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ALIMENTAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: NECESSIDADES NUTRICIONAIS E CULTURA ALIMENTAR CONTEMPORÂNEA Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Ana Paula Silva CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Cristiane Lisandra Danna Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2019 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. SI586a Silva, Ana Paula Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutri- cionais e cultura alimentar contemporânea. / Ana Paula Silva. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 122 p.; il. ISBN 978-85-7141-338-2 ISBN Digital 978-85-7141-339-9 1. Crianças - Nutrição. - Brasil. 2. Adolescentes – Nutrição. – Bra- sil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 612.3 Impresso por: Sumário APRESENTAÇÃO ..........................................................................05 CAPÍTULO 1 História da Alimentação ............................................................... 7 CAPÍTULO 2 Alimentação na Contemporaneidade ........................................ 43 CAPÍTULO 3 A Importância de Uma Boa Alimentação na Infância e na Adolescência ......................................................... 87 APRESENTAÇÃO Em conformidade com os princípios do saber-fazer da Uniasselvi, este livro busca embasar o acompanhamento da disciplina Alimentação de crianças e ado- lescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea a partir de informações, reflexões e atividades que abordam o tema estudado de uma maneira holística e consistente em relação aos estudos clássicos, às pesquisas mais atuais e às normas que orientam a alimentação de crianças e adolescentes. No primeiro capítulo “História da alimentação”, os alunos conhecerão o campo de estudos da alimentação e ao final deste, os acadêmicos estarão aptos a refletir como a alimentação se constitui como processos culturais e sociais di- versos. Partindo da mesma perspectiva, eles poderão analisar como o hábito de comer foi se transformando ao longo da história ocidental e como a globalização afetou a prática de consumo de alimentos. No segundo capítulo “Alimentação na contemporaneidade”, os acadêmi- cos são convidados a refletir acerca da fome, um mal que afetou 815 milhões de pessoas, 11% da população global (ONU, 2017). O conteúdo deste capítulo é baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Organização das Nações Unidas (ONU) e convoca os alunos a discutirem sobre problemas e dilemas que abarcam o consumo de alimentos no mundo contem- porâneo. Partindo do problema da desigualdade na distribuição e consumo de alimentos, é inserida a noção de insegurança alimentar. Em continuidade, explo- ra-se a classificação dos alimentos em in natura/ minimamente processados, in- gredientes culinários, processados e ultraprocessados, destacando especialmen- te os malefícios dos ultraprocessados. Por fim, discutem-se as contradições que envolvem o uso de agrotóxicos na produção de alimentos. No terceiro capítulo “A importância de uma boa alimentação na infância e na adolescência”, trazemos informações e discussões a respeito da alimen- tação de crianças e adolescentes, do nascimento à adolescência. São tratados aspectos como as recomendações básicas para cada faixa etária, a necessidade e a pertinência da adoção de políticas públicas, as doenças mais frequentes de- correntes da má nutrição e as algumas ações possíveis para a promoção de uma vida saudável. Ao término desta disciplina o acadêmico terá construído um bom repertório cultural sobre a alimentação na contemporaneidade, sendo capaz de fazer rela- ções entre alimentação, consumo, saúde e sustentabilidade; estará capacitado a pensar ações que visem a uma boa alimentação contribuindo para a criação de hábitos mais saudáveis entre crianças e adolescentes. CAPÍTULO 1 História da Alimentação A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes objetivos de aprendizagem: � conhecer o campo de estudos da alimentação; � identificar de que forma a alimentação constituiu processos culturais, econômicos e sociais diversos ao longo da história humana; � analisar a historicidade das formas de aquisição, produção, circulação e consumo de alimentos; � expressar a importância dos saberes culinários para diferentes épocas e culturas. 8 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea 9 História da Alimentação Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Este capítulo versa sobre a história da alimentação, um ramo do campo mais amplo que envolve os estudos da alimentação, cuja abordagem inclui diferentes dis- ciplinas, como agronomia, antropologia, arqueologia, biologia, economia, geografia, nutrição, medicina e sociologia. Como vários outros assuntos que fugiam do campo da história política, a alimentação começou a ser abordada pelos historiadores so- mente no século XX, a partir da obra do botânico suíço Adam Maurizio, publicada em 1926, que abordou sistemas alimentares da espécie humana desde a Pré-histó- ria, superando as narrativas tradicionais sobre discursos e saberes botânicos, mé- dicos e gastronômicos. Desde então, em diferentes países, surgiram histórias das alimentações nacionais, com destaque para Inglaterra, Estados Unidos e França, mas também para países latino-americanos, como México, Colômbia, Chile, Vene- zuela e o Brasil, com destaque para a importante obra História da alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo (1967-1968). A obra do célebre historiador francês Fernand Braudel, Civilização material, economia e capitalismo (1979), aborda a alimentação na longa duração a partir do conceito de cultura material, que abrange aspectos elementares da vivência huma- na, como, além do consumo de alimentos, a moradia e o vestuário. Neste âmbito, a alimentação se destaca como aspecto essencial das estruturas da vida cotidiana. Em 1996, veio a lume o importante livro de quase mil páginas organizado por Je- an-Louis Flandrin e Massimo Montanari, História da alimentação, que busca adotar uma perspectiva universal (embora não consiga se desvencilhar totalmente do eu- rocentrismo) a respeito de diferentes épocas e culturas alimentares. Outra enciclo- pédia importante é Cambridge World History of Food, editada por Kenneth F. Kiple e Kriemhild Coneè Ornelas no ano 2000. No Brasil, destaca-se o livro “Comida e so- ciedade: uma história da alimentação”, do historiador Henrique Carneiro, de 2003. Com base nessas obras de referência e em outros estudos monográficos, o propósito neste capítulo é propiciar uma visão ao mesmo tempo sintética e abran- gente a respeito de processos e transformações históricas da relação dos seres humanos com os alimentos, da Pré-história ao tempo presente, evidenciando e pro- blematizando as formas históricas de obtenção, circulação e consumo de alimentos. 2 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS DO ATO DE COMER A alimentação atende à necessidade fundamental de garantia da nossa so- brevivência enquanto espécie, mas sabemos que o consumo de alimentos vai 10 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea além da satisfação de uma necessidade biológica. As práticas alimentares dizem muito a respeito da cultura dos povos e integram o rol de elementos que distan- ciam os seres humanos dos outros animais, tendo assumido ao longo da história complexos significados econômicos,linguísticos, sociais, políticos, médicos, reli- giosos e até sexuais. Claramente não é por acaso que a viagem de recém-casados é chamada “lua de mel”, que algo muito simples é considerado “mamão com açúcar” e que se diz “devorar” um livro quando a leitura é realizada com grande interesse e afinco ou “digerir” uma notícia quando ela não corresponde às nossas melhores expec- tativas. O ato de comer constitui um componente essencial da reprodução da vida cotidiana, gera tanto solidariedades quanto conflitos, povoa o imaginário popular, desafia o intelecto de acadêmicos dos mais variados campos de pesquisa e ocu- pa lugar central em nossa constituição psíquica. Os hábitos alimentares vêm passando por transformações desde os primór- dios da humanidade. Há dúvidas sobre quando exatamente cada alimento pas- sou a fazer parte da alimentação humana, mas se sabe que desde a pré-história os hominídeos eram onívoros, isto é, comiam tanto vegetais quanto animais, mui- to embora acredite-se que durante milhões de anos tenha prevalecido uma dieta composta por frutas, folhas e grãos coletados da natureza. O domínio progressivo do fogo, iniciado há cerca de meio milhão de anos, foi um feito de grande importância. Como destacou o antropólogo Claude Lévi- -Strauss (1964), a passagem gradual do cru ao cozido marcou, além do desen- volvimento das primeiras formas de cocção de alimentos e de modificações no processo de digestão e absorção das proteínas, a transição da condição biológica para a social dos seres humanos. As formas de aquisição de carne foram alvo de intenso debate entre os pesquisadores. Discutiu-se se e até que ponto os primeiros hominídeos, australopitecos e homo habilis, eram caçadores ativos ou meros ladrões de carniça. De todo modo, vestígios arqueológicos encontrados no oriente africano, datados entre 2,5 e 1,5 milhões de anos, indicam o consumo de animais de várias espécies e o desenvolvimento de instrumentos rudimentares de pedra lascada destinados à caça e ao preparo das presas. No Paleolítico Médio (200.000- 11 História da Alimentação Capítulo 1 40.000 a.C.), a caça passaria por um processo notável de aprimoramento, mas continuaria sendo uma prática ocasional, feita por pequenos grupos e voltada a animais de grande porte, como ursos, rinocerontes e elefantes. Foi apenas no Paleolítico Superior (40.000-10.000 a.C.) que se disseminaram práticas de caça especializada, direcionada ao abate de manadas de renas, cavalos, bisões, auroques e mamutes. Tais caçadas demandavam a colaboração de muitos indivíduos. Acredita-se que famílias e grupos de famílias, que vivam separadamente a maior parte do ano, reuniam-se periodicamente para a realização das caçadas, as quais envolviam uma logística considerável, desde o fabrico de utensílios e a instalação de armadilhas, passando pela a realização do abate, o corte da carne, a distribuição e a estocagem, chegando até o tratamento e manufatura de peles, ossos e tripas. Esses processos, retratados com frequência nas pinturas rupestres (Figura 1), geraram formas de integração social, divisão sexual do trabalho e o desenvolvimento de mecanismos para a troca de informações. FIGURA 1 – PINTURA DE UM BISÃO EM UMA CAVERNA EM ALTAMIRA, ESPANHA FONTE: Lockard (2014, p. 14) Muitas pinturas rupestres representavam animais caçados ou temidos, sugerindo uma autoconsciência. 