PRIMEIROS COMPASSOS DA 5ª SINFONIA DE BEETHOVEN FONTE: O autor Beethoven foi o primeiro compositor a utilizar o metrônomo em composições. Inventado por Johann N. Mälzel (1772-1838) baseado nas ideias de Winkel, o cronômetro musical foi utilizado por Beethoven em 1817 para assinalar a velocidade em que sua música deveria ser tocada, como você pode conferir na figura anterior, logo após a expressão Allegro com brio. IMPORTANT E Já falamos sobre o drama de Goethe, Egmont (1810), uma das grandes obras-primas musicalizadas por Beethoven, que remonta ao período em que o compositor criou grande inimizade pelo império napoleônico, ao mesmo tempo em que a Alemanha sofria com suas investidas militares. Beethoven sonhava com uma liberdade política e uma liberdade para a humanidade. Por outro lado, a introspecção seria uma qualidade do caráter de Beethoven e nessa solidão ele compôs obras singulares na história da música: “a Sonata Waldstein, a Sonata Apassionata, os três Quartetos Rasumovsky, os dois Trios Erdödy e o Quarteto nº 10” (MASSIN, 1997, p. 609), os quais representam um aprofundamento e expansão da forma musical resultando em liberdade com imaginação. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 88 No que diz respeito à personalidade de Beethoven, este sempre se mostrou rude e com dificuldades de socialização. Já escrevia em seus diários: “como pode uma pessoa integrar-se neste país? Os vienenses não têm coração. Não há um único homem honrado na decadência geral da Áustria!” (SALVAT, 1984, p. 37). No entanto, a sociedade vienense amava este compositor a ponto de nomeá-lo filho adotivo da cidade. Ao contrário de Mozart, Beethoven não enfrentou dificuldades financeiras, pois recebia inúmeras encomendas e sequer aceitava contratos, pois exigia o valor que considerava adequado. Outra consideração importante acerca da vida do compositor de Bonn é a sua relação com sua amada imortal. Os historiadores realizaram muitas pesquisas e se observou que Beethoven demonstrava desconfiança “a toda a tribode mulheres enganadoras” e ao mesmo tempo sempre mantinha algum caso amoroso com alguma mulher (SALVAT, 1984). Beethoven sonhava com uma vida conjugal, algo que nunca viveu. A “amada imortal” que Beethoven nunca nominou em suas cartas, provavelmente (segundo estudiosos) refere- se a Josephine von Brunswick, na famosa carta escrita em 6 de julho de 1812 e concluída na manhã seguinte: Meu anjo, meu outro eu, todo o meu mundo! Apenas umas palavras no dia de hoje, escritas a lápis (com o teu). O meu futuro só se decidirá amanhã. Por que esta pena profunda quando é a necessidade que ordena? Pode o nosso amor sobreviver sem sacrifício, se desejar tudo? O fato de a tua arte não ser inteiramente minha e de eu não ser totalmente teu pode ajudar o nosso amor? Volta os teus olhos para a natureza tão bela e não deixes que o teu destino perturbe a tua mente [...]. Continuas a ser a minha única verdade, o meu único amor, todo o meu eu como eu sou para ti. E assim será sempre; devemos deixar que os deuses nos enviem o que deve ser e o que será. Fielmente teu, Ludwig (SALVAT, 1984, p. 60). Em 1813, Beethoven adotou seu sobrinho Karl, tornando-se seu tutor. O pai de Karl, Kaspar van Beethoven, faleceu dois anos depois. Este caso rendeu muitas desavenças com a mãe, a viúva de Kaspar. Somente em 1820 sairia uma sentença definitiva na corte de Viena a favor de Ludwig. Nesta altura da vida, Beethoven estava precocemente envelhecido e totalmente surdo. Comunicava-se por intermédio de cadernos, nos quais seus interlocutores necessitavam escrever o diálogo e Beethoven respondia verbalmente ou por escrito, conforme seu ânimo. Em 1825, seu sobrinho Karl, com o qual Beethoven despendeu muitas de suas energias e finanças, rompeu com o tio de forma humilhante e recusou qualquer possibilidade de reencontro. Karl tentaria suicídio em 1826, com uma arma de fogo. Nas últimas obras que compôs, reside uma das mais grandiosas: a 9ª Sinfonia em ré menor, opus 125. Encomendada pela Royal Philharmonic Society de Londres em 1817, foi finalizada somente em 1824. Denominada Sinfonia Coral, as ideias para esta sinfonia remontam a 1793, quando o compositor tinha 23 anos, TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 89 ao ler a Ode à Alegria (An die Freude), do filósofo e poeta alemão Friedrich von Schiller. Este poema esteve sempre ecoando na mente de Beethoven e durante 20 anos ele procurou uma melodia adequada à grandiosidade do poema. No ano de 1823, enquanto a sua nona sinfonia ganhava corpo, lembrou do antigo sonho e, desse modo, a ode de Schiller ganhou sua forma monumental também na música. A 9º Sinfonia exalta a liberdade e a alegria e chega em um momento histórico propício, visto o final das guerras napoleônicas, repressão do imperador austríaco Francisco II e as atividades do Congresso de Viena. DICAS Aprecie o quarto movimento da 9ª Sinfonia de Beethoven, um excerto dos mais importantes do início da música romântica. Beethoven inova utilizando um grande coro neste movimento, além do uso dos trombones, eis que até então seu uso era limitado às cerimônias religiosas. Pesquise no YouTube por Beethoven Symphony No. 9 – Mvt. 4 – Barenboim/West-Eastern Divan Orchestra. A obra de Beethoven representa a transição do classicismo ao romantismo, marcando seu lugar na história, pois traçou o caminho por onde os compositores contemporâneos deveriam trilhar, fornecendo os elementos para o desenvolvimento da música para todo o século XIX. Beethoven ampliou a forma musical de maneira a proporcionar vastas possibilidades que seriam utilizadas posteriormente por Mahler, Schönberg e Stranvinsky nos decênios posteriores. Sua genialidade não residia na orquestração, nem na habilidade de equilibrar os instrumentos da orquestra. Neste quesito, Mozart e Haydn foram absolutamente geniais. Porém, no que se refere à forma musical, Beethoven ampliou ao máximo, esgotou as possibilidades e profetizou as futuras tendências. Nas mãos de Beethoven, a orquestra se tornou um veículo para ideias monumentais. Em março de 1827, redigiu uma carta de agradecimento à Royal Philharmonic Society de Londres, comprometendo-se em escrever uma 10ª Sinfonia. Porém, poucos dias depois, seu estado de saúde fragilizou-se severamente, perdendo a consciência. Beethoven faleceu na manhã de 26 de março, vítima de cirrose. Em seu quarto, perto de sua cama, estavam as cartas endereçadas à sua amada imortal, como um último suspiro. Seu funeral foi realizado em 29 de março, assistido pelo compositor Franz Schubert. Em 1888, os restos de Beethoven foram exumados e trasladados para o cemitério central de Viena, onde atualmente repousam, ao lado da tumba de Schubert, um admirador fervoroso. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 90 2.5 FRANZ SCHUBERT: O DESENVOLVIMENTO DO LIED ALEMÃO Franz Peter Schubert nasceu em Viena, em 31 de janeiro de 1797, cinco anos após a morte de Mozart. Assim como a grande maioria dos compositores, as aptidões musicais foram despertadas desde a primeira infância, não somente no canto em que participava como corista da capela da corte imperial, mas também no estudo de piano e violino, canto e harmonia. Schubert estudou composição com o grande mestre Antonio Salieri, nos anos de 1808 até 1813. No ano de 1814, já estava compondo música sob textos de Schiller e Metastasio, a sua primeira sinfonia, e mais tarde estaria escrevendo uma ópera (SADIE, 1994). Suas composições neste período mostram tendência para o canto, como em Erlkönig (Rei dos Álamos) e Gretchen am Spinnrade, famosas pelo tratamento musical nos textos de Goethe. Schubert desenvolveu um gênero musical que seria uma de suas marcas mais significativas: o lied (canção; lieder = canções). Segundo Bennett (1986b), há dois tipos de lieder: um deles consiste em repetir a mesma música em cada verso do poema, sendo chamado de lied estrófico, e também o que consiste em uma música diferente para cada verso, sendo chamado pelos alemães de durchkomponiert. Na segunda opção, o compositor está mais à vontade para adaptar a melodia à letra e também o caráter, de acordo com o texto. O interessante no lied é que o piano não é mero coadjuvante para a voz e, sim, possui a mesma importância, compartilhando a estrutura da música. O lied, no entanto, remonta ao século XV, normalmente em voz masculina. A partir de 1750, com a nova estética, os lieder já eram musicados com melodias simples, no âmbito folclórico, em um acompanhamento mais livre. Um dos compositores que se destaca neste período é Carl Philipp Emanuel Bach. Posteriormente, Reichardt e Zelter compuseram de maneira mais complexa, utilizando textos de Schiller e Goethe. O gênero alcançou grande desenvolvimento sobretudo com Mozart. Beethoven criou os primeiros lieder de acordo com a estética romântica. Schubert expandiria ao máximo a complexidade neste gênero, concretizando “uma identificação estreita entre poeta, personagem, situação e cantor, bem como a concentração de ideias líricas, dramáticas e pictóricas em um todo integrado, característica dos melhores lieder do século XIX” (SADIE, 1994, p. 536). Após Schubert, são raras as obras voltadas ao lied que alcançam tamanha qualidade como as do compositor vienense, e o principal herdeiro desta qualidade se dá na pessoa de Schumann. Assim como já descrevemos, Schubert não fugia à regra dos seus contemporâneos e mantinha estreita amizade com artistas de outras áreas, como o poeta Johann Mayrhofer e também com Josef von Spaun e o estudante de direito Franz von Schober. Com estes amigos, Schubert se reunia ao som de sua música de qualidade e, mais tarde, estes encontros tornaram-se célebres e conhecidos pela alcunha de Schubertíades, representando assim o fenômeno de uma classe média esclarecida. Suas composições em lied foram numerosas, assim como obras em outros gêneros. Schubert trabalhou também como professor de TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 91 música na família dos Esterházy, Johann – primo do protetor de Haydn.Datam deste período as obras Die Zwillingsbrüder e Die Zauberhärfe. DICAS Confira o lied Erlkönig, de Franz Schubert no Youtube, na seguinte versão, por meio do link: <https://youtu.be/JS91p-vmSf0>. Acesso em: 21 fev. 2019. O vídeo mostra a subjetividade fantasiosa, típica do movimento romântico. O compositor vienense musicou 84 textos de Goethe, pois mantinha uma grande admiração pelo poeta e filósofo. Goethe, no entanto, sequer respondeu aos pedidos de aceitar as dedicatórias que Schubert tencionava lhe colocar nestas publicações. Nos anos de 1820-21, Schubert já contava com o apoio de mecenas e novas amizades, o que lhe rendeu segurança para continuar a compor, conseguindo publicar suas canções. Trabalhou em parceria com Schober a ópera Alfonso und Estrella, ópera que não foi bem recebida na época, mas que foi uma de suas preferidas. Logo, em 1822, Schubert enfrentou dificuldades: alguns desentendimentos em suas amizades, problemas financeiros e de saúde (alguns historiadores falam que teria contraído sífilis), não obstante, suas composições alcançaram uma grande qualidade: compôs Fantasia Wanderer, para piano, e a famosa Oitava Sinfonia, a qual escreveu apenas os dois primeiros movimentos e não retornou mais a este projeto – assim esta obra ficou conhecida como Sinfonia Inacabada. Schubert também iria se aventurar em outros gêneros, como o Quarteto de Cordas em lá menor e ré menor, intitulados A morte e a donzela, além do Octeto para sopros e cordas (SADIE, 1994). FIGURA 5 – DA ESQUERDA PARA DIREITA, FRANZ SCHUBERT, ILUSTRAÇÃO DE ERLKÖNIG E O COMPOSITOR ITALIANO GIOACHINO ROSSINI FONTE: <https://goo.gl/mPwv4A>; <http://filmi-onlain.info/jpgepng-erlkonig.shtml>; <https://goo.gl/whSXKR>. Acesso em: 17 dez. 2018. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 92 Em 1817, Schubert passa a ter o apoio do prestigiado barítono Joahnn Michael Vogl (1768-1840). Vogl ficou impressionado pela qualidade e pela novidade de ter uma música essencialmente alemã e dali surgiu uma grande amizade. “Schubert encontrara, pela primeira vez, um cantor que compreendia as suas canções e via o modo mais lógico de as interpretar, identificando-as com o seu espírito e entendendo perfeitamente que cada poema musicado era um pequeno drama interiorizado, apesar de totalmente afastado do teatral” (SALVAT, 1984, p. 121). No ano seguinte, Schubert deixou Viena pela primeira vez, viajando para o castelo de Zseliz, uma localidade a 150 km de Viena, para lecionar música na família dos Estherházy. Os ares do campo fizeram muito bem a Schubert, que encontrou a tranquilidade e criatividade para compor. No entanto, não demorou a sentir falta da agitação dos centros de Viena e de seus amigos. Após quatro meses com os Estherházy, Schubert retornou a Viena para morar com seu amigo, o poeta Mayrhofer. Esta convivência rendeu o aprimoramento do compositor acerca da poesia e em 1819 musicou cinco poemas de seu amigo. Neste período, dedicava cerca de seis horas diárias para composição, levava uma vida tranquila, regada a vinho e cerveja, na boa conversa com os amigos. Schubert sofreu as desilusões amorosas: apaixonado pela soprano Therese Grob (seu primeiro amor), não pôde se casar com ela, devido à sua frágil situação financeira. Nesta época, ele também rompeu seus ensinamentos com o mestre Salieri, pelo fato de que seus estudos estavam engessados nos princípios da música italiana, alicerçada à estética classicista. Schubert estava em busca de uma estética essencialmente alemã. Therese, por sua vez, após três anos de espera, casou-se com um mestre padeiro, em 1820, para desilusão de Schubert. É um ano extremamente difícil para Schubert, também pela opressão do estadista Metternich, que censurava grande parte das manifestações artísticas, desconfiando de atitudes revolucionárias. Lembre-se, acadêmico, de que estes são os anos precedentes do Congresso de Viena, e o governo austríaco preocupou- se em impor a ordem e mantinha os vienenses sob vigilância. Havia agitação e revolta por parte da classe artística vienense: “conquanto em muitos casos permanecesse na sombra, a oposição ao regime ia se tornando cada vez mais clara, reclamando liberdades e direitos cívicos, ao mesmo tempo que reivindicava o reconhecimento da personalidade da tradição dos povos germânicos” (SALVAT, 1984, p. 125). Schubert chegou a ser detido pela polícia, em suspeita de reuniões subversivas. Logo foi liberado, mas alguns de seus amigos não tiveram a mesma sorte, permanecendo presos por meses, acusados de traição. Em 1821, o prestígio começa a favorecer Schubert, pois seu nome revelou- se um talento vienense nas salas da aristocracia e da alta burguesia. Alguns de seus lieder são publicados e na casa dos Sonnleithner é cantado pela primeira vez o lied Gretchen am Spinnrade – sete anos após sua composição. Suas obras passam a ser apresentadas em teatros e suas peças (as mais acessíveis tecnicamente) passam TÓPICO 1 | A ESTÉTICA ROMÂNTICA 93 a constar do repertório dos estudantes de piano, em meio à alta burguesia. Viena parece adotar um filho legítimo e reconhecer seu talento. No entanto, o grande público ainda não conhecia o jovem compositor, preferia estar mais atento à ópera italiana de um compositor daquele país e que estaria no gosto do momento, Gioachino Rossini (1792-1868). DICAS Veja no Youtube a divertidíssima ária Largo at factotum, da ópera O Barbeiro de Sevilha, de Rossini. Aprecie a versão pelo link: <https://youtu.be/jyiLscCyJ98>, acesso em: 21 fev. 2019, na interpretação do barítono John Rawnsley. Este é um dos motivos por que Schubert encontrou dificuldades para a difusão de sua obra: os editores gananciosos procuravam publicar apenas de acordo com o gosto das grandes massas e a música de Schubert se configurava original demais para a moda do momento. Um destes editores, Peters, justifica: “o meu esforço dirige-se aos artistas já consagrados, com os quais posso ganhar mais dinheiro, o que me leva a deixar para outros a missão de revelar novos talentos” (SALVAT, 1984, p. 128). Por isso, também Rossini alcançara sucesso naquele momento, pois escrevia justamente para as massas. Os amigos de Schubert resolveram unir esforços para garantir a publicação de pelo menos seus lieder mais famosos. A aceitação no círculo de admiradores foi uma resposta rápida e não somente Erlkönig e Gretchen am Spinnrade, mas também outros lieder acompanharam as publicações. Schubert não alcança o grandioso prestígio de Beethoven, mas também não chega ao ponto de extrema dificuldade no qual Mozart mergulhou nos seus últimos anos. Busca sua independência com muita dificuldade. Em Viena, precisamente em 3 de novembro de 1821, fica impressionado com a obra Der Freischutz (O Franco Atirador), de Weber, e assim encontrou a inspiração necessária para concluir Afonso e Estrela, em 1822. Nos anos seguintes, Schubert consegue publicar uma série de 36 valsas (op. 9), e seu nome passa a ser grafado no catálogo de artistas vienenses. Nesta época conturbada, produz um texto literário intitulado Mein traum (Meu Sonho), singular na história da música: o texto fala de um relato espiritual, revelando elementos essenciais de motivação da composição. O texto discursa sobre aspectos nostálgicos, obsessão pela morte e uma utopia ao bem comum, elementos típicos do pensamento romântico. Schubert fala sobre amor e dor em seu texto, ao passo que estão representados musicalmente em suas obras pelo uso das tonalidades maior e menor, característico de seu estilo (MASSIN, 1997). UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 94 A obra de Schubert não alcançou o prestígio do público, que poderia fornecer ao compositor uma vida com mais tranquilidade. Ao contrário, suas obras estavam limitadas ao conhecimento de seus amigos e poucos mecenas. Apenas uma pequena parte de sua obra foi publicada em seu tempo de vida. Por muitas vezes, encontrou a reprovação de seus amigos a respeito de suas composições, o que contribuiriapara seu isolamento social, cada vez mais profundo. Admirava Beethoven, Bach e Haendel e a partir dos anos 1825 já não se preocupava mais com a opinião de seus amigos. Esta maturidade fez com que ele buscasse seu devido lugar como compositor de Viena e assim reivindicou seu lugar nas editoras, conseguindo alguns concertos públicos: “E de fato, deu um concerto em março de 1828, no dia do aniversário de um ano da morte de Beethoven” (MASSIN, 1997, p. 641). Em outubro deste mesmo ano, pôs-se a estudar com Simon Sechter, com o objetivo de tomar novos rumos musicais. Não chegou a comparecer à segunda aula, pois caiu em febre tifoide. Prevendo a própria morte, reivindicou seu túmulo ao lado de Beethoven: “Não tenho também o direito de ter um lugar na superfície da Terra?” (MASSIN, 1997, p. 641). Faleceu em 19 de novembro de 1828, na casa de seu irmão Ferdinand, em Viena. Schubert escreveu mais de mil obras, entre elas, cerca de 600 lieder. 95 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • O romantismo foi um movimento artístico, político e literário que começou a aparecer na literatura europeia ao final do século XVIII. O termo romantismo refere-se a “romanesco, imaginoso, misterioso e fantasioso; na música, aplica-se a obras em que a fantasia e a imaginação são, por si mesmas, mais importantes do que aspectos clássicos como equilíbrio, moderação e bom gosto” (SADIE, 1994, p. 795). • O pensamento romântico é baseado em inquietação e angústia, provenientes do conflito entre as leis da sociedade e as aspirações do indivíduo, que tem origem na busca do ideal. As manifestações artísticas irão se mostrar ineficientes para transmitir algo que só é possível no plano das ideias. • Enquanto que no classicismo o equilíbrio, o bom senso e a ponderação seriam as principais características, na música romântica, elementos fantasiosos e misteriosos começaram a ter destaque. O artista começou a buscar o incomunicável na sua produção, baseado em sentimentos como fé, sonho e fantasia, em oposição às formas clássicas que primam pelo equilíbrio. • A concepção iluminista no classicismo trata a arte como imitação da natureza. O romantismo do século XIX enxerga a natureza sob as lentes do artista, condicionada à sua imaginação e fantasia. • A obra literária de Goethe, Fausto, publicada em 1808, foi a precursora das novas ideias estéticas que influenciaram o pensamento romântico. A obra trata da busca do significado da vida e é baseada em uma lenda medieval. “A busca de Fausto pela imortalidade e pela experiência sensual transcendente, levando-o a misturar-se com as forças da escuridão, tipificam algumas tendências do primeiro romantismo” (SADIE, 1994, p. 795). • O romantismo contribuiu para uma diferenciação mais ampla entre os estilos subjetivos de cada compositor. Com o nascimento de escolas nacionalistas, além do surgimento de compositores de diversos países, como Polônia, Rússia, Croácia, Dinamarca, Suécia, Noruega, Espanha e Hungria, a diversidade já ocupava o lugar da homogeneidade da música clássica. • A primeira e significativa ópera do período romântico da música, Der Freischütz (O Franco-atirador), de Weber, “baseia-se em um conto fantástico alemão, sobre um caçador que fica de posse de sete balas mágicas. As seis primeiras balas atingem qualquer alvo que ele deseje, mas a sétima fica por conta do diabo” (BENNETT, 1986b, p. 58). 96 • O período romântico da música marca o nascimento de uma cultura musical de massa, pois tamanha procura pelas salas de concerto gerou oferta de trabalho para todos os gostos e rapidamente as diferenças de gosto se manifestariam. Surgiram os termos “música ligeira” para a música popular e comercial e, por outro lado, a “música séria e erudita”. • Uma das obras de maior destaque e que reflete uma das correntes do pensamento romântico do século XIX são os textos de Eduard Hanslick (1825- 1904), Do Belo Musical, publicado em 1854. • O compositor Robert Schumann (1810-1856) utilizou o conceito de uma melodia inaudível, a qual pode-se apenas imaginar, não está na partitura. No classicismo, a melodia está completamente presente ou, nos casos mais raros, perfeitamente audível, mas no romantismo, o conceito de uma melodia inaudível – apenas imaginada pelo ouvinte ou pelo intérprete seria objeto de experiências pelos compositores. • Beethoven concluiu a Terceira Sinfonia em meados de 1804 e seu título era Sinfonia Bonaparte, dedicada a Napoleão. No entanto, rasgou a folha em que estava escrito o título primitivo quando soube que se tornara imperador aquele que o compositor ainda considerava como o herói da República. A Quinta Sinfonia (1808) tornou-se mundialmente popular, talvez um dos temas mais conhecidos da história da música. • Beethoven foi o primeiro compositor a utilizar o metrônomo em composições. Inventado por Johann N. Mälzel (1772-1838) baseado nas ideias de Winkel, o cronômetro musical foi utilizado por Beethoven em 1817 para assinalar a velocidade em que sua música deveria ser tocada. • A 9ª Sinfonia em ré menor, opus 125, de Beethoven foi encomendada pela Royal Philharmonic Society de Londres em 1817 e foi finalizada somente em 1824. Denominada Sinfonia Coral, as ideias para esta sinfonia remontam a 1793, quando o compositor tinha 23 anos, ao ler a Ode à Alegria (An die Freude), do filósofo e poeta alemão Friedrich von Schiller. • As composições do vienense Franz Schubert mostram sua tendência para o canto, e obras como Erlkönig (Rei dos Álamos) e Gretchen am Spinnrade se tornariam famosas pelo tratamento musical dos textos de Goethe. Schubert desenvolveu um gênero musical que seria uma de suas marcas mais significativas: o lied (canção; lieder = canções). Schubert escreveu cerca de 600 lieder. 