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Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 1 Dor neuropática SP 1.2 – NEM EXISTE MAIS? 1) CONCEITUAR A DOR NEUROPÁTICA (CAUSA, COMO OCORRE, O QUE É, SENSIBILIZAÇÃO CENTRAL E PERIFÉRICA); A capacidade para sentir dor tem papel protetor para os seres vivos, pois alerta-os para iminente ou real dano aos tecidos e induzem reflexos coordenados e respostas comportamentais para que tal lesão seja mínima. Se o dano tecidual for inevitável, uma gama de alterações da excitabilidade no sistema nervoso central e periférico se estabelecem como um profundo, mas reversível, estado de dor e hipersensibilidade no tecido inflamado e nas suas adjacências. Esse processo facilita a reparação das partes lesadas, evitando o contato local até que a cura aconteça. Entretanto, quando as lesões afetam as vias nervosas centrais e periféricas, podem se desenvolver síndromes dolorosas persistentes que não oferecem nenhuma vantagem biológica, causando sofrimento e estresse para os portadores. A dor neuropática é, pois, um estado de má adaptação provocada por alterações funcionais e estruturais das vias sensitivas centrais e periféricas que produzem marcadas modificações e perversões no processamento das informações nociceptivas. Ocorrem alterações da neuroplasticidade, que tem um papel crucial na manutenção dos sintomas dolorosos. Existem muitas similaridades entre os fenômenos fisiopatológicos observados em alguns modelos de epilepsia e os modelos de dor neuropática, o que justifica o uso de drogas anticonvulsivantes para o tratamento. É, por exemplo, notável a semelhança entre o fenômeno wind-up visto no corno dorsal da medula e o kindling dos neurônios hipocampais na epilepsia, sendo que ambos aparentam resultar da ativação de receptores NMDA entre outros mecanismos. Um outro aspecto similar é a susceptibilidade aos efeitos de resposta dos canais de sódio das membranas neuronais. No contexto de dor neuropática se incluem a dor por deaferentação (perda ou interrupção das vias sensoriais aferentes), dor central, dor de membro fantasma, causalgia, dor mielopática, síndrome complexa de dor regional, distrofia simpático reflexa etc. A dor neuropática pode ser provocada por quaisquer lesões nas raízes e nervos periféricos, na medula espinal, no tronco cerebral e no encéfalo. É uma entidade complexa e heterogênea, com sinais e sintomas que podem flutuar em intensidade com o tempo. Suas características principais são (1) a presença de dor espontânea ou dor provocada por estímulos não-nocivos nos locais afetados; (2) combinação paradoxal de perda sensitiva e hiperalgia na área dolorosa; (3) dor paroxística (surtos rápidos e curtos que passam em alguns segundos e voltam) e aumento gradual da dor com a estimulação repetitiva. Observa-se o aparecimento de hipersensitividade, mecanolodinia (que é a percepção de estímulos táteis e mecânicos como dor), hiperalgesia térmica, hiperpatia, extraterritorialidade (como na síndrome de dor complexa regional/distrofia simpaticorreflexa), inflamação neurogênica e desregulação autonômica. A dor neuropática pode aparecer em diversas doenças, que podem provocá-la por mecanismos comuns, embora nem todos os pacientes sejam afetados, nem exista como predizer quais doentes irão desenvolvê-la. Um mecanismo pode ser responsável por diferentes sintomas, o mesmo sintoma em pacientes diferentes pode ser causado por mecanismos diferentes e estes mecanismos também podem se modificar com o tempo. Os dois tipos principais de dor neuropática são aquelas desencadeada por estímulos e independente de estímulos. A dor desencadeada por estímulos caracteriza-se por sinais de hiperalgesia e alodinia, que resultam da estimulação mecânica, térmica ou química. Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 2 Já a dor independente de estímulos pode ser persistente ou paroxística, e em geral é descrita como pontadas, fisgadas ou queimação. As parestesias e as disestesias podem ser espontâneas ou provocadas. 1. Dor desencadeada por estímulos Hiperalgesia: É uma resposta dolorosa exagerada produzida por um estimulo que normalmente provoca dor. Ela pode ter mecanismos centrais, periféricos ou ambos. No sistema nervoso periférico, o que explica esse mecanismo é a sensibilização dos nociceptores que pode ser atribuída à liberação de mediadores inflamatórios. Outro mecanismo periférico envolvido nesse processo é a formação de um neuroma que vai gerar um foco de hiperexcitabilidade. Alodinia: Significa uma dor provocada por um estimulo que normalmente não é doloroso. Isso pode ser atribuído à sensibilização periférica, devido à liberação persistente de substancias inflamatória no local. Além disso, podem ocorrer alterações nas células do corno dorsal da medula que resultam em sensibilização e reorganização centrais que podem provocam alodinia. Outra alteração central que contribui para o desenvolvimento de alodinia é a perda dos controles inibitórios que se projetam para as camadas superficiais dos cornos dorsais. 2. Dor independente de estímulos A dor espontânea pode ocorrer sem um estimulo desencadeante, de modo que os sintomas podem ser contínuos ou intermitentes. As parestesias e as disestesias podem ter origem periférica em virtude dos impulsos ectópicos que percorrem as fibras Aβ, Aδ e C que se originam como atividade espontânea devido aos vazamentos dos canais de sódio. Os disparos paroxísticos ou dor em choque elétrico, bem como a dor em queimação continua se originam das descargas ectópicas ou efápticas geradas por qualquer tipo de fibra. Essa dor também pode ser causada pela depressão das vias inibitórias descendentes. → Mecanismos da dor neuropática A gênese da dor neuropática envolve inúmeros fenômenos, sendo os mais importantes: • sensibilização de receptores; • ocorrência de focos ectópicos de potenciais de ação nas fibras periféricas e tratos centrais; • correntes efáticas; • reorganização sináptica em neurônios centrais; • atividade anormal das estruturas supressoras e de processamento central da aferência sensitiva; • liberação de substâncias algiogênicas teciduais; • liberação de neurotransmissores excitatórios; • inflamação neurogênica; • fenômenos de adaptação física, psíquica e neurovegetativa. Dor por lesão do sistema nervoso periférico: Após um insulto, seja traumático ou patológico aos nervos periféricos, ocorre uma sucessão de eventos, como resultado do processo reparador, causando modificações estruturais e funcionais, que vão alterar sobremaneira a condução nervosa, induzindo sensibilização periférica (1-5) e central (5-8). 1) Macrófagos ativados e células de Schwann sintetizam mediadores inflamatórios, citocinas, como interleucinas, fator de necrose tumoral (TNF), interferon (INF-), fator de transformação β (TGF-β), e fatores de crescimento para a regeneração nervosa. O fator de crescimento nervoso (GNF) aumenta a síntese, transporte e o conteúdo neuronal de neuropeptídeos algiogênicos (substância P e peptídeo relacionado ao gene da calcitonina - CGRP) nas terminações nervosas centrais e periféricas. Tudo isso induz a sensibilização dos receptores nociceptivos das fibras C, de modo que eles começam a responder a estímulos mecânicos e térmicos, normalmente inócuos, ou a ter atividade espontânea que é responsável pelas sensações persistentes de dor geralmente em queimação. A atividade espontânea das fibras mielinizadas grossas A provoca o aparecimento de parestesias independente de estímulos; 2) A regeneração nervosa provoca modificação da permeabilidade das membranas neuronais e do número, distribuição e cinética dos canais iônicos de Ca++ e Na+; há aumentoda densidade de canais de sódio nos troncos em regeneração e nos gânglios sensitivos; com isto ocorre excitabilidade exacerbada e geração de maior número de potenciais ectópicos e descargas espontâneas nas fibras lesadas. As células de Schwann, que controlam a expressão e distribuição dos Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 3 canais de sódio ao longo do axônio, sofrem desdiferenciação, no processo de regeneração, com mudanças na produção de mielina e fatores de crescimento, o que provoca efeitos nos neurônios lesados e também nos neurônios intactos das vizinhanças; 3) Correntes efáticas são geradas em fibras degeneradas e em neuromas de amputação induzindo despolarização em células vizinhas, ou seja, provocando excitação cruzada que envolve não só as fibras C como as fibras A; isto contribui para a gênese dos fenômenos de alodinia e hiperpatia; 4) Os gânglios sensitivos respondem às lesões dos nervos periféricos com modificações anatômicas e fisiológicas; há aumento da síntese de proteínas que constituem os canais iônicos e receptores, sendo, pois, uma fonte adicional de potenciais anormais; podem-se desenvolver contatos anormais entre estruturas do sistema nervoso simpático e neurônios sensitivos somáticos, fazendo com que a ativação dos primeiros seja capaz de provocar dor intensa pela inervação aberrante, como ocorre na síndrome de dor complexa regional (SDCR); estas sinapses aberrantes, pelo brotamento de fibras do sistema nervoso vegetativo, formam-se em vários níveis, inclusive nos gânglios sensitivos; 5) A estrutura do corno posterior da medula (CPME) é muito afetada pela lesão dos aferentes periféricos; ocorrem modificações anatômicas e fisiológicas, tais como desorganização sináptica, ampliação da distribuição espacial das terminações aferentes intactas nos locais deaferentados (devido ao brotamento de novas terminações, principalmente do tipo Aβ) com consequente aumento dos campos receptivos e veiculação de estímulos discriminativos inócuos (não nocivos) nos neurônios do CPME (do que resulta alodinia); a projeção aferente nas lâminas do corno posterior é alterada, pervertendo a informação sensitiva; unidades que normalmente só reagiriam a estímulos nociceptivos passam a reagir a estímulos de baixa intensidade; também ocorre redução da expressão de receptores opioides nos axônios e de receptores μ no gânglio sensitivo; há aumento de receptores de CGRP e substância P nos gânglios sensitivos e no CPME, aumento da atividade do glutamato nos receptores NMDA, redução do GABA, que é o neurotransmissor inibitório no corno dorsal, downregulation dos receptores GABA, elevação de Ca++ intracelular promovendo ativação de mecanismos sensibilizadores. 