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Introdução ao estudo do direito Eduardo García Maynez Tradução: Brena Braga Faria, 2023 49. SITUAÇÃO DO PROBLEMA. - Ao referir, no n.º 22 do capítulo IV, as várias acepções da palavra direito, definimos a ordem jurídica actual como o conjunto de normas imperativo-atributivas que em determinado tempo e lugar o poder público considera obrigatórias. Da definição anterior infere-se que a atual é a lei do Estado, ou seja, o conjunto de normas criadas ou reconhecidas pela organização política. Para se ter uma noção completa sobre o direito formalmente válido, torna-se, pois, essencial explicar as relações que medeiam o Estado e a ordem jurídica. No capítulo dedicado às fontes formais, vimos como os processos de manifestação dos preceitos do direito estão sujeitos a uma série de requisitos extrínsecos, estabelecidos por outros preceitos do mesmo sistema e, em última instância, pela norma ou constituição fundamental. Mas a ordem jurídica, cujo fundamento último de validade formal reside naquela norma, tem sua base sociológica em uma organização específica, que recebe o nome de Estado. O poder político mantém e garante a ordem jurídica, que assim se torna direito positivo. Por isso, escreveu-se que o Estado é a fonte formal de validade de todo direito, pois são seus órgãos que o criam - pela função legislativa - ou lhe dão tal caráter - aplicando um costume à solução de casos específicos. 50. OS ELEMENTOS DO ESTADO - O Estado costuma ser definido como a organização jurídica de uma sociedade sob um poder de dominação que se exerce sobre determinado território. Tal definição revela que existem três elementos da organização do Estado: população, território e poder. O poder político se manifesta por meio de uma série de normas e atos regulados normativamente, enquanto a população e o território constituem as esferas pessoal e espacial de vigência do ordenamento jurídico. Já foi dito que a organização jurídica sob um poder de comando é o elemento formal, enquanto a população e o território são os elementos materiais do Estado. Mas não se deve esquecer que tanto a população quanto o território são, em todo caso, determinados pelo ordenamento jurídico. Nas seções a seguir examinaremos cada um desses elementos, começando pelo território. Seguiremos em nossa exposição as diretrizes gerais da doutrina de Jellinek. 51. O TERRITÓRIO - Costuma ser definido como a porção do espaço em que o Estado exerce seu poder. Sendo esta de natureza jurídica, só pode ser exercida de acordo com normas, criadas ou reconhecidas pelo próprio Estado. A esfera espacial de validade de tais normas é justamente o território no sentido político. A significação do território se manifesta, segundo Jellinek, de duas formas distintas, uma negativa e outra positiva. O significado negativo é que nenhum poder estrangeiro pode exercer sua autoridade nesta área sem o consentimento do Estado; a positiva, em que todas as pessoas que vivem na mesma área estão sujeitas ao poder do Estado. Sendo a autoridade política o poder social supremo, segue-se que num território só pode haver um Estado. O princípio da "impenetrabilidade" sofre, no entanto, de várias "exceções aparentes" que Jellinek lista na seguinte ordem: 1. Em virtude de um condomínio, ou diga-se, de um coimperiu, é possível que dois ou mais Estados exerçam conjuntamente a sua soberania sobre um único território. Esta situação é sempre temporária e, enquanto perdurar, o espaço em questão não pode ser considerado incorporado à esfera em que cada um dos correligionários normalmente exerce seu poder. Exemplos incluem o caso de Schleswig-Holstein, entre 1864 e 1868, e o da Bósnia-Herzegovina, durante o período em que estava sujeito ao domínio comum da Áustria e da Hungria. 2. Nos Estados federados, o território desempenha dupla função do ponto de vista político, na medida em que o âmbito espacial de vigência dos ordenamentos jurídicos locais é, ao mesmo tempo, uma parcela do território da União. Mas esta circunstância não destrói o princípio da impenetrabilidade, porque os Estados membros fazem parte do Federal. Além disso, os sistemas jurídicos locais estão subordinados, conforme explicamos na seção 43 deste livro, à Constituição e às leis federais. 