12 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea Tão importante quanto a passagem da coleta para a caça em si, foi o desenvolvimento gradual de técnicas de armazenagem, trituração, secagem, defumação, desidratação, reidratação e cozimento de alimentos variados, tanto de origem animal quanto vegetal. Este movimento foi acompanhando por um notável crescimento demográfico e pela expansão da espécie humana a partir da África para os diversos rincões do planeta, incluindo, evidentemente, o continente americano (Figura 2). FIGURA 2 – MAPA DAS MIGRAÇÕES ORIGINÁRIAS DO HOMO SAPIENS PELO GLOBO FONTE: Lockard (2014, p. 11) No período Mesolítico (10.000-8.000 a.C.), com o derretimento das geleiras e o surgimento de florestas, houve uma maior diversificação alimentar. O porte da fauna reduziu, passando a prevalecer animais medianos e pequenos como cervos, javalis e cabritos. A captura das presas se tornou relativamente mais difícil, em compensação, muitas dezenas de espécies provenientes de hábitats e ecossistemas distintos puderam ser explorados. Não apenas vegetais, como legumes, oleaginosas e pequenos frutos, foram integrados à dieta, como também peixes, moluscos e aves bastante diversificados. A disponibilidade variável de recursos naturais gerou movimentos adaptativos distintos, de modo que alguns grupos mantiveram circuitos sazonais de ocupação e deslocamento no interior de determinados perímetros territoriais, enquanto outros iniciaram processos de “revolução neolítica”, por meio da qual a humanidade desenvolveu técnicas de criação de animais e cultivo sistemático de alimentos. Em outras palavras, trata-se do momento em que o homo sapiens inventou a agricultura e a pecuária. 13 História da Alimentação Capítulo 1 sedentarização, dando origem às primeiras civilizações na Antiguidade. Nesta época, há cerca de 10 mil anos, teve início a chamada “revolução neolítica”, por meio da qual a humanidade desenvolveu técnicas de criação de animais e cultivo sistemático de alimentos. Em outras palavras, trata-se do momento em que o homo sapiens inventou a agricultura e a pecuária. FIGURA 3 – MAPA DAS ORIGENS DA AGRICULTURA COM A INDICAÇÃO EM INGLÊS DAS PLANTAS E SUAS RESPECTIVAS ORIGENS FONTE: Lockard (2014, p. 19) As causas dessa revolução também foram bastante debatidas entre os espe- cialistas. Alguns estudiosos acreditam que o desequilíbrio entre o crescimento das populações e a oferta natural de alimentos foi o fator decisivo, mas há pesquisas demonstrando que, no Oriente Médio, por exemplo, a revolução foi precedida por uma fase importante de aclimatação de plantas e desenvolvimento da caça, su- gerindo um movimento, não de reação à escassez de recursos silvestres, mas de aprimoramento técnico e desenvolvimento civilizacional. Segundo Fernand Braudel (2005), a agricultura se organizou desde o princí- pio em torno de certas plantas dominantes que marcaram profundamente a orga- nização da vida material e até psíquica das populações a ponto de poderem ser denominadas “plantas de civilização”. Ao longo da história, três delas se destaca- riam, trigo, arroz e milho, que até hoje disputam a maior parte das terras aráveis do globo. 14 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea A agricultura surgiu em vales férteis irrigados por grandes rios como o Jordão (Jericó), o Nilo (Egito), Eufrates e Tigre (Mesopotâmia), Amarelo e Yangtzé (Chi- na) e Indo (Ásia Meridional). Nessas regiões despontaram alguns dos pilares de nossa alimentação, com a cultura de cereais, como o trigo (a planta cultivada mais antiga de todas), o centeio e a cevada. Esse processo histórico esteve associado a profundas transformações econômicas, com a produção de excedentes para o comércio e a concentração desigual de recursos; tecnológicas, com a criação de cerâmicas, mós de pedra, enxada, a roda, o arado, a charrua pesada, sistemas de irrigação, fornos para pão e assados diversos; religiosas, com o advento de uma série de crenças e rituais em torno da água, da fertilidade do solo e da colheita; e políticas, estando diretamente associada ao advento do Estado. O domínio sobre a produção de alimentos não é um acontecimento único, pre- so a um único tempo e espaço, mas um processo plural, que se espalhou por di- ferentes regiões do globo, em diferentes ritmos e épocas. É digno de destaque o cultivo do arroz, a partir de 2000 a.C., nos atuais Vietnã, Laos e Camboja,alastran- do-se, mais tarde, pelo vale do Níger, na África, e em terras inundadas na China. Na América, o milho seria a base de numerosas civilizações já a partir do ter- ceiro milênio a.C., muito antes de Astecas e Incas formarem seus impérios. Tubér- culos em infindáveis variedades, como batata, batata-doce e mandioca, também distinguiriam a produção agrícola pré-colombiana, sustentando suas populações antes da chegada dos europeus. Ao cacau, além de seu uso culinário, seria atri- buído valor monetário, circulando como dinheiro entre os astecas. Há indícios re- motos do consumo de bebidas à base de cacau, como o xocoalt, que daria origem ao chocolate. A pecuária também foi uma conquista essencial. Desde os primórdios, os animais seriam usados não apenas para a alimentação, mas também para tração e transporte. Entre muitos outros êxitos civilizacionais, a Mesopotâmia se notabi- lizou pela criação dos primeiros rebanhos bovinos, ovinos e caprinos a partir de 4.500 a.C. Por volta de 3.000 a.C., dromedários e camelos seriam domesticados no Egito, assim como cavalos no Oriente Médio e em diversas partes da Europa. Na América pré-colombiana, não existiam nem animais de porte suficiente para tração, nem rebanhos para corte, exceto por aves comestíveis, como o peru. A principal região pecuarista seria a andina, onde se deu a domesticação de lha- mas, alpacas e vicunhas, usadas para transporte e obtenção de lã. Ainda na Antiguidade houve uma notável sofisticação das práticas sociais em torno da alimentação. A comensalidade sedimentou laços familiares e de ami- zade, assumiu lugar importante na ritualística religiosa, constituiu um momento privilegiado para a tomada de decisões políticas e de festejo após casamentos e êxitos militares. Já nessa época, refeições eram feitas à mesa. Os mesopotâmi- 15 História da Alimentação Capítulo 1 cos consideravam um ato de grande hostilidade a recusa em partilhar alimentos e realizavam banquetes regados a cerveja que ilustravam as delícias da vida divina. Além disso, ao menos desde o segundo milênio a.C., existiam tabernas nas quais indivíduos se encontravam para comer e beber. Tais estabelecimentos normal- mente eram geridos por mulheres e frequentados por homens, os quais ocasio- nalmente cometiam excessos decorrentes do consumo de álcool ou aproveitavam o espaço para a realização de conspirações políticas. O conhecidíssimo Código de Hamurabi (1772 a.C.), sexto rei da Babilônia, contém diversas medidas para regulamentar o funcionamento das tabernas, proi- bindo a entrada de certas sacerdotisas, arbitrando o recebimento de cevada como pagamento pela cerveja e prescrevendo punições em caso de transgressões, es- pecialmente para as taberneiras. Também havia banquetes reais, nos quais um grupo seleto de pessoas era convidado para celebrar, por exemplo, a inauguração de palácios e a chegada de uma delegação estrangeira. Tratava-se de um mo- mento importante de aproximação entre o monarca e o povo (ou parte dele). No Antigo Egito, a comida assumiu um caráter cultural essencial. Diversos registros associam a longevidade e a boa saúde a uma alimentação farta. Asse- gurar à população uma quantidade suficiente de víveres era visto pelos sábios como condição essencial para garantir a ordem social. Um homem de barriga va- zia era tido como um desordeiro em potencial. A famosa crença dos egípcios na vida após a morte compreendia a realização de oferendas alimentares. Orações fúnebres eram acompanhadas de pão, cerveja e carnes. No túmulo de uma mu- lher da segunda dinastia (3.700 a.C.) foram encontrados cereais cozidos, pães feitos de cevada, queijo, peixe e rins de carneiro cozidos. Na tumba de um arquiteto egípcio do século XIV a.C. havia um recipiente de madeira com sal de cozinha, pedaços de pão, carnes de boi e de aves, peixe seco, alho, cebolas, tâmaras, uvas, abacates, zimbro e cominho. Mesmo sendo ligados a pessoas privilegiadas, esses vestígios oferecem um panorama interes- sante acerca das modalidades da produção alimentar egípcia e mostram que os habitantes do vale do Nilo tinham diante de si, ainda