6) A sensibilização central é primariamente induzida pelo disparo de fibras amielínicas nociceptivas C que se projetam nas camadas superficiais do corno posterior, produzindo potenciais excitatórios pós-sinápticos lentos que duram por 20 segundos ou mais; o input aferente repetitivo destas fibras causa somação temporal destes potenciais lentos, que induz o fenômeno wind-up nos neurônios centrais. Neste Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 4 estado, subsequente input de fibras C produz progressivo aumento do output dos neurônios T e o ganho desta resposta neuronal é controlado pela atividade do receptor NMDA; 7) Também participam dos mecanismos de hiperatividade neuronal no CPME a hipoatividade das unidades inibitórias segmentares e do sistema supressor suprassegmentar dependente de monoaminas. Estas vias originam-se no tronco cerebral, principalmente na substância cinzenta periaquedutal do mesencéfalo, que contém alta concentração de receptores opioides e péptides. A região periaquedutal constitui um dos maiores centros de integração da nocicepção e recebe aferências do córtex pré-frontal e insular, hipotálamo, amídala, núcleo cuneiforme, formação reticular e locus coeruleus. As vias descendentes daí originadas se projetam na formação reticular bulbar ventral rostromedial que, por sua vez, se projeta largamente no corno posterior da medula espinal, onde exerce atividade inibitória dos aferentes do trato espinotalâmico e ativa os sistemas inibitórios intrínsecos gabaérgicos e glicinérgicos. Esta atividade modulatória da transmissão dolorosa, quando comprometida, logicamente terá grande influência na gênese da dor neuropática, seja periférica ou central; 8) Um componente genético provavelmente contribui para os diversos fenótipos de indivíduos com lesões aparentemente similares e pode explicar, por exemplo, as diferentes suscetibilidades em desenvolver neuralgia pós-herpética após uma crise de herpes zoster. Dor por lesão do sistema nervoso central: No lesado medular a dor neuropática desenvolve-se em 60% a 70% dos indivíduos afetados, sendo que em um terço é intensa. É atribuída à hiperatividade neuronal segmentar e à modificação do padrão de chegada de estímulos sensitivos ao tálamo. Na lesão transversal da medula, ocorre expansão dos campos receptivos e hiperatividade dos neurônios justapostos aos segmentos lesados do CPME. Como a estimulação de centros superiores reduz a hiperatividade dos neurônios do CPME, a lesão das vias inibitórias descendentes é uma das causas principais da expansão do campo receptivo destes neurônios. Além disso, sugere-se que ocorram alterações ao nível talâmico, com incremento da atividade neuronal que representa as áreas deaferentadas no núcleo ventral posterior, envolvendo ação excitatória mediada pelo aspartato e glutamato nos receptores de NMDA. As lesões encefálicas relacionadas à dor central, incluindo a síndrome talâmica clássica de Dejerine- Roussy, variam muito conforme a localização e as dimensões, mas o comprometimento da via espino- tálamo-cortical é uma condição quase necessária para o seu aparecimento. A causa mais comum é a dor central, que surge após acidente vascular cerebral (AVC) e se desenvolve em cerca de 8% dos pacientes (11% nos acima de 80 anos de idade), sendo moderada a intensa em 5%. Os sintomas geralmente aparecem um a dois meses após a lesão, mas, ocasionalmente, podem demorar anos após o ictus. Clinicamente, a dor central pós-AVC pode ter grande variabilidade e até características bizarras. As disestesias são os sintomas mais comuns, geralmente em queimação contínua ou não, constricção, aperto e caracterizadas por um retardo de aparecimento após o estímulo ser aplicado, diferentemente das lesões periféricas quando a resposta é imediata. Também, o paciente pode referir dores musculares semelhantes a câimbras ou constricção/aperto, hiperpatia (que é a resposta aumentada a um estímulo doloroso), alodinia mecânica e/ou térmica (presente em mais de 50% nos casos de dor pós-AVC), dores lancinantes intermitentes e, às vezes, dores, semelhantes a dor visceral e peristaltismo nos intestinos e na bexiga. Do ponto de vista fisiopatológico, a região ventral posterior do tálamo, centro integrador principal somatossensitivo, constitui a estrutura com disfunção mais importante mesmo quando a lesão é extratalâmica. Alguns sugerem que até a expressão dos canais de sódio se modifique no tálamo, após lesões Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 5 centrais e periféricas que o deaferentem (isto é sugerido pela capacidade da infusão de lidocaína endovenosa em suprimir a dor talâmica). A deaferentação parece exercer o papel mais importante da gênese da dor central encefálica. Assim, a lesão da via neoespinotalâmica resultaria em liberação das vias reticuloespinotalâmicas, não discriminativas, relacionadas às reações de alerta, despertar e aspectos psicocomportamentais da experiência dolorosa. De qualquer modo, adespeito da importância do tálamo na gênese da dor central, o processamento cortical deve ter algum papel significante. Um outro fato importante é que as lesões no SNC podem alterar mecanismos excitatórios e inibitórios à distância da lesão original. O glutamato participa ativamente na transmissão de informação nociceptiva no SNC, havendo evidências de que os receptores NMDA estejam relacionados ao mecanismo de sensibilização dos neurônios talâmicos em casos de dor central. A melhora da dor central com agentes antiglutamatérgicos, como a ketamina e a lamotrigina, reforça o conceito da hiperatividade glutamatérgica nestes pacientes. Também, ocorreria hipoatividade gabaérgica, particularmente nos núcleos reticulares, cujos neurônios são quase exclusivamente gabaérgicos e constituem a principal aferência inibitória dos núcleos ventrais posteriores. A dor central encefálica seria, pois, um produto do desequilíbrio entre a atividade glutamatérgica no núcleo ventral posterior, para onde convergem as aferências somatossensitivas, e as unidades gabaérgicas intratalâmicas e corticotalâmicas. Referência - Dor Neuropática: Tratamento com Anticonvulsivantes; FMUSP, 2005. (Antônio César Ribeiro Galvão) Mecanismos periféricos: • Sensibilização periférica; • Descargas ectópicas; • Neuroma; • Brotamento colateral; • Mudança de fenótipo de neurônios do gânglio da raiz dorsal (GDR) • Acoplamento simpático-sensitivo; • Excitação cruzada “efática” e “não-efática”; • Alterações fenotípicas. Mecanismos centrais: • Sensibilização central; • Alterações da neuroplasticidade; • Redução ou perda de mecanismos inibitórios Mecanismos periféricos da dor neuropática A sensibilização periférica está principalmente vinculada a uma resposta aumentada dos terminais dos nociceptores, decorrente da ação de neuromediadores inflamatórios, o que dá origem a alodinia e hiperalgesia. Isso é consequência, a nível de nociceptores, da diminuição do limiar, indução de descargas ectópicas e aumento na quantidade de canais de sódio. Evidentemente, esse mecanismo é diretamente vinculado à dor nociceptiva inflamatória, porém, em lesões traumáticas, terminais nervosos são geralmente comprometidos, o que produz um a sobreposição de mecanismos inflamatórios e neuropáticos, consequentes à degeneração walleriana do nervo. As descargas ectópicas são constituídas de impulsos elétricos anormais espontâneos evocados e repetitivos a partir de locais incomuns e diferentes das terminações nervosas. As fontes incomuns das descargas ectópicas são constituídas de neuromas, axônios desmielinizados por trauma, processos autoimunes, aferentes adjacentes intactos e gânglios da raiz dorsal. O neuroma é formado no coto proximal do axônio seccionado ou traumatizado p o r brotamento de novas fibras, e a atividade ectópica é originada em fibras mielinizadas (A) e amielinizadas (C). Focos de desmielinização em fibras danificadas por traumatismos são também fontes de atividade ectópica por brotamento de fibras. Outras