3. É também possível que um Estado, através da celebração de um tratado, permita a outro praticar determinados atos de império no seu território. O poder de quem concede a autorização fica assim restringido, mas sendo a limitação fundada num ato livremente consentido, mantém-se válido o princípio da impenetrabilidade. 4. Finalmente, e em virtude da ocupação militar, pode acontecer que um território seja total ou parcialmente subtraído ao poder do Estado a que pertence. Nessa hipótese, o poder do ocupado é substituído pelo do ocupante, que é exercido exclusivamente naquela área. 5. Ainda que o território represente o espaço em que vigoram as normas que o Estado cria ou reconhece, é de notar que o poder do Estado não se exerce directamente sobre esse espaço, mas através das pessoas que constituem o Estado população. Domínio implica a ideia de poder legal sobre uma coisa; O império é, ao contrário, um poder de mando que, como tal, sempre se exerce sobre as pessoas. Por isso se afirma que a dominação territorial não pode ser concebida independentemente da autoridade sobre os súditos. Do ponto de vista do direito público, o território é simplesmente a base real para o exercício do imperium. Outro dos atributos do território é a indivisibilidade. Esta nota deriva da mesma natureza da organização política. Se o Estado, como pessoa jurídica, é indivisível, seus elementos devem sê-lo igualmente. A ideia de divisibilidade só pode ser acolhida no quadro de uma concepção patrimonial, e supõe a confusão das noções de dominium e imperium. O princípio que estamos estudando agora às vezes é quebrado. Em virtude de um acordo internacional, como resultado de uma guerra ou por outros motivos (cessão voluntária, retificação de fronteiras, etc.), é possível que uma área do território seja segregada das demais e passe a fazer parte de outra Estado. Quando há uma transferência, ela tem por objeto não a terra morta, mas o império sobre as pessoas que a habitam. O mesmo ocorre no caso da ocupação. A ligação entre o Estado e o território é essencialmente pessoal. "A concepção realista reduz- se, mesmo entre seus últimos representantes, à confusão do poder de mando com o direito de propriedade." Os atributos de impenetrabilidade e indivisibilidade, que preconizamos do território, não devem ser entendidos em sentido material, mas puramente normativo. De fato, a esfera de exercício do imperium é penetrável e divisível. O que ele quer expressar ao falar dessas características é que o território não deve ser penetrado ou dividido. Deve-se notar que a área em que o Estado exerce sua autoridade não é, como comumente se acredita, a área dentro das fronteiras. Na realidade é um espaço tridimensional ou, como diz Kelsen, corpos cônicos cujos vértices se consideram localizados no centro do globo. Só que a área a que aludimos não tem limites ascendentes, uma vez que o Direito Internacional ainda não estabeleceu uma zona "ao ar livre", comparável ao chamado espaço "mar livre". 52. A POPULAÇÃO - Os homens que pertencem a um Estado constituem a sua população. A população desempenha, do ponto de vista jurídico, um duplo papel. Pode, de fato, ser considerado como objeto e como sujeito da atividade estatal. A doutrina agora exporemos tem seu antecedente na distinção, delineada por Rousseau, entre súdito e cidadão. Como súditos, os homens que compõem a população estão sujeitos à autoridade política e, portanto, constituem o objeto do exercício do poder; no que nos interessa, eles participam da formação da vontade geral e são, portanto, sujeitos da atividade doEstado. É, portanto, completamente falsa a tese que concebe esta dividida em duas pessoas distintas, não ligadas por qualquer vínculo jurídico: o soberano, por um lado, e o povo, por outro. Como objeto do imperium, a população se revela como um conjunto de elementos subordinados à atividade do Estado; enquanto sujeitos, os indivíduos que a compõem aparecem como membros da comunidade política, num plano de coordenação. A qualidade de membros da comunidade legalmente organizada supõe necessariamente, naqueles que a possuem, o caráter de pessoas e, portanto, a existência, a favor delas, de uma esfera de direitos subjetivos públicos. O