97 AUTOATIVIDADE 1 Uma obra literária que influenciaria profundamente os compositores com os ideais românticos seria a obra do filósofo alemão Johann Goethe (1749- 1832), Fausto, publicada definitivamente em 1808. Por meio desta obra, compositores como Beethoven, Schubert, Weber e tantos outros posteriores buscariam uma linha de pensamento adequada às mudanças de seu tempo e iriam compor uma música que respondesse às suas ansiedades e desejos. Assinale a alternativa que corresponde à obra Fausto, de Goethe: a) ( ) A obra trata da busca do significado da Revolução Francesa e é baseada na lenda alemã do Franco-atirador (Freischütz), do compositor Carl Maria von Weber. b) ( ) A busca de Fausto pela imortalidade e pela experiência sensual transcendente, levando-o a misturar-se com as forças da escuridão, tipificam algumas tendências do classicismo. c) ( ) A ópera de Goethe trata da busca do significado da vida humana em uma lenda medieval, na busca da imortalidade entrelaçada na experiência das forças da escuridão. d) ( ) A obra fala das forças da escuridão, entrelaçadas com a experiência sensual transcendente, com elementos fantasiosos tipicamente da música medieval. e) ( ) A obra trata da busca do significado da existência humana em um cenário de lenda medieval, na busca da imortalidade entrelaçada na experiência das forças da escuridão. 2 Assinale a opção que completa a sequência correta no texto a seguir: “Há detalhes musicais que não podem ser ouvidos, mas apenas imaginados, e, mesmo, certos aspectos da forma musical que não podem ser colocados em som, mesmo que através da imaginação” (ROSEN, 2000, p. 25). Acerca deste pensamento, Beethoven tornou-se um mestre: entendeu o sentido entre ideia e realização, do que se pode escrever e o que se pode imaginar, e este fenômeno está mais fortemente presente na música para piano. O conceito de uma melodia inaudível, a qual se pode apenas imaginar, foi explorado no romantismo e um dos exemplos está na obra _________________, no movimento denominado _____________, do compositor _____________________. a) ( ) Der Freischütz – Andante – Frédéric Chopin. b) ( ) Humoreske – Hastig – Robert Schumann. c) ( )Der Freischütz – Eusebius – Carl Mª von Weber. d) ( ) Carnaval – Hastig – Franz Liszt. e) ( ) Egmont – Eusebius – Ludwig van Beethoven. 98 3 Segundo Bennett (1986b), há dois tipos de lieder: um deles consiste em repetir a mesma música em cada verso do poema, sendo chamado de lied estrófico, e também o que consiste em uma música diferente para cada verso, sendo chamado pelos alemães de durchkomponiert. Na segunda opção, o compositor está mais à vontade para adaptar a melodia à letra e também o caráter, de acordo com o texto. O interessante no lied é que o piano não é mero coadjuvante para a voz e, sim, possui a mesma importância, compartilhando a estrutura da música. Assinale a opção que corresponde ao compositor que adotou este gênero como sua característica mais significativa: a) ( ) Franz Schubert b) ( ) Friedrich von Schiller c) ( ) Eduard Hanslick d) ( ) Richard Wagner e) ( ) Niccolò Paganini 99 TÓPICO 2 UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Um dos triunfos da música no período romântico foi sua emancipação como arte, afastando-se da função social pública e puramente ornamental para se tornar independente e autônoma. A música passa a ser vista como bela arte, com a finalidade em si mesma, libertando-se das amarras da utilidade. Filosoficamente falando, a beleza em si não serve para nada – e este conceito parece nos assustar, pois sempre buscamos alguma utilidade nas coisas. E não poderia ser diferente, pois a beleza apraz pela contemplação, é um estado em que, na contemplação, nossa razão entra em acordo com a nossa vontade e por isso não encontramos conceito, nem explicação do porquê uma coisa é bela. Os românticos entenderam bem esta filosofia, sobretudo baseados em Schiller e Kant, acerca do belo nas artes. O ato contemplativo durante um concerto toma o lugar de destaque, quase como um ritual, diferente dos salões clássicos, onde a música aparece como uma espécie de coadjuvante. É um momento em que se vive a ascensão do positivismo de Augusto Comte (1798-1857). O positivismo é uma corrente filosófica que descreve os fenômenos unicamente de forma sensorial. Nesta linha de pensamento, evita-se toda e qualquer espécie de especulação em benefício a uma sociologia científica. Alicerçou-se ao movimento da teoria evolucionista em oposição ao naturalismo das atividades humanas (BLACKBURN, 1997). Assim, também o movimento positivista contribuiu para a valorização da música antiga e a sua libertação de funções sociais, emancipando-a e tomando seu lugar nas belas artes. Não obstante, como você já viu, estimado leitor, havia música para todos os gostos e todas as ocasiões e, dessa forma, sempre houve e sempre haverá uma música que também tenha sua função social, com conotações políticas, como é o caso da ópera Nabucco, de Giusepe Verdi (1813-1901), que representa um símbolo da libertação dos italianos (MASSIN, 1997). UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 100 2 COMPOSITORES DA VIRADA PARA O SÉCULO XIX O momento de virada do século XVIII para o século XIX registra a passagem de compositores com todas as características dos grandes virtuoses, mas que, talvez pelo fato de serem contemporâneos dos três grandes mestres da primeira escola de Viena, seus nomes estivessem não à sombra desses mestres, mas ofuscados pela imensidão estética que representa toda a obra do trio Mozart, Haydn e Beethoven. Nascido em 1778 em Bratislava, Johann Nepomuk Hummel (1778-1837) foi descoberto pelo próprio Wolfgang Amadeus Mozart, que cuidou para dar-lhe uma educação musical de alta qualidade. Também foi aluno fiel de Joseph Haydn e foi chefe da orquestra dos Esterhazy de 1804 até 1811. “Mais tarde, finalmente fixado em Weimar, teve a oportunidade de cuidar de Carl Maria von Weber – há muito seu amigo e rival em virtuosismo pianístico, mortalmente ofendido pela indiferença de Goethe” (MASSIN, 1997, p. 623). Foi amigo fiel de Beethoven e tornou-se um importante compositor da Alemanha, autor de um importante método para piano publicado em 1828. Sua influência passa por Chopin e Liszt. Faleceu em 1837. Dois anos mais velho que Hummel, Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822) nasceu em Koeningsberg e foi grande admirador de Mozart (trocando seu penúltimo nome) e Beethoven. Hoffmann sempre transitou entre música, e mais profundamente na pintura e na literatura, abrindo as portas da fantasia para o romantismo com obras literárias como Contos Fantásticos. Seus trabalhos como escritor incluem a crítica musical, função que seria continuada em nomes como Weber e Schumann, Berlioz, Wagner e tantos outros (MASSIN, 1997). Passou a utilizar o pseudônimo Kreisler em seus textos, exacerbando as obras de Beethoven. Muitas de suas obras musicais caíram no esquecimento, com exceção da ópera Ondina, apresentada pela primeira vez em 1816, em Berlim. Nesta ópera Hoffmann introduziu os elementos fantásticos, em que mais tarde Weber retomou esta característica em seu Freischütz. Hoffmann abriu os caminhos para a ópera na Alemanha, onde futuramente Richard Wagner alcançaria grande sucesso. Ludwig Spohr (1784-1859) foi um grande violinista e excelente maestro. Como os demais, ficou impressionado com Fausto de Goethe, o que o levou a musicar esta obra em 1813, obtendo muito sucesso com uma segunda versão da obra em 1816, em Praga. Spohr esteve ligado à direção de importantes centros musicais, como a direção do teatro An der Wien, em Viena, e a direção da Ópera de Frankfurt. Foi compositor de música de câmara, lírica e sinfônica, considerado um herdeiro da estética de Haydn, Mozart e Beethoven. Spohr foi um dos primeiros a esboçar os motivos condutores, chamados mais tarde de Leitmotiv, oferecendo as perspectivas que seriam utilizadas mais tarde por Richard Wagner. TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 101 FIGURA 6 – COMPOSITORES DO INÍCIO DO SÉCULO XIX Da esquerda para a direita: Hummel, Hoffmann, Spohr e Carl Czerny. FONTE: <https://goo.gl/VyA35J>,<https://goo.gl/NsD5R2>; <https://goo.gl/fknV9C>; <https://www.bbc.co.uk/music/artists/fb1c27b3-a54c-4c23-b554-9e989a955b39>. Acesso em: 19 dez. 2018. Carl Maria von Weber (1786-1826) nasceu em Holstein e teve seus ensinamentos musicais com professores como Michael Haydn, em Salzburgo, aperfeiçoando-se mais tarde com o mestre Joseph Haydn e o abade Vogler. Tinha apenas 12 anos quando compôs suas Seis pequenas fugas para cravo opus 1. Logo mostrou forte tendência para ópera e assim compôs a primeira, O poder do amor e do vinho – que foi destruída em um incêndio e boa parte das partituras que compôs na juventude. Outras óperas foram produzidas, como Das Waldmädchen (A Donzela da Floresta), Peter Schmoll, Rübezahl, Silvana e Abu Hassan, até 1811. Weber sentiu dificuldades em termos de trabalho devido às invasões napoleônicas, mas sempre sentiu o espírito de uma música originalmente germânica, aspiração comum aos seus contemporâneos. Sua reputação firmou-se principalmente com a ópera Der Freischütz, que já mencionamos, mas recebeu, ao mesmo tempo que elogios, críticas do próprio Goethe: “a música teria dificuldades para impor-se se Der Freischütz não fosse um bom tema” (MASSIN, 1997, p. 628). UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 102 Weber foi um dos primeiros a produzir uma ópera genuinamente alemã, mas produziu música também em outros gêneros, como o concertino para clarinete (e outros concertos), aberturas e sinfonias, música de câmara, religiosa e vocal. Morreu em Londres, durante uma turnê – que somente fez para garantir o sustento de sua esposa e filhos. Em 1844 seu corpo foi transferido para a Alemanha e, na cerimônia póstuma, Richard Wagner proferiu o testemunho em nome dos compositores alemães, demonstrando a influência e respeito para com Weber. Era primo de Constanze Weber, esposa de Mozart. O vienense Carl Czerny nasceu em 1791 e faleceu em 1857 e foi um professor de piano e compositor. Foi aluno de Beethoven e professor de Liszt, ocupandouma importante posição no meio pianístico: possui uma vasta produção justamente em uma época em que o piano atravessava várias melhorias. Sua maior inclinação, no entanto, está no meio pedagógico – além de ser virtuose em seu instrumento. Entre seus alunos estão personalidades como o próprio sobrinho de Beethoven, Karl; Döhler e Liszt, e produziu mais de mil obras. Seus trabalhos mais importantes figuram no meio da educação musical, nos tratados Escola de interpretação extemporânea opp. 200, 300 e Escola teórica e prática completa do pianoforte op. 500, publicados em 1839 (SADIE, 1994). FIGURA 7 – QUADRO DE COMPOSITORES DO SÉCULO XIX FONTE: O autor TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 103 3 O DESENVOLVIMENTO DA ORQUESTRA Não somente o início do século XIX, mas principalmente a partir deste momento histórico ocorreu um salto no desenvolvimento dos instrumentos musicais. No período barroco da música, a orquestra era fundamentalmente de cordas, com alguns instrumentos de sopro selecionados, graças à qualidade não somente sonora, mas também mecânica dos instrumentos da família do violino, em que destacamos o nome de Antonio Stradivari (1644-1737). O luthier italiano desenvolveu instrumentos da família das cordas friccionadas com uma qualidade até então não superada. Por outro lado, a luteria (local onde se fabricam ou consertam instrumentos musicais) dos instrumentos de sopro era incomparavelmente precária. No classicismo, estes instrumentos atingiram um desenvolvimento que melhorou sua qualidade e precisão quanto à afinação, e os mecanismos destes passaram por melhoramentos. No romantismo novas experiências surgiram, enriquecendo a sonoridade da orquestra. Principalmente, nos instrumentos de sopro e graças à Revolução Industrial, houve o aperfeiçoamento e a criação de outros (MASSIN, 1997). O registro destes instrumentos passa por uma ampliação e a qualidade principalmente dos metais é aprimorada devido a novas ligas. A música para orquestra é ampliada devido a este fenômeno, pois os compositores estavam ávidos em busca de novas sonoridades. Na era industrial, máquinas e fabricantes cada vez mais especializados apoderam-se da fabricação de instrumentos. A mecanização da produção teve como resultado secundário a fabricação de instrumentos mecânicos para os quais compositores como Mozart e Beethoven já haviam escrito. Importantes inovações também ocorreram na fabricação dos instrumentos mais comuns, o que haveria de influir sobre a execução musical. O século XIX foi o século de ouro da música instrumental, orquestral e sinfônica (MASSIN, 1997, p. 668). Alguns nomes marcaram o desenvolvimento dos instrumentos de sopro, como Iwan Müller (1786-1854), que no ano de 1812 aperfeiçoou o clarinete em 13 chaves; Frédérick Triebet (1813-1878), que ao final dos anos 1840 aperfeiçoou o oboé; Adolf Sax (1814-1894), que inventou a partir de 1840 toda a família dos saxofones, e também Theobald Böhm (1794-1881), que no ano de 1847 melhorou a flauta em seu mecanismo. Na linha dos metais, Heinrich Stölzel (1772-1844) inventou os pistos para os trompetes, equipamento que também foi adicionado à trompa, permitindo a estes instrumentos tocarem todas as notas da escala cromática. Na percussão, somente em 1882 Pittrich e Queisser inventaram o pedal que possibilita aos tímpanos executar a mudança de notas. Os timbres da orquestra tornaram-se mais ricos e a posição destes instrumentos foi definida com mais funcionalidade e precisão. Consequentemente, uma geração de instrumentistas começou a ganhar espaço nos cenários da música: os virtuoses. Neste âmbito, sem qualquer sombra de dúvida, o nome de Niccòlo Paganini figura um talento sem igual, pois tamanha era sua habilidade ao violino que muitos suspeitavam que ele tivesse algum UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 104 pacto com forças sobrenaturais. Paganini tornou-se um exemplo inspirador para os demais músicos instrumentistas, pois sua habilidade ao violino demonstrou que seria possível extrair o máximo da técnica em performance musical. Assim, pianistas, clarinetistas, cellistas e tantos outros buscaram o máximo de si, inspirados em Paganini. 3.1 O REGENTE ROMÂNTICO Uma das últimas figuras que surgiram na história da música se dá na pessoa do maestro ou regente. Foi no período romântico que o regente começou a adquirir sua crucial importância na interpretação de grandes e pequenas obras. Lembre-se de que no classicismo a interpretação em grande parte ficava a critério do próprio intérprete e os compositores não se preocupavam em fornecer todas as informações necessárias, pois muito disto se dava pela tradição. É preciso levar em consideração que as orquestras no período clássico, em sua maioria, eram particulares e não muito numerosas. Com a expansão deste organismo instrumental que se tornou a orquestra romântica, a figura do maestro tornou-se de maior responsabilidade para captar todas as nuances que uma obra orquestral exige. Em uma orquestra de 60 ou 70 músicos, temos o mesmo número de subjetividades e é fundamental uma liderança para que se encontre a objetividade comum da equipe, em busca da melhor performance. Uma análise histórica vai mostrar que os primeiros “diretores” de orquestra foram os cravistas, os que tocavam a parte do “contínuo”, pois o cravo era o único instrumento que praticamente tocava a obra inteira, e por isso, naturalmente, era o mais lógico condutor da orquestra. Por outro lado, o “spalla” ou o “konzertmeister” (mestre de concerto), que era a pessoa do primeiro violino, tinha a função de fazer com que as demais cordas tocassem de maneira unida e coesa, em que o próprio movimento do arco já serviria como guia para os demais. Ele indicava as entradas dos naipes ou solistas, orientava as mudanças de tempo etc. Ao final do século XVIII e início do século XIX, aumentou-se o número de instrumentos da orquestra (assim como o melhoramento de vários sopros) e com isso a função do konzertmeister ou do contínuo transferiu sua responsabilidade para alguém que pudesse ficar aos olhos de todos os músicos da orquestra e que seria mais adequado se esta pessoa não tocasse qualquer instrumento. De início usaram um bastão para marcar o tempo, o que se mostrou uma precária técnica, pois obviamente o barulho das batidas ao chão poluía a massa sonora da orquestra. Outros artifícios foram usados, como um lenço branco, para que todos pudessem perceber a movimentação dos braços do regente. Em referência ao gestual do maestro, foram necessários muitos anos para que se desenvolvesse uma técnica adequada e clara. No período clássico, havia uma dupla regência: o diretor de orquestra dirigia junto com o violino, e desta forma foram regidas sinfonias de Haydn e Mozart. Esta tradição chegou até os primeiros anos do século XIX. Beethoven foi o que apresentou um novo caráter à direção orquestral, pois suas obras necessitavam de uma direção que sentisse os efeitos das mudanças de tempo (SALVAT, 1984). TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 105 Você já deve ter visto o pequeno utensílio na mão direita do maestro, é o que se chama de batuta. Alguns historiadores afirmam que o primeiro maestro a adotar a batuta foi Carl Maria von Weber, mas que, no entanto, algo semelhante já era usado há dois séculos, como um pergaminho enrolado, ou mesmo o arco do violino, o que não deixa de ser uma espécie de batuta. Hans von Bülow foi o primeiro regente profissional, alcançando notável sucesso em sua técnica, que fazia a orquestra inteira pulsar como um organismo vivo. Bülow se tornou extremamente popular, algo como maestro-estrela, e também foi exímio pianista. Conseguiu elevar a profissão de maestro para uma notável responsabilidade e confiança em fazer brilhar todas as nuances e sutilezas impressas pelo compositor. Posteriormente, vários grandes nomes surgiram, como veremos na Unidade 3 deste livro didático. 3.2 A MÚSICA PARA PIANO O antigo piano-forte inventadopor Bartolomeu Cristofori chegou ao romantismo com aprimoramentos em seus mecanismos, assim como a relação deste instrumento para com a orquestra. O piano é um instrumento com um registro muito amplo: vai das notas mais graves do contrabaixo até as notas mais agudas de uma flauta, e por esta razão configura-se como instrumento solista ou “independente”. Mozart escreveu vários concertos para piano e na época de Beethoven este instrumento já apresentava aperfeiçoamentos técnicos, o que se pode comprovar pelos diferentes registros utilizados por Beethoven em suas sonatas e concertos. A melhora técnica do piano impulsionou Beethoven para escrever e ampliar as formas musicais, assim também faria o compositor (e pianista) Franz Liszt. No romantismo, a música que antes era destinada ao clavicórdio e ao cravo foi interpretada ao piano e, obviamente, a sonoridade foi mais intensa, aliada aos recursos de dinâmica que só o piano possui. A expressividade da música para piano encontrou seu lugar no romantismo e ampliou toda a literatura para este instrumento. DICAS Ouça e confira a enigmática Sonata em Si Menor (S.178) de Franz Liszt. Considerada uma das mais complexas obras para piano do período romântico, você poderá apreciar a partitura e assim compreender um pouco mais sobre a complexidades desta obra, pelo seguinte link: <https://youtu.be/IeKMMDxrsBE>, acesso em: 21 fev. 2019, na interpretação do pianista André Laplante. UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 106 O próprio tamanho do piano foi aumentando, com mais notas (teclas) e o sistema de percussão das cordas, onde até então se usava um revestimento de couro nos martelos, passou a ser de feltro. Aprimoraram ainda as peças de madeira por peças feitas de metal, mais resistentes frente ao mecanismo de percussão nas cordas tensionadas. “Tudo isso veio contribuir para que a sonoridade do instrumento ficasse mais rica e cheia, aumentando suas possibilidades em termos de registro, volume e tonalidade” (BENNETT, 1986b, p. 59). O uso do pedal direito, que afasta os abafadores das cordas, prolonga o som: imagine que antes as cordas eram “beliscadas” no cravo por uma espécie de mecanismo de pinça, semelhante quando os violinistas realizam o pizzicato nas cordas. Agora, com o uso do martelo mais resistente percutindo uma corda que suporta mais tensão, um som com mais volume surgirá e os abafadores (pedal) contribuem para as texturas variadas. O desenvolvimento de novas formas musicais não se deve somente ao fato de que os compositores estivessem situados em um momento de mudança de toda a estética artística, mas também pelo fato de que os próprios instrumentos musicais de sopro e percussão alcançaram uma difusão e melhoramento técnico nunca antes vistos, favorecendo novas sutilezas em termos de expressão musical. IMPORTANT E Elegante e pomposo, o piano por si só já era um adorno e símbolo de status no classicismo, e no romantismo não foi diferente. Era mobília importante e manteve-se acima na preferência dos burgueses como instrumento solista. O piano alcançou grande poder acústico, capaz de preencher de sonoridade as grandes salas de concerto. No romantismo, praticamente todos os compositores escreviam para piano, e neste âmbito figuram Beethoven, Schubert, Mendelssohn, Chopin, Brahms e Liszt. Por um lado, as obras mais grandiosas em termos de forma são as sonatas (e aqui estamos falando do “gênero sonata” e não “forma sonata”), mas os compositores sempre trabalharam ao mesmo tempo com obras curtas, não muito extensas. Neste quesito, as danças sempre foram muito populares, por exemplo, “a valsa, a mazurca e a polonaise, e peças de ‘caráter’, como o impromptu (‘improviso’), o romance, a canção sem palavras, o prelúdio, o noturno, a balada, o intermezzo (‘interlúdio’) e a rapsódia” (BENNETT, 1986b, p. 59), em que muitas delas apresentavam duas partes contrastantes na forma ternária ABA. Um dos gêneros muito comuns no romantismo também foi o etude (estudo), com o objetivo de aprimorar a técnica pianística. TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 107 Como o piano é um instrumento “completo”, que atinge um número muito grande de notas, ao contrário dos outros instrumentos, a música para piano tornou-se um campo fértil de composição, e da mesma forma o virtuosismo neste instrumento. Os maiores nomes em termos de virtuosismo estão na figura de Paganini e Liszt (este último também compositor). Liszt realizava performances impressionantes, deixando o público ao mesmo tempo assombrado e deliciado (BENNETT, 1986b). Da mesma forma, o compositor Frédéric Chopin demonstrou uma habilidade muito grande tanto no campo da composição para piano como na técnica virtuosística: “típica do estilo de Chopin, por exemplo, é uma melodia expressiva cantando pouco acima de um acompanhamento muito sóbrio, com o uso cuidadoso do pedal direito” (BENNETT, 1986b, p. 60). Chopin compôs música sonhadora e poética, mas também explorou o caráter dramático e fantasioso, como nas suas polonaises e estudos. 