fontes de descargas ectópicas são aferentes residuais intactos expostos aos produtos de degeneração e mediadores inflamatórios e corpos neuronais do gânglio da raiz dorsal. As expressões comportamentais de atividade ectópica em animais são autotomia e com portamentos autodirigidos (lamber-se, vibrar as patas posteriores e morder-se). Clinicamente, em humanos, são a base do sinal de Tinel. O acoplamento simpático-sensitivo é um a expressão especial de quimiossensibilidade ectópica e reflete uma sensibilidade elevada de neurônios sensitivos devido à maior expressão de adrenorreceptores na membrana neuronal, ao lado de proliferação de terminais simpáticos. A excitação cruzada efática é o processo fisiopatológico pelo qual, a partir de fibra nervosa danificada, há o desenvolvimento de curto-circuito Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 6 elétrico por correntes iônicas com fibras nervosas adjacentes intactas. Outro fenômeno relacionado é a excitação cruzada “não-efática” por mediadores químicos difusíveis, o que pode ser a base da explicação do tic douloureux na neuralgia do trigêmeo. Alterações fenotípicas por expressão gênica modificada de neurônios do gânglio da raiz dorsal e de neurônios do corno dorsal da medula constituem importantes mecanismos de dor neuropática. Os genes modificados após axotomia aqui descritos envolvem os relacionados a neuropeptídeos, receptores, canais iônicos, enzimas, transmissão sináptica, proteínas de crescimento, citoesqueleto e mobilidade celular, metabolismo e outros. Os mecanismos centrais medulares de dor neuropática são consequentes a lesões periféricas ou centrais e se expressam pelo desenvolvimento de sensibilização central, alterações neuroplásticas e redução ou perda de controle inibitório. A sensibilização central é resultado de ativação do receptor NMDA, aumento do conteúdo de glutamato, aspartato e cálcio intracelular, além de ativação também de receptores AMPA e receptores metabotrópicos de glutamato. As alterações da neuroplasticidade que ocorrem na medula espinal dizem respeito a modificações dos terminais de aferentes sensoriais de neurônios do gânglio da raiz dorsal, além de ativação de células gliais implicadas na liberação de citocinas pró-inflamatórias e perda celular no corno dorsal. Outro fenômeno importante na gênese da dor neuropática é a redução ou perda de mecanismos inibitórios tanto locais como descendentes, reduzindo assim a inibição pré e pós sináptica, expressa também por redução de GABA. Mecanismos centrais encefálicos da dor neuropática A dor central ou encefálica/medular é um a condição decorrente de lesão ou disfunção no sistema nervoso central. As causas mais comuns, como vimos na seção sobre aspectos clínicos, são doença cerebrovascular, esclerose múltipla e traumatismo medular, com incidências respectivas de 8, 28 e 30%. Os mecanismos de dor central encefálica e medular são variados tanto em expressão como em dimensão lesional, porém há elementos que serão aqui explicitados, os quais sumariamente são: • Desinibição das vias lemniscais-mediais e espinotalâmicas; • Ruptura da integração termossensitiva e perda da inibição pelo frio de dor em queimação; • Retirada da inibição do núcleo reticular talâmico e aumento da atividade neuronal oscilatória no tálamo; • Lesão no núcleo ventroposterior e dorsomedial talâmico; • Mecanismos corticais parietais; • Memória da dor e potenciação de longo prazo. Em resumo, a dor central encefálica repousa fundamentalmente em mecanismos talâmicos resultantes de atividade e reatividade neuronais aumentadas ao longo das vias somatossensoriais e de decréscimo dos mecanismos inibitórios, envolvendo aminoácidos excitatórios e receptores NMDA. Clinicamente, o resultado dessas lesões é expresso por hipoestesia, hiperestesia, parestesias e disestesias, dor irradiada, latência prolongada de resposta, pós- sensações e som ação temporal, as quais podem configurar a hiperpatia. Referência: Dor - Princípios e Práticas. Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 7 2) ESTUDAR AS VIAS RELACIONADAS A MODULAÇÃO E TRANSMISSÃO DA DOR NEUROPÁTICA; A primeira evidência marcante da participação de um a estrutura do sistema nervoso central na produção da analgesia foi descrita em 1969, quando o psicólogo David Reynolds reportou que a estimulação elétrica do tronco encefálico, incluindo a substância cinzenta periaquedutal do mesencencéfalo (SCP) de ratos, permitiu a realização de uma cirurgia abdominal na ausência de anestesia, sem que os animais demonstrassem manifestações comportamentais ou motoras de dor. Essa inibição da resposta normal de dor pela estimulação de estruturasdo tronco encefálico, incluindo-se a SCP, foi subsequentemente descrita em seres humanos. Após o trabalho de Reynolds, a SCP passou a ser apontada com o a estrutura importante para a inibição descendente no processamento nociceptivo espinal. Nas décadas de 1970 e 1980, diversos trabalhos tornaram evidente o papel fundamental exercido por estruturas do tronco encefálico na modulação das informações nociceptivas. Essas estruturas, quando ativadas, enviam impulsos rostrocaudais que inibem a transmissão dos sinais de dor nos neurônios do corno posterior da medula espinal. As principais estruturas envolvidas nesse sistema inibitório são a SCP, o locus ceruleus (LC) e o bulborostroventromedial (RVM), que inclui o núcleo magno da rafe (NMR). A SCP, quando ativada, produz efeito analgésico por meio de projeções excitatórias para o bulbo RVM ou para o LC, pois existem poucas projeções diretas dessa estrutura para a medula espinal. Os axônios dos neurônios do RVM, via funículo dorsolateral, geram projeções rostrocaudais que estabelecem sinapses inibitórias com neurônios nociceptivos de segunda ordem no corno posterior da medula espinal, causando inibição da transmissão nociceptiva. Algumas evidências demonstram que o bulbo RVM é importante estação relé para a analgesia mediada pela ativação da SCP. A lesão ou a inibição do bulbo RVM bem com o a secção do funículo dorsolateral, bloqueariam a analgesia mediada pela estimulação da SCP. Com base nessas evidências, foi descrito um sistema analgésico rostrocaudal endógeno formado pela SCP, pelo bulbo RVM e pelo funículo dorsolateral, que se projeta no corno posterior da medula espinal. O bulbo RVM é um a estrutura rica em serotonina, e suas projeções liberam esse mediador no corno posterior da medula espinal produzindo analgesia. Além da serotonina, outros mediadores também participam desse processo. Um estudo recente demonstrou que a estimulação colinérgica do bulbo rostroventromedial de cobaias (porquinho-da-índia) produziu antinocicepção, efeito esse bloqueado pela administração prévia de atropina (antagonista colinérgico). Outra estrutura do tronco encefálico que também recebe aferências da SCP e envia projeções para o corno posterior da medula espinal é o locus ceruleus. A estimulação elétrica ou química desse núcleo libera noradrenalina no corno posterior da medula espinal produzindo analgesia, denominada de noradrenérgica. Essa analgesia é resultante da ativação de receptores tipo alfa2-noradrenérgicos encontrados tanto pré com o pós sinapticamente. A ligação da noradrenalina com esses receptores inibe a liberação de neurotransmissores pela terminação pré-sináptica e hiperpolariza o neurônio pós-sináptico (neurônio de projeção). Fisiologicamente a SCP pode ser ativada por informações provenientes da amígdala e do hipotálamo desencadeadas durante situações de medo ou estresse. Assim, a SCP recebe projeções de estruturas envolvidas no processamento de respostas afetivas com componente aversivo. A SCP age com o via final com um das respostas de defesa incluindo-se a dor, pois a sua exclusão experimental cessa a ação antinociceptiva decorrente da ativação da amígdala ou do hipotálamo. Corroborando com essa proposição, dados do nosso laboratório mostraram que a exclusão funcional com lidocaína da região ventrolateral da SCP elimina o efeito antinociceptivo da estimulação colinérgica do núcleo central da amígdala em cobaias. Isso demonstra que o efeito antinociceptivo de estimulação da amígdala, por exemplo, depende de sua conexão neural com a SCP. Além da situação de medo ou estresse, esse sistema en dógeno de modulação da dor pode ser recrutado Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 8 durante o exercício intenso ou quando o animal é ferido no confronto presa/predador, indicando que o controle da dor apresenta inegável valor adaptativo. Estudos recentes demonstraram que outras substâncias, com o os endocanabinóides, podem ser liberadas pelo sistema nervoso em situações de estresse, produzindo ação analgésica. Eles possuem efeitos semelhantes aos canabinóides, substâncias exógenas derivadas da Cannabis sativa (maconha), que atuam em receptores específicos. Em vários modelos de dor experimental em animais, são demonstradas as propriedades analgésicas dos endocanabinóides. Muito antes da descrição dos sistemas descendentes endógenos de controle da dor, a morfina, substância narcótica derivada do ópio, já era em pregada com o potente agente analgésico. Para produzir esse efeito, a