conjunto de direitos que o indivíduo pode fazer valer contra o Estado constitui o que na terminologia jurídica se chama de personalidade jurídica. As faculdades que a integram são de três classes, a saber: 1. Direitos de liberdade; 2. Direitos que se traduzem no poder de requerer a intervenção do Estado em prol de interesses individuais; 3. Direitos políticos 1. A existência de direitos de liberdade significa que as pessoas, como membros da comunidade política, estão sujeitas a um poder limitado. A subordinação do indivíduo é limitada pelo conjunto de deveres que a ordem jurídica lhe impõe. O raio de atuação que resta a cada sujeito, abstração feita de suas obrigações legais, tanto positivas quanto negativas, representa sua liberdade. Como veremos adiante, não se trata de uma liberdade no sentido natural, de um simples poder, mas de uma faculdade reconhecida normativamente. 2. Um segundo grupo de faculdades pertencentes ao estatuto é constituído pelos direitos cujo exercício tende a obter serviços positivos do Estado. Entre esses poderes estão os direitos de ação e petição, bem como a reivindicação de que os primeiros exerçam atividade administrativa a serviço de interesses individuais. Diante dos direitos de liberdade, a posição do Estado, em relação aos indivíduos, é puramente negativa; no caso das faculdades do segundo grupo é, ao contrário, positivo. 3. Não sendo pessoa singular, o Estado só pode agir através dos seus órgãos. A intervenção do indivíduo na vida pública supõe tanto o exercício de direitos como o cumprimento de obrigações. Por isso, entre as faculdades que compõem o estatuto estão, em terceiro lugar, aquelas que permitem aos indivíduos exercer funções orgânicas (votar, ser votado, pegar em armas em defesa da pátria, etc.). Esses poderes, que permitem imputar atos praticados por pessoas físicas à pessoa jurídica do Estado, são chamados de direitos políticos. No capítulo XVIII desta obra nos referiremos especialmente a eles. A sujeição dos indivíduos ao ordenamento jurídico não está apenas ligada à condição de membros do Estado, nem mesmo à de pessoas, mas existe em relação a todos os homens que vivem no território. Dentre os direitos que compõem o estatuto, alguns pertencem exclusivamente aos cidadãos (direitos políticos); outros correspondem a todos os membros do Estado, bem como aos estrangeiros (direito de liberdade, direito de petição em assuntos que não sejam de natureza política, direito de ação, etc.). A pertença ao Estado está condicionada por um vínculo jurídico específico: a nacionalidade. Esta última deve ser distinguida da cidadania, que implica o poder de intervir, como órgão, na vida pública. 53. PODER - Toda sociedade organizada precisa de vontade para dirigi- la. Esta vontade constitui o poder do grupo. Tal poder é, às vezes, de tipo coercitivo; outros carecem desse caráter. O poder simples, ou não coercivo, tem a capacidade de ditar certas prescrições aos membros do grupo, mas não está em condições de assegurar o seu cumprimento por si só, isto é, com os seus próprios meios. Quando uma organização carece de poder coercitivo, os indivíduos que a formam são livres para deixá-la a qualquer momento. Isso aparece claramente até nas organizações não estatais mais poderosas do mundo, como a Igreja Católica. Esta não pode, por si só, obrigar os seus fiéis ou os seus sacerdotes a permanecer no seu seio, a menos que o Estado lhe dê o seu apoio. Se uma organização exerce um poder simples, os meios de que dispõe para sancionar seus mandatos não são coercitivos, mas meramente disciplinares. O poder de dominação é, por outro lado, irresistível. Os mandatos emitidos têm pretensão de validade absoluta, podendo ser impostos de forma violenta, contra a vontade do obrigado. Quando um grupo não estatal exerce um poder de dominação, tem sua renda na vontade do Estado. Isso equivale a sustentar que não é um poder próprio, mas derivado. Tal princípio, universalmente aceito em nossos dias, não possui, porém, valor absoluto. Em tempos em que o poder político não estava consolidado, teria sido impossível portá-lo. Durante a Idade Média, por exemplo, havia grupos não estatais que gozavam, em maior ou menor grau, de poder de dominação independente. Este foi o caso da Igreja Católica, que muitas vezes afirmou sua autoridade mesmo contra o Estado. O mesmo aconteceu com inúmeros senhores feudais, cujo poder nem sempre foi produto de uma delegação de origem estatal. 