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ARTE E CULTURA POPULAR AULA 3 Prof. Otavio Zucon A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 2 CONVERSA INICIAL Mundialização, modernização e patrimônio imaterial Nesta aula, abordaremos algumas questões fundamentais para compreender a atualidade das culturas populares no Brasil. Neste sentido, buscaremos problematizar as relações entre a mundialização das culturas e as transformações do popular nesse contexto. A urbanização e a comunicação de massas são fenômenos que, especialmente no correr do rápido desenvolvimento técnico-urbano dos séculos XX e XXI, interferiram e transformaram sobremaneira muitos campos da cultura. Alguns autores chegam a argumentar que, no mundo urbano, o popular não tem como sobreviver às forças da modernização ou, ao menos, não conseguiriam manter suas características originais. Outros, ainda, acreditam que muitas manifestações culturais populares, pela influência das mídias, estão fadadas ao desaparecimento ou à completa descaracterização. Veremos que, nessa direção, as preocupações com o registro e a preservação dos bens culturais populares fizeram surgir órgãos e políticas públicas de preservação. Analisaremos os efeitos e as possibilidades de manutenção desses bens, a partir dos anos 2000, com a consolidação, no Brasil e no mundo, do conceito de patrimônio imaterial – expressão que, como veremos, se confunde com a própria noção de culturas populares. TEMA 1 – CULTURAS MUNDIALIZADAS O antropólogo Renato Ortiz (2000) nos propõe que a mundialização, fenômeno que se refere aos contatos globais de natureza cultural, não é nem homogênea nem tende a tornar o mundo culturalmente uniforme. Os indivíduos, comunidades e povos, à medida que tomam contato com o outro, podem vir a adaptar suas referências culturais de acordo com novos desejos ou necessidades. Assim, a mundialização afetaria a todos, e também às comunidades de matriz popular. Esse tema é também desenvolvido pelo historiador Burke (2006, p. 7), que problematiza esse processo contemporâneo de intensos contatos globais na perspectiva de uma hibridização das culturas: A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 3 O preço da hibridização, especialmente naquela forma inusitadamente rápida que é característica de nossa época, inclui a perda de tradições regionais e de raízes locais. Certamente não é por acidente que a atual era da globalização cultural, às vezes vista mais superficialmente como “americanização”, é também a era das reações nacionalistas ou étnicas – sérvia e croata, tutsi e hutu, árabe, basca e assim por diante. Gilberto Freyre louvou notavelmente tanto o regionalismo quanto a mestiçagem, mas geralmente há uma tensão entre eles. Ao pensar os fenômenos da mundialização e também da hibridização no Brasil, devemos ter em mente que a mistura de referências culturais estabelecida a partir da fase colonial, a despeito da violência do tráfico negreiro e do escravismo africano e indígena – fez amalgamar-se grande diversidade de referências. Ao mesmo tempo, em função das diferentes presenças étnico- culturais em cada região do território nacional, características particulares se estabeleceram de forma relativamente estável até o século XX. Na cultura popular brasileira, temos diversos exemplos de hibridismo. Um deles – de história pouco conhecida, porém muito importante – é o samba. Conformado como termo genérico para designar um ritmo musical, seus significados e origens são bastante mais diversas. Em diversas partes das américas, no século XIX, a expressão samba ou semba designava diversos ritmos, danças e também tinha o significado de “festa”. No Brasil, a conformação estética do que reconhecemos como samba teria se configurado entre a década de 1910 e 1930, fruto do amálgama de outros ritmos de matriz negra, como o lundu, o maxixe e o tango (Sandroni, 2001). Desdobrando-se em variadas vertentes país afora, temos manifestações como o samba de roda do Recôncavo (Bahia), o coco do Nordeste, o jongo no Sudeste, o tambor de crioula do Maranhão. De outra parte, algumas referências culturais são claramente influenciadas, por exemplo, pela incidência de culturas indígenas, como o modo de fazer cuias na região do baixo Amazonas. Em cidades como