morfina liga-se a receptores específicos, denominados opióides, distribuídos em diversos locais dos sistemas nervosos central e periférico. Diversos estudos demonstraram que a microinjeção de morfina na SPC ou no bulbo RVM produz analgesia pela ativação de vias rostrocaudais inibitórias. Além disso, a morfina também produz analgesia por ação direta em receptores opióides presentes no corno posterior da medula espinal. Os receptores opióides foram classificados com o tipos μ, δ, e к, incluindo-se algumas subcategorias. Entretanto, o efeito analgésico da morfina ocorre principalmente por sua ligação com os receptores opióides tipo μ, efeito que pode ser abolido ou diminuído pela naloxona, bloqueador da morfina, com ação preferencial nos receptores μ. Ainda na década de 1970, foram descritas substâncias endógenas capazes de ligarem-se aos receptores opióides e com propriedades similares às da morfina. Essas substâncias foram denominadas de endorfinas ou peptídeos opióides endógenos. Os peptídeos opióides endógenos são representados principalmente pela metil-encefalina, leucina-encefalina, dinorfina e β- endorfina, que, em suas estruturas, com partilham a mesma sequência de aminoácidos: tirosina-glicina- glicina-fenilalanina (Tyr-GlyGly-Phe). Assim, a ação analgésica dos peptídeos opióides endógenos é produzida pelo acoplamento destes com os diferentes tipos de receptores opióides. A β-endorfina e a m etil- encefalina têm maior afinidade pelo receptor opióide tipo p, em bora o efeito analgésico da β-endorfina seja mais duradouro por apresentar maior número de aminoácidos na sua molécula. Já a leucina-encefalina e a dinorfina produzem efeito pelo acoplamento com os receptores μ e k, respectivamente. Semelhantemente à morfina, a analgesia promovida pelos peptídeos opióides endógenos é decorrente da ativação do sistema inibitório rostrocaudal antinociceptivo. Contudo, o efeito final tanto da ligação dos opióides endógenos quanto da morfina com os receptores opióides é um a inibição neuronal. Desse modo, a ativação dos neurônios da SCP ocorre por meio de processo de desinibição dos neurônios de projeção ou efetores. Para que esse processo de desinibição aconteça, é necessário que os peptídeos opióides liberados na SPC liguem-se a receptores opióides, inibindo os interneurônios gabaérgicos tonicam ente ativos. Assim, a inibição dos interneurônios gabaérgicos promove a ativação da via descendente antinociceptiva endógena. U m circuito opióide/GABA semelhante a esse também é encontrado no bulbo RVM. Como mencionado, o RVM participa dos processos de analgesia endógena inibindo a transmissão da d o r nos neurônios do corno posterior da medula espinal. Recentemente foi verificado que, em situações anormais, essa mesma estrutura facilita a transmissão da dor. Sabe-se que o RVM contém dois tipos de neurônios denominados células ON e células OFF, cujos axônios projetam-se na medula espinhal via funículo dorsolateral. As células OFF são responsáveis pela inibição da transmissão nociceptiva no corno posterior, pois há aumento considerável de sua atividade durante a antinocicepção (analgesia). Assim, um decréscimo na atividade das células OFF está correlacionado a umaumento da transmissão nociceptiva (pró-nocicepção). Por outro lado, as células ON exercem efeito inverso, ou seja, apresentam atividade aumentada durante a transmissão da informação nociceptiva no corno posterior e menor atividade na antinocicepção. Em situações de estresse ou de dor aguda, onde é acionado o sistema analgésico endógeno, o RVM é ativado e produz antinocicepção. Entretanto, há relatos indicando que, na manutenção dos estados de dor crônica, verificada nas neuropatias, o RVM atua como estrutura pró-nociceptiva facilitando a transmissão da dor no corno posterior da medula espinal. Em um contexto funcional, não se reconhece qual a vantagem biológica da via facilitatória para o organismo acionada em situações de dor crônica neuropática (causadas por lesões ou processos inflamatórios nos nervos), nas quais o RVM passa a ativar neurônios nociceptivos no corno posterior da medula espinal e, consequentemente, facilita a transmissão da dor. No caso de dor neuropática decorrente da lesão de nervos periféricos, geralmente um estímulo inócuo, como o simples movimento da roupa sobre a pele, pode produzir uma dor insuportável. Esse quadro decorre da reorganização anatômica na medula espinal, de axônios remanescentes de aferentes primários ou da atividade ectópica de neuromas que se formam no coto Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 9 central do nervo seccionado. Junto com a reorganização na medula espinal pode ocorrer reorganização no RVM, em bora a influência facilitatória rostrocaudal para a medula espinal seja devida ao aumento da atividade dos neurônios do RVM. Esse processo pode ser também importante para a manutenção de dores persistentes, na ausência de lesão tecidual evidente. Há vários exemplos de doenças chamadas funcionais, em que não há lesão tecidual evidente (p. ex., fibromialgia, dor por disfunção temporomandibular) e que estão associadas a dores e a desconfortos muito sérios. Referência: Dor - Princípios e Práticas. 3) ESTUDAR O FENÔMENO DE WIND UP ; Há evidência de que os receptores NMDA são envolvidos em um número de fenômenos que podem contribuir para alterações médias ou de longo prazo observadas nos estados de dor crônica. Estes fenômenos incluem o desenvolvimento do Wind up, facilitação, sensibilização central, alterações no campo sensitivo periférico, indução de oncogenes e potenciação de longa duração. O fenômeno Wind up é uma forma de plasticidade de curta duração que ocorre no corno dorsal da medula espinhal. Nessa situação, o potencial de ação de alguns neurônios de largo aspecto aumenta progressivamente. O Wind up não é necessário, nem suficiente para indução de sensibilização central ou hiperalgesia, entretanto pode facilitar a indução de LTP (long term potentiation) em sinapses de fibras C, por uma despolarização pós-sináptica progressiva, aumentando o influxo de cálcio, tanto através dos receptores NMDA, como dos receptores dos canais de cálcio. Referência: Fisiopatologia da dor pós operatória - Programa de Educação Médica Continuada do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. 4) DESCREVER A FISIOPATOLOGIA DA DOR DO MEMBRO FANTASMA; → Contexto histórico A DF define-se como uma dor sentida como tendo origem num membro amputado. Pensou-se que correspondia a um distúrbio psicológico, mas atualmente é considerada uma consequência habitual da amputação. Apesar de DF ocorrer maioritariamente em pessoas que sofreram amputação num membro, também pode ocorrer após a remoção doutras partes do corpo, como dentes, mama, pénis, olho e língua. Frequentemente o mesmo paciente apresenta uma sobreposição entre a DF, sensações fantasma e dor no coto. Alguns amputados sentem movimentos espontâneos do coto. As sensações fantasma podem incluir sensações cinestésicas de comprimento, volume ou outra sensação espacial do membro amputado. O cirurgião francês Ambroise Paré foi o primeiro autor a descrever, em 1552, as queixas de dor severa num membro após sofrer a sua amputação, e propôs fatores de natureza periférica e central para explicar essa sensação. Séculos mais tarde, em 1872, Silas Weir Mitchell usou o termo “dor do membro fantasma” para caraterizar esta entidade. Sucessivas teorias foram sendo descritas nas últimas décadas. Apesar do reconhecimento e da extensa literatura, a fisiopatologia da DF continua a não ser bem compreendida. Pensa-se que alterações centrais parecem ser determinantes na DF, no entanto fatores periféricos também podem contribuir para o seu desenvolvimento. O aparecimento de modelos animais que mimetizam as condições da dor neuropática tem contribuído significativamente para o seu entendimento, sendo claro que, à lesão do nervo, seguem-se um conjunto de alterações que desempenharão um papel importante na indução e manutenção da DF crônica. → Fenômenos pós-amputação À amputação seguem-se uma série de ajustes psicológicos, que podem incluir o luto pela perda do membro. Paralelamente também se verificam Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 10 fenómenos fisiológicos. Os amputados podem relatar sensações desagradáveis que podem coexistir: dor somática, no coto de amputação, relacionada diretamente com o ato cirúrgico; sensação fantasma, ou seja, percepção precoce pós-operatória da presença não dolorosa no membro amputado; e dor fantasma, sensação de dor no membro amputado. → Definição DF é definida como uma dor sentida no membro amputado. Em geral inicia-se na primeira semana após a amputação, mas pode demorar meses ou até́ anos a manifestar-se. É considerada uma dor neuropática que é sentida em pontos precisos do membro fantasma. É encontrada noutras situações, para além da amputação, em que há desaferenciação para além da amputação, tais como esclerose múltipla, lesão medular e lepra, todavia muitos autores escrevem a DF como uma entidade autónoma. Neste contexto, o presente trabalho baseia-se apenas na informação referente à DF após amputação de um membro. Quanto à