54. SOBERANIA - Para um grande número de autores, a soberania é um atributo do poder político. Este conceito pode ser caracterizado tanto negativa quanto positivamente. No seu primeiro aspecto implica a negação de qualquer poder superior ao do Estado, ou seja, a ausência e as limitações que lhe são impostas por uma potência estrangeira. O poder soberano é, portanto, o mais alto ou supremo. É também um poder independente. O caráter e a independência se revelam, sobretudo, nas relações com outros poderes; O noa da supremacia aparece mais claramente nos vínculos internos do poder com os indivíduos e coletividades que fazem parte do Estado. Para certas jurisas, a soberania tem um terceiro atributo. O poder soberano, eles declaram, deve ser ilimitado ou ilimitável. Atualmente, esta tese é geralmente repudiada por unanimidade. Mesmo quando o poder soberano é o mais alto e não depende de nenhum outro, ele está sujeito ao direito e, nesse sentido, tem certas restrições. Se o poder político fosse onipotente - diz Jellinek - poderia suprimir a ordem jurídica, introduzir a anarquia e, em uma palavra, destruir a si mesmo. O poder do Estado encontra uma limitação na necessidade de ser poder legal, isto é, poder cujo exercício é regulado por lei. "O Estado pode, é verdade, escolher a sua constituição; mas é essencial que a tenha. A anarquia é uma possibilidade de fato, não de direito." A sujeição da atividade estatal ao ordenamento jurídico não implica a destruição do conceito de soberania, pois as limitações impostas por tal ordenamento decorrem do próprio Estado e, nesse sentido, representam uma autolimitação. No entanto, essa limitação é uma das manifestações da capacidade que o Estado tem de determinar a si mesmo, ou autonomia. O poder do Estado deixaria de ser soberano apenas no caso de as limitações legais impostas ao seu exercício derivarem de um poder estrangeiro (heteronomia). A noção de que falamos é puramente formal, pois nada tem a ver com o conteúdo do poder político. Simplesmente expressa o caráter supremo e independente dele. Um estudo sobre a origem e evolução do mesmo conceito revela que a soberania não é um atributo essencial do poder do Estado, existindo, de facto, Estados soberanos e não soberanos. O da Idade Média, por exemplo, não tinha esse atributo, mas era, no entanto, Estado. E, em nosso tempo, os Estados membros de uma Federação não são, relativamente a ela, soberanos, pois estão sujeitos à constituição geral e às leis federais. É, pois, necessário descobrir os atributos permanentes do poder político, e encontrar um critério que permita distinguir entre o Estado soberano e o não soberano. As seções seguintes serão dedicadas a tal estudo. 55. CAPACIDADEDE ORGANIZAÇÃO E AUTONOMIA - A característica essencial do Estado reside na capacidade de organização, ou seja, por direito próprio. A existência do poder político está condicionada à existência de um órgão independente, encarregado de exercê-lo. Quando um grupo se organiza segundo uma regra emanada de uma potência estrangeira, não é possível atribuir- lhe natureza estatal. Os Estados membros de uma Federação são verdadeiros Estados, justamente porque sua organização se baseia em leis próprias e, antes de tudo, nas constituições locais. Já os municípios não são Estados, pois sua organização se baseia nas leis da comunidade a que pertencem. Algo semelhante pode ser dito, por exemplo, das colônias britânicas, em relação ao Reino Unido. Outro atributo essencial do poder do Estado é a autonomia. Esta consiste na faculdade que as organizações políticas têm de dar a si mesmas suas leis e de agir de acordo com elas. Tal autonomia se manifesta não apenas na criação dos preceitos que determinam a estrutura e o funcionamento do poder, mas também no estabelecimento das normas dirigidas aos indivíduos. É por isso que a ordem jurídica estadual é composta tanto por regras organizacionais quanto por regras comportamentais. A distinção entre Estados soberanos e não soberanos costuma ser formulada da seguinte forma: os