4 A NOVA GERAÇÃO O novo século trouxe consigo mudanças ocasionadas por uma série de fatos significativos, como revoluções, guerras, invasões e libertações, e que inflamaram as comunidades para mudanças também sociais muito importantes, e a música não ficaria de fora deste contexto. Foi justamente nesse contexto que surgiram novos compositores, nesta atmosfera de mudanças sociais, mas que nas belas artes e sobretudo na música, os alicerces clássicos foram estremecidos por uma nova geração de compositores. Beethoven deu os primeiros passos nesse sentido, seguido por tantos outros compositores, que no século XIX tornam-se muito numerosos e, dessa forma, nos é possível destacar apenas alguns deles. Cabe a você, acadêmico, explorar toda a diversidade do universo romântico em leituras complementares, mas aqui você encontrará os nomes mais significativos no universo da música erudita do século XIX. 4.1 FRANZ LISZT (1811-1886) Ferenc Liszt nasceu em 1811, em Raiding, na Hungria. Haydn havia morrido há apenas dois anos e Beethoven e Schubert ainda estavam no seu auge. O pai de Liszt era intendente do príncipe Nikolaus Esterházy e, dessa forma, mantinha amizade com Haydn. O pequeno Liszt era apelidado de “Putzi” e não fugiu à regra de mostrar seu talento desde a primeira infância – a esta altura, estimado acadêmico, já sabemos que as raízes de nossas tendências artísticas e também profissionais mais importantes são aquelas que desenvolvemos desde a primeira infância e, assim, o fato comum é que os grandes compositores já começaram a desenvolver seu gênio musical nos primeiros meses de vida. Em 1821 a família transferiu-se para Viena com o objetivo de levar o pequeno Franz (versão alemã de Ferenc) para ter aulas de música. O professor de piano Karl Czerny aceitou o pequeno Franz como discípulo (e o próprio Czerny UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 108 previu que Franz seria um pianista genial) e da mesma maneira, Antonio Salieri (fundador e diretor do Conservatório vienense) ministrou aulas de harmonia. Aos nove anos já se apresentava em concertos e nesta época desejava fortemente conhecer Beethoven. Este encontro aconteceu graças ao próprio Czerny e também Schindler. Beethoven foi exigente: pediu a Franz que tocasse a fuga em dó menor do Cravo bem Temperado de Bach. Posteriormente, o autor de Egmont pediu que Franz tocasse alguma outra peça de sua escolha, e Franz tocou o primeiro movimento do Concerto para piano em Dó menor, do próprio Beethoven. No dia seguinte, Beethoven compareceu a um concerto de Liszt e lhe beijou a testa ao final do evento. Sem dúvida, este fato marcou a vida de Liszt por muitos anos (SALVAT, 1984). Liszt estudou em Paris teoria e composição, com Reicha e Paer, e realizou viagens pela França, Suíça e Inglaterra. Um fato curioso na vida de Liszt se dá pelas suas dúvidas existenciais: Liszt estava com problemas de saúde e pensava fervorosamente na religião. Poroutro lado, após seu encontro com Paganini, Liszt procurou seu desenvolvimento intelectual na literatura e desenvolveu uma música extremamente virtuosística ao piano, em obras originais e também adaptações. Ministrava aulas e iniciou “seu tempestuoso relacionamento (1833- 44) com a (casada) condessa Marie d’Agoult. Viveram na Suíça e na Itália; tiveram três filhos” (SADIE, 1994, p. 541). Aos 36 anos, o nome de Franz Liszt já era conhecido desde a Rússia até Portugal, e em 1848 assumiu o cargo de regente na corte de Weimar, vivendo com a princesa Carolyne Sayn-Wittgenstein, período em que escreveu as suas obras mais importantes. Liszt regeu óperas de Wagner, Berlioz e Verdi e foi professor de Hans von Bülow (1830-1894) e outros na escola alemã. Alcançou notável fama e prestígio, também pelo fato de ser extremamente generoso e bondoso para com seus colegas compositores. Arrecadou fundos para um monumento a Beethoven em Bonn e deu oportunidades a vários artistas. Liszt se tornou o maior pianista da história, escrevendo também peças extremamente difíceis para o piano, pois possuía amplo conhecimento da literatura da música para teclado, tornando-se, dessa forma, o criador do recital de piano moderno (SADIE, 1994). Foi criador de um gênero novo, o poema sinfônico (sinfonische Dichtung), que não obedece às formas tradicionais, baseando-se em ideias literárias ou pictóricas. Os poemas sinfônicos de Liszt enfatizam mais a construção musical do que propriamente a narração de uma história. Compôs a Sinfonia Fausto (considerada a obra-prima do compositor) em três movimentos, na qual os temas que representam os personagens Margarida e Mefistófoles são apresentados em transformação temática. As características fundamentais da obra de Liszt residem em dois aspectos: de um lado, a composição utilizando estruturas em larga escala, expandindo a forma sonata tradicional, unificando assim obras que contêm mais movimentos, e de outro lado, a transformação temática. Neste segundo aspecto, Liszt apresenta uma pequena ideia e a submete a mudanças de ritmo, de modo (maior e menor), alterações métricas, mudanças no andamento e no acompanhamento, formando assim a base temática de uma obra inteira (SADIE, 1994). TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 109 Liszt pensou o piano como um instrumento que soasse como uma orquestra inteira – pelo menos no aspecto da altura das notas, desde o mais grave com o contrabaixo e tubas até o mais agudo, com flautas e violinos. Harmonicamente, Liszt foi ousado, criando tensões, indo além do uso de acordes diminutos e escalas de tons inteiros, fazendo uso de cromatismos avançados. A maior parte da obra de Liszt foi composta para o piano e nesta produção destacamos (e recomendamos ouvir os seus quase 30 minutos de duração) a enigmática Sonata em Si menor, uma obra-prima da literatura do piano. A partir de 1770, Liszt passou a compor de maneira mais contida e realizou também transcrições de orquestra de obras de Beethoven, Berlioz e Schubert, além de vários outros compositores. Na sua busca de uma “música do futuro” e de misticismo interior, Liszt tornou-se irmão terceiro da Ordem de São Francisco (1856) e nesta época compôs música sacra (Missa de Gran, Salmo CXXVII e as Beatitudes). Recebe em 1865 a batina e também as ordens menores, um dos primeiros passos do sacerdócio. Curiosamente, Liszt foi clérigo, sem ser padre, pois adorava a Cristo, mas também adorava a liberdade. Na sua vida familiar, sua filha Cosima foi casada com Hans von Bülow (seu discípulo), mas divorciou-se para casar com Richard Wagner, história que veremos mais adiante, um fato que deixou Liszt decepcionado, mas que anos mais tarde a reconciliação se faria presente. Para Franz Liszt, a música estava acima de suas classificações sociais, profana ou sacra, a música seria única. Aos 70 anos, compôs seu último poema sinfônico: Do Berço ao Túmulo, e sua saúde já estava se deteriorando. Isto, porém, não impediu Liszt de viajar pela Europa e rever o amigo Wagner e sua filha Cosima em novas apresentações das óperas de Wagner, pelo qual Liszt mantinha uma profunda e sincera amizade, a ponto de instalar-se com o casal em Veneza, em 1882. Viajou de volta à Hungria e, ao chegar ao seu destino, soube da morte de Wagner. Liszt viveria ainda mais três anos, o suficiente para realizar novas turnês por vários países da Europa, que lhe renderam muito sucesso e prestígio – isto com quase 80 anos. Estava com a filha Cosima em Bayreuth (Alemanha) para assistir ao casamento de sua neta Daniela (filha de Cosima com Bülow), quando contraiu um forte resfriado, resultando em febre. Faleceu em 25 de julho de 1886, ao lado de Cosima. FIGURA 8 – COMPOSITORES NASCIDOS NO INÍCIO DO ROMANTISMO UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 110 Da esquerda para a direita: Franz Liszt, Frédéric Chopin, Robert Schumann, Hector Berlioz e Felix Mendelssohn. FONTE: <https://goo.gl/iw4VuB>, <http://bragamusician.blogspot. com/2010/09/2010-ano-chopin-parte-11.html>, <https://goo.gl/HMv4Bz>, <https://goo.gl/ aBwaKu>; <https://www.wqxr.org/story/mendelssohns-italian-symphony-captures-joy-being- vacation/>. Acesso em: 22 dez. 2018. 4.2 FRÉDÉRIC CHOPIN (1810-1849) Chopin é um compositor romântico criador de uma obra que o caracteriza como alguém doce, porém exaltado, tumultuoso e efeminado. “A ligação de Chopin com George Sand, sua frágil constituição física, a tuberculose que o vitimou e sua morte em plena juventude endossaram esta apreciação e contribuíram para fixar esta imagem” (MASIN, 1997, p. 737). Chopin nasceu de origem humilde, na ala dos serviçais do castelo da condessa Skarmbek, porém, teve uma infância com uma boa educação. Sua família se mudou para Varsóvia e lá recebeu as primeiras lições de piano de sua mãe. Quando tinha apenas 15 anos, teve sua primeira obra publicada por uma importante editora musical de Varsóvia: seu Rondó nº 1 em dó menor, que demonstra influências de Weber e de Hummel. Estudou durante três anos no conservatório de Varsóvia, mas já demonstrava resistência quanto às formas clássicas, o rigor formal da sonata e do concerto. Chegou a compor nestas formas, mas não seria este o campo mais fecundo para o gênio de Chopin, e assim encontrou o gênero que mais se adequaria ao estilo de composição que tinha em mente: a variação e o rondó. No gênero da variação, Chopin compôs ao gosto da época, mas logo se aventurou para o virtuosismo, em que críticas são publicadas a seu respeito, a exemplo de Robert Schumann, que publicou, na revista Allgemeine Musikalische Zeitung, os mais importantes elogios: “Tirem os chapéus, senhores, um gênio!” (MASSIN, 1997, p. 738). Chopin se volta às suas raízes, compondo o Rondó à la Mazur opus 5 (1827) e o Rondó à la Krakoviak opus 14 (1828), e neste mesmo universo polonês, ele compõe a Polonaise em ré menor, Mazurca em lá menor, Noturno em mi menor, além da Valsa nº 3, opus 70. Assim como a polonaise, a mazurca trata- se de uma dança popular polonesa (em casais), em compasso ternário e tempo TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 111 moderado. Data do século XVI e é fortemente acentuada no segundo tempo (DOURADO, 2004). Chopin apenas recorreu a alguns dos elementos do folclore polonês, pois não os conhecia diretamente, mas que, no entanto, tornaram estas populares formas plenas de expressividade. Chopin realizou nos anos de 1828-29 viagens de concertos em Berlim, Viena, Praga e Dresden, obtendo muito sucesso, ao mesmo tempo que absorvia o repertório de compositores como Weber, Spontini, Meyerbeer e Rossini. Em 1830 deixou Varsóvia para ir a Viena, e os eventos revolucionários deste mesmo ano, posterior à sua viagem, deixaram Chopin transtornado. Seu primeiro impulso foi de retornar à pátria, mas sua saúde o impediu. No ano seguinte, partiu para Paris, ao mesmo tempo em que a Polônia era saqueada pelos russos, para seu patriótico desespero. DICAS Uma das obras de Chopin que se tornou extremamente popularé a Grand Valse Brillante opus 18, por ser utilizada na série de desenhos animados “Pernalonga”, da Warner Bros, a partir dos anos de 1960. Procure ouvir esta deliciosa valsa de Chopin. Em Paris Chopin estabeleceu residência e completou sua formação pianística. Conheceu pessoalmente músicos famosos, como Rossini e Cherubini, e mais tarde, com o apoio e motivação que Liszt e Mendelssohn promoveram-lhe, percebeu que não mais necessitava de professores e passou a desenvolver sua própria técnica ao piano. E foi justamente nesse campo a maior contribuição de Chopin, a conclusão de uma revolução da técnica do piano iniciada em Beethoven e a contribuição de estabelecer as diretrizes para o uso do piano moderno. A tão buscada autonomia de cada dedo (voltada para conservar a independência de cada som), a utilização exaustiva de todos os registros do teclado, de modo a explorar tão sistematicamente quanto possível o universo sonoro – todos esses elementos permitem pôr em evidência e concentrar em um único instrumento as variadas riquezas orquestrais (MASSIN, 1997, p. 741). Em 1835, reencontrou Mendelssohn e conheceu Robert Schumann, mesmo ano em que se revela uma séria tuberculose em Chopin, um mal que progrediu até sua morte. No ano seguinte, ficou noivo de Maria, uma amiga de infância, mas o casamento não chegou a ser consumado, pelas diferenças sociais e também pelo estado de saúde do compositor. No ano de 1836, conheceu George Sand, apresentada por Liszt e Marie d’Agoult, momento em que um romance de cerca de nove anos estava iniciando. O estado de saúde do polonês aos poucos ia se UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 112 agravando e George tornou-se praticamente sua enfermeira. Isso, no entanto, não o impediu de continuar compondo fervorosamente seus noturnos, gênero que caracterizou a atmosfera do compositor, assim como a Polônia. Em 1847 Chopin e George romperam seu relacionamento e, no ano seguinte, a situação dele ficou ainda pior: doente e sem recursos financeiros, quase não compôs mais. Suas últimas obras foram a Mazurca em sol menor nº 2 opus 67 e a Mazurca em fá maior nº 4 opus 68. Sua irmã Luísa foi da Polônia para cuidar de Chopin, que morreu em 17 de outubro de 1849, em Paris. Seu corpo foi sepultado em Paris, mas a pedido dele, o coração foi enviado à Igreja da Santa Cruz de Varsóvia. Chopin sempre levou a Polônia em seus mais profundos sentimentos, demonstrando um patriotismo assim como Liszt demonstrou à Hungria, que a respeito do polonês, declarou: “Chopin poderá alinhar-se com aqueles primeiros músicos que souberam individualizar em si mesmos o sentido poético de uma nação” (MASSIN, 1997, p. 744). 4.3 ROBERT SCHUMANN (1810-1856) Desde os seus 17 anos, Schumann sentiu o temor da loucura apossar-se de sua mente. Este sentimento o acompanhou por toda a sua vida e finalmente, em 1854, por livre desejo, internou-se em um asilo de loucos. Os elementos fantasiosos tão presentes no pensamento romântico ganharam em Schumann o seu aspecto mais esquizofrênico. Porém, seria injusto afirmar que a loucura se apossou do processo de criação do compositor alemão nascido em 1810. Devemos, sim, lembrar que os compositores se esforçam para que sua obra expresse a própria identidade e, portanto, existe um ideal romântico entre a unidade da obra e a vida particular do artista (ROSEN, 2000). Em sua adolescência, Robert Schumann estudava Direito em Leipzig e mantinha grande contato com textos literários, onde também estudou piano com Friedrich Wieck. Posteriormente, seus pais o enviaram a Heidelberg para continuar seus estudos em Direito, mas na verdade o que atraía o jovem era música e literatura, e assim convenceu sua família a largar o Direito. Dessa forma, em 1830, Schumann estabeleceu-se em Leipzig para estudar piano e neste período teve problemas de saúde, dificuldades em tocar o piano devido às dores que sentia em suas mãos – ao que parece, pelos efeitos de remédios para sífilis. Quatro anos depois, Schumann criou o periódico Neue Zeitschrift für Musik (nova revista para música), ocupando o cargo de redator-chefe por dez anos, publicando críticas brilhantes e bem elaboradas. Curiosamente, usava pseudônimos para seus textos, assim como fez também para suas composições musicais. As suas composições para piano apresentam curiosas estruturas, por exemplo, variações sobre o nome de uma amiga, Abegg (A-B-E-G-G: as notas musicais Lá, Si, Mi, Sol e Sol) e também variações baseadas no nome do local de outra amiga. Schumann sempre foi namorador e gostava de champanhe, coisas que manteve durante toda a sua vida. Apaixonou-se pela filha de um de seus professores, Clara Wieck, também pianista e com quem casou-se em 1840. TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 113 Escreveu muitas canções neste período, enquanto a esposa realizava recitais de piano – Schumann preferia deixar Clara sozinha quando esta se apresentava, pois não gostava de ficar à sombra dela (SADIE, 1994). Em 1843 trabalhou em um oratório secular e musicou parte do Fausto, de Goethe (sim, ele também era apaixonado pela obra de Goethe). Trabalhou como professor no Conservatório de Leipzig, onde Mendelssohn era diretor, mas mostrou-se um professor inapto, assim como na atividade de regência. Schumann e Clara mudaram-se para Dresden em 1844, época em que enfrentou momentos de depressão. Somente quatro anos mais tarde, Schumann mostrou seu talento como compositor, quando da concepção de Genoveva, uma ópera que foi encenada em Leipzig, em 1850. Seu estado de saúde foi se deteriorando e, nos anos de 1852-3, afastou-se por vontade própria de seus labores. Começou a ter alucinações e o pavor da loucura o levou a uma tentativa de suicídio. Morreu em 1856, aos 46 anos, em consequência de sífilis, acompanhado pela sua esposa Clara e o jovem compositor Johannes Brahms. DICAS Veja a abertura da ópera Genoveva, de Robert Schumann, e sinta a riqueza expressiva que o compositor imprime nas frases melódicas. Pesquise por “Genoveva overture Schumann” e você encontrará várias versões de qualidade. Escolha uma versão em que você pode ver o maestro e a orquestra interpretando. Schumann foi ao mesmo tempo atraído e afastado pela loucura, por vezes, maravilhado com seus efeitos, mas também sentiu o pavor de perceber sua sanidade tornar-se cada vez mais frágil. O seu estilo de composição impressiona pela sua negação às formas musicais mais conservadoras. No que diz respeito à sua produção musical, pela sua breve vida, estes elementos que chamam a atenção do ouvinte representam a técnica schumanniana, que arrebata o público sem qualquer preparação. Schumann sentiu-se à vontade de criar estas surpresas em que, em um outro âmbito, a ópera, por exemplo, seria algo incoerente. Em uma ópera ou sinfonia, os efeitos dramáticos precisam ser conduzidos cuidadosamente, pois há algo de psicológico que conduz o encadeamento de acordes. Efeitos schumannianos não seriam permitidos na música de Wagner e Verdi, por exemplo (ROSEN, 2000). Outro exemplo da genialidade deste compositor você já conferiu na Figura 2, Humoreske, com o conceito de uma melodia ausente, uma “sombra melódica” que não existe e que, por um instante, faz-nos pensar que isto seria uma espécie de alucinação. Estas são algumas das características que tornam Robert Schumann uma das maiores figuras do romantismo da Europa Central. Ele teve grande dificuldade em lidar com as formas tradicionais do classicismo da geração anterior, UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 114 pois a música de Mozart e Haydn não causava algum impacto significativo em seu pensamento musical. No entanto, com Beethoven, Schumann sentiu-se apequenado, pois sequer poderia comparar sua obra com a grandeza beethoviana. Considerava sua própria música algo trivial e foi justamente nesta concepção que Schumann buscou o diferente, o sublime, talvez sem consciência disso. 4.4 RICHARD WAGNER (1813-1883) Nascido em Leipzig em 1813, Richard Wagnerfoi filho de escrivão da polícia e ficou órfão de pai prematuramente. Alguns historiadores questionam sua paternidade, pois há indícios de que Richard seria filho de um amigo de sua mãe, o pintor e poeta Ludwig Geyer. Aos 15 anos, o jovem Richard já escrevia peças de teatro, pois as artes dramáticas sempre foram algo de muito interesse em sua vida. Esta característica faria de Richard o grande compositor de óperas que enalteceriam a música alemã no século XIX. Aos 20 anos apresentou sua primeira sinfonia e no ano seguinte foi maestro do coro no teatro de Würzburg. Nesta época escreveu o texto de suas primeiras óperas, Die Feen (As Fadas) e também Das Liebesverbot (O amor proibido). Casou-se com Mina Planer em 1836, viajando para Königsberg, ocupando o cargo de diretor musical daquele teatro. Pouco tempo depois, partiriam para Riga, onde Richard trabalhou também como diretor e lá escreveu sua seguinte ópera, Rienzi. No entanto, os revezes estavam presentes na vida do jovem casal: fugindo de credores, viajaram a Paris pelos mares de Londres, na capital francesa receberam o auxílio de Meyerbeer, para que Richard trabalhasse com literatura. As inclinações políticas se manifestaram na vida de Richard, pois na ópera Rienzi estes elementos podem ser encontrados. Wagner se envolveu com o movimento intelectual chamado “Jovem Alemanha”, com ideais semirrevolucionários (SADIE, 1994). A fuga do casal de Riga para Paris, pelos mares londrinos, causou impacto em Wagner, que se inspirou para uma nova ópera, Die Fliegende Höllander (O Holandês Voador), que fala sobre a redenção por meio do amor a uma mulher, em atmosferas sobrenaturais e cenários de mares violentos, rompendo com a tradição do formato rigoroso da ópera. Foi nomeado Kapellmeister adjunto na corte de Dresden e em 1845 a ópera Tannhäuser foi concluída e apresentada. Os fatos que ocorreram na Europa, após o Congresso de Viena, em ações nacionalistas revolucionárias, instigaram Wagner a se envolver intensamente em movimentos políticos. Perseguido, foi forçado a se refugiar em Weimar, auxiliado por Liszt e posteriormente teve que se esconder na França e na Suíça. Devido a isso, passou 11 anos sem poder regressar à Alemanha. Na Suíça publicou textos atacando Meyerbeer, com temática antissemita. Em 1853 escreveu e publicou o texto Anel dos Nibelungos e apresentou para amigos, “entre os quais incluía-se um mecenas generoso, Otto Wesendonck, e sua esposa Mathilde, que amou Wagner, escreveu poemas por ele musicados e inspirou Tristão e Isolda – concebido em 1854 e concluído cinco anos depois, ocasião em que mais da metade do Anel estava concluído” (SADIE, 1994, p. 1010). TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 115 DICAS Veja a abertura da ópera “Lohengrin”, de Wagner, e perceba os intensos efeitos produzidos pelos violinos e violas logo no início: o místico é representado desta forma e aos poucos os instrumentos de sopros vão incorporando as melodias. Wagner sustenta esta leveza durante os seis primeiros minutos, seguidos pela intensidade de toda a orquestra, mostrando a grandiosidade da história que será contada em seguida. Pesquise por Lohengrin Prelude act 1, todas as versões que você encontrar são de alta qualidade. Wagner pôde retornar à Alemanha em 1862 e seu casamento já apresentava muitos indícios de uma separação. Apresentou concertos na Rússia, em Viena e em outros países europeus. Em 1864, Wagner e Mina já estavam separados (e Mina faleceu em 1866), e, no entanto, o compositor receberia boas e novas perspectivas: o rei Ludwig II, da Baviera, convidou Wagner a estabelecer residência em suas terras, eliminando suas dívidas e provendo o compositor no que fosse necessário. Ludwig II era profundo admirador da obra de Wagner, tanto que o inspirou a formatar seu novo castelo no formato de um cisne, ave onde o personagem Lohengrin aparece na ópera de mesmo nome. Wagner, no entanto, não permaneceu muito tempo na Baviera, mantinha um caso amoroso com Cosima, esposa do regente Hans von Bülow – e como você sabe, estimado acadêmico, Cosima era filha de Liszt e os atritos seriam intensos entre eles. FIGURA 9 – RICHARD WAGNER, O PERSONAGEM LOHENGRIN E O CASTELO NEUSCHWANSTEIN FONTE: <https://goo.gl/YATjwW>; <https://goo.gl/pQkDtF>; <https://goo.gl/Jj5Fp4>. Acesso em: 23 dez. 2018. Wagner desenvolveu um estilo ricamente cromático usando a dissonância de forma inédita. Como toda dissonância pede uma resolução, Wagner sustentou esta tensão aos limites, utilizando um padrão rítmico e criando nuances de profunda ansiedade. São estes os elementos utilizados na ópera Tristão e Isolda e UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 116 que, no segundo ato, florescem sentimentos de profundo amor entre o casal, desde a mais terna emoção à mais ardente sensualidade. Em 1860 escreveu outra ópera, Os Mestres Cantores de Nuremberg, um dos únicos casos em que os personagens possuem humanidade simplória – ao contrário de suas outras óperas, sempre inspiradas em lendas germânicas. Casou-se com Cosima em 1870 e desenvolveu um ambicioso projeto da construção de um grande teatro para festivais de ópera. Com muito esforço e quase desistindo de seu sonho, recebe auxílio de Ludwig II, que forneceu os recursos para a construção do teatro em Bayreuth. Lá se tornou a sede de Gesamtkunstwerk (obra de arte total), onde havia a integração da música, poesia, danças e belas artes em geral. Wagner desenvolveu o que chamou de Leitmotiv (motivo condutor): “tema ou ideia musical claramente definido, representando ou simbolizando uma pessoa, objeto, ideia etc., que retorna na forma original, ou em forma alterada, nos momentos adequados, em uma obra dramática (principalmente operística)” (SADIE, 1994, p. 529). Wagner utilizou este conceito de forma autêntica, como recurso de alusão dramática. Os leitmotive na obra de Wagner evoluem conforme o enredo das óperas e fazem a ação avançar, conectando as ideias. Em 1877 regeu em Londres, com o objetivo de arrecadar recursos, pelo fracasso financeiro das primeiras apresentações em Bayreuth, e escreveu a ópera Parsifal. Continuou com suas ideias radicais e políticas, acerca de uma raça puramente germânica. Passaria o inverno em Veneza e lá os problemas cardíacos que o acompanhavam há alguns anos se agravariam, levando-o ao óbito em 13 de fevereiro de 1883. 