que com graus variados de acesso, alimentos bastante diversificados e equilibrados em termos de nutrientes. Além disso, os egípcios desenvolveram incontáveis utensílios de mesa e culiná- ria, como panelas, frigideiras, travessas, tigelas, taças, bandejas, jarros e ânforas para armazenar vinho e cerveja. Embora utilizassem os dedos para comer, eles também criaram facas de metal, colheres, conchas e escumadeiras. As circunstâncias enfrentadas pelos hebreus foram bastante distintas. As refe- rências bíblicas à terra prometida, como aquela onde correria leite e mel, denotam a busca incessante desse povo por um território onde houvesse uma oferta satisfató- ria de recursos alimentícios. A promessa divina de alimentos incluiria também cere- 16 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea ais, vinhas, figueiras, romãzeiras e oliveiras. O interessante, no entanto, é que toda a penúria enfrentada foi seguida por numerosas regras alimentares, que impuseram uma série de proibições e prescrições para o consumo de alimentos. Parte da reve- lação que, segundo a tradição, foi feita a Moisés no Monte Sinai incluiu a definição de animais impuros, que não poderiam ser ingeridos sob hipótese alguma. Note-se o teor do Levítico 20, 25: “Fareis, pois, diferença entre os animais limpos e imundos, e entre as aves imundas e as limpas; e as vossas almas não fareis abomináveis por causa dos animais, ou das aves, ou de tudo o que se arrasta sobre a terra; as quais coisas apartei de vós, para tê-las por imundas”. Fonte: <https://bibliaportugues.com/ leviticus/20-25.htm>. Acesso em: 12 nov. 2018. Para os judeus, os alimentos impuros ou imundos seriam basicamente aque- les que não respeitavam, por seus comportamentos e atributos físicos, os desíg- nios divinos. O caso mais conhecido é o do porco, mas aves, como avestruzes, cisnes, pelicanos, como também tartarugas, diferentes espécies de lagartos, crustáceos, entre muitos outros animais, foram interditados. Seguindo-se lógica semelhante, animais castrados também foram proibidos. Alimentos derivados ou fermentados, embora pudessem ser consumidos no cotidiano, não deveriam ser utilizados na celebração da Páscoa, por exemplo, em razão de terem sua natu- reza original alterada. Os alimentos que seguem as regras descritas no Torá são denominados Kosher. Uma hipótese para explicar a construção de todo esse re- pertório restritivo seria o seu papel como elemento de afirmação identitária, algo importante para um povo que lutava continuamente pela sobrevivência. http://www.conquistesuavida.com.br/noticia/alimentacao-kosher- o-que-e-e-como-funciona_a7979/1. O mundo grego, originalmente formado por pequenas comunidades agrícolas (genos), deu lugar a cidades-estados independentes entre si (polis), que chegaram ao seu esplendor nos séculos V e IV a.C. Vinhas e oliveiras tinham uma presença marcante na paisagem e seus frutos eram vastamente consumidos in natura ou na forma de azeite (entregue como prêmio em competições atléticas nas famosas ânforas panatenaicas) e vinho (a bebida principal da Grécia), mas é possível dizer que os cereais eram a base da alimentação dos gregos. Os romanos, inclusive, referiam-se a eles como “comedores de cevada”. Há diversos vestígios materiais, mitológicos e textuais da alimentação grega na Antiguidade, mas os escritos de Hipócrates (460-377 a.C.) apresentam um panorama particularmente rico a respeito dos alimentos utilizados no período no período clássico. 17 História da Alimentação Capítulo 1 Em seu conhecido tratado Do Regime, Hipócrates explica formas de preparo, da moagem ao cozimento, da cevada e de outros cereais, como trigo e milhete, utilizados para a confecção de pães e bolos. Também são enumeradas favas de diferentes tipos, como grão-de-bico,lentilhas, ervilhas e grãos, como gergelim e papoula, cujo valor nutricional era destacado pelo “pai da medicina”. Além de bovinos, suínos e ovinos, os gregos também comiam carne de cachorro, mas o consumo de proteína animal ocorria majoritariamente em rituais de sacrifício aos deuses. Peixes de rios e de mar eram apreciados, assim como alguns moluscos. Mel, queijos, hortaliças, frutas, como pera, maçã e figo, tinham lugar de destaque, assim como alho e cebola. Um aspecto de destaque é a existência de refeições públicas. A vida cívica, o exercício da cidadania, passava pela participação de grandes banquetes coletivos, que serviam para prolongamento de discussões de cunho político. Havia ainda um rito festivo conhecido como symposion, no qual aquele que bebia era tomado pelo vinho e encarnava divindades como Eros e Dionísio, cujo sentido foi imortalizado na obra do filósofo Platão do século IV a.C. pesquise a respeito das festas dionisíacas na Grécia Antiga. Os romanos, assim como os gregos, tinham uma cultura sacrificial. A carne, embora fosse relativamente escassa no cotidiano, estava no centro de todas as refeições festivas e o seu consumo era mediado por sacrifícios às divindades. A partilha essencial era da carne, não do pão. Do ponto de vista dos produtos alimentares, os romanos diferenciavam basicamente fruges, produtos da terra cultivada (cereais e leguminosas), dos pecudes, animais criados por sua carne (cordeiros, cabritos, leitões, frangos). A transformação do meio natural em lavoura era tida como sinal de civilização. O ato de comer era marcado por dois tipos de refeições especiais, a cena e o prandium. A primeira ocorria geralmente em uma tarde de inverno, reunindo homens vestidos de togas ou túnicas largas e levava de duas a três horas. A segunda reunia grupos sociais bem definidos (famílias, amigos da mesma faixa etária, vizinhos, corporação profissional) para compartilhar alimentos por ocasião de alguma festividade. Contudo, em Roma nunca foi incorporado algo como o symposion. Eles não acreditavam na possessão dionisíaca nem em nada do gênero associado à comensalidade, embora a embriaguez fosse comum em celebrações. Para escravos, camponeses, a plebe das cidades e os soldados em campanha, a alimentação cotidiana era pouco variada e composta basicamente por alimentos frios. Alimentos quentes e diversificados era um luxo usufruído pelos patrícios, a 18 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea classe dominante romana. As atividades militares, fundamentais no mundo latino, impactavam diretamente na alimentação. O cultivo de trigo nos latifúndios estava diretamente vinculado ao sortimento de pão aos soldados, que também recebiam uma porção de sal como pagamento. Daí, inclusive, nasceu a palavra salário. A ascensão do cristianismo e a desintegração do Império Romano do Ocidente no século V de nossa era trouxe mudanças importantes. A sociedade medieval seria caracterizada por condições sociais e status bem marcados entre a população. Durante algum tempo perduraria uma categoria mista de camponeses- guerreiros, mas, entre os séculos VIII e IX, a oposição entre os estilos de vida de camponeses e membros da nobreza se acentuaria progressivamente. A atividade militar seria concentrada nas mãos de uma elite privilegiada, o que serviria de legitimação para os seus privilégios. Com o tempo, ganharia força a concepção de que o Criador teria atribuído aos corpos sociais três funções específicas e complementares: sacerdócio, guerra e trabalho. Aos bellatores, membros da nobreza, caberia garantir a proteção contra os inimigos, aos oratores, a transmissão dos fundamentos da fé católica e a garantia da salvação dos fiéis e, finalmente, aos laboratores, o seu próprio sustento e dos demais membros da sociedade. Uma série de obrigações e restrições foi imposta aos trabalhadores rurais, que produziam os cereais, mas tinham que pagar pelo uso dos moinhos pertencentes aos senhores feudais. Além de serem excluídos da prática da caça, a eles caberia basicamente alimentos in natura ou cozidos em água, enquanto os nobres prefeririam assados e grelhados. A carne de porco e seus derivados, como toucinho e banha, eram importantes complemento à subsistência das famílias camponesas. Não obstante, a fome seria uma ameaça constante e uma realidade frequente naquele período. A Idade Média seria um período de extrema carência alimentar. A ideologia cristã amenizava a situação pregando o jejum como manifestação de humildade, um valor a ser exaltado. A principal tentação a ser combatida era certamente a gula. Segundo São Bento, “amar o jejum” era um dos instrumentos principais para as boas obras (COSTA, 2012, p. 43). Por outro lado, alguns mosteiros e abadias concentraram grandes porções de terra, convertendo- se em importantes centros produtores de alimentos. A vida monástica chegou a ser sinônimo de boa comida e fartura. Monges e freiras se notabilizaram pela confecção de pães, doces e bebidas alcoólicas destiladas e fermentadas. Na mesma época, o império muçulmano se expandiu desde a Península arábica, incorporando vastos territórios da Ásia, África e Europa. O Islã imprimiu sua marca em vários aspectos da vida dos lugares onde se estabeleceu, incluindo evidentemente as práticas alimentícias. Os laticínios (leite, manteiga, queijo, iogurte e kaymak, nata fervida levemente temperada de sal) tinham lugar 19 História da Alimentação Capítulo 1 destaque em sua dieta, especialmente entre os pobres. A exemplo da tradição judaica, a islâmica também incluiu distinções entre o puro e o impuro. A carne de porco também fora vedada, assim como o consumo de bebidas fermentadas. A duração e o rigor do jejum eram maiores entre os muçulmanos do que nas outras religiões monoteístas. Durante o Ramadã não se pode comer nem beber enquanto perdurar a luz do sol. Em compensação, refeições noturnas