primeiros podem por si mesmos, dentro dos limites por eles criados ou reconhecidos, estabelecer livremente o conteúdo de sua própria competência; os últimos, mesmo quando podem ser dadas normas, só têm tal poder dentro dos limites de seu poder estatal. Mas esses limites não representam autolimitação, como no caso de um Estado soberano, mas são baseados na ordem jurídica da comunidade da qual fazem parte. O art. ". E o artigo 40 dispõe: "É da vontade do povo mexicano constituir-se como República federativa representativa, democrática, composta de Estados livres e soberanos em tudo quanto a seu regime interno; mas unidos em uma Federação estabelecida segundo os princípios dessa lei fundamental". O poder político dos Estados Membros da Federação só pode ser exercido, portanto, dentro dos limites que lhe são atribuídos pela Constituição Federal. 56. INDIVIBILIDADE DO PODER POLÍTICO - Dissemos que o Estado constitui uma unidade; daí deriva, como consequência necessária, o princípio da indivisibilidade de seu poder. O princípio da indivisibilidade aplica-se tanto aos Estados soberanos como aos não soberanos. A soberania, atributo essencial do Estado do primeiro tipo, não é suscetível de aumentar ou diminuir. Não há soberania limitada, compartilhada ou dividida. Vários Estados soberanos podem coexistir lado a lado, mas nunca como detentores do mesmo poder. Ao princípio da indivisibilidade parece opor-se a doutrina da divisão dos poderes. O filósofo inglês Hobbes já defendia com grande ênfase, no século XVII, a tese de que a divisibilidade do poder político leva à dissolução do Estado. A este ponto de vista contrapõe-se a célebre doutrina de Montesquieu, segundo a qual no Estado devem existir três poderes, independentes e iguais entre si, que se equilibram reciprocamente. Como Jellinek observou, Montesquieu não considera diferentes poderes com tal unidade. A teoria a que aludimos levou vários autores a negar o caráter unitário da organização estatal e a sustentar que ela se divide "em três pessoas morais diferentes" que se completam. Este foi, por exemplo, o ponto de vista defendido por Kant. Os teóricos da Constituição norte-americana sustentaram, desde o início, que o poder político originalmente pertence ao povo, que o distribui, de acordo com as normas constitucionais, entre os diversos órgãos do Estado. No artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, também foi estabelecido o princípio de que "a soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível...", a fim de resolver a contradição entre tal postulado e os diferentes funções Dos órgãos estatais, Sieyés posteriormente delineou a distinção entre poder constituinte - cujo dono é o povo - e poderes constituídos. Nas constituições dos diversos países, preserva-se o princípio da unidade do Estado, mas admite-se, em maior ou menor grau, a separação dos poderes. O poder estatal unitário e soberano às vezes reside na pessoa do monarca; outros, na cidade. A fórmula mais clara para a solução da antítese foi cunhada por Jellinek, dizendo que cada órgão estatal representa, dentro dos limites de sua competência, o poder do Estado. Assim, pode haver divisão de poderes, sem que o poder seja distribuído. "Qualquer que seja o número de órgãos, o poder do Estado é sempre único." "O povo - lemos no artigo 41 de nossa Constituição Federal - exerce sua soberania por meio dos Poderes da União, nos casos de sua competência, e dos Estados, no que tange aos seus regimes internos, nos termos respectivamente estabelecidos por esta Constituição Federal e pelas particulares dos Estados, que em nenhuma hipótese poderão infringir o disposto no Pacto Federal”. E em 49 fica estabelecido que “o Poder Supremo da Federação se divide, para seu exercício, em Legislativo, Executivo e Judiciário...” Em princípio, cada um dos poderes corresponde a uma função própria: o legislativo ao Congresso, o jurisdicional aos juízes e tribunais, o administrativo ao executivo. Mas a distinção não é absoluta, uma vez que os diversos poderes não exercem exclusivamente a função que lhes é atribuída. Este fato deu origem à distinção entre funções formais e funções materiais. Do ponto de vista material, cada função apresenta características próprias que permitem