Santarém, no Pará, esse artefato, utilizado no cotidiano das comunidades, tem registros de sua presença ao menos desde o século XVI entre etnias locais, como os caraíbas. Esse objeto, usado como prato, copo e outras funções utilitárias, é produzido a partir do fruto da árvore da cuieira e, atualmente, confeccionado por artesãs ribeirinhas. Pode ser ornamentado lindamente com representações visuais diversas, obtidas por meio de incisões sobre o pigmento negro que o recobre. Cobiçado por turistas e visitantes, segundo pesquisa, as transformações (e a decadência) nos usos e modos tradicionais de se confecção das peças foi-se A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 4 transformando na medida do desenvolvimento econômico e urbano das regiões em que tradicionalmente as cuias são produzidas, além de outros fatores: Importa frisar que as transformações socioeconômicas se fizeram acompanhar de novos hábitos de consumo, padrões estéticos e mudanças culturais. Destaque-se, no contexto analisado, a oferta de bens industrializados a preços relativamente acessíveis. Baldes de alumínio, copos de plástico, pratos Duralex, tudo isso e muito mais passou a ser vendido nos mercados das cidades amazônicas e, para quem vivia nos interiores, os marreteiros se encarregavam de levar esses e outros produtos em embarcações conhecidas como regatões. Tais bens, considerados práticos, duráveis, funcionais e higiênicos, apareceram às populações locais como símbolos da modernidade e do desenvolvimento. Não tardou para que substituíssem as cuias em alguns dos seus usos tradicionais. (Carvalho, 2015, p. 34) O caso das cuias do baixo Amazonas nos faz refletir sobre alguns dos riscos que elementos da cultura popular correm quando são afetados por fenômenos como a inserção de novos objetos de desejo e a alteração das percepções de uma comunidade quando submetida a novos padrões e gostos. Não devemos generalizar, no entanto, os efeitos da mundialização, como deletérios no sentido de levar ao declínio das expressões culturais populares ou tradicionais. Entre adaptações gráficas para atender ao gosto estético de europeus nos séculos XVII e XVIII – com quem as comunidades produtoras trocavam produtos – e a decadência do uso local por conta da entrada de produtos industriais, temos múltiplas interferências, idas e vindas, que fazem ainda presente esta manifestação, como parte do continuum cultural da região e também como alternativa econômica para muitos artesãos e artesãs. Como nos lembra Canclíni (1983, p. 95), a expansão do mercado capitalista, sua reorganização monopolística e transnacional tende a integrar a todos os países, a todas as regiões de cada país, em um sistema homogêneo. Este processo “estandardiza” o gosto e substitui a cerâmica ou a roupa de cada comunidade por bens industriais idênticos, seus hábitos distintivos por outros que impõem um sistema centralizado, suas crenças e representações pela iconografia dos meios de comunicação de massa: o mercado público cede seu lugar ao supermercado, a festa popular ao espetáculo comercial. Temos, portanto, no horizonte da vida cotidiana das comunidades populares no sistema capitalista global, diversas formas de interferências que grandes corporações e, de esteira junto a elas, os signos dos tempos modernosprovocam grandes transformações. No limite, os padrões e os gostos tradicionais se alteram, incitando o desejo pelo novo, pelo produto estandardizado, pelo uniforme. E atividades como o artesanato são movidas a A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 5 novas condições, por exemplo para se adequar a um desejo turístico de “fascinação nostálgica pelo rústico e pelo natural” (Canclini, 1983, p. 97). Esse fenômeno costuma ter um duplo significado: ao mesmo tempo que pode auxiliar na manutenção do fazer criativo – embora controlado pelos desejos estéticos externos – de artesãos, seus produtos são relegados aos baixos preços, à condição de produto em série semelhante em termos de valores de troca aos industrializados e feitos por máquinas aos milhões. TEMA 2 – CULTURA POPULAR E CULTURA DE MASSAS A cultura de massas abrange uma complexa rede de meios que se desenvolvem e aperfeiçoam rapidamente e afetam pessoas e comunidades mundialmente. É importante refletir