caracterização da DF, são muitas as referências publicadas no que toca à sua localização, descrição, evolução e duração. As descrições mais comummente utilizadas para caracterizar esta dor incluem “queimor”, “prurido”, “picada” ou “espasmo”, mas adjetivos como “perfurante”, “latejante”, “aborrecida” e “penetrante” também são utilizados. A DF pode ser contínua ou intermitente, com várias exacerbações durante o dia. Noutros casos pode ocorrer em intervalos aleatórios mais ou menos frequentes. A dor pode ter a duração de segundos, minutos ou horas, mas raramente dura mais do que alguns dias. Blumenthal sugeriu que a DF é frequentemente acompanhada pela sensação de que o membro fantasma está posicionado de forma divergente em relação à sua posição natural. Habitualmente está primariamente localizada na porção distal do membro. Cerca de 30% dos amputados relatam sensação de telescopagem, isto é, que o “fantasma” se torna progressivamente mais curto. → Epidemiologia Embora esta dor possa começar até 15 anos após a amputação, geralmente surge nas primeiras semanas. Pode ocorrer uma diminuição da frequência e duração dos episódios de DF nos primeiros seis meses, mas em geral observam-se poucas alterações após este período. A incidência de DF é muito variável, podendo variar entre 2% a 80% dos amputados. Esta discrepância é atribuída a diversos fatores. Em primeiro lugar, pela dificuldade já referida de distinguir a DF da sensação fantasma. Em segundo lugar, porque as taxas registadas basearam-se em estudos de solicitação de tratamento pelo paciente. Daí que a real frequência esteja substancialmente subvalorizada, já que muitos amputados são relutantes em pedir ajuda, com receio de serem estigmatizados como doentes mentais. Aapoiar esta opinião, estudos indicam que cerca de 54% a 85% dos pacientes que não procuram tratamento para a sua dor também tem níveis significativos de DF, pelo que o indicador “pedido de tratamento” não pode ser considerado fiável. Vários estudos consideram que em cerca de 5% a 10% dos pacientes seria necessário tratamento da dor. A grande diversidade de dados relativamente a este fenómeno pode ser também atribuída ao tempo decorrido após a amputação, ao tipo de amputação (cirúrgica ou traumática), à presença de dor previamente à amputação, à existência de patologias associadas (como diabetes mellitus e a doença vascular periférica), a diferentes metodologias escolhidas na recolha de dados e à diversidade das escalas escolhidas para a sua avaliação. → Patofisiologia O mecanismo subjacente da DF ainda não foi completamente clarificado. Várias teorias sobre a sua etiologia têm vindo a ser desenvolvidas. Inicialmente foi atribuída à imaginação; no entanto, com o acumular de evidências nas últimas décadas, os paradigmas centraram-se nas alterações múltiplas do eixo neural, especialmente do córtex. Mecanismos periféricos e centrais constam das hipóteses que ganharam aceitação ao longo dos últimos anos. As teorias podem ser categorizadas em periféricas, centrais e psicológicas. Contudo, nenhuma destas construções teóricas parece ser capaz de explicar cabalmente o fenómeno da DF, fazendo supor que podem coexistir múltiplos mecanismos. Teoria Periférica: O fato de frequentemente coexistirem dor no coto de amputação e DF sugere que eventos periféricos serão importantes no desenvolvimento de DF. Quando se observou que a manipulação do coto influenciava a DF, vários investigadores propuseram que a estimulação das terminações nervosas no coto da amputação transmitiria informação ao cérebro, e que este atribui essas sensações à parte do corpo originalmente inervada sendo reinterpretadas como DF. Após a amputação e secção do nervo, ocorre uma degeneração retrógrada e um encurtamento dos neurónios aferentes como resultado da lesão, do edema e da tentativa de regeneração do axónio. As Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 11 fibras da extremidade seccionada podem crescer e formar nódulos, denominados neuromas, que geram impulsos anormais. Neste fenômeno, conhecido como sprouting, as terminações das fibras A e C alargam-se e desorganizam-se, gerando impulsos ectópicos que aumentam após estímulos mecânicos e químicos inócuos. Assim, estes impulsos que ativam o SNC podem manter intacta a percepção da existência do membro e resultar em DF. A percussão do coto ou de um neuroma podem induzir dor no coto e DF. Nystrom e Hagbarth mostraram que percutir o neuroma está associado ao aumento da atividade aferente das fibras C e, consequentemente, ao aumento da dor. De forma consistente, outros estudos demostraram que existe uma correlação inversa entre a intensidade da DF e o limiar de dor à pressão do coto logo após a cirurgia. As fibras C estão na origem de descargas ectópicas com um padrão irregular lento associado à sobrerregulação ou à expressão de novo de canais de sódio, e à subregulação de canais de potássio. Por isso entende- se o porquê é que, segundo Chabal, que a injeção de galamina, que aumenta a condutância do sódio, produz DF. Pelo contrário, a lidocaína, bloqueador não específico dos canais de sódio, quando injetada no neuroma ou tecido subjacente, bloqueia a DF. A hipótese periférica é também apoiada pelo facto de que, ao examinar o coto, frequentemente são encontrados achados patológicos que podem ser causa de dor: distúrbios da circulação, infeção, exostoses ou neuromas. A DF é mais vezes observada em pacientes com patologia no coto, sendo que a dor dela decorrente ocorre em simultâneo, em termos de frequência e intensidade, com a DF. Além disso, nalguns casos, a remoção cirúrgica dos neuromas provoca alívio da DF. No entanto, já em 1940, vários autores propuseram que a DF não podia ser explicada somente pelos mecanismos periféricos. Esta teoria não só não explica por que a manipulação do coto resulta na percepção de dor e não de sensação inócua, mas também por que motivo o resultado daquela manipulação seja sentido no “fantasma” e não no membro residual. Apesar destes estudos revelarem que os fatores periféricos desempenham um papel importante na DF, existem evidências que demonstram que eles não são o principal elemento desencadeante: primeiro, a DF está presente em muitos pacientes imediatamente após a cirurgia, antes de surgirem outras complicações ou de se formarem neuromas. Razão adicional reside no facto de a anestesia local no coto não eliminar esta dor em todos os casos. Por outro lado, a DF pode estar presente na ausência de dano do nervo, como na aplasia congénita do membro, ou quando a informação periférica está bloqueada, como na lesão medular. Independentemente de existirem provas contrárias à sua pertinência, esta teoria está na base dalgumas terapias com sucesso analgésico, como a massagem e a estimulação elétrica do coto. Teoria Central Medular: Em 1945, alguns autores atribuíram a DF a um padrão de disparos anormais pelos interneurônios do corno dorsal da medula. Argumentaram que um circuito fechado, auto-sustentável e ressonante seria formado em consequência da estimulação periférica crónica e à não recepção de impulsos inibitórios. Quando esses impulsos não regulados atingissem o cérebro, seriam sentidos como dolorosos. Uma vez estabelecidos estes circuitos, a remoção cirúrgica da fonte periférica já não teria qualquer efeito e não eliminaria a dor. A atividade simpática, que também pode ser causada por sofrimento emocional, poderia ampliar estes padrões de disparo, devido à elevação de epinefrina circulante. Este facto explica em parte, porque fatores emocionais poderem ser considerados desencadeantes e modeladores de manifestações clínicas. A teoria do “Gate Control” publicada em 1965 por Melzack e Wall, propôs que o corno dorsal da medula espinhal agiria como um “portão”, que permite ou impede a transmissão sináptica de impulsos nervosos de fibras periféricas para as centrais. A estimulação das fibras A bloquearia a transmissão dos estímulos veiculados pelas fibras C. Este processo seria ainda influenciado por impulsos descendentes vindos do cérebro. Após um grande número de fibras periféricas serem danificadas, a inibição pré-sináptica das aferências pelo sistema de portão não ocorreria. Neste caso, as aferências dolorosas que chegariam através das fibras A e C remanescentes, seriam transmitidas sem controlo, aumentando a atividade neuronal auto- -sustentável causando dor. De acordo com ambas as teorias explicadas, a DF será resultante da sensibilização do sistema nervoso. A perda de impulsos aferentes, juntamente com a formação de neuromas e o sprouting de células ganglionares da raiz dorsal levaria à irritação do corno dorsal da medula espinhal, podendo induzir alterações na estrutura sináptica. Ocorre uma hiperexcitabilidade com diminuição dos processos inibitórios e alterações estruturais nas terminações nervosas sensoriais primárias, interneurônios e projeções neuronais. Interneurônios GABAérgicos e glicinérgicos podem contribuir para a hiperexcitabilidade da medula espinhal, quando são destruídos por descargas rápidas vindas do tecido lesado ou por sofrerem um switch de Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 12 inibitório para