defini-la, independentemente do órgão estatal que a desempenhe. A função legislativa consiste na formulação de normas jurídicas gerais; a jurisdição estabelece, relativamente a casos concretos, o direito incerto ou controverso; A administração consiste, finalmente, na execução, dentro dos limites estabelecidos por lei, de uma série de tarefas concretas, tendentes à realização de interesses gerais. No sentido formal, as funções não são definidas de acordo com sua natureza, mas em resposta ao corpo que as cumpre. Desse ponto de vista, todo ato do Congresso é formalmente legislativo; formalmente jurisdicional, qualquer ato de juízes ou tribunais; formalmente administrativo, qualquer ato do poder executivo. Disto se infere a possibilidade de um ato ter, do ponto de vista material, um caráter diferente daquele que lhe é atribuído do outro ponto de vista. Por exemplo: o exercício das faculdades que o artigo 73 de nossa Constituição Federal confere ao Congresso da União, para admitir novos Estados ou Territórios; erigir os Territórios em Estados, quando preenchidos os requisitos indicados pela própria Constituição, ou constituir novos Estados nos limites dos existentes, representa, do ponto de vista formal, o desempenho de uma função legislativa; mas, do ponto de vista material, tem caráter administrativo. Da mesma forma, o poder conferido ao Presidente da República de expedir regulamentos, a fim de prever, no âmbito administrativo, a exata observância das leis, é formalmente administrativo, mas materialmente legislativo. Por último, os poderes exercidos pelo Supremo Tribunal de Justiça na nomeação dos juízes de comarca e dos magistrados de comarca são materialmente administrativos, ainda que do ponto de vista formal sejam jurisdicionais; ao mudar de residência ou ao nomear o Secretário e os funcionários do próprio Tribunal. 57. A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO - Definimos o Estado como a organização jurídica de uma sociedade sob um poder de dominação que se exerce sobre um determinado território. O Estado é, portanto, uma forma de organização, e tal organização é de natureza jurídica. Por organização entende-se - diz Ehrilich - "a regra da associação que atribui a cada membro dela sua posição dentrodela (seja de dominação ou de sujeição), e as funções que lhe correspondem. As regras relativas à organização fundamental do Estado são chamadas de constituição. A constituição do Estado inclui - segundo Jellinek - "as regras jurídicas que determinam os órgãos supremos deste; sua forma de criação; suas relações recíprocas; sua competência, e a posição de cada um em relação ao poder estatal". A palavra constituição não se aplica apenas à estrutura da organização política, mas também - especialmente nos tempos modernos - ao documento que contém as regras relativas à referida organização (constituição no sentido formal). A ideia da constituição como norma fundamental foi formulada pela primeira vez no século XVI. Na França, na época de Henrique IV, Loyseau sustentava que o poder real encontra sérias limitações nas "leis fundamentais do Estado". E Hobbes, em sua obra "Leviahan", escreve que a lei fundamental é aquela "cuja abolição traria a ruína do corpo social e causaria a completa anarquia". Esta lei tem origem, segundo o mesmo autor, no contrato que serve de base à organização do Estado. A ideia de que a Constituição emana de um contrato celebrado por particulares para estabelecer o poder político reaparece, com variações de maior ou menor importância, nas doutrinas da época sobre o direito natural. Mas o conceito de lei suprema, no sentido de uma carta, está apenas começando a ter importância prática nas colônias inglesas da América do Norte. Sua organização foi estabelecida em uma série de Cartas emitidas pelos Reis da Inglaterra, nas quais foram estabelecidos os princípios fundamentais de seu governo e organização administrativa: "As Ordens Fundamentais de Connecticut, aparecendo na forma de um contrato celebrado pelos colonos, eles constituem o núcleo principal da Carta outorgada por Carlos II à Colônia, confirmada pelo povo em 1776 como a constituição do Estado livre e substituída por uma nova constituição em 1818. Da mesma forma, a colônia de Rhode-Island, fundada