4.5 HECTOR BERLIOZ (1803-1869) O menino Hector aprendeu flauta e violão e, apesar de nunca ter aprendido a tocar piano, desenvolveu suas primeiras composições baseado em seus estudos de harmonia e a leitura de tratados. Pelo desejo de seus pais foi estudar Medicina, mas logo após dois anos de estudo, Hector convenceu seu pai de que a música era seu desejo mais profundo e foi em busca de conhecimento musical no Conservatório de Paris (1821-3). Berlioz venceu o Prix de Rome (espécie de bolsa de estudos) em sua quarta tentativa. Entre suas principais influências estão os textos de Shakespeare, que o inspirou em suas obras de maior destaque, e também a atriz Harriet Smithson, pela qual Hector apaixonou-se e se casou em 1833. Entre as obras que mais causaram impacto e que iriam moldar a linha de composição de Berlioz estão as sinfonias de Beethoven e, não fugindo à regra, Fausto de Goethe. Foi em 1830 que Berlioz compôs sua Symphonie Fantastique, em cinco movimentos altamente originais. No ano seguinte viveria pouco mais de TÓPICO 2 | UMA NOVA GERAÇÃO DE COMPOSITORES 117 um ano na Itália e continuou a compor, retornando a Paris para promover seu trabalho. Nesta fase de sua vida, importantes composições podem ser apreciadas, como Haroldo na Itália, Benvenuto Cellini, Grande messe des morts, Roméo et juliette, Grand symphonie funèbre et trimphale, Les nuits d’été (SADIE, 1994). Infelizmente, o público considerou a obra de Berlioz extravagante e excêntrica e alguns a classificaram como “incorreta”, e dessa forma, o tão esperado prestígio e reconhecimento não foi alcançado. Isto também se deu pelofato dele utilizar em sua música regras que afastam sua obra das formas estabelecidas pelo classicismo e que assim não seriam tão populares. Berlioz se viu forçado a recorrer ao jornalismo como fonte de renda, escrevendo para a Gazette musicale e o Journal des débats. Fora da França, sua obra alcançaria maior prestígio e assim Berlioz se pôs em turnês pela Alemanha, Áustria, Rússia, Inglaterra, além de outros países. Agora sim, o compositor foi reconhecido como de vanguarda, da mesma forma, o reconhecimento como excelente regente. Produziu obras como La damnation de Faust, Te Deum, L’Enfance du Christ e Béatrice et Bénédict (1860-62). No âmbito de sua vida pessoal, Berlioz foi amigo de Wagner e Liszt, mas essa amizade não foi duradoura. Sofreu perdas: seu pai, duas esposas e também perdeu seu filho Louis (1867), que alicerçadas às decepções profissionais, acentuaram um quadro depressivo em seus últimos anos. Assim, Berlioz resolveu se isolar, mantendo seu espírito idealista e manifestando uma forte imaginação, mas ao mesmo tempo demonstrava mudanças repentinas de humor. Em sua obra, vários elementos caracterizam sua singularidade: Apesar do estilo de composição de Berlioz há muito ser considerado idiossincrático, é fácil ver que se apoia em uma abundância tanto de técnica quanto de inspiração. São típicas as melodias expansivas com frases de duração irregular, às vezes com uma leve inflexão cromática, e harmonias expressivas, ainda que não muito audaciosas do ponto de vista tonal. Predominam as texturas livremente contrapontísticas, usadas para uma variedade de requintados efeitos, incluindo a superposição de temas isolados (SADIE, 1994, p. 101). Berlioz registrou seu nome na história da música também por ser exímio orquestrador, em maneiras sutis de combinar os instrumentos em timbres delicadamente selecionados. Sua contribuição para a musicologia também se deu no seu trabalho como crítico musical, com seus textos sobre Gluck e Beethoven e certas críticas a respeito de Wagner. Sua última crítica publicada foi a respeito da ópera Les Pêcheurs de perles (Os pescadores de pérolas), de Georges Bizet. Seus últimos anos foram marcados pela depressão e seus últimos dias viveu praticamente dormindo em sua casa em Paris. Morreu em 8 de março de 1869, de forma tranquila, pois estava indiferente a tudo. Seu enterro foi oficial, repleto de solenidades, e a este respeito escreve Claude Ballif: “Paris, que Berlioz tanto quis conquistar, cometeu um último equívoco em relação a este grande criador, devorado pela própria obra, excessiva, mal compreendida e sempre em divergência: concedeu-lhe aquilo que menos condizia com sua pessoa: a banalidade pomposa” (MASSIN, 1997, p. 711). UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 118 4.6 FELIX MENDELSSOHN BARTHOLDY (1809-1847) Mendelssohn aprendeu na infância, ao mesmo tempo, grego, francês, latim e inglês e posteriormente o italiano, e igualmente cresceu rodeado de boa música e sob os textos de Goethe. O compositor nasceu em Hamburgo, na Alemanha, e sua origem é judaica. Porém, sua família (seu pai possuía casas bancárias) decidiu que os filhos seriam todos batizados na religião luterana e assim o fizeram, abrindo mão de uma tradição de dezenas de anos. Felix tornou-se um excelente pianista e um regente audacioso, um educador fervoroso que fundou um Conservatório e, além disso, foi um desenhista de muito talento (MASSIN, 1997). No entanto, Mendelssohn foi alvo de críticas, como as do filósofo Friedrich Nietsche (1844-1900), que afirmou que o compositor seria “um belo acidente da música alemã”, ou ainda “uma música que sempre olha para trás” (MASSIN, 1997, p. 714). A ampla educação no âmbito cultural com que Mendelssohn foi agraciado fez com que o compositor transitasse mais no desenvolvimento de valores classicistas e pré-românticos ao invés de novas descobertas e explorações de novos caminhos. Sua família passou a viver em Berlim ainda quando Felix tinha apenas quatro anos, e aos dez tinha como professor de música Carl Friedrich Zelter (1758-1832), músico influente e amigo de Goethe, na casa de quem Felix seria bem recebido cada vez que passasse nas redondezas do grande escritor. E dali uma amizade sólida se fez, entre Felix e Goethe, algo que Schubert tanto desejou, assim como Beethoven e Weber e tantos outros compositores. Quando Felix tinha seus 20 anos, já possuía muitas composições: os três Quartetos para piano e cordas opus 1, 2 e 3, o Sexteto para piano e cordas opus 110, o Octeto para cordas opus 20, o primeiro Concerto para piano e orquestra em lá menor, e seu professor Zelter afirmaria que nada mais haveria de ensinar-lhe, pois Felix já seria um mestre. Compôs também a famosa abertura Sonho de uma noite de verão opus 21, a qual Robert Schumann a definiu como “um derramamento de juventude”, e os musicólogos atuais definem esta obra em particular como um feito notável, composto por alguém tão jovem (MASSIN, 1997). O estilo de Mendelssohn reflete os ideais clássicos, apresentando características da música de Bach, no que diz respeito às técnicas da fuga; de Haendel no que trata de ritmos e progressões harmônicas, e também Mozart, em sua ênfase dramática e formas. Além disso, sua técnica instrumental remete a Beethoven. Mendelssohn gozava de uma grande reputação como compositor e regente no ano de 1846, assim como sua total independência como artista. Porém, estava sofrendo de fortes enxaquecas, e por orientação médica decidiu abandonar sua atividade como concertista. Ainda escreveu algumas importantes obras, mas as fortes dores de cabeça o faziam desfalecer com frequência. Faleceu em 4 de novembro de 1847, com apenas 38 anos de idade (SALVAT, 1984). 119 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Um dos triunfos da música no período romântico foi sua emancipação como arte, afastando-se da função social pública e puramente ornamental para se tornar independente e autônoma. • O movimento positivista de Augusto Comte (1798-1857) contribuiu para a valorização da música antiga e a sua libertação de funções sociais, emancipando- se e tomando seu lugar nas belas artes. • Havia também música para todos os gostos e todas as ocasiões, e dessa forma sempre houve e sempre haverá uma música que também tenha sua função social, com conotações políticas, como é o caso da ópera Nabucco, de Giusepe Verdi (1813-1901), que representa um símbolo da libertação dos italianos. • Compositores da virada do século XVIII-XIX: Johann Nepomuk Hummel foi aluno de Haydn; Ernst Theodor Amadeus Hoffmann foi um seguidor e admirador da obra de Mozart e Beethoven; Ludwig Spohr é considerado um herdeiro da estética da primeira escola de Viena, foi violinista, regente e compositor; Carl Maria von Weber era primo de Constanze Weber (esposa de Mozart), foi um dos mais importantes do seu período; Carl Czerny foi professor e compositor de música para piano, aluno de Haydn e mais tarde professor de Liszt. • No período romântico ocorreu um salto no desenvolvimento dos instrumentos musicais, sobretudo nos instrumentos de sopro, com melhorias nas madeiras (clarinete, oboé, flauta) e também a invenção das válvulas (pistos) nos trompetes e trompas, permitindo cromatismo e todas as possibilidades em termos de tonalidade. • A figura do regente torna-se crucial para o bom andamento da orquestra, em virtude do aumento do número de integrantes e a inserção de novos instrumentos, aumentando a variedade de timbres, e também da necessidade de coesão da obra de arte musical. Hans von Bülow foi o primeiro regente profissional no período romântico. • O aprimoramento técnico no piano capacitou este instrumento para novas qualidade sonoras, o que motivou Beethoven para novas experiências na música para piano. O instrumento apresentava mais notas (mais teclas), melhor qualidade de produção sonora e tamanho maior, com plena capacidade para oferecer concertos em grandes salas. 120 • Franz Liszt foi um exímiopianista e compositor. Desenvolveu o poema sinfônico como seu principal gênero de composição, que não obedece às formas tradicionais e baseia-se em ideias literárias ou pictóricas. Suas principais composições são para o piano. • Frédéric Chopin foi um virtuose ao piano e compôs várias polonaises e mazurcas, exaltando o seu país de origem. • Robert Schumann foi crítico musical, compositor e pianista, explorou intensamente o espírito romântico no seu estilo de composição. Schumann alcançou o notável em obras pequenas, sendo inovador nos aspectos fantasiosos do romantismo alicerçado a um profundo conhecimento teórico. • Richard Wagner foi um compositor que promoveu a ópera a um dos mais elevados estágios, buscou a essência da música alemã, unindo todas as belas artes (música, teatro, artes plásticas) culminando no gênero da ópera. • Hector Berlioz tem como uma de suas principais obras a Sinfonia Fantástica, em cinco movimentos. Com sua forte imaginação, compôs obras inovadoras, mas que foram bem recebidas somente em outros países. Mostrou-se um exímio orquestrador, inspirado pela obra de Beethoven. • Felix Mendelssohn Bartholdy era filho de bancário e sua infância foi repleta de boa educação. Mostrou-se um excelente pianista e hábil artista plástico. Sua obra transita em valores do classicismo e pré-românticos. 121 AUTOATIVIDADE 1 De origem humilde, nasceu na ala dos serviçais do castelo da condessa Skarmbek, porém, teve uma infância com uma boa educação. Sua família se mudou para Varsóvia e lá recebeu as primeiras lições de piano de sua mãe. Quando tinha apenas 15 anos, teve sua primeira obra publicada por uma importante editora musical: seu Rondó nº 1 em dó menor, que demonstra influências de Weber e de Hummel. A respeito do texto acima, assinale a alternativa que compreende o compositor autor do Rondó nº 1 em dó menor: a) ( ) Johann Nepomuk Hummel. b) ( ) Robert Schumann. c) ( ) Franz Liszt. d) ( ) Frédéric Chopin. e) ( ) Carl Maria von Weber. 2 Assinale a opção que completa a sequência correta no texto a seguir: Os compositores do início do século XIX foram altamente influenciados pela obra Fausto, de Goethe, assim como receberam forte influência da música de Beethoven. Assim, grandes obras-primas de alguns compositores marcam o início do romantismo, dentre as quais podemos destacar a Symphonie Fantastique (1830), do compositor _________________; a ópera ________________, de Richard Wagner; a __________________________ de Frédéric Chopin. Da mesma forma, ainda se destacam no campo da música o primeiro regente profissional, segundo os historiadores, que foi _____________________ também um dos mais importantes pensadores da estética da música, _________________ com seu texto Do Belo Musical. a) ( ) Franz Schubert – Genoveva – Sonata em si menor – Hector Berlioz – Eduard Hanslick. b) ( ) Hector Berlioz – Rienzi – Grand Valse Brillante op. 18 – Hans von Bülow – Eduard Hanslick. c) ( ) Hector Berlioz – Alfonso und Estrella – Beatitudes – Felix Mendelssohn – Friedrich von Schiller. d) ( ) Franz Liszt – Fidelio – Intermezzo – Theobald Böhm – Robert Schumann. e) ( ) Richard Wagner – Rienzi – Symphonie Fantastique – Hans von Bülow – Heinrich Stölzel. 122 3 Enumere a segunda coluna de acordo com a primeira: 1 – Félix Mendelssohn ( ) Poema sinfônico 2 – Frédéric Chopin ( ) Ópera Nabucco 3 – Giuseppe Verdi ( ) Polonaise em ré menor e Mazurca em lá menor 4 – Robert Schumann ( ) Sonho de uma noite de verão opus 21 5 – Richard Wagner ( ) Castelo Neuschwanstein 6 – Franz Liszt ( ) Redator-chefe do Neue Zeitschrift für Musik Considerando a relação anterior, a sequência correta é: a) ( ) 6 – 3 – 1 – 4 – 2 – 5. b) ( ) 3 – 6 – 2 – 1 – 4 – 5. c) ( ) 6 – 3 – 2 – 1 – 5 – 4. d) ( ) 1 – 5 – 4 – 2 – 6 – 3. e) ( ) 4 – 3 – 1 – 6 – 2 – 5. 123 TÓPICO 3 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O século XIX foi palco de eventos que influenciaram fortemente todos os continentes, desde a Revolução Industrial, as guerras que promoveram a queda de impérios e ascensão de outras potências, das publicações científicas da Teoria da Evolução de Charles Darwin (1809-1882) e das concepções filosóficas de Karl Marx e Friedrich Engels (1820-1895), assim como a independência do Brasil de Portugal e uma série de outros acontecimentos históricos. Na segunda metade do século XIX, face a tamanhas revoluções em diversas áreas de conhecimento, e também diante dos acontecimentos após as guerras napoleônicas e o Congresso de Viena, a música não poderia permanecer a mesma. O sentimento patriótico e nacionalista tende a se inflamar e a afirmação da identidade nacional se dará também pela música. Neste aspecto, surge o movimento nacionalista em vários países, não somente na Europa. 2 MÚSICA NACIONALISTA O sentimento romântico que evoca os ares heroicos exerceu nos compositores a necessidade de criarem uma música que remetesse às suas origens. Até a primeira metade do século XIX, as influências germânicas eram predominantes na maneira de compor música. Neste momento da história, emergiu um movimento caracterizado como música nacionalista: elementos da música folclórica de cada país seriam utilizados pelos compositores na criação de uma música que refletisse as aspirações do passado, mas que mantivesse a identidade do seu povo de origem. Desta forma, compositores de outros países, como a Rússia, a Boêmia (futuramente Tchecoslováquia) e também da Noruega libertaram-se das influências germânicas e adotaram o estilo próprio de suas nações. Este movimento caracterizou-se como o nacionalismo no romantismo (BENNETT, 1986b). 124 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) Os países germânicos, por sua vez, também adotaram o nacionalismo. Na Alemanha, Johannes Brahms (1833-1897) usou muito a música folclórica alemã, assim como Richard Wagner. Na Itália, as óperas de Giuseppe Verdi (1813-1901) são definitivamente óperas italianas, não importa qual tema usado por Verdi. Também na França, Claude Debussy (1862-1918) utilizou estes critérios. Na Espanha, este movimento se deu com os compositores Isaac Albéniz (1860-1909), Enrique Granados (1867-1916) e Manuel de Falla (1876-1946). Os espanhóis absorveram seus elementos intrínsecos às danças e canções e, de tão exuberantes, conquistaram a admiração e inspiração de compositores de outros países, como Korsakov com seu Capricho Espanhol e Georges Bizet (França) com a ópera Carmen (BENNETT, 1986b). Nas Américas, o nacionalismo assumiria formas um tanto diferentes: Na América do Sul, a ênfase foi dada ao uso de ritmos de dança de significado regional, enquanto nos EUA o espírito nacional foi expressado com mais firmeza, através de formas caracteristicamente norte-americanas, como o jazz e o musical (apesar de idiomas essencialmente norte-americanos também terem sido usados no contexto de formas musicais de base europeia) (SADIE, 1994, p. 642). Uma obra nacionalista pode ser assim considerada se ela expressa fortes características sobre seu país e que se reconhece facilmente sua identidade. O interessante neste aspecto da música romântica é que não se abandonou a maneira germânica de fazer música e, sim, adaptou-se uma tradicional teoria musical em novas possibilidades de composição. O material de composição se dá pelo encadeamento dos acordes (harmonia característica de cada região) e ritmos próprios derivados de danças e canções folclóricas, e muitas vezes ocorrem alternâncias de compassos em binário, ternário e/ou quaternário. O material temático é proveniente do cotidiano das pessoas, de lendas e histórias muitas vezes fantasiosas e são compostas na forma de poemas sinfônicos e óperas (BENNETT, 1986b). Por outro lado, características nacionalistas em música são mais antigas que o período romântico: os compositores e teóricos dos séculos XVI e XVII já tinham consciência de que elementos de sua música poderiam evocar sentimentos patrióticos, e já noséculo XVIII, compositores na Grã-Bretanha utilizavam elementos folclóricos em suas composições. No entanto, o movimento nacionalista do século XIX era mais consciente nesta afirmação de tradições nacionais. Na Rússia, um dos primeiros compositores a imprimir o sentimento nacionalista em suas obras foi Mikhail Glinka (1804-1857), com a ópera Uma Vida pelo Czar, de 1836. Este seria o marco do nacionalismo neste país. É importante ressaltar que foi a nação russa que venceu o império napoleônico em 1812 e que sempre foi “um povo orgulhoso de sua singularidade havia séculos” (MASSIN, 1997, p. 819). A Rússia, no entanto, carecia de uma independência cultural, face ao regime político em que vivia, em que a nobreza dominava o exército, exercendo forte influência na administração e dominava os territórios onde os TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 125 camponeses trabalhavam em um regime de servidão. Todos estes nobres, apesar de tudo, eram estudados na Europa: falavam francês nos salões da aristocracia e uma vasta literatura francesa podia ser encontrada nas bibliotecas russas. Mesmo alguns príncipes, mal sabiam o idioma de sua terra natal. O próprio Glinka passou uma temporada na Itália e lá convenceu-se de que os elementos folclóricos da Rússia poderiam lhe fornecer um vasto material temático para uma música autenticamente russa. Se, no campo da literatura, a Rússia vivia nos moldes franceses, na música a influência seria principalmente da Itália e um remoto grupo com os olhares para Viena. “Os príncipes Razumovski e Galitzin imortalizaram-se encomendando quartetos de cordas a Beethoven (números 7, 8 e 9, no caso do primeiro; 12, 13 e 15, no do segundo), situação típica de uma expatriação cultural dos privilegiados mais refinados” (MASSIN, 1997, p. 820). Anos mais tarde, na década de 1860, um grupo de compositores russos, os quais foram chamados de Grupo dos Cinco, propôs-se a compor uma música genuinamente russa. Conhecidos na Rússia como “Mogutch aya Kutchka” (Grupo Poderoso) os músicos compositores (quase todos autodidatas) Mily Balakirev (1837-1910), Aleksandr Borodin (1833-1887), César Cui (1835-1918), Modest Mussorgsky (1839-1881) e Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) uniram- se e criaram obras que permanecem como repertório tradicional nas grandes orquestras, assim como repertório fundamental para os estudantes de música da atualidade. Balakirev foi quem incentivou a união deste grupo e dedicou muitos anos para elaborar e aperfeiçoar um número menor de composições. Curiosamente, em 1872, Balakirev ocultou-se da vida musical para trabalhar em uma companhia ferroviária. O Grupo dos Cinco continuou com sua firme proposta de oposição ao ensino tradicional de música vindo do Ocidente e elaborou toda uma escola baseada no folclore, “nos cantos populares ou nos cantos religiosos da Igreja Ortodoxa” (MASSIN, 1997, p. 822). FIGURA 10 – O GRUPO DOS CINCO 126 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) Da esquerda para a direita: Mily