excitatório devido à influência de fatores neurotróficos do cérebro. Adicionalmente verifica-se uma subregulação dos receptores opióides nos terminais aferentes primários e nos neurónios intrínsecos da medula. Por esta razão, a colecistoquina, um receptor inibitório de opioide endógeno,está sobrerregulado, ampliando o efeito não inibitório. Habitualmente a estimulação dos aferentes nociceptivos primários libertam neurotransmissores como o glutamato, que se liga aos receptores pós- sináticos AMPA, originando potenciais de duração muito limitada. Quando há estimulação intensa e repetida, o glutamato passaria também a ligar-se a receptores NMDA dos neurónios de segunda ordem, desencadeando potenciais de longa duração. Se as fibras A sofrerem uma mudança fenotípica para fibras nociceptivas, ganham a capacidade de libertarem substância P. Neste caso aferências veiculadas pelas fibras A, habitualmente inócuas, ou mesmo inibidoras segundo a teoria do gate control, passariam a participar na sensibilização dos neurônios pós-sináticos e a contribuir para a DF. A agravar este fenômeno, ocorre uma reorganização anatómica com degeneração das fibras C na lâmina II, o que leva as fibras A a fazerem sinapse nesta área, quando fisiologicamente as suas terminações o fazem apenas nas lâminas III e IV. Assim, as fibras A que recebem informação de baixo limiar passam a transmitir informação como se fossem de alto limiar, o que terá como consequência a percepção de estímulos táteis como sendo dolorosos, ou seja, clinicamente manifestando-se com alodinia. É concebível que em certos pacientes, nos quais a sensibilização tenha sido mais intensa, mecanismos centrais possam subsequentemente ajudar a mantê-la, mesmo na ausência de qualquer aferência nociceptiva adicional. Clinicamente manifesta-se por dor crónica, hiperalgesia mecânica e por expansão dos campos receptivos periféricos. O facto de alguns pacientes não apresentarem mudanças acentuadas na sensibilidade do coto, apesar da DF considerável, pode ser consistente com esta reorganização medular. Defensores da teoria medular citam o sucesso de cirurgias ablativas medulares em vários casos, e atribuem a existência de vias alternativas para os tratamentos mal sucedidos. Todavia, estas alterações, que se iniciam uma a duas semanas após a amputação, não explicam os casos que apresentam dor imediatamente após a cirurgia de amputação. Apesar da limitada evidência direta sobre os mecanismos espinhais em humanos, dados experimentais baseados em modelos animais mostram que alterações medulares desempenham provavelmente um papel importante na dor neuropática, incluindo a DF. Teoria Central do Cérebro: Após a amputação existe uma reorganização das estruturas somatossensoriais primárias, do córtex motor e das estruturas subcorticais. Da pesquisa efetuada, esta parece ser a explicação mais citada como sendo a etiologia da DF. Áreas do córtex somatossensorial, que previamente correspondiam ao membro ausente, começam a receber informação sensorial de outras áreas do corpo que apresentam sinapses adjacentes. Pensa-se que a DF possa resultar em consequência de erros que ocorrem neste processo de remapeamento. O córtex somatossensorial primário é conhecido por estar envolvido no processamento da dor, e pode ser um elemento significativo para discriminar as características sensoriais daquela experiência. Existem ainda relatos de que a DF foi abolida após a remoção cirúrgica de partes do córtex somatossensorial primário e que a estimulação deste evoca aquela dor. Riddoch aventou a hipótese de que a representação cortical e a imagem corporal desenvolvem-se ao longo do tempo, como resultado de aferências periféricas provenientes de todos os sentidos. Esta imagem corporal torna-se uma parte permanente da percepção pessoal e mantém-se inalterada após a amputação. Serão estas células corticais as responsáveis pelo fenómeno fantasma. O controle cortical é evidenciado pelo fato de que pacientes com membro amputado conseguem por vezes evocar o “fantasma” e movê-lo voluntariamente. Partes do corpo que apresentam uma maior representação cortical, como os dedos, persistem por mais tempo. Objetos que sejam incorporados na representação cortical, como relógios e anéis, encontram-se frequentemente envolvidos no fantasma. Uma experiência demonstrou que após a amputação de um dígito num macaco adulto, existe uma invasão das áreas neuronais adjacentes para a área onde o dígito estava representado. Estes resultados são consistentes com as alterações neuroplásticas no córtex motor primário e no córtex somatossensorial primário. Curiosamente, esta reorganização também já foi observada em humanos através de técnicas de magnetoencefalografia, que revelaram uma forte correlação entre a DF e a extensa reorganização cortical. Um desses casos foi observado por Ramachandran, em que em pessoas com braço ou mão amputados foi possível provocar a sensação fantasma pela estimulação da face ipsilateral da amputação, existindo uma correspondência ponto a ponto entre o Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 13 local da estimulação da face e a DF. O estudo imagiológico revelou que a representação da boca se encontrava no local da mão amputada no córtex somatossensorial. Também foi demonstrado que quanto maior a alteração da representação, maior a DF. Estas alterações corticais podem ser revertidas pela eliminação das aferências periféricas do coto, e num estudo de Birbaumer a anestesia periférica eliminou completamente a reorganização cortical e a DF em 50% dos pacientes do estudo. O mesmo estudo sugere que, nalguns indivíduos, a reorganização cortical e a DF podem ser mantidas pelas aferências periféricas, enquanto noutros indivíduos uma alteração central, possivelmente intracortical, parece revelar-se mais importante. Muitas terapias para a DF baseiam-se na ideia de que alterações plásticas após a amputação são mal adaptivas e tentam normalizar as representações corticais. De certa forma, o grande problema da teoria central é a sua incapacidade de distinguir sensação fantasma da DF. Contudo, modelos computacionais de desaferenciação sugerem que fatores periféricos podem aumentar a reorganização central das redes neuronais. Assim, as aferências anormais, que podem ser originadas por neuromas no membro residual, aumentam em muito a reorganização do “mapa central”, indicando que os fatores periféricos e centrais podem interagir na criação da experiência da DF. *Existe ainda a Teoria da Neuromatriz e a Teoria Psicogênica. → Conclusão Conclui-se que vários mecanismos estarão envolvidos no desenvolvimento e manutenção da DF. É possível que as primeiras alterações tenham lugar na periferia onde as terminações nervosas são sensiblizadas pela dor pré-amputação e pela lesão nervosa. A observação clínica que a DF se pode desenvolver logo após a amputação, sugere que outros fatores, para além da formação do neuroma, aparecimento de atividade ectópica, sobrerregulação dos canais de sódio e alterações nos campos receptivos contribuam para o desenvolvimento precoce desta dor. A não eliminação da DF crónica pelo bloqueio periférico e pela remoção do neuroma sugere que alterações mais centrais estarão envolvidas. Os fatores supraespinhais também são importantes para a dor após amputação, uma vez que alterações nas sinapses nervosas sensibilizadas e reorganizadas aumentam a atividade do sistema nervoso e desencadeiam alterações secundárias no processamento somatossensorial. A reorganização do mapa cortical do corpo parece ser um elemento importante para distinguir sensações fantasmas dolorosas de não-dolorosas. No entanto, a extensão em que estas alterações neurológicas dependem de fatores periféricos, da medula espinhal ou da constituição genética ainda não é clara. Continuam a faltar evidências e uma explicação clara porque alguns indivíduos desenvolverem DF e outros não, de certas DF diminuírem ao longo do tempo e outras persistirem, e quais as reações moleculares e biológicasque estão envolvidas neste fenômeno. Melhor compreensão dos mecanismos subjacentes à DF e respetivas interações necessitam de ser examinadas com maior pormenor em humanos e em modelos animais de dor relacionada com amputação, pois nenhum mecanismo aventado explica cabalmente todo este fenómeno. O papel dos fatores genéticos ou da expressão de genes ainda está mal estudado. A identificação de genes relevantes para o desenvolvimento da DF constitui um passo importante e poderá ajudar na identificação dos fatores predisponentes para a DF, assim como para o desenvolvimento de novas intervenções preventivas ou terapêuticas. Referência: Dor do Membro Fantasma - Revisão bibliográfica da fisiopatologia, de Isabel Maria Veríssimo Moreira de Carvalho e Almeida 5) COMPREENDER O MECANISMO DE AÇÃO DA GABAPENTINA E PREGABALINA (INDICAÇÃO, MECANISMO DE AÇÃO, EFEITOS COLATERAIS, PAPEL DOS ANTICONVULSIVANTES); O tratamento da dor neuropática costuma ser difícil e muitas vezes desapontador. Deve começar com a identificação correta dos fatores etiológicos e dos mecanismos que mantem a sensibilização central e periférica. Além de medicamentos, podem se requerer medidas