sobre como esse fenômeno mundial afeta as culturas populares. Segundo a socióloga Ecléa Bosi, uma diferenciação essencial entre a cultura de massas e a popular é que, diferente da primeira, possui tempo cíclico e enraizamento; assim, mantém relações com a época da colheita, o tempo das marés, os períodos de trabalho e ócio, e conserva os vínculos com seus realizadores. Em geral, as manifestações culturais populares conectam-se aos fenômenos ligados às comunidades em que ocorrem, respeitando as dinâmicas e funções sociais que cumprem, o tempo e a maneira como se realizam. Já a TV, meio canônico de comunicação no Brasil, tem objetivo de seduzir seu público por meio da descontinuidade, trabalhando com base na novidade, na espetacularização e no consumo que, tão rapidamente quanto surge, se esvai. Os estereótipos atribuídos pelo senso comum a certas comunidades, particularmente às etnias indígenas, ainda hoje persistem. A noção de que se desfaz uma suposta pureza e a cultura se perde com a presença nas aldeias de referências do moderno mundo urbano, é fruto de incompreensão e preconceito sobre como esses grupos se apropriam de equipamentos eletrônicos, por exemplo. Um caso emblemático é o uso de câmeras e linguagem audiovisual entre indígenas brasileiros. Criado em 1986 por um cineasta francês com o intuito de apoiar as lutas dos povos indígenas, fortalecer suas identidades e seus patrimônios culturais e territoriais, o projeto Vídeo nas Aldeias formou uma geração de cineastas, alguns inclusive premiados, como Takumã Kuikuro (assistir ao vídeo indicado a seguir). Muitos dos documentários e realizados com/pelas próprias comunidades deixam clara a importância interna e externa A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 6 dos filmes: internamente são ferramentas de registro dos saberes e práticas dos anciãos, por exemplo; externamente, são potentes materiais de caráter didático para trazer ao conhecimento das pessoas parte do cotidiano, da história, da trajetória desses povos. O vídeo Takumã se apresenta traz uma entrevista com o cineasta Takumã Kuikuro (da aldeia Ipatse, Xingu, no Mato Grosso), disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3b5cm5nkkak>. Outro exemplo emblemático que presenciei ocorreu durante uma pesquisa para a realização de uma série documental sobre brincadeiras de crianças em uma comunidade indígena kaingang no interior do Paraná. A pesquisa era desenvolvida numa escola, dentro da maior aldeia da Terra Indígena Rio das Cobras. Na observação do brincar dos alunos no pátio durante o recreio, percebemos que alguns meninos executavam manobras corporais na grama, de forma inusitada. A cada movimento, ficava mais claro que se tratava de break, um tipo de dança vinculado à cultura hip hop. Ao conversar com os participantes, eles nos confidenciaram que estavam imitando jovens da aldeia, membros de um grupo uniformizado de break. Assim, os pequenos, imitando os maiores, estavam inspirando-se num movimento urbano globalizado que não só chegava aos jovens e às crianças como era apreendido e replicado. A despeito da interferência de ser um elemento também de matriz popular, porém tipicamente citadino, a cultura hip hop inspirava a criação de grupos de b-boys (dançarinos de break), que frequentemente se enfrentavam em batalhas de dança. Para saber mais sobre esse assunto, assista ao episódio Break Kaingand, da série Auê, da Escola indígena Rio das Cobras, Aldeia Sede, de Nova Laranjeiras (PR), disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aO9L80cEsI8&t=5s>. TEMA 3 – URBANIDADE E MODERNIZAÇÃO Somos levados a imaginar que as culturas populares só existem em estado puro, intocado, e em regiões distantes do ambiente modernizado e cosmopolita das grandes cidades. Nesta direção, quando pensamos as manifestações populares na urbanidade moderna, é fundamental termos em conta duas questões centrais: as expressões tradicionais são impactadas, de diferentes formas, pelos valores da modernidade, no entanto as transformações não as fazem, necessariamente, desaparecer. Além das adaptações das formas tradicionais, há também manifestações de caráter essencialmente moderno e A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 7 híbrido, nascidas no próprio ambiente urbano e de