por Roger Williams com base em contrato de colonização, recebeu de Carlos II em 1663 uma Carta que confirmava as instituições já existentes e serviu de constituição àquele Estado até 1842. As Cartas de ambos os Estados da confederação americana são, portanto, as duas mais antigas cartas no sentido moderno da palavra (JELLINEK, op. cit., II, p. 183) Quando estourou a Revolução Americana, as 13 colônias tinham Cartas dessa natureza. As duas ideias que serviram de base a tais documentos são, por um lado, a do contrato fundamental celebrado pelos membros da comunidade e, por outro, a de uma concessão emanada do poder régio. Essa última ideia foi enfraquecendo gradativamente, enquanto a tese de que a constituição é resultado de um contrato foi se fortalecendo cada vez mais. Nas Cartas das colônias inglesas da América, foi consagrado o princípio da divisão dos poderes, bem como o da limitação do poder legislativo de cada colônia. Tal poder tinha um limite nas próprias Cartas e na lei inglesa. Qualquer disposição legal contrária às Cartas concedidas pelo Rei ou à legislação do reino, poderia ser declarada nula e sem efeito pelo conselho privado britânico. Dessa forma, começou a tomar corpo a ideia da constituição como lei fundamental ou suprema, ou seja, como norma das normas. Isso significa, por um lado, que a constituição serve de base ou fundamento para outras leis e, por outro, que a legislação ordinária está subordinada à ordem constitucional. Quando as colónias se tornaram independentes e se tornaram Estados, promulgaram, naquele e nos anos seguintes, as suas diferentes Constituições, de acordo com os princípios da soberania popular e da divisão dos poderes. Tais documentos exerceram influência decisiva na Assembleia Constituinte francesa de 1789-1791 e, através das constituições da França, no restante da Europa e América. As Cartas de Direitos não constavam das Cartas coloniais, ou pelo menos não tinham a extensão que alcançaram posteriormente. O Bill of Rights contém uma enumeração de direitos subjetivos públicos; o Plan of Government determina a estrutura fundamental do Estado. Quando a Constituição Federal Americana foi promulgada em 1787, nenhuma Declaração de Direitos foi incluída nela. Mas em 1789 foram adicionados mais 10 artigos, como a Bill of Rights para toda a União. Atualmente, as duas partes principais das constituições modernas são freqüentemente chamadas de Parte Dogmática (que corresponde essencialmente à Bill of Rights) e Parte Orgânica (para o Plan of Government). A ideia de que a constituição é a regra fundamental deriva de duas considerações principais. Em primeiro lugar, as normas constitucionais - nos países que têm constituição escrita - estão acima da legislação ordinária e só podem ser modificadas segundo um procedimento muito mais complicado e demorado do que aquele que deve ser seguido para a elaboração das demais .leis; em segundo lugar, tais normas representam o fundamento formal de validade dos preceitos legais de nível inferior. Este último aspecto foi definitivamente esclarecido pela teoria da ordem hierárquica dos preceitos do direito, elaborada por Merkl, Kelsen e Verdross. Em países que não possuem constituição escrita, como a Inglaterra, a ordem constitucional não é definida segundo características formais, mas segundo um critério material. Por constituição entende-se então a estrutura fundamental do Estado, ou seja, a forma de organização política, a competência dos diversos poderes e os princípios relativos ao “status” das pessoas. As constituições modernas costumam ser divididas em dois grupos: rígidas e flexíveis. As do primeiro grupo são aquelas que não podem ser modificadas na forma estabelecida para a elaboração ou modificação das leis ordinárias; as da segunda não indicam nenhuma diferença de ordem foral entre as leis ordinárias e a constituição e, portanto, a reforma desta pode ser feita da mesma forma que a da primeira. A Constituição Federal Americana e a Constituição Inglesa são os dois exemplos típicos de uma constituição rígida e uma constituição flexível. A de nosso país pertence à primeira categoria, pois sua reforma está sujeita a exigências maiores do que as exigidas para a modificação das leis ordinárias.