fartas assumem um caráter festivo, ajudando a resistir às privações. No deserto, consumiam-se laticínios, um pouco de carne e tâmaras. Nas regiões de clima menos árido, as refeições incluíam carne de carneiro, cereais, laticínios, legumes e frutas. Por outro lado, em ambientes inóspitos, gafanhotos e lagartos assados chegavam a ser consumidos. Base de certos refrigerantes na atualidade, a noz de cola, usada como afrodisíaco e em tratamentos medicinais diversos, era muito valorizada em função de sua ação estimulante e redutora de apetite, propriedades importantes em longas expedições militares ou comerciais através do deserto do Saara. No processo de expansão havia grande intercâmbio com as populações submetidas, implicando variedades regionais marcantes. Ao mesmo tempo, traços das culturas pregressas, incorporadas pelos árabes, como persas e beduínos, se faziam presentes, não apenas nos alimentos consumidos, mas em técnicas de conservação, preparo e intercâmbio. Nas Américas, as sociedades indígenas desenvolveram práticas e regras alimentares bastante variadas. Como já mencionado, havia uma diversidade de plantas alimentícias absolutamente extraordinária. Além de milho, batata, mandioca e cacau, itens como amendoim, abóbora, aba- caxi, guaraná, mamão, mate, tomate, tabaco e feijão, desconhecidos en- tre os europeus, foram domesticados e cultivados em várias regiões do continente, por diversas culturas. A proficiência de astecas, que desenvol- veram canteiros flutuantes em áreas alagadiças (chinampas) para amplia- rem a área cultivada, e incas, que realizaram uma integração produtiva de diferentes planos ecológicos, é particularmente digna de destaque. Os andinos desenvolveram a integração do que John Murra (1998) chamou “arquipélagos verticais”, nos quais diferentes grupos tratavam de produzir de forma especializada em lotes adequados, conforme clima e solo, a determinadas culturas (regiões elevadas eram destinadas à criação de animais e ao cultivo detubérculos mediante o emprego de terraços agrícolas, enquanto nos vales quentes se plantavam milho, algodão, coca, entre outros) e realizando, ao final, uma distribuição em conformidade com uma lógica de complementaridade e reciprocidade. Que desenvolveram canteiros flutuantes em áreas alagadiças (chinampas) para ampliarem a área cultivada. “arquipélagos verticais”, nos quais diferentes grupos tratavam de produzir de forma especializada em lotes adequados, conforme clima e solo, a determinadas culturas (regiões elevadas eram destinadas à criação de animais e ao cultivo de tubérculos mediante o emprego de terraços agrícolas, enquanto nos vales quentes se plantavam milho, algodão, coca, entre outros) e realizando, ao final, uma distribuição em conformidade com uma lógica de complementaridade e reciprocidade. 20 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea FIGURA 4 – INCAS PLANTAM E COLHEM BATATAS. FERRAMENTAS: PAU DE FURAR E ENXADA. CODEX PERUANO DO SÉCULO XVI FONTE: Braudel (2005, p. 148-149) FIGURA 5 – PANORAMA DOS TERRAÇOS AGRÍCOLAS DE PÍSAC, NO VALE SAGRADO DOS INCAS, PERU FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Inca>. Acesso em: 19 nov. 2018. Além do consumo de vegetais, é importante lembrar que a caça e a pesca eram traços marcantes de variadas culturas indígenas. Aves silvestres, roedores, pequenos primatas e até baleias eram caçadas, sem contar os variadíssimos tipos de pescados. Portanto, o consumo de proteína animal era parte integrante da dieta indígena, que também incluía carne humana. 21 História da Alimentação Capítulo 1 O canibalismo ritual ameríndio sul-americano foi notabilizado por relatos como os do viajante alemão Hans Staden, que caiu prisioneiro entre os tupinambás no século XVI. Entre os povos da região mesoamericana, os astecas, por exemplo, costumavam consumir em banquetes partes cozidas dos corpos dos prisioneiros de guerra ou de escravos sacrificados. Tais práticas já foram explicadas de variadas formas pela bibliografia, que indicou entre as motivações vingança, transferência das qualidades dos mortos ou mais simplesmente a carência nutricional. O consumo de insetos é também bastante conhecido. No território que veio a ser o Brasil, o consumo de formigas ou do bicho da taquara, por exemplo, era muito comum. As civilizações orientais eram relativamente menos carnívoras. Os japoneses são famosos por terem se formado como uma sociedade majoritariamente ictiófaga, comedora de peixe. O consumo de laticínios e ovos era muito reduzido e não havia criação de gado de corte. Já os chineses consumiam tradicionalmente uma variedade um pouco maior de proteína animal, incluindo, assim como os gregos, carne de cachorro. Criações mais extensivas se restringiriam aos suínos. Embora outros povos reivindiquem a invenção do produto, os chineses são bastante conhecidos pela criação do macarrão. Há vestígios arqueológicos de macarrão chinês com a idade de quatro mil anos, muito anterior à célebre viagem do navegante veneziano Marco Polo, que teria levado amostras de pasta no século XIII para a Península Itálica. Embora a ingestão de carne não seja tão incomum quanto se imagina, indianos são famosos pelo seu vegetarianismo. Religiões importantes, como o jainismo, hinduísmo e o budismo, pregaram o respeito aos seres vivos, estimulando o consumo de cereais e frutos. Um conjunto de crenças associadas à reencarnação e à transcendência espiritual tradicionalmente rejeitaram o consumo de carne. A transição da Idade Média para a Modernidade, na passagem do século XV para o XVI, foi perpassada por grandes transformações históricas que incluíram o estreitamento do intercâmbio entre as diferentes regiões do globo e a mundialização de alimentos antes concentrados localmente. Esse aspecto será explorado de forma mais detida na próxima seção deste capítulo, mas cabem algumas considerações preliminares a respeito do quadro geral. Além de transformações na cadeia global de produção, circulação e consumo de alimentos, mudanças locais no ritmo e na forma do trabalho produtivo (da escravidão ao trabalho assalariado), o crescimento dos centros urbanos, a passagem da agricultura de subsistência para uma agricultura mercantil, o surgimento de manufaturas, o aumento da mineração, o cercamento dos campos, entre outros processos correlacionados, alteraram o número, os horários e o local de realização das refeições, como também separaram progressivamente produtores e consumidores, ampliando-se a quantidade de açougues, mercearias e quitandas. O advento da impressa deu novo sentido aos livros de culinária e 22 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea o desenvolvimento da produção manufatureira disseminaria o uso de talheres, sobretudo, facas e colheres. O garfo, inventado na Baixa Idade Média em Bizâncio, permaneceu artigo de luxo até o século XIX. De todo modo, comer com as mãos na modernidade passaria a ser um tabu. FIGURA 6 – TALHERES COM CABO DE MARFIM DO SÉCULO XVII FONTE: Braudel (2005, p. 183) O século XVIII trouxe uma nova onda de transformações. O Iluminismo, as Independências dos Estados Unidos e do Haiti e a Revolução Francesa romperam com a antiga ordem absolutista e aristocrática na Europa, trouxeram crise aos sistemas coloniais remanescentes e reconfiguraram profundamente o quadro geopolítico internacional. A ideologia burguesa associada aos ideais de liberdade e igualdade se opuseram à opulência do modo de vida cortesão, incluindo os complexos rituais alimentares da realeza, retratados, por exemplo, no filme Maria Antonieta, de Sofia Coppola (2006). A fome e a crise social se transformaram no grande medo das elites aristocráticas. Na falta de pão, não havia brioches para todos, apesar do que propôs a princesa alienada. Por outro lado, nos anos seguintes, a ampliação da produção industrial, a partir da Grã- Bretanha, e o desenvolvimento de técnicas mais avançadas de cultivo inundaram o mercado de produtos, criando novos itens de consumo e tornando alimentos outrora restritos ao consumo de luxo, como açúcar de cana e café, acessíveis ao padrão de consumo da classe trabalhadora dos grandes centros urbanos. Na centúria seguinte, a Revolução Industrial se expandiu e a indústria agroalimentar alcançou o primeiro plano da produção capitalista mundial. Cabe destaque para os avanços nas técnicas de conservação dos alimentos. Em 1804, o francês Nicolas Appert inventou o sistema de conservas em potes de vidro hermeticamente fechados. Isto revolucionou a indústria alimentícia, tornando possível o armazenamento por período mais prolongado, além de facilitar o transporte. Em 1851, foi patenteado o primeiro refrigerador; em 1864, foi criado o processo de pasteurização para a eliminação de contaminações microbiológicas; 23 História da Alimentação Capítulo 1 em 1876, o primeiro navio frigorífico entrou em funcionamento, transportando carne da Argentina para a Europa. Essas inovações atingiram o ápice no século XX, quando os consumidores de média e baixa renda passaram a ter acesso a geladeiras, fogões a gás, liquidifica- dores e, mais recentemente, micro-ondas. Evidentemente, a industrialização tam- bém trouxe inúmeras consequências negativas, ampliando o desequilíbrio econômi- co entre pessoas e países ricos e pobres, a contaminação ambiental com resíduos e embalagens, o uso de aditivos químicos, agrotóxicos e transgênicos. A produção de gado de corte atingiu dimensões estratosféricas, trazendo degradação ambiental direta, com aumento das pastagens, e indireta, com a ampliação do cultivo da soja e cerais diversos para alimento dos rebanhos. Confinamentos, o emprego de hormônios e antibióticos acarretaram