características, ao mesmo tempo, modernas e populares. A literatura de cordel – uma forma de poesia popular comercializada inicialmente a partir de pequenos folhetos, impressos e expostos ao público num varal/cordão de barbante – é muito característica da Região Nordeste do Brasil. Elaboradas, confeccionadas e muitas vezes vendidos pelo próprio autor, essas brochuras foram, com o passar do tempo, se adequando à modernidade urbana. Aliás, atribui-se a origem desse tipo de literatura à transposição de histórias contadas e cantadas por repentistas – gênero musical de rua no qual uma dupla se confronta por meio de versos humorísticos, ao som de violas ou pandeiros, como nos explica Carvalho (1995, p. 149): O certo é que estas histórias circulavam pelo Nordeste e tiveram o respaldo do chamado “repente”, a cantoria ou peleja de viola, com um ritmo e uma agilidade que passaram a ser incorporados pelos impressos, à medida em que a atividade despontou como negócio e a figura do editor passou a substituir o poeta que detinha seus direitos de autor e encomendava a tipografias a impressão de seus poemas. No rumo à escrita, essa poesia popular passou a utilizar, a partir da década de 1930, capas com xilogravuras – impressões em papel por meio de uma matriz de madeira – para atrair a atenção do leitor. Assim, adaptou-se um gênero inicialmente oral ao formato impresso, como parte de um processo formal e estético comum às revistas jornalísticas e de entretenimento, comuns também, nesse período, nas bancas de jornais das cidades brasileiras. A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 8 Figura 1 – Livretos de cordel Crédito: VANESSA VOLK/SHUTTERSTOCK A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 9 Mas como esse tipo de literatura poderia sobreviver ao crescente processo de digitalização da informação no século XXI? De que forma poderia se reinventar numa época em que até grandes revistas e jornais impressos abandonaram o formato físico? As respostas podem estar na mesma estratégia das primeiras: caminhar rumo ao mundo digital! Aliás,alguns poetas de cordel utilizam-se do próprio tema da modernização para escrever. De outra parte, os rappers das periferias urbanas se apropriam/inspiram também da linguagem e do estilo do repente/embolada (e, por conseguinte, do cordel) na forma da chamada batalha de rap, gênero no qual dois declamadores se confrontam, na forma de improviso, por meio de rimas. Conheça mais neste vídeo com os repentistas Castanha e Caju e o rapper Emicida, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1-EKWhppafw>. Neste exemplo, encaixaram-se elementos significativos da cultura urbana na forma de um esquete comercial, colocando a poesia popular de improviso – comum à estética tanto do rap quanto do repente/embolada, num canal de streaming de grande alcance, fazendo-nos perceber as possibilidades de circulação eletrônica dessas manifestações para além do espaço que tradicionalmente ocupam: as ruas das grandes cidades brasileiras. Outro exemplo emblemático que dá conta dessa dinâmica de adaptação de elementos populares a processos de modernização e mundialização é o ofício das baianas do acarajé. Figuras facilmente encontradas nas ruas da cidade de Salvador, essas mulheres têm em seus tabuleiros um conjunto de maneiras de preparar o quitute que remonta ao século XIX, quando as yaôs, filhas de santo que se iniciam no candomblé, necessitavam sair do terreiro para conseguir algum dinheiro vendendo o acarajé, alimento tradicionalmente ligado a um orixá, Iansã. Os bolinhos, a partir desse momento, começaram a ganhar o gosto dos habitantes da cidade e se tornaram, com o passar do tempo, uma comida de rua ligada ao turismo. As baianas, trajadas a caráter, vendem seus acarajés em diversas cidades brasileiras, tendo-se tornado uma comida típica associada à Bahia. Até certa época, a base do bolinho, feita de feijão fradinho moído, era ralada numa pedra. No entanto, esse desgastante e moroso processo se transformou e as quituteiras passaram a bater a massa no liquidificador. Alguns puristas teriam se insurgido contra essa mudança, alegando que isso descaracterizaria o processo tradicional. Nos anos 1970, o músico tropicalista Caetano Veloso correu em A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 