Balakirev, Aleksandr Borodin, César Cui, Modest Mussorgsky e Nikolai Rimsky-Korsakov. FONTE: <http://knoow.net/wp-content/uploads/2016/06/>; <http:// www.rsc.org/diversity/175-faces/all-faces/alexander-borodin/>; <https://goo.gl/n3Qdpo>; <https://goo.gl/CqLx11>; <https://goo.gl/rrmfpw>. Acesso em: 25 dez. 2018. Korsakov possui uma história no mínimo interessante! Foi oficial da Marinha Russa e aos 31 anos ingressou no ensino tradicional em música, não compondo em um período de cinco anos, dedicados aos estudos. Contrariamente às propostas do Grupo dos Cinco, ingressou como professor de técnica musical no Conservatório de São Petersburgo. Influenciado pela música de Berlioz (assim como os outros quatro), Korsakov foi extremamente bem-sucedido na escrita orquestral, em virtude de seus anos como militar. Foi na Marinha que aprendeu a tocar quase todos os instrumentos de sopro, conhecendo assim as tessituras e registros ideais para cada instrumento, assim como as fragilidades particulares de cada instrumento. Exemplo disso é o Concerto para Trombone, escrito em 1877 em três movimentos para banda de música militar. Passagens extremamente virtuosas e de muito efeito se encaixam nas possibilidades naturais do trombone – Korsakov era trombonista. Artista excêntrico, mantinha o hábito de jogar futebol nos lagos congelados de São Petersburgo, durante o intenso inverno russo. Procure ouvir as obras destes compositores no portal Youtube, principalmente a suíte sinfônica Sheherazade (1888), de Rimsky-Korsakov. A obra foi inspirada nos contos das mil e uma noites, o que demonstra o interesse do compositor pelo Oriente. Sheherazade é uma princesa que se casa com o desiludido sultão Schariar, que ordenava executar suas esposas após a noite de núpcias. Sheherazade persuadiu o sultão contando várias histórias e lendas, atraindo seu interesse e dessa forma preservou sua vida. O tema de Sheherazade é tocado num solo do primeiro violino em tonalidade menor, enquanto que o tema do sultão (também em tonalidade menor) pelos instrumentos graves da orquestra. A obra segue contando as histórias de Sheherazade, em movimentos variados de acordo com as histórias. Outra obra igualmente interessante e singular é Quadros em uma Exposição (1874), de Modest Mussorgsky, composta para piano. Nesta, o TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 127 compositor faz homenagem ao seu amigo pintor Viktor Hartmann, falecido em 1873, musicalizando os quadros do amigo. Mussorgsky organizou esta obra da seguinte maneira: QUADRO 1 – OBRA “QUADROS EM UMA EXPOSIÇÃO”, DE MUSSORGSKY. MOVIMENTOS E SUAS CARACTERÍSTICAS Quadros em uma Exposição – Modest Mussorgsky Nome do movimento Caráter e andamento do movimento I – Promenade (passeio) Allegro giusto, nel modo russico, senza allegrezza, ma poco sostenuto. II – Gnomus (gnomo) Sempre vivo. III – Promenade Moderato comodo assai e com delicatezza. IV – Il Vecchio Castello (o castelo antigo) Andante molto cantábile e com dolore. V – Promenade Moderato non tanto, pesante. VI – Tuileries Allegretto non tropo, cappricioso. VII – Bydlo (carro de bois) Sempre moderato, pesante. VIII – Promenade Tranquillo. IX – Ballet des Petits Poussins dans leurs Coques (balé dos pintinhos sob suas cascas de ovos) Scherzino. X – Samuel Goldenberg er Schmuyle Andante grave, enérgico. XI – Promenade Allegro giusto, nel modo russico, poco sostenuto. XII – Limoges, Le Marché (o mercado em Limoges) Allegretto vivo, sempre scherzando. XIII – Catacombae, Sepulcrum Romanum Largo. XIV – Cum Mortis in Lingua Mortua (com os mortos em língua morta) Andante non tropo, com lamento. XV – La Cabane de Baba-Yaga sur de Pattes de Poule (a cabana da bruxa sob pés de galinha) Allegro com brio, feroce. Andante mosso. Allegro molto. XVI – La Grande Porte de Kiev (o grande portal de Kiev) Allegro alla breve. Majestoso. Com grandeza. FONTE: Adaptado de Mussorgsky (1983) Você pode ouvir cada movimento desta obra separadamente ou, o que é melhor, a obra inteira. No VII – Bydlo, por exemplo, a música retrata o carro de boi passando. A música surge com poucos instrumentos, como se o carro de bois estivesse vindo de longe, até aproximar-se de você – e neste ponto a música está muito intensa, pesada e com instrumentos graves, nos dando a sensação de que o carro de bois está pesado, lento e sofrido. A música vai se acalmando, como se o carro já tivesse passado e agora está longe. Por isso a orientação sempre moderato, pesante, justamente para manter o tempo e imprimir o caráter à música. 128 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) Na Boêmia, embora compositores como František Škroup (1801-1862), que em suas óperas utilizou estes elementos, seriam Bedřich Smetana (1824-1884) e Antonín Dvořák (1841-1904) os compositores que mais fortemente dedicaram suas composições no espírito nacionalista. A Noiva Vendida é uma ópera cômica de Smetana que teve sua estreia em 1886 e é inspirada na vida campestre de sua terra. Suas obrasmais famosas são, no entanto, os poemas sinfônicos O Moldávia e Minha Pátria. Por outro lado, Dvořák escreveu também poemas sinfônicos, mas inspirados nas macabras lendas tchecas, por exemplo, O Espírito das Águas. Na Boêmia, o movimento nacionalista causou forte impacto, pois esteve fortemente ligado ao movimento de separação da Áustria. O nacionalismo na música se espalhou Europa afora: “outros países do leste europeu mostraram-se igualmente motivados e criaram obras nacionalistas, como a ópera polonesa Halka (1848), de Moniuszko, e a Hunyadi László (1844), de Erkel, apesar do nacionalismo húngaro só ter se inflamado com Kodály e Bartók” (SADIE, 1994, p. 641). DICAS Ouça a Sinfonia nº 9 em mi menor (op. 95) de Antonin Dvořák. É um dos seus trabalhos mais famosos e foi escrita quando o compositor estava nos Estados Unidos. Elaborada em quatro movimentos, I – Adagio, II – Largo, III – Scherzo e IV – Allegro com fuoco, tem ao total cerca de 50 minutos de música. Recomendamos em especial o movimento II – Largo, pois apresenta um dos mais famosos temas de Dvořák. Ao Norte vamos encontrar a Noruega, em que o compositor Edward Grieg (1843-1907) soube imprimir os traços noruegueses em sua obra. Sua suíte Peer Gynt (um de seus trabalhos mais famosos, escrita em 1875) é o nome da peça teatral que leva o mesmo nome, escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. A música fala dos personagens e acontecimentos da peça teatral e foi elaborada em quatro movimentos: I – manhã, II – A morte de Aese, III – Dança de Anitra e IV – No Palácio do Rei da Montanha. O primeiro e o último movimento são extremamente conhecidos e popularizados em todo o mundo. 3 O CENTRO DA MÚSICA OCIDENTAL E A ÓPERA ITALIANA Viena tornar-se-ia o principal centro político da Europa, o que se estendeu até o ano de 1848. Após as invasões de Napoleão e os eventos do Congresso, o comando do império Austro-Húngaro estaria a cargo de Francisco José, que levou a cidade para o progresso e a estabilidade econômica. E, de fato, Viena respirou bons ares, pois os cafés e restaurantes eram abundantes, mas também novos edifícios foram construídos, como museus, óperas e universidades. A dança faz parte desse contexto, como um verdadeiro símbolo da boa vida vienense, sob o título da valsa Wein, Weib und Gesang (Vinho, mulher e canto), de Johann Strauss Filho (1825-1899). TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 129 O exímio violinista Johann Strauss (1804-1849), o pai, fundou a sua própria orquestra em 1825 e se apresentava como um compositor com um vasto repertório de música para dança. Recebia muitos visitantes e personalidades, como Richard Wagner e Frédéric Chopin. Uma das mais famosas marchas de Strauss pai, sem dúvida, é a Radetzky Marsch. A maior contribuição da família Strauss se dá justamente na criação da valsa vienense, cuja elegância e vivacidade é única: Bem enquadrada em uma sólida armadura de 32 compassos divididos em quatro vezes oito compassos (o jazz haveria de lembrar-se disso), a valsa de Johann Strauss pai, robusta, sólida, enérgica, ainda mostrava suas raízes populares (o Ländler); a do filho fez-se mais delicada, mais cuidada: em uma palavra, mais “mundana”. A introdução – obrigatória desde Aufforderung zum Tanz (convite à dança, mais conhecida como convite à valsa) de Weber – e a coda foram prolongadas [...] (MASSIN, 1997, p. 774). Entre as valsas mais famosas de Strauss, podemos citar (já em português) Sobre o Belo Danúbio Azul (1867), Contos dos Bosques de Viena (1868), Sangue Vienense (1873) e a Valsa do Imperador (1889). Apesar de serem consideradas extremamente populares, apresentam um refinamento e delicadeza que é típico do estilo de Strauss e foi motivo de admiração de outros compositores, como Wagner, Liszt e Brahms (MASSIN, 1997). No entanto, Viena também seria palco de múltiplas atividades artísticas, entre as quais os espetáculos humorísticos unindo música. Havia a vontade da criação de uma opereta nacional e o compositor francês Jacques Offenbach (1819-1880) foi quem plantou esta semente. Em uma de suas turnês por Viena, em 1860, Offenbach sugeriu a Strauss que trabalhasse no gênero da opereta, no entanto, Strauss resistiria algum tempo a se aventurar neste gênero. Assim, foi Franz von Suppé (1819-1895) quem abriu os caminhos apresentando O Pensionato (1860). Somente a partir de 1871, Strauss pôs-se a escrever operetas, e o fez elevando este gênero ao grau de nobreza (MASSIN, 1997). Entre as operetas mais famosas e importantes de Johann Strauss Filho está Die Fledermaus (O Morcego). Diferente do espírito nacionalista, Viena conservaria sua multiplicidade e as operetas de Strauss sempre apresentaram os elementos estrangeiros em sua origem. A opereta vienense se difere da opereta tradicional, pois a primeira não se trata de uma caricatura de ópera e, sim, um gênero novo e independente, e Strauss sempre a concebeu dividida em três atos. A genialidade de Strauss foi em inserir a valsa vienense na opereta, o que trouxe originalidade. Die Fledermaus foi um sucesso estrondoso com seus personagens: um marido que foge, uma esposa fiel injustamente acusada de traição, uma empregada atrevida e um apaixonado mostram-se como cenas do cotidiano. Também a composição musical é repleta de equilíbrio com o texto. A opereta vienense mostra-se com um reflexo da vida da nobreza, misturando o espírito romântico da fantasia com a valsa: sonho e realidade em um momento em que Viena vive seu pleno desenvolvimento. 130 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 3.1 A ÓPERA ITALIANA Rossini certamente é o grande nome da ópera italiana, sobretudo com a obra Elisabeth, rainha da Inglaterra, de 1815, uma ópera dramática, e um ano depois, com O Barbeiro de Sevilha, uma ópera bufa. Mas haveria dois compositores que elevariam o gênero da ópera no mais alto grau de exploração técnica: Donizetti e Bellini. Gaetano Donizetti (1797-1848) nasceu em Bérgamo e alistou-se no exército austríaco, onde encontrou o tempo necessário para compor sua primeira ópera: Enrico di Borgogna, que teve sua estreia em Veneza, em 1818. Sua vida militar seria curta, em vista do interesse exclusivo pela música. Compôs mais quatro óperas, ofuscadas pelo sucesso e pela popularidade das óperas de Rossini, assim como a concorrência de outros jovens compositores italianos, como o próprio Bellini. Os jovens compositores italianos viam na ópera um meio para expressar seus desejos políticos de unificação do país. Donizetti encontrou o sucesso com a ópera Ana Bolena (1830) não só na Itália, mas também em outros países. Em suas óperas dramáticas, Donizetti coloca tudo em favor da voz humana, em que toda a orquestra é estruturada como apoio para que os cantores pudessem exibir todo o seu talento. Nesse sentido, quase todas as óperas dramáticas de Donizetti são muito semelhantes. No entanto, na ópera cômica, Donizetti consegue mostrar que seu lado cômico é tão eficiente quanto o de Rossini, como se pode ver em O Tutor Embaraçado, de 1823, e O Elixir do Amor, de 1832. Em Paris, em 1840, o compositor realizou as óperas A Donzela do Regimento e Os Mártires. Esta última foi censurada na Itália por entenderem que o tema seria “grave demais para ser levado à cena” (MASSIN, 1997, p. 674). Ainda em Paris, no ano de 1844, Donizetti sofreu uma doença mental, ocasionada pela sífilis, e faleceu em 1848, em Bérgamo, na Itália. O compositor criou mais de 70 óperas. Vincenzo Bellini (1801-1835), por sua vez, mantinha uma rivalidade com Donizetti, porém, não produziu mais de dez óperas. No entanto, já aos cinco anos de idade tocava muito bem o piano e aos seis escreveu seus primeiros esboços de composição, mantendo aulas com seu avô. Estudou no Conservatório de Nápoles, onde em 1825 escreveu sua opera semisséria, Adelson e Salvini, o que lhe rendeu prestígio suficiente para ter encomendas do Teatro San Carlo e do Teatro La Scala de Milão (SADIE, 1994). Para Milão, escreveu a primeira ópera: OPirata (1827), alicerçando sua carreira com o libretista Felice Romani. Em O Pirata, Bellini surpreende pelo estilo lírico inédito, com bases no estilo de Rossini, mas que amplia a força dramática da emoção. Foi com esta obra que Bellini se consagrou como um grande compositor operístico da Itália, onde outros compositores, como Donizetti, Verdi, Pacini e Mercadante, beberiam desta profícua fonte. Bellini busca sempre uma estreita relação com o texto, “ele não busca o delineamento musical do personagem, mas o conteúdo e o clima de cada cena perpassam toda a interpretação musical TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 131 e o texto é declamado com precisão” (SADIE, 1994, p. 92). Bellini diferenciou claramente as características entre ária e recitativo, enriquecendo ambas. A ária consiste em uma canção isolada, como parte de uma obra mais complexa, escrita para solistas cantores com acompanhamento da orquestra, enquanto que o recitativo dá “ênfase especial ao texto falado, cuja acentuação natural determina o contorno natural das frases” (DOURADO, 2004, p. 274). DICAS Ouça no Youtube a famosa cavatina (tipo de ária lenta e simples), Casta Diva, da ópera Norma, de Bellini. Exemplo do delineamento melódico, este fragmento da obra é construído de forma ampla, por motivos de normalmente dois compassos. Até o ano de 1833, Bellini viveu em Milão e viu suas óperas La Sonnambula e Norma alcançarem grande sucesso, inclusive fora da Itália. Foi nesses anos que Bellini envolveu-se em um romance com Giuditta Cantù, esposa de um latifundiário e fabricante de seda. Suas óperas foram encenadas em Londres, ocasião em que o próprio compositor se fez presente. Posteriormente, viajou a Paris, e esta foi a ocasião na qual conheceu pessoalmente Gioachino Rossini e Frédéric Chopin. Adoeceu em 1835, ainda em Paris, no mês de setembro faleceu “de inflamação aguda do intestino grosso complicada por um abcesso no fígado, de acordo com o relatório da autópsia” (SADIE, 1994, p. 92). A sua obra em ópera séria é o grande legado para a posteridade. 4 OS FILHOS DO SÉCULO XIX: OS PÓS-ROMÂNTICOS A música no período pós-romântico manteve muito de suas características anteriores, pois seus compositores se preocuparam em manter a forma e a estética romântica, algumas vezes adaptando-as ao gosto da burguesia (cada vez mais rica). Algumas destas características podem se mostrar um tanto exageradas, como o virtuosismo em excesso e as formas demasiadamente ampliadas. O tamanho da orquestra tornou-se gigantesco, de acordo com as exigências da obra musical, e de certa forma, isso tornou-se um problema. De maneira confusa, pode-se dizer, os caminhos da música para o século XX estariam ali sendo delineados (SALVAT, 1984). Nas épocas anteriores, as obras dos compositores eram “consumidas” rapidamente e dificilmente havia várias execuções da mesma obra. Assim, as ousadias em música ficaram restritas às novas propostas, ou seja, o desenvolvimento formal estaria preso às condições de performance. No romantismo o compositor estava livre, pois o que era novo era bem-aceito e parece que o fenômeno de não ser compreendido perante sua obra de arte seria algo comum entre os compositores. 132 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) 4.1 JOHANNES BRAHMS (1833-1897) Brahms nasceu em Hamburgo, de família humilde, seu pai tocava diversos instrumentos em pequenos grupos populares. Carregou consigo a influência de leituras dos literatos alemães e canções e hinos religiosos na voz suave de sua mãe, um amor materno que marcaria a vida do jovem. Seu pai logo viu no menino todo o talento e possibilidades musicais a que não teve oportunidade e tratou de proporcionar ao filho a melhor educação musical possível. Aos sete anos conseguiu ter aulas de piano e podia com frequência visitar a empresa de pianos Baumgartner, para praticar no instrumento. Logo aos dez anos, Brahms tinha condições de se apresentar em concertos, o que beneficiaria a família financeiramente, mas logo desistiram da ideia em favor da boa educação. Brahms foi encaminhado para importantes professores que o encorajaram a compor. A precária situação financeira da família forçou o jovem a tocar em um café-concerto próximo aos portos de Hamburgo: Ali, num ambiente absolutamente impróprio para uma criança de sua idade, Brahms tocava ao piano canções ligeiras, que fazia as delícias dos marinheiros e prostitutas. Felizmente, a figura cândida do menino de melena dourada e olhos azuis, de corpo pequeno e semblante pálido, despertava naquelas mulheres sentimentos maternais que exteriorizavam em toscas manifestações de carinho (SALVAT, 1984, p. 179). Os anos se passaram e em 1853, em uma turnê, conheceu Franz Liszt e Robert Schumann. Brahms apaixonou-se pela esposa de Robert, Clara Schumann, 14 anos mais velha que Brahms. Estabeleceu-se em 1859 em Hamburgo como diretor de um coro feminino e era famoso como pianista, mas ainda não como compositor, devido à sua declarada oposição à estética musical de Liszt e da Nova Escola Alemã. Brahms conseguiria uma forte posição em 1863-4, como diretor da Singakademie de Viena, e neste período conheceu Richard Wagner. Da mesma forma que com Liszt, Brahms não conseguiu manter amizade com Wagner, devido às discordâncias estéticas da música. Realizou concertos pela Europa e estabeleceu-se definitivamente em Viena em 1868 (SADIE, 1994). Realizou um breve período em regência na Gesellschaftskonzerte de Viena em 1872-3, mas sua ambição para a composição lhe tomou o tempo, conflitando com o ofício em Viena. As obras Réquiem Alemão e Variações Santo Antonio deram fama internacional ao compositor, assim como segurança financeira. Depois desse sucesso, outras obras magníficas estariam por vir: a sua Primeira e Segunda Sinfonia, o Concerto para Violino (1878) e o Trio em Dó Maior. A Primeira Sinfonia exigiu de Brahms 15 anos de estudos e preocupações, principalmente pelo estilo estético que adotara. Lembre-se de que Brahms mantinha oposição às inovações românticas de Liszt e, assim, compôs esta sinfonia nos moldes clássicos, justamente em uma época em que a música programática estava em moda. A Primeira Sinfonia de Brahms levou a crítica a consagrar o compositor de Hamburgo como legítimo herdeiro de Beethoven (SADIE, 1994). TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 133 Brahms encontrou na pessoa de Hans von Bülow um apoiador para que pudesse ensaiar com a orquestra da corte de Meiningen sua Quarta Sinfonia (1885). Hans von Bülow declarou que Brahms seria o “terceiro B” alemão, formando assim os grandes alicerces da música daquele país: Bach, Beethoven e Brahms. Em 1890 decidiu parar de compor, mas ainda surgiriam obras brilhantes, inspiradas pelos amigos. Clara Schumann faleceu em 1896 e após este duro episódio em sua vida, Brahms ocupou-se do tema da morte em suas composições. Já apresentava claros sinais de câncer – doença que havia levado seu pai, e em 7 de março de 1897 foi realizado um concerto apresentando sua Quarta Sinfonia, com a presença do compositor. Foi uma espécie de despedida de uma vida que renunciou ao amor de uma companheira em favor da solidão da composição. Faleceu em 3 de abril de 1897. 4.2 ANTON BRUCKNER (1824-1896) Anton nasceu na Áustria e teve seus primeiros ensinamentos em música pelo seu pai, um mestre-escola de aldeia e organista. Aos 13 anos ele perdeu seu pai e foi enviado como membro do coro do mosteiro de St. Florian. Lá estudou órgão, teoria e violino, o que lhe proporcionou as ferramentas necessárias para compor. Já escrevia missas e obras sacras, quando em 1855 estudou contraponto em Viena e no mesmo ano ocupou o cargo de organista da catedral de Linz. A música de Wagner, sobretudo a ópera Tannhäuser, causou grande impressão na vida musical de Anton Bruckner, assim como Tristão e Isolda, do mesmo compositor: novas ideias em novas direções impulsionaram o espírito criativo de Bruckner, como se pode verificar na Missa em Ré Menor e depoisnas missas em mi menor e fá menor e também na sua Primeira Sinfonia, escritas em 1864-8. Ocupou o cargo de professor de teoria no Conservatório de sua infância e nos anos seguintes viajou para Londres, Paris, apresentando-se como virtuose e realizando improvisações ao órgão. Retornando a Viena, suas sinfonias não foram bem recebidas, pelo contrário, foram duramente criticadas pelos integrantes da Orquestra Filarmônica de Viena: rejeitaram a nº 1 como “desvairada, a nº 2 como absurda e intocável e a nº 3 como inexecutável. Quando a nº 3 foi apresentada, foi um fiasco” (SADIE, 1994, p. 140). Sua próxima sinfonia, no entanto, foi um sucesso. Durante as rivalidades entre Wagner e Brahms, foi criticado por demonstrar inclinação a Wagner. Bruckner se mostrou uma pessoa carente de autoconfiança, seus conhecidos insistiam para que ele realizasse cortes em suas obras – o que acabou fazendo, distorcendo assim sua própria obra. As suas principais influências foram Beethoven e sobretudo Wagner, no qual Bruckner se inspirou no uso de grandes sessões de sopros, principalmente com os metais. Somente nos anos de 1880 é que Bruckner obteve sucesso com sua Sétima Sinfonia, sendo executada na Alemanha e em outros países. Alcançou êxito com seu Te Deum em 1886, com críticas favoráveis de Eduard Hanslick (que era 134 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) partidário de Brahms). O próprio governo austríaco reconheceu em Bruckner a figura de um importante compositor para a Áustria, pois em 1890 recebeu o compositor para agradecer à dedicatória na sua Oitava Sinfonia. Recebeu uma pensão do governo da Áustria e, em novembro de 1891, recebeu a nomeação de doutor honoris causa pela Universidade de Viena, fato que enciumou Hanslick e os partidários de Brahms. A partir do ano de 1893 sua saúde tornou-se bastante frágil, o que levou o compositor a redigir o seu testamento. Ainda trabalhou arduamente em sua Nona Sinfonia, mas finalizou apenas os três primeiros andamentos e alguns esboços do último. Esta sinfonia fala sobre a morte, em que o terceiro andamento, em tempo Adágio, foi intitulado como A Despedida da Vida. Faleceu em 11 de outubro de 1896, em Viena. 