uma série de problemas para a saúde dos animais e dos consumidores. Ao mesmo tempo,alergias e intolerâncias alimentares, especialmente a glúten, lactose e frutose, consumidos desde os primórdios da humanidade, têm crescido de forma avassaladora, refletindo o alto consumo de alimentos processados, geneticamente modificados e cultivados à base de herbicidas, aliado ao estresse e a uma piora na qualidade de vida da população. FIGURA 7 – EXPORTAÇÕES DE GADO 24 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea FONTE: <https://www.beefpoint.com.br/exportacao-de-gado-vivo-cresce-sob- a-mira-de-entidades-de-defesa-animal/>. Acesso em: 19 nov. 2018. Nos países periféricos ou em desenvolvimento, a desnutrição aumentou, assim como a obesidade entre as sociedades ocidentais. O mundo atual tem que conviver com o enorme paradoxo de produzir uma quantidade praticamente diretamente pro- porcional de alimentos e de famintos. Superabundância e fome caminham juntos. Os Estados Unidos, principal potência do mundo ocidental após a Segunda Guerra Mundial, adotou e disseminou pelo mundo, com o apoio de estratégias publicitá- rias agressivas, um modelo alimentar que promoveu a substituição de carboidratos complexos presentes em amidos, por exemplo, por carboidratos simples como açú- cares e gorduras, alastrando redes de fast food e a oferta de refrigerantes. A partir de 1986, o consumo de refrigerantes superaria o de água no país. A primeira reação foi em prol da estética, não da saúde. A obsessão com a forma fí- sica e padrões estéticos trouxe o aumento de distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia, quando não, aumentou a adoção de dietas da moda, desprovidas de coerência, embasamento, continuidade e acompanhamento. Existe, como sabe- mos, um novo contraponto em andamento. O número de indivíduos preocupados com a questão da alimentação saudável tem crescido significativamente, desde o advento de formas mais radicais do vegetarianismo, como o movimento vegano, que propaga um comportamento ético mais abrangente perante os direitos dos animais, até consumidores médios procurando reduzir a ingestão de alimentos processados e adotar crescentemente orgânicos em sua dieta cotidiana. Atividade de Estudo 1 Analise as consequências do domínio do fogo sobre o ato de comer. 2 Quais foram as mudanças ocorridas no Paleolítico no que se re- fere à prática da caça? 3 Quais foram as mudanças gerais ocorridas no período mesolítico? https://www.beefpoint.com.br/exportacao-de-gado-vivo-cresce-sob-a-mira-de- https://www.beefpoint.com.br/exportacao-de-gado-vivo-cresce-sob-a-mira-de- 25 História da Alimentação Capítulo 1 4 Explique as razões pelas quais o advento da agricultura e da pecu- ária é compreendido como uma revolução (a revolução neolítica). 5 É possível considerar os povos das Américas inferiores em rela- ção aos mesopotâmicos ou chineses por terem desenvolvido a agricultura mais tarde? 6 Marque verdadeiro ou falso. Depois, assinale a alternativa com a sequência correta: ( ) Os mesopotâmicos, além da agricultura, desenvolveram for- mas elaboradas de comensalidade e regras de conduta incor- poradas em sua legislação escrita. ( ) A crença dos egípcios na vida após a morte compreendia a realização de oferendas alimentares. A partir delas é possível saber que os egípcios já utilizavam talheres para comer. ( ) Os hebreus enfrentaram rígidas carências alimentares, o que fez com que sua cultura alimentar não apresentasse nenhum tipo de restrição alimentar. ( ) Na Grécia, consumia-se azeite, vinho e diversos cerais, como cevada, trigo e milho. ( ) Os romanos seguiam absolutamente todos os costumes gregos. ( ) Após a ascensão do cristianismo, foram eliminadas todas as distinções sociais e a população passou a ter os mesmos direi- tos de acesso aos alimentos. ( ) O império muçulmano foi particularmente pobre em termos culinários, sendo caracterizado pela imitação das culturas do- minadas. a) ( ) V – V – F – F – V – V – F. b) ( ) V – F – F – F – F – F – F. c) ( ) V – F – F – V – V – F – V. d) ( ) F – V – V – V – V – V – V. e) ( ) F – F – V – V – F – F – F. 7 Compare a importância do trigo para os mediterrânicos, do arroz para os asiáticos e do milho para os indígenas. 8 Quais as principais mudanças trazidas pela modernidade para o ato de comer? 9 Avalie a importância da Revolução Industrial para o consumo de alimentos. 10 A produção de cerais e a criação de gado de corte movimentam a economia, criam empregos e propiciam alimentos para a so- ciedade. No entanto, vários grupos identificam problemas nesses setores produtivos na forma como eles se sustentam atualmente. Elenque dois desses problemas. 26 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea 3 GLOBALIZAÇÃO DA ALIMENTAÇÃO O termo globalização tem sido utilizado desde os anos 1980 para designar o aprofundamento da integração cultural e econômica entre diferentes partes do planeta no mundo contemporâneo, marcado pela formação de blocos econômicos, pelo “encurtamento” das distâncias e pela velocidade inédita da circulação de informações. No entanto, muitos pesquisadores têm observado a existência de diversas globalizações ao longo da história, isto é, a formação de sistemas de interação, intercâmbio e integração entre populações e territórios espalhados por diferentes regiões do mundo. O Mediterrâneo, conhecido pela tríade pão, azeite e vinho, Mare Nostrum dos romanos, configurou o epicentro de diversas globalizações pré-modernas no Ocidente, articulando desde a Antiguidade o Egeu dos gregos ao Egito, Pérsia e outras regiões orientais. Paralelamente, uma série de rotas comerciais terrestres e marítimas conectou a China à Ásia central e ao próprio Mediterrâneo, configurando o que a partir do século XIX foi denominado Rota da Seda, que nasceu há mais de 4 mil anos a partir de caminhos abertos por pastores nômades. Tecidos, cerâmicas, porcelanas e metais preciosos tinham destaque nas trocas comerciais, mas alimentos como azeite, chás, cerais, carnes salgadas e defumadas, sal e vinhos circulavam bastante pelas vias mercantis. FIGURA 8 – ROTAS COMERCIAIS DA ANTIGUIDADE TARDIA FONTE: Lockard (2014, p. 233) 27 História da Alimentação Capítulo 1 Com a emergência do Islã, o Saara constituiu um outro eixo fundamental da globalização articulado ao Mediterrâneo. As especiarias – termo genérico utilizado desde o século XIV para designar produtos diversos de origem vegetal destinados a temperar alimentos diversos, bem como conservar e disfarçar a má qualida- de da carne – representam um capítulo à parte na história da alimentação, elo fundamental entre globalizações pré-modernas e modernas. Na Europa, desde a Antiguidade Clássica, usavam-se plantas aromáticas, como açafrão, anis, man- jerona, louro e coentro. A partir do século XI, observou-se a introdução gradativa no continente europeu de especiarias asiáticas, como canela, cravo, cardamomo, gengibre e pimenta-do-reino, pela ação de mercadores muçulmanos, que também introduziram a laranja e o açúcar de cana, cujo cultivo passou a ser realizado no Egito, em Chipre e na Sicília. A partir daquela mesma época, pouco a pouco, as cidades-estados italianas, com destaque para Gênova e Veneza, ampliaram suas atividades no comércio a longa distância conectando uma vasta rede mercantil entre a Península Ibérica à Ásia. Entre outras mercadorias, o açúcar e as especiarias asiáticas, bastan- te lucrativas nos mercados de luxo dos grandes centros europeus, aguçaram a rivalidade entre genoveses e venezianos. Os primeiros foram responsáveis por introduzir a produção de cana no sul de Portugal e nas ilhas atlânticas da Madei- ra, marcando o início da transferência do epicentro das atividades do nascente sistema capitalista europeu do Mediterrâneo para o Atlântico. Esse deslocamento resultaria efetivamente do fechamento das rotas terrestres para a Ásia em decor- rência da queda de Constantinoplaem 1453. Como aprendemos na escola, daí nasceu o impulso para as grandes navegações no final do século XV. Os capitais italianos foram essenciais para o expansionismo atlântico ibérico. Os portugueses foram pioneiros, atravessando, em 1488, com Bartolomeu Dias, o Cabo das Tormentas, porta de entrada para a Ásia via périplo africano, completado por Vasco da Gama dez anos depois. Consequentemente, foram restabelecidas as trocas mercantis com a Ásia e instalados entrepostos comerciais em vários pontos da costa da África com as chamadas feitorias. Diante do êxito lusitano, o mercador genovês Cristóvão Colombo conseguiria, após várias tentativas, convencer os reis da Espanha a respaldar juridicamente e financiar sua expedição que pretendia atra- vessar o Atlântico na direção do Ocidente para ligar a Europa à Ásia. Em 1492, Colombo chegou ao território que mais tarde seria denominado América. Aqui teve início a primeira fase da globalização moderna da alimenta- ção, marcada pela aceleração e multiplicação sem precedentes do intercâmbio de gêneros alimentícios, como também pela amplificação do caráter mercantil da produção agrícola internacional. Houve uma verdadeira revolução nos hábi- tos alimentares mundiais. Uma gama enorme de alimentos até então restritos a determinadas regiões ou macrorregiões seriam mundializados, gerando uma in- 28 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea terdependência planetária inédita, sustentando o aumento da população global e o desenvolvimento do sistema capitalista. Nesse processo, formas ancestrais de produção, distribuição e consumo de alimentos foram desestruturadas. Notemos o quadro a seguir sobre centros de origem e a diversidade das principais culturas, organizado por