10 defesa das baianas, bradando: “Você não pode exigir que aquelas pessoas passem o dia inteiro para fazer cinco acarajés e morrer de fome, só porque é mais bonito e culturalmente mais puro” (Veloso, 1972). Figura 2 – Baiana fazendo acarajé em sua barraca Crédito: JOA SOUZA/SHUTTERSTOCK Devemos, portanto, estar atentos aos processos de adaptação e mudança em diversas esferas das culturas populares por conta das transformações do próprio mundo. Em certos momentos e circunstâncias, alguns bens podem estar ameaçados em sua integridade. Porém, como veremos, surgem políticas para tentar dar conta de sua preservação. TEMA 4 – PATRIMÔNIO IMATERIAL Desde o final do século XIX, muitos estudiosos passaram a temer que os saberes e fazeres populares não resistiriam aos contatos com os referenciais culturais urbano-industriais e os meios de comunicação de massa. Assim, pesquisadores e órgãos governamentais começam a pensar, em nível mundial, formas de preservação das manifestações culturais, particularmente as tradicionais, aquelas que se acreditava estarem desaparecendo. O que passamos a chamar, em tempos mais recentes, de patrimônio imaterial tornou- A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 11 se uma área de pesquisa e de construção de políticas públicas para reconhecer, valorizar e preservar os bens culturais também chamados de intangíveis, ou seja, que não são propriamente palpáveis, materiais. Essa definição, como veremos adiante, se coaduna diretamente com diversas dimensões das culturas populares, chegando a confundir-se com elas. No Brasil, o Decreto n. 3.551/2000, consolidou o instrumento legal que passou a definir e regulamentar uma ferramenta de proteção ao patrimônio imaterial, denominado Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Por meio dessa lei, foram criados livros de registro, que correspondem a cada área na qual se pode inscrever um bem cultural, dividido em: I – Livro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II – Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III – Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV – Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feitas, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. (Brasil, 2000) Um bem cultural, para ser inscrito num desses livros e se tornar patrimônio cultural imaterial do Brasil, deve ter relação direta com sua importância para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira e deve estar arraigado, do ponto de vista histórico, nas comunidades onde se origina ou que o mantêm. Qualquer membro dessa comunidade pode ser o proponente de um registro, devendo encaminhar o pedido, na esfera federal, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A partir da instauração do processo, procede-se a um estudo, de caráter antropológico e histórico, que ao final determinará a pertinência da solicitação. A partir daí o Estado brasileiro fica incumbido de desenvolver ações de documentação, divulgação, valorização e preservação do bem em questão. Desde esse marco legal surgiram também leis estaduais e municipais que versam sobre o patrimônio imaterial, cada qual relegando aos respectivos órgãos competentes. No plano federal, até o ano de 2021, foram registrados dezenas de bens, entre eles: o modo de fazer o acarajé, o ofício das Paneleiras de Goiabeiras, o Ofício dos Mestres de Capoeira, Sistema Agrícola Tradicional de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, Círio de Nossa Senhora de Nazaré, Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis, Bumba meu boi do A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 12 Maranhão, Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, Fandango Caiçara, Carimbó, Literatura de Cordel, Feira de Caruaru, Cachoeira de Iauaretê – Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuri, entre outros. TEMA 5 – MESTRES E MESTRAS Os indivíduos detentores de saberes tradicionais, que têm capacidades, habilidades ou memórias para criar, reproduzir ou restituir a história de certos elementos do patrimônio imaterial são considerados fundamentais nas políticas de preservação do patrimônio imaterial. Os mestres e mestras, reconhecidos pela excelência de seus saberes, devem ter seus conhecimentos transmitidos às gerações mais