neurocirúrgicas, bloqueios anestésicos, infusão regional de simpaticolíticos, infiltrações, neuroestimulação com eletrodos e infusões intratecais de drogas, não esquecendo as terapias fisiátricas, psicológicas e ocupacionais que ajudem o paciente a Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 14 conviver com a dor e ter recuperação funcional. Os analgésicos AINEs praticamente não funcionam e geralmente nem devem ser prescritos. As principais drogas utilizadas na dor neuropática são os antidepressivos tricíclicos e os bloqueadores dos canais de sódio, dos quais diversos também são usados como anticonvulsivantes. Isso tem sido comprovado por inúmeros trabalhos. Mais recentemente, drogas com atividade no sistema GABA foram preconizadas, assim como opióides e antagonistas dos receptores NMDA, que mostram alguma eficiência. Alguns pacientes, dependendo da etiologia, podem se beneficiar de inibidores seletivos da recaptação da serotonina (e da noradrenalina), corticóides, neurolépticos, anestésicos/antiarrítmicos, capsaicina, guanetidina, levodopa e clonidina. É muito comum a necessidade de politerapia. As seguintes drogas anticonvulsivantes são passíveis de utilização no tratamento da dor neuropática: difenil- hidantoína, carbamazepina, oxcarbazepina, lamotrigina, gabapentina, topiramato, clonazepam, zonisamida e pregabalina (embora também existam relatos de uso do felbamato, vigabatrina e tiagabina). Os trabalhos com fármacos para dor costumam utilizar um índice denominado NNT para avaliar a eficácia analgésica (número necessário de pacientes a tratar com certa droga para se obter um certo grau de alívio da dor, geralmente considerado de 50%). Este índice será usado na análise das diversas drogas. → Gabapentina A gabapentina (GBP) é um aminoácido, análogo estrutural do neurotransmissor GABA, mas não atua por ação gabaérgica direta nem afeta o metabolismo e o uptake do GABA. Tem a propriedade de aumentar os níveis de GABA e serotonina no sistema nervoso central (SC) e diminuir o glutamato, o que explica a sua eficiência nas dores neuropáticas. Seus prováveis efeitos são o bloqueio dos canais de cálcio do tipo L, voltagem-dependente, ligando-se à subunidade 2δ, a redução discreta da síntese de glutamato por inibição da transferase de aminoácidos de cadeia ramificada, a inibição de corrente de sódio por um mecanismo diverso da CBZ e DPH e a ligação a sítios específicos do SNC associados a inputs excitatórios. Parece também inibir, via mecanismo desconhecido, a ação da D-serina, que é um co-agonista no local da glicina, modulada no receptor NMDA. A GBP tem potente efeito inibitório (até 70% a 90% de melhora) em vários modelos experimentais de dor neuropática intensa com hiperalgesia e alodinia mecânica, hiperalgesia térmica e termoalodinia. A GBP é, do ponto de vista farmacocinético, uma das drogas mais seguras para tratamento da dor neuropática. Não tem metabólitos ativos, a ligação a proteínas plasmáticas é insignificante, tem menor chance de interação com outras drogas, sendo mais segura nos pacientes em politerapia. Após a administração oral, a GBP é 50% a 60% absorvida pelo trato gastrintestinal, com pico sérico após um a três horas, e atra vessa facilmente a barreira hematoencefálica. A concentração liquórica atinge 20% da concentração plasmática. Tem cinética linear, com correlação da concentração plasmática e dose, e é eliminada inalterada por depuração renal. Em pacientes com função renal alterada, exigem-se ajustes da dose; pacientes com clearance de creatinina de 30 a 60 ml/min devem receber 300 mg, duas vezes ao dia; com clearance de 15 a 30 mL/min, usar 300 mg/dia e, se menor que 15 ml/min, a dose deve ser de 300 mg em dias alternados. Os efeitos colaterais são pouco frequentes, geralmente toleráveis, mesmo em doses altas, consistindo de sonolência e tonturas na maioria dos casos; outros efeitos são raros. Não existem estudos controlados sobre o uso em mulheres grávidas e em amamentação e, assim sendo, a prescrição na gravidez e na lactação deve ser feita apenas quando os benefícios justificarem os eventuais riscos. As doses terapêuticas para dor neuropática situam-se entre 1.800 mg e 2.400 mg/dia, divididas em três tomadas, devendo-se iniciar com 400 mg/dia e incrementando a cada três dias. A GBP, de um modo geral, tem limites de eficácia em doses menores que 1.000 mg/dia. A necessidade de doses altas talvez seja sua maior desvantagem pelo alto custo do tratamento, mas há razoável tolerabilidade para doses até de 3.600 mg/dia. A GBP é considerada hoje uma droga de primeira escolha no tratamento da dor neuropática, com melhora a partir da segunda semana de tratamento. Atua tanto na dor paroxística como na hiperalgesia e alodinia. Diversos trabalhos demonstram excelentes resultados no tratamento da neuralgia pós-herpética (NNT de 3,2), na neuropatia dolorosa diabética (NNT de 3,8), inclusive com eficácia comparável à amitriptilina, na neuralgia do trigêmeo, em espasmos dolorosos tônicos da esclerose múltipla, na neuralgia trigeminal associada à esclerose múltipla, nas disestesias de membros da esclerose múltipla, na eritromelalgia, na dor da síndrome de Guillain-Barré, na dor pós- poliomielite e em neuropatias associadas ao câncer e à AIDS. A dose recomendada na neuralgia pós-herpética é alta, de 2.400 mg a 3.600 mg/dia. Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 15 Outros trabalhos mostram eficácia na dor central pós- AVC, nas lesões medulares traumáticas (melhor nos traumas medulares com menos de seis meses de evolução) e na síndrome de dor complexa regional. Foi demonstrado que a gabapentina potencializa a analgesia dos opióides em síndromes dolorosas neoplásicas, inclusive na dor neuropática associada ao câncer, em doses médias de 1.200 mg/dia, constituindo, pois, uma opção quando os opióides estiverem perdendo efeito. Pode ser associada à lamotrigina em dores da esclerose múltipla. Pelo fato de melhorar tanto dores paroxísticas como contínuas, há um forte argumento para considerar a GBP como a droga de primeira escolha no tratamento da dor neuropática em geral, particularmente no idoso, mas o seu custo financeiro deve ser levado em conta quando comparada a outras drogas. → Pregabalina A pregabalina é uma nova droga, análoga estrutural do GABA, antagonista a2d com propriedades semelhantes à gabapentina. Não parece ter efeito agonístico nos receptores GABA e não interage diretamente com os canais de sódio, cálcio e receptores do glutamato. Tem efeitos indiretos nos canais de cálcio, no glutamato,noradrenalina e substância P. A pregabalina foi efetiva em modelos experimentais de dor neuropática e, em camundongos, a sensitividade à pregabalina e à GBP parece ser um fator herdado dos pais. A pregabalina tem poucas interações com outras drogas e mostra rápido início de ação. Estudos randomizados com placebo em humanos com neuropatia diabética dolorosa reportaram melhora significativa com doses de 75 mg, 300 mg e 600 mg ao dia; houve melhora do sono, da qualidade de vida, mais evidentes com doses de 300 mg ou mais por dia. A tolerância foi boa; a taxa de retirada com 600 mg/dia foi de 12,3%. Os efeitos adversos mais frequentes foram sonolência, tonturas e edema periférico. Existe um estudo realizado em 2003, com 173 pacientes com neuralgia pós-herpética, que receberam 300 mg ou 600 mg de pregabalina (conforme o clearance renal) contra placebo; muitos pacientes eram idosos, já com três anos ou mais sofrendo a neuralgia, recebendo outras medicações, mas com dor intensa; dois terços obtiveram redução importante da dor com efeitos adversos moderados, geralmente sonolência e tonturas. Um outro estudo contra placebo foi feito em pacientes com neuralgia pós-herpética (excluídos os casos que não tinham respondido previamente à GBP em dose maior u igual a 1.200 mg/dia); foram utilizadas doses de 150 mg ou 200 mg de pregabalina. Ocorreu resposta terapêutica adequada já com uma semana de uso, com melhora a qualidade de vida, do sono e da parte emocional dos pacientes. A melhora foi mais acentuada nos pacientes que receberam 300 mg/dia e os efeitos colaterais mais comuns foram tonturas, sonolência, edema periférico, cefaleia e boca seca. A pregabalina é uma droga muito promissora para o tratamento da dor neuropática, tendo poucos efeitos adversos e mostrando eficácia em doses mais baixas que a gabapentina. Referência - Dor Neuropática: Tratamento com Anticonvulsivantes; FMUSP, 2005. (Antônio César Ribeiro Galvão) 6) ELUCIDAR O TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO RELACIONADO A DOR CRÔNICA E A IMPORTÂNCIA DA EQUIPE MULTIDISCIPLINAR; 7) DIFERENCIAR ANALGESIA E ANESTESIA; → Anestesia Embora analgesia e anestesia tenham objetivos semelhantes, que é eliminar a dor eles são procedimentos bem diferentes. Anestesia refere-se à cessação induzida da percepção dolorosa. É dividida em 3 tipos diferentes: 1. Anestesia geral: implica na perda reversível e controlada da consciência, o que significa que o paciente não consegue sentir, ouvir ou lembrar-se de nada. Vamos ter a suspensão se algumas funções fisiológicas como a respiração, que deve ser mantida artificialmente. Ao mesmo tempo, o paciente vai receber drogas que desfazem o tônus muscular e paralisam os movimentos. No final da anestesia geral, os pacientes recebem agentes para reverter esse estado. Esse tipo de anestesia é utilizado em cirurgias de grande porte. 