4.3 PIOTR ILITCH TCHAIKOVSKY (1840-1893) Nascido em Votkinsk, a vida de Tchaikovsky está inserida em um cenário em que a Rússia era governada pelos Romanof, vivendo uma espécie de ditadura, em que o poder estava nas mãos do czar e da alta aristocracia que detinha grande poder latifundiário. A partir de 1848, importantes manifestações sociais estremeceram a Europa, com o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e também uma nova revolução na França (SALVAT, 1984). Em 1861 a economia passa de agrícola para industrial e a Rússia foi um dos últimos países a realizar esta transição. Um regime mais libertário começa a ser instaurado, com mais liberdade. No entanto, o cenário por toda a Europa também era tenso, com revoluções acontecendo em vários países. Por outro lado, Tchaikovsky nunca manifestou interesse pela política – ao contrário de Richard Wagner, por exemplo, e nunca ingressou em qualquer agremiação de cunho político. Sua família viveu durante a ascensão do romantismo e foi contemporâneo de pensadores como Liev Tolstói (1828-1910) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Quando o jovem tinha apenas dez anos, seus pais decidiram que deveria ser advogado, nunca imaginaram o filho como músico. Viveu durante nove anos em uma Escola de Jurisprudência de São Petersburgo e a separação que teve com sua mãe foi o primeiro duro golpe em sua vida. Seu companheiro de quarto também viria a falecer e em 1854, sua mãe morreu, vítima de cólera. Estes acontecimentos traumatizaram a vida de Tchaikovsky, principalmente a perda do amor materno. O seu indubitável complexo de Édipo atenuou-se com a adolescência, mas Tchaikovsky nunca se libertou dele, e essa idealização da mãe impedi-lo-ia de uma aproximação normal com as mulheres. Talvez tenha sido esse o fator essencial que o empurrou para a homossexualidade e o seu comportamento diferente perante as outras mulheres importantes em sua vida: a esposa que rejeitou, e a Sra von Meck, que se tornou objeto de uma adoração idealizada (SALVAT, 1984, p. 83). TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 135 Paralelo às suas aulas na Escola, Tchaikovsky assistia às aulas de piano de Rudolf Kündinger e também do diretor de coros Gabriel Lomakin. Em 1861 realizou sua primeira viagem para a França e a Alemanha, onde pôde refletir profundamente sobre a sua vida. Decidiu ser músico e ingressou no Conservatório de São Petersburgo, estudando composição, piano e flauta. Dedicou-se inteiramente à música a partir deste momento. Foi aluno de Anton Rubinstein, exigente professor de piano e o irmão do professor, Nikolai, foi quem auxiliou Tchaikovsky em sua caminhada musical. Nos anos de 1866-68, Tchaikovsky compôs a Abertura sobre o Hino Nacional Dinamarquês e Ilusões de Inverno, e ainda uma ópera, O Voivoda. Sofria de enxaqueca e o desequilíbrio, que já era natural, intensificou-se nestes anos: “tenho os nervos desfeitos, a minha sinfonia não avança e Rubinstein e Tarnovski passam o tempo a mortificar-me” (SALVAT, 1984, p. 86). Sua carreira como compositor estaria consolidada entre os anos de 1869/1875, em que um considerável número de obras aparece: Romeu e Julieta, o Quarteto de Cordas nº 11, o Concerto para Piano e Orquestra, sua Segunda e Terceira Sinfonias, a ópera Ondina (cuja partitura destruiria anos mais tarde) e a ópera Vakula, o ferreiro. Foi também nomeado crítico do Russki Viedomosti (1872-1876). Todo esse esforço intensificou uma crise nervosa e depressiva no compositor, atenuada pelo apoio dos integrantes do Grupo dos Cinco, que consideravam sua música autêntica e com elementos patrióticos. Tchaikovsky se destaca por ser um compositor genuinamente europeu, sem deixar suas raízes russas. Os próximos anos seriam épocas em que o compositor estaria concebendo importantes obras, como a Sinfonia nº 6 em Si menor (Patética, 1893) e os famosos balés: O Lago dos Cisnes (1877), A Bela Adormecida (1890) e O Quebra Nozes (1892). Escreveu música dramática, orquestral, música de câmara e para teclado, obras corais e sacras, cantatas seculares e mais de cem canções e duetos. Em novembro de 1893, contrariando orientações de ferver a água, por conta de uma epidemia de cólera, Tchaikovsky aliviou sua sede, ao mesmo tempo em que se mostrava indisposto. A doença não demorou a manifestar-se no compositor, que ardeu em febre e delírios. Porém, existem depoimentos que sugerem que o compositor teria sido julgado por membros de sua antiga escola, que o condenaram ao suicídio. Seja o que for, Tchaikovsky, além de sofrer com as perdas e traumas da infância, lidou com todo o peso do preconceito durante toda sua vida. Faleceu em 6 de novembro, às 3 horas da madrugada. 136 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) FIGURA 11 – COMPOSITORES PÓS-ROMÂNTICOS Da esquerda para a direita: Tchaikovsky, Brahms, Bruckner e Mahler. FONTE: <http://tinyurl.com.br/9f>; <http://tinyurl.com.br/9g>; <http://tinyurl.com.br/9h>; <http://tinyurl.com.br/9i>. Acesso em: 27 dez. 2018. 4.4 JACQUES OFFENBACH (1819-1880) E GEORGES BIZET (1838-1875) Jacques Offenbach foi um dos compositores que mais conseguiu situar sua obra musical com o contexto social e político na França. Apesar de ter nascido em Colônia, na Alemanha, sua família fixou residência em Paris em 1833 e foi admitido no Conservatório de Música. Ganhou a vida como violoncelista na Ópera Comique e se tornou virtuose neste instrumento. Um dos gêneros preferidos de Offenbach foi a opereta, que com ela alcançou grande sucesso, primeiro em Paris e depois pelo mundo. A França vivia uma situação delicada: o príncipe-presidente Luís Napoleão precisava manter a burguesia em seu lugar, ao mesmo tempo em que o proletariado era um número crescente de oprimidos pela ditadura e censura. TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 137 O capitalismoque estava em ascensão exigia uma situação mais liberal. Apesar disso, Offenbach era dotado de um senso de humor contagiante, imprimiu suas qualidades em suas operetas, nas quais as suas melhores são Orfeu no Inferno (1858), A bela Helena (1864), A Vida Parisiense (1866) e A Grã-Duquesa de Gerolstein (1867). Estas verdadeiras sátiras eram as preferidas do público, pois, de outro lado, a ópera séria fazia com que o público se sentisse um tanto oprimido pela ditadura. “O cômico nascia do choque entre a banalidade das letras e a grandiloquência da música extraída de seu contexto original. As alusões ao antigo regime – que ficavam por conta da comicidade do texto – eram transparentes” (MASSIN, 1997, p. 794). DICAS Ouça a famosa abertura da ópera Orfeu no Inferno, de Jacques Offenbach, com o seu “Can-Can”: trata-se de um dos trechos musicais mais famosos da história da música. Neste exemplo você vai sentir a força humorística presente na música do compositor. Mas a obra de Offenbach, de longe, não é superficial. O alto refinamento técnico em suas operetas mostra um conhecimento musical ímpar, como afirmou S. Krackauer: “nenhuma valsa, nenhuma cançoneta, nenhum galope de suas operetas estavam ali gratuitamente: sempre ocupavam o lugar único que lhes era determinado pela ação” (MASSIN, 1997, p. 795). Nascido em Paris em 1838, Georges Bizet ingressou no Conservatório de Música de Paris antes mesmo de completar dez anos, estudando contraponto e harmonia, e sob os ensinamentos de Marmontel, aprimorou virtuosisticamente sua técnica em piano. Antes de completar 20 anos já havia finalizado a sua Sinfonia em Dó maior. Em 1857 já alcançava prestígio, dividindo com Lecocq um prêmio oferecido por Offenbach, por uma composição da opereta em um ato O Doutor Milagre. Passou três anos em Roma e sua mãe faleceu, pouco tempo depois que havia regressado da Itália. Bizet acabou se consolando com a empregada de seus pais e tiveram um filho, em 1862. Recusou o cargo de professor do Conservatório de Paris para cumprir suas obrigações com o Prix de Rome, vencedor deste cobiçado prêmio. Produziu uma ópera cômica em um ato, La guzla de l’emir e também Os Pescadores de Pérolas. Esta última foi composta em apenas quatro meses e não foi bem recebida pelo público, que a considerou rígida e exótica. Nos anos seguintes Bizet passa por dificuldades – também por uma crise de angina, pois suas obras não alcançam o reconhecimento pretendido e, assim, foi obrigado a ganhar a vida dando aulas de piano e fazendo arranjos de obras de outros compositores. 138 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) Em junho de 1869, casou-se com Geneviève, filha de um antigo professor seu. Um casamento que passaria por dificuldades, pois Bizet se alistou na Guarda Nacional durante a guerra franco-prussiana. Nesse período produziu pouco, mas com profundidade, como se pode conferir em Jeux d’enfants, uma suíte para dois pianos e uma ópera em um ato, Djamileh. A sua obra-prima na ópera viria com Carmen, atingindo novos níveis na descrição de personagens e tramas. A caracterização de José, seu declínio gradual, da honestidade camponesa de um simples soldado, passando pela insubordinação, a deserção e o contrabando, até o crime, é magistral; o colorido e a vitalidade da própria Carmen são notáveis, envolvendo o uso de procedimentos harmônicos, rítmicos e instrumentais da música de dança espanhola, à qual as 2ªs aumentadas, carregadas de presságios, do motivo de Carmen devem a sua origem (SADIE, 1994, p. 111). Esta ópera é uma das maiores realizações de Bizet, no entanto, foi repreendida pelo seu libreto ser considerado obsceno, com uma música que nada tinha de romantismo. Tal receptividade negativa deixou Bizet em um estado altamente depressivo e este quadro se agravou por um novo ataque de angina. Em junho de 1875 sofreu dois ataques cardíacos que o levaram à morte. 4.5 GUSTAV MAHLER (1860-1911) Nascido no território onde hoje é a República Tcheca, Gustav Mahler teve uma infância marcada por dificuldades: seus pais viviam em constantes desentendimentos e por vezes travavam sérias e agressivas discussões diante do menino. Aliado a este triste fato, o local onde moravam nos anos de 1860 era residência de posto de guarnição do exército austríaco e, assim, marchas e toques militares foram muito presentes na primeira infância de Gustav Mahler. Aos 15 anos ele ingressou no Conservatório de Viena e um de seus parceiros foi o (futuro) compositor Hugo Wolf. Os dois ficaram exaltados com a música de Wagner (ao contrário da música de Brahms) e conheceu também Anton Bruckner, com quem manteve amizade. Atuou como maestro no Teatro Hall, na Alta Áustria, e esta inclinação para a regência caminhou ao lado da motivação para compor, durante toda sua vida. Como regente, Mahler atuou em 1883 em Ölmütz, depois em Kassel, em Praga e ainda em Leipzig. Neste quesito, soube lidar com as socializações entre o comando com os músicos da orquestra e as disparidades dos promotores e patrocinadores destas. Sua Primeira Sinfonia, conhecida como Sinfonia Titã, data da época em que regia em Leipzig (1886-88). Em 1888 assumiu o cargo de regente em Budapeste: Dependendo somente de si mesmo no plano artístico, pôde desenvolver à vontade suas qualidades de administrador, reformador, diretor teatral e regente, do que resultam as apresentações em Budapeste, sob TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 139 sua direção e em língua húngara, das óperas Das Rheingold (O Ouro de Reno) e Die Walküre (A Valquíria), de Wagner (janeiro de 1889). Ainda em janeiro de 1891, dirigiu uma representação de Don Giovanni, de Mozart, a respeito da qual Brahms teria declarado que um nível tão elevado era ‘inconcebível em Viena’ (MASSIN, 1997, p. 858). A fama de Mahler como regente se espalhava pela sua qualidade, tanto que rendeu reações de Hans von Bülow, que chegou a elogiar o intérprete, mas ignorava-o como compositor. Em 1894 passou a contar com a assistência de Bruno Walter, impondo-se como um dos melhores regentes de todo o período romântico. Nesta época concluiu sua Segunda Sinfonia, a Terceira Sinfonia e finalizava Wunderhorn Lieder. A passagem de Mahler marca também a virada para o século XX, em que atuava como diretor da Ópera de Viena. Configura-se assim a etapa mais importante de sua vida, na qual inclusive teve que se converter ao catolicismo (mas manteve restrições). Nestes dez anos em que atuou em Viena, exigiu demais de si mesmo e de seus colaboradores, resultando em problemas, tendo que abandonar parte de suas funções em 1891: Reformador intransigente, tanto do ponto de vista “social” (proibição dos retardatários entrarem na sala de concertos antes do intervalo, supressão da claque), quanto artístico (busca de uma unidade profunda entre teatro e música, renovação do repertório), ganhou partidários devotados e inimigos ferozes. São provas desse estado de espírito alguns de seus aforismos: “Traição = desordem... No plano humano, faço todas as concessões; no plano artístico, nenhuma. Não posso suportar os que se desleixam, só os que me interessam” (MASSIN, 1997, p. 859). Mahler casou-se com Alma Schindler (cerca de 20 anos mais nova) em 1902, mas o compositor enfrentou problemas pessoais, como crises neuróticas, chegando a procurar o médico neurologista Sigmund Freud. Nestas seções com o médico, descobriu-se que em uma das violentas brigas entre seus pais quando o compositor era apenas um menino, este fugiu, devido à dolorosa cena. Ao que estava correndo na rua, um realejo tocava alegremente a melodia típica vienense Ach, du lieber Augustin (você vai encontrar essa melodia no Youtube, facilmente). Assim, tragédia e distração fixaram-se no menino, influenciando seu humor profundamente. Superadas as crises em Viena, Mahler assinou um contrato como administrador do Metropolitan de Nova York, porém, um duro golpe na vida do compositor estava a se concretizar: sua filha mais velha, de apenas quatroanos, morreu, e durante o velório, a mãe de Alma sofreu uma parada cardíaca e veio a falecer. O dr. Blumenthal estava presente e a examinou, sendo que Alma solicitou ao médico que também fizesse um rápido exame no marido, com o qual o médico ficou preocupado. Mais tarde, foi confirmada uma endocardite subaguda em Mahler, de origem bacteriana, o que forçou a Mahler uma drástica mudança de vida (SALVAT, 1984). 140 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) DICAS Uma das obras que mais impressiona pela magnitude orquestral e coral no período romântico pode ser conferida na 2ª Sinfonia de Mahler, denominada Ressurreição. Por meio do link <https://youtu.be/4MPuoOj5TIw>, acesso em: 22 fev. 2019, você poderá apreciar a orquestra da Lucerne Festival, na regência do grande maestro italiano Claudio Abbado. Em suas sinfonias, o compositor utilizou grandes massas sonoras. A exemplo de sua Segunda Sinfonia, chamada Ressurreição, escrita em cinco movimentos, Mahler utilizou quatro flautas, quatro oboés, cinco clarinetes, três fagotes, 10 trompas, 10 trompetes, quatro trombones, uma ampla sessão de percussão envolvendo sete percussionistas, duas harpas, além de um órgão de tubos, somando aproximadamente 50 músicos. Nas cordas ele pede o maior número possível, o que normalmente se utiliza cerca de 100 instrumentistas nas cordas. A obra ainda pede um vasto coro e solistas no soprano e contralto. Ao todo, esta sinfonia requer cerca de 300 músicos. Para termos uma ideia, Beethoven sugeria que em suas sinfonias no máximo 60 instrumentistas as tocassem. Mahler atuaria ainda como regente titular da Orquestra Sinfônica de Nova York por várias temporadas. Retornando à Europa, em 1910, realizou concertos em Paris, Roma e Colônia, e estava se preparando para dirigir sua 8ª Sinfonia em Munique. Neste ponto, a esposa Alma sentia-se desprezada pelo marido, em virtude de seu tempo integral investido em sua profissão de regente e compositor. Alma estava prestes a abandonar o marido para viver com um jovem arquiteto. Mahler procurou ajuda com Freud, e assim tentou corrigir seus erros do passado, dedicando a ela sua 8ª Sinfonia e transformou sua Décima Sinfonia em uma declaração de amor à esposa. Em 1911 Mahler estava em viagem pelos Estados Unidos e lá começou a arder em febre. Retornou à Europa e seu estado de saúde foi piorando e seu regresso a Viena foi extremamente sofrido. Os jornalistas acompanhavam, querendo notícias sobre seu estado de saúde. Em 18 de maio estava internado em um hospital em Viena, com dificuldades para respirar. À meia-noite, em meio a uma tempestade, faleceu. Seu corpo foi sepultado junto com sua filha Maria (“Putzi”), conforme seu desejo, sem qualquer cerimônia. TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 141 LEITURA COMPLEMENTAR DO BELO MUSICAL: OS SENTIMENTOS NÃO SÃO O FIM DA MÚSICA. PUBLICADO EM 1854. Eduard Hanslick (1825-1904). A música – assim nos ensinam – não pode entreter o entendimento por meio de conceitos, como a poesia, nem também o olho mediante formas visíveis, como as artes plásticas, terá portanto a vocação de atuar sobre os sentimentos do homem. "A música tem a ver com os sentimentos. "Este "ter a ver" é uma das expressões características da estética musical até agora existente. Mas em que consista a ligação da música com os sentimentos, de determinadas peças musicais com determinados sentimentos, segundo que leis naturais ela atue, segundo que leis artísticas se devam configurar, a tal respeito deixam-nos de todo às escuras os que com isto "têm a ver". Se o olho se habituar um pouco a tal escuridão, consegue-se descobrir que os sentimentos, na intuição musical predominante, desempenham um duplo papel. Primeiramente, propõe-se como fim e missão da música suscitar sentimentos ou "sentimentos belos". Em segundo lugar, apontam-se os sentimentos como o conteúdo que a arte sonora exibe nas suas obras. Ambas as asserções têm a similaridade de tanto uma como a outra ser falsa. A primeira não deve ocupar-nos por muito tempo, pois a filosofia mais recente há muito refutou o erro de que o fim de algo belo reside em geral numa certa tendência para o sentir dos homens. O belo tem em si mesmo o seu significado, é certamente belo apenas para o deleite de um sujeito da intuição, mas não graças a ele próprio. Tal como a serpente nos contos de Goethe, ele completa o seu círculo apenas em si, despreocupado com a força mágica com que até o morto revive. O belo limita-se a ser belo, embora admita igualmente que nós, além do intuir – a atividade propriamente estética – também façamos algo de supérfluo no sentir e no percepcionar. Antes de a nossa investigação poder começar, temos de distinguir com rigor "sentimento" e "sensação", dois conceitos que, sem cessar, são confundidos. Sensação é a percepção de uma determinada qualidade sensível: de um som, de uma cor. Sentimento é o tornar-se consciente de uma incitação ou impedimento do nosso estado anímico, portanto de um bem-estar ou desprazer. Quando simplesmente percepciono o cheiro ou o sabor de uma coisa, a sua forma, a sua cor ou o seu som com os meus sentidos, percepciono, pois, estas qualidades; quando a melancolia, a esperança, a alegria ou o ódio me elevam perceptivelmente 142 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) acima do estado anímico habitual ou sob o mesmo me deprimem, tenho sentimento (Nesta especificação conceptual os mais antigos filósofos concordam com os modernos fisiólogos, e devemos preferi-la incondicionalmente às denominações da escola hegeliana que, como se sabe, faz uma distinção entre sensações internas e externas). O belo afeta primeiro os nossos sentidos. Tal caminho não lhe é peculiar, partilha-o com todo o fenomênico em geral. A sensação é o começo e a condição do deleite estético e constitui justamente a base do sentimento, que pressupõe sempre uma relação e, muitas vezes, as mais complicadas relações. A provocação de sensações não necessita da arte, um único som, uma simples cor consegue tal. Como se disse, as duas expressões trocam-se arbitrariamente, mas, na maior parte dos casos, nas obras mais antigas, chama-se "sensação" ao que nós denominamos "sentimento". Por conseguinte, a música, pretendem dizer aqueles escritores, deve despertar os nossos sentimentos e, alternadamente, encher-nos de devoção e amor, de júbilo e de melancolia. Mas, na verdade, semelhante especificação não a tem nem esta nem nenhuma outra arte. O órgão com que se acolhe o belo não é o sentimento, mas a fantasia, enquanto atividade do puro intuir. Quase espanta como os músicos e os estetas mais antigos se movem apenas no interior do contraste entre "sentimento" e "entendimento", como se a questão principal não residisse precisamente no seio deste pretenso dilema. A peça sonora flui da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte. Diante do belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, um representar e um julgar, este último decerto com tal rapidez que os processos individuais não nos chegam à consciência e surge a ilusão de que acontece imediatamente o que, na verdade, depende de múltiplos processos espirituais mediatos. Além disso, a palavra "intuição", transferida há muito das representações visuais para todos os fenômenos sensíveis, corresponde de modo excelente ao ato do ouvir atento, que consiste numa consideração sucessiva das formas sonoras. A fantasia não é, naturalmente, um âmbito fechado: assim como extraiu a sua centelha vital das percepções sensíveis, assim envia, por seu turno, rapidamente os seus raios à atividade do entendimento e do sentimento. No entanto, estes são para a genuína concepção do belo apenas campos limítrofes. Se o ouvinte frui, na intuição pura, a peça sonora ressoante, deve estar longe dele todo o interesse material. Mas um interesse assim é a tendência para em si permitir a excitação dos afetos. A atuação exclusiva do entendimento por meio do belo comporta-se de uma maneiralógica e não estética, um efeito predominante sobre o sentimento é ainda dúbio e até patológico. Mas os músicos não se encontram enredados no erro de pretender reivindicar igualmente todas as artes para os sentimentos; pelo contrário, veem nisso algo de especificamente peculiar à arte dos sons. A força e a tendência para atuar nos sentimentos do ouvinte seria justamente o que caracteriza a música em TÓPICO 3 | A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 143 face das restantes artes. Onde nem sequer se separou "sentimento" de "sensação" menos ainda se pode falar de uma compreensão mais profunda do primeiro: sentimentos sensíveis e intelectuais, a forma crônica do humor, a forma aguda do afeto, a inclinação e a paixão bem como as colorações peculiares desta enquanto "pathos" nos gregos e "passio" nos modernos latinos, foram nivelados numa variegada mescla, e apenas se declarou a propósito da música que ela é em especial a arte de suscitar sentimentos. Mas do mesmo modo que não reconhecemos este efeito como a tarefa das artes em geral, assim também não podemos ver nele uma determinação específica da música. Uma vez estabelecido que a fantasia é o órgão genuíno do belo, terá lugar em todas as artes um efeito secundário destas sobre o sentimento. Não nos move poderosamente uma grande pintura histórica? Que devoção suscitam as Madonas de Rafael, que estados de ânimo nostálgicos e joviais despertam as paisagens de