novas. No Brasil, a alcunha de mestre é também utilizada de forma recorrente por pesquisadores como forma distintiva de tratamento, por meio da qual o indivíduo é credenciado como grande referência em determinado tema/saber. No intuito de valorizar esses indivíduos, muitas vezes de importância central para a manutenção de determinados tipos de saber e/ou de memória, é costumeiro nas políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial realizar ações de educação patrimonial. Isso significa tentar – com ações educativas, por exemplo, no ambiente escolar – que esses mestres possam repassar parte de seus conhecimentos e memórias às gerações mais novas. E, com isso, trazer à luz a importância tanto dos bens culturais quanto daspróprias pessoas. No vídeo indicado a seguir, podemos observar um mestre artesão desenvolvendo um tipo de objeto, no passo a passo, para a câmera. Essa ação seria realizada no ambiente de escolas da região onde ele reside. No entanto, em função da pandemia de covid-19, o processo passou ao registro audiovisual para que seja transmitido aos escolares – alunos e professores – de forma remota. O objetivo de explicar e tentar, em alguma medida, ensinar é parte importante das políticas de valorização dos mestres e mestras, que muitas vezes estão no final da vida e precisam ter seus trabalhos tanto registrados quanto conhecidos e valorizados. O vídeo sobre o mestre cesteiro de vime Darci Ferro (Curitiba-PR), realizando confecção do cesto italiano 2021, está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WEBJdRI7i7U>. A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 13 NA PRÁTICA Desenvolva uma pesquisa de campo com foco nas memórias de sua comunidade, procurando por algum tema ligado à noção de patrimônio imaterial (saberes, formas de expressão, celebrações, lugares). Após uma investigação prévia, identifique pelo menos uma pessoa que seja considerada detentora de memórias ou saberes sobre essa referência pesquisada. Em seguida, elabore um breve roteiro para as entrevistas, contendo perguntas sobre a permanência e as transformações desse bem no tempo, quem são seus mestres e locais de realização, se o bem se encontra ameaçado entre outros questionamentos pertinentes. A entrevista pode ser gravada em áudio ou vídeo e apresentada nos encontros presenciais do curso. FINALIZANDO Vimos que as culturas populares no mundo contemporâneo são muito dinâmicas e se encontram em franco processo de transformação e, em alguns casos, ameaçadas pelos processos de urbanização e modernização. A preocupação com esse quadro trouxe a necessidade de medidas para tentar preservar, dar visibilidade e valorizar as manifestações oriundas da sabedoria do povo. É muito importante que professores, estudantes e comunidades possam adquirir consciência da importância da preservação do chamado patrimônio imaterial brasileiro, pois os bens dessa natureza são tão, ou mais importantes, que os naturais ou edificados. A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com 14 REFERÊNCIAS AYALA, M.; AYALA, M. I. Cultura popular no Brasil. São Paulo: Ática, 1987. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto n. 3551, de 4 de agosto de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm>. Acesso em: 30 ago. 2021. BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BURKE, P. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2006. CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997. CANCLINI, N. G. As Culturas Populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. CARVALHO, L. Dossiê de registro do modo de fazer cuias no Baixo Amazonas. Santarém: Iphan, 2015. CARVALHO, G. de. Xilogravura: os percursos da criação popular. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 39, 1995. CASTRO, M. Laura V de. Cultura e saber do povo: uma perspectiva antropológica. Revista Tempo Brasileiro. Patrimônio Imaterial. Cecília Londres (org.). out-dez, n. 147. p. 69-78. Rio de Janeiro, 2001. ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000. PINTO, I. C.; BONAMIGO, Z. 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A luno: A LE S S A N D R A M A R IA D O C A R M O P E R E IR A M ILIO R E LI E m ail: alessandram pm ilioreli@ outlook.com
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