Patrícia Goulart Bustamante com os dados da International Plant Genetic Resources Institute (IPGRI), que sintetiza as informa- ções já inseridas e acrescenta outras: QUADRO 1 – CENTROS DE ORIGEM E A DIVERSIDADE DAS PRINCIPAIS CULTURAS Cultura Centro de origem/diversidade Abacaxi América Central, América do Sul Abóbora América Central, América do Sul Alface Mediterrâneo Algodão Ásia Central, América Central, América do Sul Alho Ásia Central Amendoim América do Sul Arroz África Ocidental e Sudoeste da Ásia Aveia Ásia Menor, Mediterrâneo Azeitona Ásia Menor, Mediterrâneo Banana Etiópia, Sudoeste da Ásia Batata Andes Berinjela China e África Beterraba Ásia Menor Brócolis Mediterrâneo Cacau América Central Café Etiópia Cana-de-açúcar Índia, Sudoeste da Ásia, China Cebola Etiópia, Ásia Central, Ásia Menor Cenoura Ásia Central, Ásia Menor Cevada Etiópia, Ásia Menor Coco Sudoeste da Ásia Couve-flor Mediterrâneo Ervilha Ásia Menor, Ásia Central Espinafre Ásia Central Feijão América Central Laranja China, Sudeste da Ásia Limão Índia Maçã Ásia Central Mamão Ásia Central, Andes Manga Índia Melancia Ásia Central Milho América Central, Andes Morango Sul do Chile 29 História da Alimentação Capítulo 1 FONTE: BUSTAMANTE (2000, p. 87-88) Nabo Mediterrâneo Pepino Índia, Malásia Pêssego China Repolho Ásia Menor, Mediterrâneo Sisal América Central Tabaco América Central Tomate América Central, Andes Trigo Etiópia, Ásia Menor Uva Ásia Central, Ásia Menor Atualmente, o símbolo máximo da culinária italiana é a macarronada com molho de tomate. Mas nem o macarrão, nem o tomate são originários da Península Itálica, nem mesmo do Mediterrâneo. Pesquise quando o consumo de pasta com molho de tomate se popularizou na Itália. Cada um desses alimentos, hoje cultivados em diferentes rincões mundo afo- ra, tiveram uma história particular de expansão. O milho, apoiado por sua notável produtividade, foi introduzido logo no século XVI. Embora tenha levado duzentos anos para se consolidar, acabou por se espalhar e assumindo importância em regi- ões da Península Ibérica, Itália, França, Balcãs, na Europa, norte do Congo e Be- nim, na África, na Índia, Birmânia, Japão e China. A batata teria difusão um pouco mais lenta e encontraria maior resistência em regiões da Ásia e em países muçulmanos, mas na virada do século XVIII ganha- ria plenamente a Europa. Do outro lado do Atlântico, a paisagem começaria a ser alterada mais velozmente. Nos séculos XV e XVI, as ilhas Atlânticas – Canárias, Madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe – haviam servido de laboratório para a montagem de um sistema de colonização baseado na produção de cana-de- -açúcar com base no trabalho escravo de nativos e africanos. Mercadoria de luxo com alto potencial lucrativo, a produção de açúcar seria iniciada na ilha de Hispa- niola logo em 1505, quatro anos depois chegaram os primeiros escravos da África para se somarem aos trabalhadores indígenas, cuja população entrava em declínio acelerado. Na falta de metais preciosos, principal alvo do mercantilismo, o açúcar despontaria como a grande aposta do colonialismo ibérico em terras americanas. Na América portuguesa, após uma fase de escambo com os indígenas, teve início o plantio de cana em meio à necessidade de garantir a posse do território. Em 1532, Martim Afonso de Sousa instalou o primeiro engenho do Brasil na vila de 30 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea São Vicente. Nos anos seguintes, o cultivo se espalhou pelo litoral de outras capi- tanias, prosperando especialmente no Nordeste, em Pernambuco e na Bahia, mas também no Rio de Janeiro, na região de Campos dos Goitacazes. Além de açúcar, produziam-se quantidades importantes de cachaça, também chamada jeribita, mui- to consumida localmente, mas também exportada, especialmente para a África, na região de Angola, onde era trocada por trabalhadores escravizados. Os livros didáticos perpetuaram a ideia errônea de que a história econômica do Brasil colonial seria baseada em ciclos, sendo o do açúcar o segundo deles, prece- dido pelo do pau-brasil e sucedido pelo do ouro, porém, a historiografia demonstra que a produção canavieira nunca cessou, atingindo maior faturamento do que a mi- neração ao longo do século XVIII, muito embora a competição internacional tenha aumentado enormemente. Nos primeiros dois séculos de colonização, o império espanhol não represen- tou grande competidor, apesar de sua incursão precoce no ramo açucareiro. A ex- ploração de ouro e prata na Mesoamérica e nos Andes concentrou a maior parte os esforços hispânicos, relegando a produção de açúcar do Caribe espanhol a se- gundo plano. Os luso-brasileiros se beneficiaram do domínio que detinham sobre o tráfico transatlântico de escravos e de condições ambientais vantajosas, ultrapas- sando rapidamente os concorrentes castelhanos. Até o século XVII, os portugue- ses praticamente monopolizaram o mercado internacional de açúcar. O panorama mudou após as invasões holandesas. Depois que foram expulsos, em 1654, os fla- mengos fizeram parcerias com franceses e ingleses, transferindo para as Antilhas todo o conhecimento técnico e logístico que tinham acumulado no Brasil. FIGURA 9 – ENGENHO DE ITAMARACÁ, DO PINTOR HOLANDÊS FRANS POST PARA O MAPA DE GASPAR BARLAEUS, 1647 FONTE: <http://bit.ly/2W53iYw>. Acesso em: 19 nov. 2018. Martinica e Saint-Domingue (Haiti), do lado francês, Barbados e Jamaica, do lado britânico, se tornariam grandes produtores de açúcar e melaço de cana, 31 História da Alimentação Capítulo 1 abalando as saídas baianas e pernambucanas. Contudo, a elasticidade do mercado e conflitos bélicos entre as metrópoles dos rivais caribenhos impediram uma retração uniforme das exportações brasileiras, que mantiveram médias bastante competitivas ao menos até meados do século XIX, quando explodiram as exportações cubanas. Os circuitos agroexportadores e a extração de metais preciosos no Novo Mundo geraram mercados internos cujo abastecimento mobilizou tanto culturas originárias das Américas quanto plantas e animaistrazidos de fora para aclimatação local. Pouco se menciona, mas São Paulo se destacou pela produção de trigo, no século XVII, com base na escravização de indígenas. Enquanto a população local consumia principalmente mandioca, milho e feijão, o planalto paulista, “celeiro do Brasil” na acepção de John Manuel Monteiro (1994), produzia farinha de trigo para o mercado do litoral, especialmente o Rio de Janeiro. FIGURA 10 – INDÍGENA DO MÉXICO CULTIVANDO TRIGO TRANSPLANTADO PARA A AMÉRICA PELOS ESPANHÓIS UTILIZANDO UTENSÍLIOS EUROPEUS FONTE: Braudel (2005, p. 152) 32 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea O gado bovino também foi cedo introduzido na colônia, crescendo em virtude do mercado para a carne, o couro e a tração de carroças e moendas. A riqueza da região açucareira, a abundância de pastagens e o relevo sem grandes barreiras tornaram o Nordeste o primeiro grande sítio pecuarista brasileiro, com bovinos de origem indiana. Os pampas do Sul logo seriam palco de uma segunda onda pecuarista, despontan- do a partir de missões jesuíticas nas proximidades do território que viria a ser o Uruguai. No início do século XVI, o rebanho luso-brasileiro já alcançava cerca de 1,5 milhão de cabeças. Em fins do século XVIII, o Rio Grande do Sul comerciali- zaria aproximadamente 13 arrobas de charque. Esse número chegaria a 600 mil arrobas no início do Oitocentos. Essa atividade foi alavancada pela descoberta de metais preciosos em Minas Gerais, fenômeno que efetivamente formou uma rede interna de abastecimento, ramo até então bastante desconexo, preso ao litoral e ainda muito dependente de importações. A fundação de vilas e cidades e o enorme fluxo migratório para a região das minas mobilizou comerciantes itinerantes conhecidos como tropeiros, que vendiam alimentos, especialmente charque do sul, e animais de carga que serviam para o transporte dos minérios e de artigos diversos para as regiões por- tuárias. O charque, junto à farinha de mandioca, constituiu a base da alimentação dos escravos. O caso luso-brasileiro é representativo da configuração interconectada as- sumida por outros sistemas coloniais. No império britânico, as colônias do Norte do território, que deram origem aos Estados Unidos, a chamada Nova Inglaterra e, em um segundo momento, as colônias do Meio cresceram comercialmente for- necendo carne bovina e suína, cereais (trigo, aveia e milho), peixes secos, frutas e mantimentos diversos para as Índias Ocidentais produtoras de açúcar, obtendo preferencialmente melaço para a fabricação de rum que seria destinado à impor- tação de escravos para serem vendidos no Sul. Com efeito, rum e cachaça cum- priam o mesmo papel no circuito do infame comércio de cativos. O café assumiria um lugar de destaque nessa história, mas um pouco mais tarde. Originário da Etiópia, a planta circulou bastante pelo mundo árabe, sendo cultivado com maior profusão no Iêmen a partir do século XV. Não por acaso, a ci- dade portuária iemenita, Moca, hoje dá nome a uma das principais variedades do grão. Estimulante, a bebida serviria de substituto do álcool, proibido pela religião muçulmana, mediando a sociabilidade masculina em estabelecimentos especia- lizados para o seu consumo. No início do século XVII, a bebida começou a ser apreciada no mundo ocidental, penetrando primeiro em Veneza, via Istambul. Na década de 1640, o produto começaria a ser consumido na França, berço dos famosos cafés europeus, daí se espalhando gradualmente para outros paí- O charque, junto à farinha de mandioca, constituiu a base da alimentação dos escravos. 