um Poussin? Ficará o espetáculo da catedral de Estrasburgo ou das figuras de mármore gregas sem efeito sobre o nosso sentir? O mesmo se verifica a propósito da poesia, mais ainda, de muitas atividades extraestéticas, por exemplo da edificação religiosa, da eloquência etc. Vemos que as restantes artes atuam igualmente com bastante força sobre o sentimento. Havia, pois, que alicerçar a sua diferença, alegadamente de princípio, quanto à música num mais ou menos deste efeito. De um modo em si inteiramente acientífico, este expediente teria, ademais, de deixar convenientemente a cada qual a decisão de sentir com maior força e profundidade numa sinfonia de Mozart ou numa tragédia de Shakespeare, num poema de Uhland ou num rondó de Hummel. Mas se pretendermos dizer que a música atua "imediatamente" sobre o sentimento, e as outras artes apenas graças à mediação de conceitos, só se erra com outras palavras, porque, como vemos, os sentimentos hão de também ocupar-se do belo musical só em segunda linha, e de modo imediato unicamente da fantasia. Salienta-se, inúmeras vezes, nos ensaios musicais a analogia que, indubitavelmente, existe entre a música e a arquitetura. Mas alguma vez um arquiteto sensato aprovou que a arquitetura tem o fim de suscitar sentimentos, ou que estes constituem o seu conteúdo? Se à arte dos sons é, de fato, inerente uma força específica da impressão, há então que abstrair tanto mais cautamente de tal magia, a fim de se chegar à natureza da sua causa. Entrementes, confundem-se de modo incessante a afecção do sentimento e a beleza musical, em vez de se representarem separadamente pelo método científico. Há quem se aferre ao efeito incerto dos fenômenos musicais em vez de penetrar no íntimo das obras e de, a partir das leis do seu próprio organismo, explicar que conteúdo é o seu, em que consiste a sua beleza. Começa- se pela impressão subjetiva e segue-se para a essência da arte. São ilações do não autônomo para o autônomo, do condicionado para o condicionante. Além disso, a conexão de uma peça sonora com a moção emocional por ela suscitada não é necessariamente causal. A mesma música, em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades e circunstâncias, mais ainda, na igualdade de todas estas condições em diferentes indivíduos, terá efeitos muito diversos. Não precisamos de incomodar os índios e os habitantes das Caraíbas, 144 UNIDADE 2 | ROMANTISMO (1810-1900) as habitualmente populares tropas regulares, quando se trata da "diversidade do gosto -- basta um público europeu frequentador de concertos: uma metade sente despertar as mais fortes e elevadas emoções nas sinfonias de Beethoven, ao passo que a outra apenas aí depara com "enfadonha música intelectualista" e com a "ausência de sentimentos". Em certos momentos, uma peça musical comove- nos até às lágrimas, outras vezes, deixa-nos frios, e milhares de outras coisas exteriores podem bastar para modificar ou anular de mil maneiras o seu efeito. A correlação das obras musicais com certas disposições anímicas não constitui sempre, em toda a parte e necessariamente, um imperativo absoluto. Cada época, cada civilização traz consigo um ouvir diferente, um sentir diverso. A música permanece a mesma, muda tão-só o seu efeito com o ponto de vista cambiante do preconceito convencional. Além disso, as peças instrumentais com motes ou títulos específicos indicam, entre outras coisas, com que facilidade e prontidão se deixa enganar o nosso sentir, com os mais pequenos artifícios. Nos mais superficiais trechos pianísticos, em que nada há, "mero nada, para onde se viram os meus olhos", depressa surge a tendência para reconhecer a "nostalgia do mar", "à noite, antes da batalha", o "dia de verão na Noruega" e outras absurdidades quetais, se a portada tiver apenas a ousadia de aduzir o seu pretenso conteúdo. Os títulos proporcionam ao nosso representar e sentir uma orientação que, com demasiada frequência, atribuímos ao caráter da música, uma credulidade contra a qual se não pode assaz recomendar a brincadeira de uma mudança de título. O efeito da música sobre o sentimento não tem, portanto, nem a necessidade nem a constância nem, por fim, a exclusividade que um fenômeno deveria apresentar para conseguir fundamentar um princípio estético. Não queremos de todo subestimar os próprios sentimentos fortes que a música desperta da sua letargia, todos os estados de ânimo doces ou dolorosos em que ela nos embala, semissonhadores. Entre os mistérios mais formosos e salubres conta- se precisamente o fato de a arte poder suscitar tais emoções sem causa terrena, como quem diz, por graça divina. Opomo-nos somente à utilização acientífica destes fatos em prol de princípios estéticos. É certo que a música pode suscitar, em alto grau, o prazer e o pesar. Mas não os produzem, talvez em maior grau ainda, a obtenção da sorte grande ou a doença mortal de um amigo? Se hesitamos em contar um bilhete de loteria entre as sinfonias ou um boletim médico entre as aberturas, também não há que tratar os afetos efetivamente produzidos como uma especialidade estética da arte dos sons ou de uma determinada peça musical. Interessa, sim, unicamente o modo específico como semelhantes afetos são suscitados pela música. Nos capítulos IV e V, dedicaremos aos efeitos da música sobre o sentimento a consideração mais atenta, e investigaremos os aspectos positivos desta relação singular. Aqui, no começo do nosso escrito, não poderia realçar-se com demasiada acutilância o aspecto negativo, como protesto contra um princípio acientífico. FONTE: HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Lisboa: Edições 70, 2002. 145 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O século XIX foi palco de eventos que influenciaram fortemente todos os continentes. O sentimento patriótico e nacionalista tende a se inflamar e a afirmação da identidade nacional se dará também pela música. Neste aspecto, surge o movimento nacionalista em vários países. • Até a primeira metade do século XIX, as influências germânicas eram predominantes na maneira de compor música, e então emerge um movimento caracterizado como nacionalista: elementos da música folclórica de cada país são utilizados pelos compositores na criação de uma música que refletisse as aspirações do passado, mas que mantivesse sua identidade. • Compositores da Rússia, da Boêmia (futuramente Tchecoslováquia) e também da Noruega, libertaram-se das influências germânicas e adotaram o estilo próprio de suas nações. Este movimento caracterizou-se como o nacionalismono romantismo (BENNETT, 1986b). • Uma obra nacionalista pode ser assim considerada se ela expressa fortes características sobre seu país e que se reconhece facilmente sua identidade. • Na década de 1860, um grupo de compositores se propos a compor uma música genuinamente russa. Conhecidos como Grupo dos Cinco, Mily Balakirev, Aleksandr Borodin, César Cui, Modest Mussorgsky e Nikolai Rimsky- Korsakov se uniram e criaram obras nacionalistas. • Na linha nacionalista estão na Boêmia compositores como František Škroup, Bedřich Smetana e Antonín Dvořák. • Na Noruega, Edward Grieg imprimiu os traços nacionais em sua obra. Sua suíte Peer Gynt fala dos personagens e acontecimentos típicos de sua região, em quatro movimentos: I – manhã, II – A morte de Aese, III – Dança de Anitra e IV – No Palácio do Rei da Montanha. O primeiro e o último movimento são extremamente conhecidos em todo o mundo. • Viena tornar-se-ia o principal centro político da Europa, o que se estendeu até o ano de 1848. Após as invasões de Napoleão e os eventos do Congresso, o comando do império Austro-Húngaro estaria a cargo de Francisco José, que levou a cidade para o progresso e estabilidade econômica. • A maior contribuição da família Strauss se deu na criação da valsa vienense, cuja elegância e vivacidade é única. Entre as valsas mais famosas de Strauss estão Sobre o Belo Danúbio Azul, Contos dos Bosques de Viena, Sangue Vienense e a Valsa do Imperador. 146 • Gioachino Rossini é o grande nome da ópera italiana, sobretudo com a obra Elisabeth, rainha da Inglaterra, de 1815, uma ópera dramática e com O Barbeiro de Sevilha, uma ópera bufa. Mas haveria dois compositores que elevariam o gênero da ópera no mais alto grau de exploração técnica: Donizetti e Bellini. Gaetano Donizetti criou mais de 70 óperas, enquanto que Vincenzo Bellini, não mais que dez óperas, devido à sua morte prematura. • A música no período pós-romântico manteve muito de suas características anteriores, pois seus compositores se preocuparam em manter a forma e a estética romântica, algumas vezes adaptando-as ao gosto da burguesia. Algumas destas características podem se mostrar um tanto exageradas, como o virtuosismo em excesso e as formas demasiadamente ampliadas. • O tamanho da orquestra tornou-se gigantesco, de acordo com as exigências da obra musical, e de certa forma, isso tornou-se um problema. De maneira confusa, pode-se dizer, os caminhos da música para o século XX estariam sendo delineados nesse contexto. • Johannes Brahms foi um compositor alemão antagonista das ideias estéticas musicais de Wagner e Liszt no que diz respeito à estética. É considerado o terceiro B alemão, formando o trio Bach/Beethoven/Brahms. • Anton Bruckner nasceu na Áustria e teve influência de Beethoven e sobretudo de Richard Wagner, no qual Bruckner se inspirou no uso de grandes sessões de sopros, principalmente com os metais. O compositor se opôs a Brahms e apoiou a estética de Wagner. • Piotr Ilitch Tchaikovsky está inserido em um cenário em que a Rússia viva uma espécie de ditadura. Sofreu pelo complexo de Édipo e pelo preconceito à sua homossexualidade. No entanto, produziu obras de cunho nacionalista nos moldes europeus, como O Lago dos Cisnes e O Quebra-Nozes, dois balés conhecidos mundialmente. • Jacques Offenbach foi um dos compositores que mais conseguiu situar sua obra musical com o contexto social e político na França. Um dos gêneros preferidos de Offenbach foi a opereta, que com ela alcançou grande sucesso primeiro em Paris, e depois pelo mundo. • Nascido em Paris em 1838, Georges Bizet ingressou no Conservatório de Música de Paris antes mesmo de completar dez anos, estudando contraponto, harmonia e técnica em piano. A sua obra-prima na ópera viria com Carmen, atingindo novos níveis na descrição de personagens e tramas. • Gustav Mahler foi um compositor influenciado pela música de Wagner e manteve uma brilhante atuação como regente em vários países da Europa e também nos Estados Unidos. Sua obra impressiona pela magnitude, exigindo grande massa orquestral e, por vezes, coros imensos. 147 1 Acerca do pensamento romântico da música do século XIX, é correto afirmar que os compositores levavam em consideração: 1 – A utilização de elementos do folclore regional e do seu país de origem, excluindo qualquer elemento fantasioso que pudesse disfarçar a nacionalidade sugerida. 2 – A maneira subjetiva de fazer música, com elementos fantasiosos ou do cotidiano, que identificassem países estrangeiros, diferentes da terra natal do compositor. 3 – O sentimento romântico que evoca os ares heroicos e que exerce nos compositores a necessidade de criarem uma música que remetesse às suas origens. 4 – Os elementos subjetivos de seu país de origem, que podem estar presentes mesmo em temas estrangeiros, o que caracteriza uma ótica nacionalista. 5 – O pensamento romântico que evoca o heroísmo em busca da unificação da música de todos os países, refletindo assim a busca de uma música cosmopolita. Em relação às considerações sobre o pensamento romântico, estão corretas as alternativas: a) ( ) 1 e 3. b) ( ) 1 e 4. c) ( ) 2 e 4. d) ( ) 3 e 4. e) ( ) 3 e 5. 2 Considerando as obras mais importantes que marcaram a passagem de compositores do século XIX, preencha a coluna da direita de acordo com seu respectivo compositor: 1 – Modest Mussorgsky ( ) O Quebra-Nozes 2 – Jacques Offenbach ( ) Die Fledermaus 3 – Johann Strauss Filho ( ) Quadros em Uma Exposição 4 – Piotr Tchaikovsky ( ) Can-can 5 – Georges Bizet ( ) Carmen Considerando a relação feita anteriormente, a sequência correta é: a) ( ) 2 – 4 – 5 – 3 – 1. b) ( ) 4 – 2 – 1 – 5 – 3. c) ( ) 4 – 3 – 1 – 2 – 5. d) ( ) 3 – 1 – 2 – 5 – 4. e) ( ) 3 – 2 – 1 – 5 – 4. AUTOATIVIDADE 148 3 Leia os textos a seguir sobre a vida e a obra de alguns compositores do século XIX: 1 – Mantinha rivalidade com Donizetti, porém, não produziu mais de dez óperas. Escreveu a ópera semisséria Adelson e Salvini, que lhe rendeu prestígio suficiente para ter encomendas do Teatro San Carlo e do Teatro La Scala de Milão. 2 – Devido à sua declarada oposição quanto à estética musical da Nova Escola Alemã, não conseguiu manter amizade com Liszt e tampouco com Wagner. Sua estética remetia às obras de Beethoven e foi chamado de “terceiro B alemão”. 3 – A sua maior contribuição se dá justamente na criação da valsa vienense, cuja elegância e vivacidade é única, mais delicada, mais cuidada: em uma palavra, mais “mundana”, apresentando um refinamento típico de seu estilo. 4 – Reformador intransigente, declarou sobre os músicos da orquestra: “Traição = desordem... No plano humano, faço todas as concessões; no plano artístico, nenhuma. Não posso suportar os que se desleixam, só os que me interessam”. 5 – Foi na Marinha que aprendeu a tocar quase todos os instrumentos de sopro, conhecendo assim as tessituras e registros ideais para cada instrumento. Exemplo disso é o Concerto para Trombone, escrito em 1877, para banda de música militar. Os textos acima se referem aos seguintes compositores, na sequência correta: a) ( ) 1–Bellini, 2–Strauss, 3–Mahler, 4–Brahms, 5–Korsakov. b) ( ) 1–Bellini, 2–Brahms, 3–Strauss, 4–Mahler, 5–Korsakov. c) ( ) 1–Brahms, 2–Mahler, 3–Korsakov, 4–Bellini, 5–Strauss. d) ( ) 1–Korsakov, 2–Brahms, 3–Strauss, 4–Bellini, 5–Mahler. e) ( ) 1–Brahms, 2–Bellini, 3–Strauss, 4–Korsakov, 5–Mahler. 149 UNIDADE 3 MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender as diversas influências que fizeram com que o romantismo encontrasse seu esgotamento em meados do século XX; • conhecer as principais bases e inovações na transição para o século XX que contribuíram para o desenvolvimento da música moderna; • identificar as múltiplas tendências estético-musicais que atravessaram o século XX na subjetividade de seus compositores.Esta unidade está dividida em três tópicos, conforme segue. No decorrer desta unidade você encontrará atividades que irão auxiliar na compreensão dos conceitos em questão. TÓPICO 1 – O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO TÓPICO 2 – NOVAS LINGUAGENS MUSICAIS TÓPICO 3 – A MULTIPLICIDADE MUSICAL 150 151 TÓPICO 1 O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO O século XX havia começado e os primeiros avanços tecnológicos já impressionavam as comunidades científicas e populares, por exemplo, quando o brasileiro Alberto Santos Dumont (1873-1932) realizou o primeiro voo do seu invento, o 14-Bis. O ano era 1906 e foram os franceses que testemunharam a façanha do brasileiro que tirou os pés do chão (FLEURY, 1975). Esses prodigiosos avanços tecnológicos já mostravam que o homem iria dominar céu e terra. Diante do panorama, se você fosse um compositor, que tipo de música poderia ser compatível com a época? O compositor francês Claude Debussy já havia manifestado, em 1913, que “o século do avião merece sua própria música” (GRIFFITHS, 1998, p. 97). Você constatará que tentativas e experiências trouxeram novas concepções de música – e mesmo novas concepções das artes. Novas tendências e técnicas no âmbito da música resultaram em descobertas interessantes, que abririam novas concepções no campo da composição e também na criação de novos instrumentos. O século do avião e do automóvel trouxe novidades, mas também trouxe o retorno ao passado, como você verá a seguir. 2 OS LIMITES DA EXPANSÃO ROMÂNTICA Beethoven viveu a transição da música clássica para a música romântica e contribuiu para firmar a transição por meio do estilo de composição, combinando os elementos clássicos com suas inovações instrumentais e formais na música. Da mesma forma, os compositores Gustav Mahler (1860-1911) e Richard Strauss (1864-1949) estenderam a tradição romântica para o início do século XX (SALVAT, 1984). Passaram mais de trinta anos da morte de Beethoven para que Mahler e Strauss nascessem, porém, os três apresentam concordâncias na maneira de compor, combinando elementos tradicionais juntamente com inovações estéticas, cada qual no seu tempo. UNIDADE 3 | MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) 152 O início do século XX representa o romantismo tardio ou período pós- romântico e neste período tanto Mahler quanto Strauss apresentam obras grandiosas. Goethe havia influenciado profundamente o pensamento romântico da mesma forma que o filósofo alemão Friedrich Nietsche, com a obra literária Assim Falou Zarathustra, escrita entre os anos 1883-85 (SALVAT, 1984). Strauss se inspirou na obra para compor o poema sinfônico que leva o mesmo nome, uma obra que ficou famosa pela produção cinematográfica de 1968, 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrik. O poema sinfônico de Richard Strauss “requer três flautas, flautim, três oboés, corne-inglês, três clarinetas, um clarone (clarineta baixo), três fagotes, um contrafagote, seis trompas, quatro trompetes, três trombones, duas tubas, tímpanos, bombo, triângulo, címbalo e glockenspiel, um sino baixo em mi, além de duas harpas, órgão e mais a seção de cordas” (BENNETT, 1986b, p. 65). Muitas das obras, principalmente as sinfonias e os poemas sinfônicos, possuem mais de uma hora de duração. A grandiosidade reside também no número gigantesco de instrumentistas que as obras requerem, assim como na genialidade da composição. É o espírito do romantismo tardio que irá se esgotar no início do século XX. Gustav Mahler já vivia os seus 46 anos quando Santos Dumont realizava sua façanha com o 14-Bis. No mesmo ano concluiu sua Oitava Sinfonia, integrando um gigantesco coro e solistas à orquestra. Mais conhecida como Sinfonia dos Mil, o próprio nome já sugere grandiosidade. Não só o tamanho do contingente de músicos, mas também os aspectos formais da obra chamam a nossa atenção, apresentando uma ampliação da forma muito além do que Beethoven havia realizado em suas sinfonias. Apenas no quesito da quantidade de músicos da orquestra, Mahler utilizou um grupo três vezes maior que Beethoven teria empregado em sua Nona Sinfonia. Para a Sinfonia dos Mil, Gustav empregou: uma enorme orquestra de 130 instrumentistas, fora os metais extras. Mahler acrescenta oito vozes solistas, dois grandes coros mistos e mais um coro de 400 crianças. O poder resultante dessa combinação de forças pode ser esmagador, embora existam momentos – como em todas as sinfonias de Mahler – em que a orquestração se faz límpida e delicada (BENNETT, 1986b, p. 65-66). Representa uma entre muitas das inovações de Gustav Mahler. Imagine o poder em termos de sonoridade, a grandiosidade que resulta em sentir a quantidade de músicos cantores e instrumentistas executando passagens fortíssimas. Seria algo tão intenso, ou talvez maior que um show de rock em tempos atuais. Contudo, as ousadias estariam caindo em desuso, visto que muitos compositores já pensavam em estruturas diferentes, com enfoque em novas concepções estéticas e abrindo novos caminhos. TÓPICO 1 | O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO 153 2.1 RICHARD STRAUSS (1864-1949) Apesar da nossa já conhecida família de compositores vienenses de sobrenome Strauss, nosso compositor em questão nem tem parentesco direto. Nascido em Munique, Richard foi filho de um respeitado trompista da orquestra da mesma cidade. Sua família era abastada e incentivou seus dotes artístico- musicais. Strauss teve sua Sinfonia em Ré Menor regida em Munique, quando tinha apenas 17 anos. O próprio Hans von Bülow convidou Strauss para reger em Meiningen e se tornou regente auxiliar de Bülow, começando, assim, não somente sua carreira como compositor, mas também como exímio maestro (SADIE, 1994). Strauss viveu em um momento em que o ofício de regente estava em ascensão. A institucionalização da profissão lhe rendeu avançar na área, assim como avançou na composição musical em dois gêneros que se tornaram sua característica principal: o poema sinfônico e o lied. Strauss foi intensamente influenciado pela música de Wagner e Liszt e, a partir dos seus 22 anos, várias obras-primas foram concebidas, dentre elas os poemas sinfônicos Aus Italien (1886), Don Juan (1888), Tod und Verklärung (1888-89), Don Quixote (1897) etc. Sua genialidade reside na habilidade de fazer música programática (aquela que conta uma história) por meio de seus poemas sinfônicos e com originalidade. Sua obra combina formas musicais consagradas e orquestradas com muito talento. Além disso, no campo de orquestração, Strauss viveu no período de ascensão do melhoramento técnico de vários instrumentos de sopros, por exemplo, os pistões dos trompetes, permitindo passagens cromáticas e destaques até então inéditos, basta conferir os primeiros compassos de Zarathustra (SADIE, 1994). Seus poemas sinfônicos rapidamente se tornaram importante parte do repertório das orquestras europeias devido às inovações em termos de orquestração. Sua competência e domínio no poema sinfônico e lied fizeram com que naturalmente Strauss se inclinasse para a ópera. E assim foi com Salomé, sua primeira obra dramática que estreou em Munique, no ano de 1905. É considerada uma das primeiras óperas do século XX (SADIE, 1994) e é repleta de elementos modernos, causando grande impacto na crítica. Outras importantes óperas de Strauss são Elektra (1909), que contém o mesmo caráter inovador de Salomé e Der Rosenkavalier (1914), sua última ópera e que se volta para o século XVIII. Quando a Primeira Guerra eclodiu em 1914, Strauss era regente titular da orquestra da Ópera Real de Berlim, sendo aclamado como um dos maiores músicos do seu tempo. Posteriormente, regeu em Viena de 1919 a 1924 e colaborou para a criação de um sindicato para a valorização dos direitos autorais de composição. Mesmo durante a guerra, duas importantes obras surgiram, a Alpensinfonie e a ópera Die Frau ohne Schatten. Quando o nazismo chegou ao poder na Alemanha, Strausstinha 68 anos e sua reputação garantiu a direção da Reichs Musikkammer em 1933, cargo que declinou mais tarde, talvez por não aderir à campanha racista dos nazistas (SALVAT, 1984). Strauss morreu em 8 de setembro de 1949 e deixou mais de 120 obras, entre quinze óperas. UNIDADE 3 | MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) 154 2.2 NOVAS CONCEPÇÕES ESTÉTICAS O número grande de inovações e tendências musicais surgidas no início do século XX representa uma espécie de reação contra o romantismo. As novas concepções artísticas passariam a ser rotuladas como antirromânticas e pertenciam a um movimento de mudança de pensamento. Enquanto que o século XIX assistiu a uma geração romântica, que se caracterizou na comunhão de um mesmo estilo de composição, muitos compositores do início do século XX apresentaram um conjunto complexo de várias