2. Anestesia regional: ela vai tornar uma região do corpo insensível à dor, sem abolir a consciência. É o caso da anestesia raquidiana ou peridural, em que a pessoa fica anestesiada da cintura para baixo. É bastante utilizada em partos. 3. Anestesia local: ela deixa uma pequena área incapaz de sentir dor. É utilizada em pequenas cirurgias como extração de dentes. Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 16 O estado neurofisiológico produzido pelos anestésicos gerais caracteriza-se por 5 efeitos principais: perda da consciência, amnesia, analgesia, inibição de reflexos autônomos e relaxamento da musculatura esquelética. Nenhum dos anestésicos disponíveis é capaz de produzir todos esses efeitos desejados. A prática baseia-se no uso associado de fármacos que permitem uma analgesia profunda com manutenção de vias respiratórias desobstruídas. Para procedimentos cirúrgicos mais extensos, a anestesia pode começar com a administração pré- operatória de benzodiazepínico, ser induzida com anestésico intravenosa (tiopental ou proporfol) e mantida com uma associação de fármacos inalatórios (oxido nitroso) ou IV (proporfol, opioides...). Os anestésicos afetam os neurônios em vários locais celulares, porem o principal foco tem sido a sinapse. Eles podem produzir uma inibição reforçada ou diminuição da excitação dentro do SNC. Já a anestesia local refere-se à perda de sensação em uma região limitada do corpo. É obtida pela interrupção do fluxo neural aferente por meio da inibição da geração ou propagação de impulsos. Esse bloqueio pode induzir outras alterações fisiológicas como paralisia muscular e supressão de reflexos somáticos ou viscerais. No entanto, o principal objetivo é a perda de sensação, ou pelo menos a obtenção de analgesia localizada. Embora os anestésicos locais sejam frequentemente utilizados como analgésicos, a sua característica diferencial consiste na capacidade de produzir uma perda completa de todas as modalidades sensoriais. Um detalhe importante é que na anestesia local o fármaco é administrado diretamente no órgão alvo, seja na aplicação tópica, seja nas proximidades de terminações nervosas periféricas, injeção nos espaços epidural ou subaracnóideo circundando pela medula espinal. → Analgesia A analgesia é definida simplesmente como alívio da dor, sem afetar os níveis de consciência dos pacientes. Os analgésicos são uma classe extensa de medicamentos, que se dividem em dois tipos básicos: 1. Os analgésicos centrais: reduzem a percepção da dor e diminuem a atividade cerebral, provocando sono. São os analgésicos mais fortes, utilizados em dores de maiores intensidades. O mais potente deles é a morfina. A grande desvantagem desses analgésicos é a possibilidade de causarem rápida dependência. 2. Os analgésicos periféricos: esses analgésicos inibem a produção de determinadas substâncias e, com isso, diminuem a sensação de dor. 8) ESTUDAR SÍNDROME COMPLEXA DE DOR REGIONAL; A Síndrome Dolorosa Regional Complexa (SDCR) constitui importante causa de morbidade crônica que agrupa patologias semelhantes, como distrofia simpática reflexa, algodistrofia, Síndrome Dolorosa Pós-traumática, causalgia e atrofia de Sudeck, e caracteriza-se pela presença de dor espontânea em queimação, hiperalgesia, edema, instabilidade vasomotora, alteração da função motora e anormalidades autonômicas. Pode ser dividida em: tipo 1 - causada por traumas ou fraturas pequenas sem lesão nervosa detectável; e tipo 2 - conhecida por causalgia, com lesão de nervo confirmada. Existem muitas dúvidas em relação à sua fisiopatologia, ao curso clínico imprevisível e ao tratamento,4 por isso é causa de angústia, não só para o paciente, devido à dor muitas vezes incapacitante, como também para os profissionais de saúde envolvidos. → Epidemiologia A SDRC crônica incide em menos de 2%, e a SDRC leve, em 30-40%, após fraturas e traumatismos cirúrgicos. Há remissão substancial de casos em um ano, entretanto, alguns achados como rigidez sugerem que a SDRC pode ser responsável por significativa morbidade ao longo prazo, mesmo em sua forma leve. A idade média dos pacientes acometidos é de 41 anos, com predomínio de mulheres (3:1). É acometido, frequentemente, um único membro, em proporções iguais entre os superiores e os inferiores, sendo a incidência maior do lado direito. Associa-se em 65% dos casos ao trauma, 19% no período pós-operatório, 2% após processos inflamatórios e 4% após outros fatores, como punção venosa. Não existem evidências de que existam fatores de risco que predisponham ao desenvolvimento da SDCR, embora a imobilização possa atuar como fator de lesão. Existem estudos que a relacionam a fatores genéticos de possível predisposição, principalmente envolvendo sistemas de antígenos leucocitários humanos. → Fisiopatologia A SDCR reflete alterações na regulaçãoda inflamação, envolvendo principalmente fibras nervosas sensoriais do tipo C e Aδ, que atuam nos reflexos nociceptivos de retirada, minimizando ou evitando potenciais lesões tissulares. Em resposta à injúria nervosa ou tecidual, ocorrem várias mudanças na regulação do SNC para se Ana Beatriz Figuerêdo Almeida - Medicina 2023.1 Página | 17 adaptarem a essa alteração, incluindo alterações nos neurônios do corno dorsal na medula espinhal, com aumento da eficiência da transmissão sináptica. Outras estruturas provavelmente envolvidas são as células do sistema imune da pele e músculos flexores. Outra teoria aceita é o aumento do número de α- adrenoceptores nos tecidos periféricos, sensíveis à norepinefrina nas terminações simpáticas, provocando a dor através da sua atuação nos receptores. A lesão do nervo periférico provoca alterações plásticas no nervo aferente primário e nos neurônios simpáticos pós- ganglionares, levando a alterações degenerativas e regenerativas e ligações bioquímicas, tanto nos neurônios lesados quanto nos não lesados, presentes no gânglio da raiz dorsal. Essas ligações são responsáveis pela ativação dos nervos aferentes primários pelo sistema simpático, sendo provável mediador a norepinefrina. A imobilização prolongada tem sido estudada como possível causa para alguns dos achados, sendo sugerido como mecanismo a quebra entre o input sensorial e o output motor. O fator psicoemocional, que tem sido historicamente proposto como etiologia provável para a dor crônica, não tem demonstrado, nos estudos realizados, relação consistente que suporte a teoria. A única associação demonstrada com antecedentes psicológicos é a exacerbação da dor na SDRC, assim como em outras doenças. → Manifestações Clínicas O diagnóstico é, essencialmente, clínico. É realizado também pela exclusão de outra causa possível que explique a sintomatologia, sobretudo as condições infecciosas e reumatológicas que cursam com dor espontânea, hiperalgesia/hiperestesia não limitada ao dermátomo correspondente e desproporcional ao evento, alodinia, edema, aumento da temperatura local, sudorese, alterações motoras e tróficas principalmente em regiões distais, osteoporose e rigidez articular. Principais diagnósticos diferenciais da SDRC: • Trombose Venosa Profunda; • Tromboflebite; • Celulite; • Linfaedema; • Insuficiência Vascular; • Síndrome do Desfiladeiro Torácico; • Neuropatia Diabética; • Neuropatia Periférica; • Síndrome Compartimental; e • Síndrome do Túnel do Carpo. A dor tipicamente é em queimação, e há evidente piora com alguns estímulos, especialmente com as mudanças de temperatura, o toque e o movimento. Pode ser agravada por estímulos mais sutis, como ruídos de trânsito, conversas ou gotejamentos de torneira. É importante ressaltar que, mesmo diante de lesão nervosa evidenciada, não é possível explicar todas as manifestações clínicas. Essa dificuldade diagnóstica estimulou a busca de vários sistemas de critérios diagnósticos. A evolução da doença é bifásica, iniciando com edema e evoluindo ao longo prazo com contratura e rigidez articular. A SDRC começa cerca de um mês após o trauma, com dor difusa debilitante e neuropática. As queixas de ardor espontâneo, hiperalgesia, alodinia (dor aos estímulos táteis) são comuns, entretanto, não universais. A dor é incessante, embora frequentemente não afete o sono do paciente. A instabilidade vasomotora e o edema dominam a fase inicial, embora seja menos marcado na SDRC mais proximal. Na apresentação clássica, o membro é inicialmente seco, quente e avermelhado, tornando-se rapidamente azulado, úmido e edemaciado. A dor e o edema limitam a mobilidade das articulações. Na fase tardia, a instabilidade vasomotora cede, o edema entra em resolução e o membro atrofia. A pele é fina, o tecido adiposo é escasso, unhas e cabelos tornam-se frágeis e descoloridos. As fáscias palmar e plantar atrofiam e contraem-se, caracterizando a Contratura de Depuytren. Os músculos, ligamentos e tendões estão atrofiados e aderidos, o que limita a movimentação articular.
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