33 História da Alimentação Capítulo 1 ses. Os holandeses, que estavam encontrando dificuldades no Atlântico, foram os primeiros a abocanharem o negócio na Europa, introduzindo o cultivo em larga escala em Java, atual Indonésia, no final daquele século. Em 1718, o arbusto foi aclimatado na América, a começar pela colônia holandesa do Suriname. Pouco tempo depois, o Caribe despontaria como região produtora, ocupando paisagens não desbravadas pela cana. A cafeicultura dependia de menos investimentos do que o açúcar, que ne- cessitava de uma estrutura de engenho bastante dispendiosa, o que permitiu que outros grupos se envolvessem no cultivo. Em Saint-Domingue, que se tornou a maior produtora mundial tanto de café quanto de açúcar em fins do século XVIII, ganhou corpo uma grande rivalidade entre brancos produtores de açúcar e negros livres produtores de café. Mais um ingrediente do verdadeiro barril de pólvora que se tornou aquela sociedade, na qual cerca de 90% da população era composta de trabalhadores escravizados. O colapso da economia haitiana, após a Revolução (1791-1804), abriu uma enorme brecha no mercado internacional. Brasil e Cuba seriam os principais beneficiados dessa brecha, expandindo suas produções de açúcar e café com base na exploração em larga escala de trabalhadores escravos trazidos, em grande parte, ilegalmente da África. Após a década de 1830, ficaria marcada uma vantagem competitiva brasilei- ra nas exportações cafeeiras e cubana nas açucareiras. O café havia começado a ser plantado nas cercanias da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII, expandin- do-se rumo ao Vale do Paraíba fluminense, que contava com condições especial- mente propícias para o cultivo da planta, com uma enorme fronteira agrícola a ser aberta e uma rede de caminhos abertos no período da mineração já que se tratava de uma região de trânsito entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Cuba assumiria vantagem na economia açucareira, que se expandiu da jurisdição de Havana em direção a Matanzas e Santa Clara. A segunda região das Américas a possuir uma malha ferroviária, após os Estados Unidos, foi justamente a ilha espanhola, que a implantou na década de 1830 para agilizar o escoamento do açúcar. Os índices das exportações cafeeiras e açucareiras atingiriam níveis inéditos, inundando os mercados dos países industrializados esses estimulantes, antes artigos de luxo, agora compatíveis com o padrão de consumo da classe trabalhadora europeia e norte-americana. Suportar o trabalho extenuante nas fábricas passaria pelo con- sumo de grandes quantidades de açúcar e café. Autores como Harriet Friedmann e Philip McMichael têm se valido do concei- to de “regime alimentar” para enquadrar as relações agrícolas internacionais de produção e consumo, bem como as relações entre Estado e mercado, nos perío- dos de hegemonia das nações britânicas e norte-americana. Trata-se de uma “es- trutura regulamentada de produção e consumo de alimentos em escala mundial” (FRIEDMANN, 1993). Em outras palavras, a agricultura comercial em escala glo- 34 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea bal não obedece a uma ordem “natural” de relações entre oferta e demanda, mas é resultado de uma série de manobras de forças políticas e pressões econômicas que se articulam para garantir a lucratividade da produção e o consumo massivo de determinados produtos ao redor do planeta. Identificam-se três regimes ali- mentares ao longo da história do capitalismo: o regime alimentar imperial, estabe- lecido (1870-1930), que combinou o envio de produtos tropicais das colônias para a Europa e a importação de grãos, especialmente trigo, por parte dos territórios coloniais; o regime alimentar intensivo, determinado pelos Estados Unidos (1950- 1970), que redirecionou com grande apoio da publicidade os fluxos de alimen- tos excedentes estadunidenses para os territórios pós-coloniais sobre sua área de influência após a Segunda Guerra Mundial; e o regime alimentar corporativo (1980-2000), também centrado nos Estados Unidos, que promoveu a “revolução do supermercado” mediante o controle do mercado pelas grandes corporações, interessadas no consumo de determinadas marcas. A diferença da era dos regimes alimentares do períodoanterior (colonialismos dos séculos XVI-XVIII) reside especialmente na existência de um preço mundial para gêneros de primeira necessidade, começando pelo trigo. Nos dizeres de Mc- Michael (2016, p. 41 ), “no final das contas, um regime alimentar envolve a submis- são de rotas internacionais de produtos alimentícios a um preço de mercado admi- nistrado”, gerando degradação ambiental desenfreada, concentração, espoliação e dependência. Como exemplo dos efeitos dos regimes alimentares, pode-se men- cionar o fato de que cerca de dois milhões de camponeses mexicanos produtores de milho perderam suas terras nos anos 1990 em razão das exportações a baixo custo fundamentadas por altos subsídios do governo dos Estados Unidos e pelo uso de agrotóxicos. Outro caso é o dos pequenos agricultores incapazes de atender às rígidas certificações sanitárias e tecnológicas, como, no Brasil, as do S.I.F. (Ser- viço de Inspeção Federal), que, embora importantes em termos gerais para a pre- servação da saúde dos consumidores, inibem a circulação, por exemplo, de queijos e outros derivados do leite produzidos artesanalmente, garantindo o mercado para os grandes produtores de laticínios em grandes cadeias de supermercados, que não necessariamente apresentam qualidade superior. Como já sugerido na seção anterior, todo esse movimento a um só tempo impositivo, excludente, prejudicial ao meio ambiente e à saúde da população tem sido problematizado não apenas pelos acadêmicos, mas por vários setores da sociedade. A globalização não constitui exatamente uma grande “aldeia” onde as pessoas livremente trocam e conhecem outras culturas. Trata-se, sobretudo, de processo histórico prenhe de conflitos, desigualdades e aproximações forçadas, no qual a alimentação ocupa lugar central. 35 História da Alimentação Capítulo 1 Atividade de Estudo: 1 Aponte uma diferença entre as globalizações alimentares pré- moderna e moderna. 2 Explique a importância da chegada dos europeus à América para a história da alimentação. 3 Compare a inserção do açúcar e do café no circuito comercial do Atlântico. 4 Qual foi o problema identificado pelos autores na configuração dos regimes alimentares? 5 Assista ao documentário O mineiro e o queijo, disponível no YouTube, e explique os problemas enfrentados pelos pequenos produtores de laticínios de Minas Gerais. 6 Assista ao documentário Corporation, também disponível no YouTube, e explique a forma como é retratada a atuação da grande empresa de produtos químicos norte-americana do ramo do agronegócio. 4 SABERES CULINÁRIOS ATRAVÉS DA HISTÓRIA O ato de preparar ou confeccionar os alimentos em geral é definido pela palavra de origem latina culinária, mas, atualmente, em função da proliferação de cursos de formação superior na área e da elevação do status da profissão de cozinheiro, fala-se mais em gastronomia (da junção do grego gaster ou gastros, estômago, com gnomos, conhecimento) do que em culinária. Alguns autores sustentam que a gastronomia, como ramo do saber, vai muito além da preparação do alimento em si, representando o estudo da relação entre cultura e alimento. Como prática, visa não só saciar a fome, mas proporcionar prazer, agradando todos os sentidos. De todo modo, entre a culinária e a gastronomia, o certo é que o preparo de alimentos é uma das atividades mais significativas e multifacetadas da história da humanidade: ao alimentar o corpo, deixam-se marcas inapagáveis na memória, mobilizam-se afetos, sensibilidades e sentimentos dos mais profundos. 36 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea Tente se lembrar de uma das primeiras e mais significativas lembranças gastronômicas de sua vida. Qual é a sensação ao recuperar essa memória? Saberes e práticas culinárias vêm sendo transmitidos de variadas formas ao longo da história. As sociedades que desenvolveram formas de escrita produziram livros de culinária como forma de registro, compilação e divulgação de conhecimentos e técnicas de preparação dos alimentos. FIGURA 11 – MÃE MEXICANA ENSINANDO SUA FILHA A FAZER UMA TORTILHA DE MILHO. CÓDICE FLORENTINO FONTE: <http://andanzas-ciencia-cultura.blogspot.com/2015/02/ nixtamalizacion-del-maiz.html>. Acesso em: 20 nov. 2018. Os mais antigos datam dos séculos V e IV a.C. Muito frequentemente, além da listagem por escrito de ingredientes, proporções, quantidades, forma e tempo de cozimento, técnicas e formas de utilização de utensílios e tecnologias especiais, 37 História da Alimentação Capítulo 1 tais livros são acrescidos de fontes visuais, desde gravuras até fotografias nos mais recentes, que enriquecem muito a percepção sobre costumes, usos e gostos de uma época. Como sabemos, os gostos por sabores e odores dos alimentos também são históricos. Portanto, respondem a uma série de estímulos culturais e econômicos e sofrem transformações com o passar do tempo. A criação de escolas de gastronomia é um fenômeno relativamente recente, datando em sua maioria do século XIX. Durante muito tempo, a formação profissional se deu por uma relação entre mestres e aprendizes no cotidiano das cozinhas de restaurantes, estalagens, tavernas, palácios e em casernas militares. Inclusive, existe uma clara relação entre a hierarquia militar e a organização das cozinhas profissionais no Ocidente. Atualmente, ganha fôlego um cosmopolitismo gastronômico, isto é, tende-se a valorizar as culinárias regionais