tendências estilísticas no que diz respeito aos elementos que constituem uma obra musical. As novas tendências não foram poucas, visto que a criatividade não tem limites. Novas ideias surgem com novas técnicas, divergentes e logo são rotuladas. No fim do século XIX e início do século XX encontramos, entre outras não menos importantes, tendências e técnicas da nova música: Impressionismo, Nacionalismo do século XX, Influências Jazzísticas, Politonalidade, Atonalidade, Expressionismo, Pontilhismo, Serialismo, Neoclassicismo, Música Concreta, Música Eletrônica, Serialismo Total e Música Aleatória (BENNETT, 1986b). Ao longo de nosso texto estaremos investigando os aspectos mais significativos das tendências mais importantes do século. Apesar da grande variedade, todas essas tendências apresentam pontos em comum, que as definem como típicas do século XX ao analisarmos os aspectos como melodia, harmonia, ritmo e timbre. No âmbito das melodias, o uso de intervalos maiores passa a ser utilizado, ou seja, quando a melodia faz um salto de uma região para outra mais aguda ou mais grave. Esses saltos seriam mais radicais, mas também seriam feitos de forma cromática. Resoluções dissonantes também passam a ser utilizadas, dando a sensação de que a melodia não encontra repouso, mas certo desconforto – é um efeito característico de uma passagem dissonante. Justamente para fazer oposição ao estilo romântico, a música do século XX traz melodias fragmentadas, mais curtas, com uso de glissandos (quando as notas deslizam) ou até mesmo a ausência da melodia (BENNETT, 1986b). Já as harmonias apresentam grandes mudanças, com amplo uso de dissonâncias. A intenção no uso desse recurso é justamente causar desconforto e inquietação, visto que o uso de acordes consonantes (aqueles que nos dão a sensação de repouso) é, muitas vezes, evitado. Todavia, a utilização de novos acordes não seria algo novo no século XX: Franz Liszt, um dos pilares da música romântica, já dizia que toda composição deveria conter um acorde novo, inédito e isso, por si, só já começou a criar uma desestabilização do sistema harmônico tonal. No entanto, na última década do século XIX e primeira do século XX, os compositores que se arriscavam nesse campo de inovações harmônicas mostravam não mais que imitações e maneirismos. Obviamente, na época de Wagner e Liszt eram como inovações, mas, posteriormente, em virtude de o sistema tonal já estar comprometido pelo excesso de novos acordes, a harmonia tradicional já não constituiria uma linguagem satisfatória (SALVAT, 1984). TÓPICO 1 | O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO 155 Quanto ao ritmo, os padrões também são evitados e há mais utilização de síncopes (quando se dá ênfase em uma parte fraca do ritmo, avançando para um tempo forte). O uso de métricas diferenciadas como estruturas rítmicas de cinco ou sete compassos são utilizadas em larga escala, algo que era impensável na música clássica e início do romantismo. O uso dessas métricas diferenciadas já estava presente na música folclórica de alguns países, como veremos mais adiante, e o recurso seria um dos favoritos para os compositores. Assim como existia a prática do contraponto, em que as melodias são contrapostas, o ritmo seria alvo desse recurso, e diferentes métricas estariam acontecendo ao mesmo tempo, impulsionando a música. A percussão seria largamente utilizada para impor esse elemento da música. Na concepção de timbres específicos, diferentes e exóticos sons seriam integrados na orquestra. São sons desconhecidos tirados de instrumentos conhecidos, como instrumentos tocados em seus registros extremos, metais usados com surdina e cordas produzindo novos efeitos, o arco tocando por trás do cavalete ou batendo com a ponta no corpo do instrumento. Ainda, sons inteiramente novos, provenientes de aparelhagens eletrônicas e fitas magnéticas (BENNETT, 1986b, p. 69). Esses novos recursos encontrariam lugar e condições no início do século XX. No período antecedente, Wagner e Liszt já haviam quase que esgotado todas as possibilidades diatônicas que as tradições barroca e clássica poderiam ter proporcionado. Gustav Mahler e Richard Strauss contribuíram para que a geração romântica alcançasse o século XIX e principalmente em Mahler, com sua música baseada no sistema diatônico, a sinfonia continuaria sendo o veículo do drama dos contrastes das relações humanas. O início do século XX foi palco de uma crise na composição tonal, em que a tradição romântica estaria no ápice de um esgotamento. Mahler e Strauss não estariam sozinhos na tentativa de restauração das tradições musicais germânicas: Arnold Schoenberg (1874-1951), Ferrucio Busoni (1866-1924) e Max Reger (1873- 1916) se preocuparam em procurar novas experiências, mas que trouxessem disciplina ao cromatismo, fundamentando suas composições em olhares para a música barroca e até renascentista (SADIE, 1994). O cromatismo, recurso que estaria na moda entre os compositores, ofereceria uma concepção totalmente nova, um objeto de atenção por parte dos antirromânticos. Assim, a produção musical no período se caracteriza, ao mesmo tempo, como restauradora e exploratória. A expansão da harmonia tonal encontrou principalmente em Schoenberg as bases funcionais e, os cinco compositores, mesmo com objetivos diferentes, encontraram o mesmo problema: o de desenvolver uma música em que as certezas harmônicas estariam esgotadas (GRIFFITHS, 1998). Schoenberg sempre encarou a exploração da atonalidade como uma inevitável consequência do desenvolvimento da música romântica e sentia em Brahms e Bach os maiores alicerces da tradição musical austro-germânica. UNIDADE 3 | MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) 156 FIGURA 1 – COMPOSITORES DO ROMANTISMO TARDIO (RICHARD STRAUSS, SAMUEL BARBER, WILLIAM WALTON, RALPH VAUGHAN WILLIAMS E EDWARD ELGAR) FONTE: <http://twixar.me/x9Y1>; <http://twixar.me/k9Y1>; <http://twixar.me/q9Y1>; <http://twixar.me/fJY1>; <http://twixar.me/1JY1>. Acesso em: 10 mar. 2019. O contexto está situado na Alemanha e na Áustria, berços das formas clássicas e principalmente da sinfonia e da sonata como meios de expressão musical. Para além desses países, a crise da estética romântica parece ter sido mais branda. Compositores como Edward Elgar (1857-1934) e Carl Nielsen (1865-1931) evidenciam mais traços tradicionais românticos do que explorações harmônicas. Na mesma linha de pensamento estão Jean Sibelius (1865-1957) e Ralph Vaughan Williams (1872-1958), que desenvolveram um estilo sinfônico dentro dos recursos do sistema diatônico funcional (SADIE, 1994). Sibelius transcorreu em sua Quarta Sinfonia (composta em 1910-11) um amplo uso do trítono – que consiste no intervalo de três tons, resultando em uma quarta aumentada (ou quinta TÓPICO 1 | O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO 157 diminuta), um completo desestruturador da tonalidade. O trítono é conhecido também pela alcunha de Diabolus in musica. Apesar da fidelidade às tradições românticas, Sibelius parece ter sido silenciado pelas novas tendências e estéticas impostas pelo cromatismo, visto que em seus últimos trintaanos praticamente nada compôs (GRIFFITHS, 1998). Outros representantes do romantismo tardio são os compositores William Walton (1902-1983) e Samuel Barber (1910-1981), que levaram o romantismo tardio até o último quarto do século XX. O panorama indica que as novas tendências e estéticas da música a partir de 1900 mostram sua multiplicidade, ao contrário de uma corrente única de pensamento, como foi o caso do período clássico e romântico da história da música (SADIE, 1994). Enquanto uns compositores se preocupavam em desenvolver, exteriorizar sua arte por meio das ferramentas tradicionais, com “pitadas” inovadoras e ousadas, outras correntes de pensamento caminhavam para outras direções. Se os mais conservadores se mostraram capazes de trabalhar com técnicas e métodos que pareciam esgotados pelos seus antecessores, de outro lado os radicais tiveram dificuldades em estabelecer as diretrizes para uma nova linguagem, para uma nova harmonia que fosse compatível com os avanços tecnológicos, científicos e culturais do período que compreende os anos de 1890 até 1910. A situação de divergência entre concepções estéticas e formais da música situa-se no ponto de colapso do romantismo tardio, “pois foi a ênfase romântica no temperamento individual que preparou o colapso das fronteiras tonais reconhecidas” (GRIFFITHS, 1998, p. 23). 3 PRELÚDIO DO MODERNISMO O século XX traz a concepção de um novo estilo, o que os historiadores e musicólogos chamam de música moderna. Como você já viu, a transição se deu por um colapso do sistema tonal, mas as consequências e características estariam firmadas de maneira mais concisa somente após a Segunda Guerra Mundial. O sistema tonal vinha sendo tratado e desenvolvido como o principal alicerce da música ocidental desde o século XVII e seu esgotamento ocorreu no movimento do romantismo tardio. A principal característica da música considerada moderna é, justamente, a libertação dos sistemas tonal maior e menor. O anúncio da nova concepção estética que seria a música moderna pode ser encontrado na obra do compositor francês Claude Debussy (1862-1918) já nos primeiros compassos de Prélude à l’Après-Midi d’um Faune, em 1892-94 (SADIE, 1994). Na obra (assim como em outras), Debussy intencionou se afastar do estilo romântico germânico por considerá-lo pesado e sua nova maneira de compor foi comparada pelos estudiosos da arte com as técnicas empregadas no estilo impressionista das artes plásticas. UNIDADE 3 | MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) 158 3.1 DEBUSSY E AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES Claude-Achille Debussy nasceu na França, filho de comerciantes e em sua infância teve aulas de piano com Mauté de Fleurville (discípula de Chopin), o que foi determinante para sua vida como compositor. Viveu no período em Cannes e ali teve outro encontro determinante, o contato com o mar. Já aos dez anos de idade ingressou no Conservatório de Paris e ali permaneceu por doze anos. No Conservatório, o jovem músico sofreu pelo seu temperamento independente, mostrando-se avesso às conveniências acadêmicas. Provocava seus professores de piano tocando improvisos com acordes dissonantes e tocava o Cravo Bem-Temperado de Bach com expressividade e não como estudo (MASSIN, 1997). Seus pais investiram para que Debussy se tornasse um virtuoso no piano, algo que decepcionou, pois o jovem esbanjava seu talento no instrumento para suas próprias vontades. O próprio Stranvisnky citou Debussy a esse respeito: “Deus! Como aquele homem tocava bem piano!” (MASSIN, 1997, p. 908). Eram os anos de 1880, época em que a ópera Carmem de Bizet era recebida como obra inovadora e de musicalidade complicada. Debussy foi contratado pela madame Von Meck (que foi a protetora de Tchaikovsky) e atuou como professor de piano dos filhos da baronesa. Foi nessa fase que teve um profundo contato com a música de Tchaikovsky, além de explorar outros gêneros musicais, como a ópera, que o deixou indiferente. Debussy se mostrou muito interessado no estilo musical de Liszt e Wagner e sentiu que na linha estética em questão poderia contribuir. No fim do século XIX Paris era um grande centro cultural, no qual Debussy fez amizades que duraram por toda sua vida. O impressionismo na pintura estava em ascensão e com um movimento de internacionalismo cultural, levando Debussy a conhecer outras culturas e a encontrar em Mussorgsky uma semelhança de pensamento musical. Em 1892 começou a trabalhar em um projeto sinfônico inspirado no poema de Mallarmé, L’Après-midi d’um Faune (A tarde de um fauno), pensado em três partes: um prelúdio, um interlúdio e uma paráfrase. No entanto, apenas o prelúdio foi composto. Do período em diante, importantes obras foram concebidas e, em 1902, compôs os Nocturnes, considerados um dos marcos da música impressionista (SALVAT, 1984). O impressionismo é o que caracteriza o estilo dos pintores franceses Claude Monet (1840-1926), Camille Pissarro (1830-1903) e ainda seus círculos de pintores nos anos de 1870. Posteriormente, o termo foi emprestado à música para caracterizar o estilo que diverge do romântico. No impressionismo, as linhas são dissolvidas, dando-nos a impressão de uma imagem, é um estilo que mais sugere do que apresenta diretamente. Muitos críticos encaram a palavra como um conceito útil particularmente para a música, que dissolve os contornos da progressão tonal tradicional com aspectos modais ou cromáticos e transmite estados de espírito e emoções em torno de um tema, em vez de apresentar uma imagem musical detalhada (SADIE, 1994, p. 450). TÓPICO 1 | O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO 159 Assim como os pintores combinam as cores, Debussy combinou habilmente os timbres e as harmonias, seguindo mais o seu instinto do que as regras tradicionais da composição musical. A progressão de acordes utilizada por Debussy é formada também por acordes dissonantes, como os de nona e décimas terceiras, formando sequências harmônicas que sugerem a tonalidade, não apresentado-a diretamente. Debussy faz uso também de escalas consideradas exóticas: as mais tradicionais seriam a diatônica maior e a menor, mas utilizou em sua obra escalas pentatônicas (cinco notas nas teclas pretas do piano), escalas modais e escalas de tons inteiros (BENNETT, 1986b). Nas obras para orquestra, Debussy faz amplo uso da variação dos timbres, combinando diferentes instrumentos da orquestra, assim como também combina elementos como ritmo, texturas, sempre evitando um delineamento claro. Lembre-se, caro leitor: nesta técnica, há mais sugestão do que definição. DICAS Ouça na plataforma Youtube a obra Prélude à l’Après-Midi d’um Faune, de Debussy. Já no início do solo da flauta paira a dúvida sobre a tonalidade, pois ele utiliza não somente as notas que permitem identificar as tonalidades maior ou menor, mas também passagens em semitom, o cromatismo. Sugerimos a interpretação de Leonard Bernstein com a Orchestra Dell'accademia Nazionale di Santa Cecilia. FONTE: <https://youtu.be/Rpw4- J49auQ>. Acesso em: 19 jul. 2019. O Prélude de Debussy tem sua importância como marco na história da música moderna por lançar os fundamentos da inovação. A época em que foi finalizado coincide com obras de grande importância do romantismo, como a Sinfonia Novo Mundo, de Dvorák, e a Sinfonia Patética, de Tchaikovsky (GRIFFITHS, 1998). Nos aspectos formais tradicionais, os temas são apresentados e posteriormente desenvolvidos, mas Debussy apresenta uma ideia hesitante e faz um retorno sobre si mesma e somente depois é que irá realizar um desenvolvimento, dando-nos uma ideia incerta sobre o tema. Novamente, temos a sensação da impressão de um tema vago, mas que está presente. O tema inicial da flauta reaparece várias vezes, ornamentado, diluído, em fragmentos e nos dá a sensação de um longo improviso. Essas impressões estão presentes também de forma rítmica, com oscilações de andamento. Normalmente, na forma sonata romântica, o desenvolvimento não sofre alteraçõesrítmicas, visto que a concentração reside na progressão de acordes e incursões em outras tonalidades. No entanto, Debussy liberta o desenvolvimento do ritmo estável. Em termos de harmonia, o Prélude por vezes é remetido a tonalidades com resoluções bem tradicionais, mas na maior parte da obra o discurso tonal se dá de forma impressionista (GRIFFITHS, 1998). UNIDADE 3 | MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) 160 Debussy se considerava não como um impressionista, mas estava mais preocupado em libertar a expressividade dos chavões tradicionais da música romântica germânica. Na verdade, quase tudo o que era de vanguarda era considerado como impressionista. Seu Prélude obteve sucesso imediato e se tornou muito popular: o tratamento difere de uma narrativa de emoções pessoais típicas de um poema sinfônico de Strauss. Com Debussy a narrativa dá lugar a uma sugestão imaginativa livre de um sonho. O próprio Debussy afirmou que “somente a música tem o poder de evocar livremente os lugares inverossímeis, o mundo indubitável e quimérico que opera secretamente na misteriosa poesia da noite, nos milhares de ruídos anônimos que emanam das folhas acariciadas pelos raios de lua” (GRIFFITHS, 1998, p. 10). FIGURA 2 – CLAUDE DEBUSSY E PINTURA IMPRESSIONISTA DE MONET E LA MER (DA ESQUERDA PARA A DIREITA: CLAUDE DEBUSSY, LA GARE SAINT-LAZARE DO PINTOR IMPRESSIONISTA CLAUDE MONET E CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE LA MER, GRAVURA DE HOKUSAI (A ONDA). FONTE: <http://twixar.me/FJY1>; <http://twixar.me/vJY1>; <https://tinyurl.com/y55ed6us>. Acesso em: 7 mar. 2019. Outra obra de grande importância é La Mer (1903-05), que tem como ponto de partida os elementos da natureza em que o compositor justifica que os sons do mar, os ventos nas árvores e o grito dos pássaros trariam sensações múltiplas. Nesses elementos, nossa memória traria à tona alguns aspectos que seriam musicalizados em sensações, em impressões de nossa imaginação. É uma das características que impulsionou o compositor francês a criar esse estilo novo, um ponto de partida para a música moderna, o abandono da tonalidade tradicional e a abertura para a atonalidade (ausência de tom), sutilezas e impressões melódicas e uma nova e complexa concepção rítmica. Dentre suas importantes obras, encontramos as Chansons de Bilitis (Canções de Bilitis), a suíte Pour le piano e Le Tombeau des Naïades (O túmulo das Naiades), com textos de Pierre Louÿs. Nos anos 1900 Debussy não parou de compor, e uma série de músicas para piano foi publicada, trazendo ao compositor grande reputação. TÓPICO 1 | O ROMANTISMO TARDIO E O RETORNO AO CLÁSSICO 161 Debussy trouxe uma nova maneira de compor e, em suas obras sinfônicas, traz uma forma original, em que a música flui em um ritmo ininterrupto, em figuras que aparecem e desaparecem, em um discurso fragmentado que recusa a ideia de desenvolvimento (MASSIN, 1997). Os anos passaram e, em 1910, Debussy foi acometido pelo câncer e começa sua luta contra a doença. A Guerra começa na Europa, mas, apesar de tudo, Debussy não deixaria de compor. 3.2 O NEOCLÁSSICO COMO REAÇÃO O neoclassicismo surge como uma reação à tradição romântica. O movimento situa-se entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, ou seja, o período aproximado entre 1919 até 1939. A ideia do compositor adepto era a de retomar as formas equilibradas e o desenvolvimento de temas, com a finalidade de substituir a forma pesada e exagerada do romantismo tardio (SADIE, 1994). Os compositores que aderiram ao movimento não só buscaram o estilo nos clássicos Mozart e Haydn, mas também em modelos do período barroco, como Bach, Purcell, Händel e Monteverdi. Apesar do termo “clássico” que nos remete à época concernente aos anos de 1750 – 1810, o neoclassicismo faz surgir uma reinvenção de um estilo, uma releitura moderna de técnicas e formas que pertencem a períodos anteriores ao romantismo. Não seria a mesma música das épocas anteriores, mas sim, a união do tradicional com o novo (BENNETT, 1986b). Os gêneros e formas utilizados pelos compositores do início do século XX são a tocata, a fuga, o concerto grosso, a técnica do ostinato e a passacaglia, além da forma sonata. No entanto, cromatismos, modulações repentinas, harmonias inéditas e extravagantes seriam elementos típicos do século XX e que trariam o “novo” nas releituras dos clássicos do passado. Em oposição às grandes massas orquestrais dos românticos e pós-românticos, os neoclassicistas escreveriam uma música para ser interpretada por orquestras bem menores, com fortes contrastes em termos de timbre. “O estilo neoclássico é, em geral, ‘frio’ – dá especial preferência aos instrumentos de sopro e percussão em detrimento da expressividade das cordas” (BENNETT, 1986b, p. 75). Perceba, caro leitor, que se trata de uma linha de pensamento e por isso não quer dizer que uma tendência musical substitua outra, mas sim, ocorre uma adesão por um grupo de compositores para determinada linha de composição e uma concepção da obra de arte musical. IMPORTANT E UNIDADE 3 | MÚSICA MODERNA (1900 – ATUALIDADE) 162 O retorno às formas clássicas tem como seus representantes principais o compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971) com a obra Pulcinella, que utiliza elementos que remetem à música de Giovanni Battista Pergolesi (período barroco). Outra obra de Stravinsky que possui elementos neoclássicos é The Rake’s Progress (1951), utilizando técnicas de Mozart em recitativos e árias (SADIE, 1994). Da mesma forma, o compositor russo Serguei Prokofiev (1891-1953), ao compor em 1916 a sua Sinfonia Clássica – nº 1 em Ré Maior, utilizou elementos de danças do século XVIII. Na sinfonia, Prokofiev se inspirou nas técnicas utilizadas por Joseph Haydn, elaborando o primeiro movimento na forma sonata (Allegro). O segundo movimento é escrito na forma Minueto, seguido de uma Gavote na forma ternária e culminando no movimento Finale, na forma rondó-sonata. Todos os movimentos utilizam técnicas típicas do classicismo, porém, com elementos inovadores, além das típicas melodias russas. A sinfonia foi recebida como uma resposta à crítica, por considerar Prokofiev um compositor excessivo de ornamentos técnicos, ao mesmo tempo em que declarava que a obra foi composta “como se ele vivesse em nossa época” (BENNETT, 1986b, p. 75). Erik Satie (1866-1925) foi um compositor na contramão das tendências de sua época. De personalidade curiosa, fundou sua própria seita proselitista, a Igreja Metropolitana de Arte e Jesus como Guia. Apenas ele fazia parte. Estudou no Conservatório de Paris, formou amizade com Debussy e já estava compondo pequenas peças para piano. Mais tarde, decidiu retomar seus estudos em música na Schola Cantorum. Satie sempre demonstrou um caráter cínico em um humor que perpassa também sua obra. Depois de ter sido apresentado à sociedade por Ravel, a fama de Satie começou a crescer e este passou a compor freneticamente. Foi o responsável por uma técnica de composição totalmente nova, em que ele estabelecia um catálogo dos encadeamentos dos acordes e depois extraía as melodias de escalas de modos gregos (MASSIN, 1997). Seu balé Parade (1917) utilizou melodias, refrãos da moda, ragtimes e acrescentou ruídos de uma roda da fortuna girando, sons de uma sirene e de uma máquina de escrever. Foi um escândalo que consagrou Satie. O compositor continuaria trabalhando na linha surrealista com obras como Socrate (1920), uma melodia para quatro personagens e acompanhamento musical e Relâche (Folga), de 1924. Satie fez de sua obra um prenúncio de inovações que teria seu auge em Stockhausen e Cage, o iniciador de uma nova arte, com características minimalistas. Por outro lado, seguem em maior número os adeptos do retorno às formas clássicas, como Arnold Schoenberg, o norte-americano Walter Piston (1894-1976) e Paul Hindemith (1895-1963), com os quatro Concertos Op. 36 para piano, violoncelo e viola e o Concerto para Metais e Cordas. Ainda, o francês Francis Poulenc (1899-