das mais diversas partes do mundo. Não obstante, a França continua sendo a grande referência em termos de técnicas, terminologias e as formas de organização na cozinha. Um grande marco da projeção internacional francesa foi a criação, em 1895, da escola Le Cordon Bleu, referência à Ordem dos Cavaleiros do Santo Espírito, cuja honraria era representada por um cordão azul. Além do que, atribui-se ao chef francês Georges-Auguste Escoffier (1847-1935) a organização do “sistema de brigada”, no qual existem responsabilidades muito claras para os membros da equipe de uma cozinha profissional. No Brasil, desde o final da década de 1990, as escolas de gastronomia em nível técnico e superior têm crescido país afora, explorando-se o potencial turístico e aproveitando-se o aumento do poder de consumo da população nos anos 2000. TABELA 1 – HIERARQUIA DA COZINHA PROFISSIONAL 38 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea FONTE: <http://gasbasica.blogspot.com/2015/03/hierarquia-da- cozinha-profissional.html>. Acesso em: 20 nov. 2018. Sem negar a importância de livros e escolas, é possível dizer que a experiência, o convívio e a oralidade têm sido as vias de transmissão mais duradoras da arte de cozinhar. O ambiente familiar, o espaço da casa, foi o locus primordial da transmissão de conhecimentos culinários. Em diver- sas regiões do mundo ocidental, um suporte importante para o registro e sistematização cotidiana de práticas culinárias foram os cadernos de recei- tas, testemunhos eminentemente femininos. Como destaca Rogéria Du- tra (2014, p. 5), esses cadernos, muitas vezes de autoria coletiva de avós, mães, tias e filhas, lidam com “um saber doméstico fortemente ancorado na prática”, constituindo uma “janela alternativa para a expressão individual das mulheres” e da cultura alimentar das sociedades nas quais se inscrevem. FIGURA 12 – LIVRO DE RECEITAS FONTE: <https://oglobo.globo.com/ela/gastronomia/cadernos-de-receitas-do-sul- de-minas-sao-tratados-como-tesouros-21144443>. Acesso em: 20 nov. 2018. 39 História da Alimentação Capítulo 1 Em sua casa havia um livro de receitas? Se sim, quem o comple- tava? Quem o consultava? Qual é a importância dele em sua casa? Certas atividades profissionais, como a dos tropeiros, mencionados anteriormente, por exemplo, formaram repertórios culinários riquíssimos, que influenciaram diversasculinárias regionais. Durante as longas jornadas que faziam transportando mantimentos, aqueles homens necessitavam consumir refeições com elevado teor calórico. Normalmente, o tropeiro mais experiente era responsável pelo preparo das refeições enquanto a tropa era arreada pelos demais. Logo de madrugada, o feijão era posto para cozinhar em um tripé de ferro e o toucinho era frito numa panela grande. Na parada do almoço, os homens comiam um composto de feijão, toucinho, farinha de mandioca, carne seca ou linguiça (quando havia), acompanhado de arroz, couve ou ora-pro-nóbis. Daí nasceu o famoso feijão tropeiro e uma tradição transmitida ao longo de várias gerações antes de chegar aos livros de receita e sites da internet. Efetue uma pesquisa sobre as origens de um prato típico de sua região, buscando saber a forma como os conhecimentos em torno de seu preparo foram registrados e transmitidos. Efetivamente, a internet constitui um extraordinário veículo para a transmissão de saberes culinários. Uma infinidade de sites especializados contém uma torrente enorme de informações sobre técnicas de preparo, harmonização com bebidas e assim por diante. Cada vez mais, receitas escritas dão lugar a vídeos com cozinheiros profissionais e amadores demonstrando como fazer todo tipo de prato, das mais variadas origens, como os mais variados ingredientes. Os programas de culinária estão cada vez mais populares e ajudam na glamurização da profissão dos chamados chefs de cozinha. Ainda assim, é inegável que tais programas têm estimulado as pessoas a cozinharem mais e a ampliarem seu repertório gastronômico, o que é muito positivo. 40 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea Atividade de Estudo 1 Assista a dois programas distintos de culinária na televisão e es- tabeleça um comparativo, identificando semelhanças e diferen- ças quanto ao enfoque das formas de preparo e degustação dos alimentos. Por fim, efetue uma avaliação crítica, registrando suas impressões a respeito do papel desse tipo de produto cultural na transmissão de saberes culinários. 2 Encontre e analise um livro de culinária qualquer, identificando aspectos como: organização, forma de transmissão das informa- ções e tipo de comida a que se dedica. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Ao longo do capítulo, vimos como em diferentes épocas e em diferentes culturas, os alimentos eram obtidos e consumidos; percebemos que os alimentos disseminados pelo globo nos dias atuais eram em grande parte bastante restritos a determinadas regiões até o início da Era Moderna; discutimos as implicações das globalizações alimentares e refletimos a respeito de algumas das principais formas de transmissão dos saberes culinários. A pretensão aqui não foi esgotar o assunto, mas apresentar uma breve, porém consistente, introdução a respeito do tema, indicando caminhos e levantando problemas. As transformações históricas que marcaram o acesso aos alimentos representam aspecto vital para o entendimento das forças que movem o consumo na atualidade. As reflexões aqui tecidas servirão de base para os demais capítulos, nos quais a alimentação no mundo contemporâneo e a questão específica das necessidades nutricionais de crianças e adolescentes em idade escolar serão enfrentados diretamente. REFERÊNCIAS BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo – séculos XV – XVIII: as estruturas do cotidiano. v. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. 7. ed. Rio de janeiro: Elsevier, 2003. 41 História da Alimentação Capítulo 1 CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2004. DUTRA, Rogéria Campos de Almeida. Registro, memória e transmissão cultural: os textos culinários e o caderno de receitas. Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizado entre os dias 3 a 6 de agosto de 2014, Natal, RN. FRIEDMANN, H. The political economy of food: a global crisis. New Left Review, London, n. 197, pp. 27-59, 1993. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. KIPLE, Kenneth F.; ORNELAS Kriemhild Coneè. The Cambridge World History of Food. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 LÉVI-STRAUSS, Claude. Mitológicas ll – do mel às cinzas. São Paulo: Cosac e Naify, 2005. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mitológicas I – o cru e o cozido. São Paulo: Cosac e Naify, 2004. LOCKARD, Craig. Societies, networks and transitions: a global history. Florence: Cengage Learning, Inc., 2014. MCMICHAEL, Philip. Regimes alimentares e questões agrárias. Porto Alegre: São Paulo: Editora da UFRGS; Editora UNESP, 2016. 42 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea CAPÍTULO 2 Alimentação na Contemporaneidade A partir da perspectiva do saber-fazer são apresentados os seguintes objetivos de aprendizagem: � compreender as relações entre fome e desigualdade social; � entender como os alimentos ultraprocessados e os agrotóxicos são prejudiciais à vida planetária; � diferenciar alimentos in natura, processados e ultraprocessados; � contribuir para a reflexão sobre práticas alimentares sustentáveis. 44 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea 45 Alimentação na Contemporaneidade Capítulo 2 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Este capítulo é baseado, principalmente, no levantamento de dados recentes das Nações Unidas e do IBGE, além, claro, das contribuições dos principais especialistas. O foco é o esclarecimento a respeito dos problemas e dilemas que envolvem o consumo de alimentos no mundo contemporâneo. Parte-se do problema humano básico da falta de alimentos, que é inserido no leque mais amplo da noção de insegurança alimentar. Em seguida, explora-se a classificação dos alimentos em in natura / minimamente processados, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados, destacando especialmente os malefícios dos ultraprocessados. Por fim, exploram-se os dilemas que envolvem o uso de agrotóxicos na produção de alimentos. 2 A QUESTÃO DA FOME E DA MÁ NUTRIÇÃO NO BRASIL FIGURA 1 – RETIRANTES, DE PORTINARI (1944) FONTE: <http://www.portinari.org.br/>. Acesso em: 4 nov. 2018. http://www.portinari.org.br/ 46 Alimentação de crianças e adolescentes: necessidades nutricionais e cultura alimentar contemporânea Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida) (MELO NETO, 1974, p. 73). Em uma linguagem objetiva, é possível definir a fome como a incapacidade de se consumir o total calórico correspondente ao gasto energético do organismo (ABRAMOVAY,1985). Todavia, esta definição literal é muito menos fiel à realidade do que representações artísticas como as de Portinari e Mello Neto que produzem sensibilidade e empatia em torno da questão humana da fome. Temos diante de nós um fenômeno social perene, que marcou de forma grave toda a história da humanidade. É causa de sofrimento irreparável e está associada a complexas variáveis de caris socioambiental, geopolítico e econômico. No entanto, o seu enquadramento como um problema humanitário a ser superado é relativamente recente. Até duzentos anos atrás, a fome era tratada como uma ocorrência natural, inevitável e até mesmo necessária. FIGURA 2 – THOMAS MALTHUS (1766-1884) FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Malthus>.
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