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Autor: Prof. Renato Bulcão Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva Profa. Angélica Carlini Fundamentos da Ciência Política SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Professor conteudista: Renato Bulcão O professor Renato Bulcão estudou Filosofia e fez o mestrado em Comunicação na USP. Participou do laboratório Escola do Futuro, que desde a década de 1990 pesquisou e promoveu o ensino a distância. Atua em várias instituições como professor de Filosofia, abordando especialmente as questões de estética, enquanto desenvolve seu doutorado. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B933i Zacariotto, William Antonio Fundamentos da ciência política. / Renato Bulcão. – São Paulo: Editora Sol, 2015. 188 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XIX, n. 2-068/15, ISSN 1517-9230. 1. Ciência política. 2. História da política. 3. Política moderna. I.Título. CDU 32 XIX SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Giovanna Oliveira SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Sumário Fundamentos da Ciência Política APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 A POLÍTICA E OS SEUS SENTIDOS ................................................................................................................9 1.1 O estado de natureza e o meio ambiente ................................................................................. 12 1.2 Uma breve investigação sobre a igualdade ............................................................................... 16 1.3 A autoridade na Idade Medieval ................................................................................................... 19 1.4 A compreensão da política ............................................................................................................... 20 1.5 A política é uma expressão da sociedade ................................................................................... 23 1.6 O liberalismo e a defesa do indivíduo ......................................................................................... 27 1.7 A construção histórica do nacionalismo .................................................................................... 29 1.8 Como foi estabelecida a atual cultura política conservadora .......................................... 32 1.9 O espaço da Sociologia ...................................................................................................................... 35 2 A CONSTRUÇÃO DA CULTURA POLÍTICA MODERNA ....................................................................... 39 2.1 Política e poder ..................................................................................................................................... 41 2.2 A história da ditadura ......................................................................................................................... 44 2.3 A cultura política contemporânea ................................................................................................ 45 2.4 A política da opressão ........................................................................................................................ 51 2.5 Fundamentos do poder político ..................................................................................................... 51 2.6 Breve história da força ...................................................................................................................... 55 2.7 A instituição da Ciência Política ..................................................................................................... 55 2.8 O Estado é consequência da Ciência Política ............................................................................ 57 2.9 O Estado nacional ................................................................................................................................ 60 Unidade II 3 A DEMOCRACIA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA..................................................................................... 69 3.1 O nascimento da política .................................................................................................................. 69 3.1.1 A política dos cidadãos ressurge em Roma.................................................................................. 74 3.1.2 O idealismo de Platão ........................................................................................................................... 76 3.1.3 A influência de Platão através de séculos de Filosofia ............................................................ 78 3.1.4 O realismo de Aristóteles ..................................................................................................................... 81 4 ROMA E O PENSAMENTO REPÚBLICANO .............................................................................................. 86 4.1 A República e a cidadania: classes sociais e eleições ............................................................ 90 4.2 A organização da República............................................................................................................. 91 4.3 O pensamento de Marco Túlio Cícero .......................................................................................... 94 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade III 5 AS BASES DO PODER TEOCRÁTICO ........................................................................................................103 5.1 Breve introdução à fundação do judaísmo e seu monoteísmo ......................................105 5.2 As diferenças entre os romanos e os cristãos .........................................................................106 5.3 A fundação da teocracia .................................................................................................................107 5.4 Da religião à política .........................................................................................................................1085.5 O controle do pensamento e das terras ....................................................................................110 5.6 A ideia de religião depois da Idade Média ...............................................................................113 5.7 Santo Agostinho e a filosofia patrística ....................................................................................115 5.8 Santo Tomás de Aquino ...................................................................................................................122 6 A RACIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA COM MAQUIAVEL ....................................................................126 6.1 O Príncipe – Resumo da obra ........................................................................................................129 6.1.1 A década de Tito Lívio – a releitura de Maquiavel da República Romana ............................. 133 Unidade IV 7 A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO ..................................................................................................143 7.1 A forma de utilização das ideias .................................................................................................147 7.2 A política como forma de organizar a vida social ................................................................150 7.3 A contribuição romana ....................................................................................................................153 7.4 Democracia e cidadania .................................................................................................................155 7.5 Os ideais socialistas ...........................................................................................................................156 7.6 Liberalismo e socialismo .................................................................................................................157 7.7 As ideias filosóficas que dão suporte ao liberalismo e ao socialismo modernos .....160 8 AS QUESTÕES DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ........................................................................................165 8.1 A questão dos partidos políticos ..................................................................................................171 7 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 APRESENTAÇÃO Os fundamentos da Ciência Política são em princípio as formulações filosóficas que antecederam a criação das Ciências Humanas. Estas últimas foram desenvolvidas na prática a partir do século XIX. É preciso ter claro que a diferença principal entre a Filosofia e a Ciência é que esta precisa ser comprovada com a possibilidade de repetição de um determinado experimento. Quando aquecemos a água e ela se transforma em vapor, modificando seu estado físico, mas não a sua composição química, isso pode ser comprovado por qualquer pessoa. Então a Ciência Humana deve sugerir que determinados fenômenos que acontecem em decorrência do comportamento humano podem ser repetidos caso algumas regras sejam respeitadas. Em outras palavras, as Ciências Humanas tentam decifrar as regras que determinam o comportamento humano, através da Sociologia, da Psicologia, da Economia e de algumas outras modalidades. Este livro-texto traz para seu leitor a possibilidade de descobrir a origem de determinados pensamentos que estão presentes na vida cotidiana. Muitas das ideias que pensamos hoje já tinham sido pensadas séculos atrás. Então certas ideias que fundamentam a política moderna, tais como os conceitos de justiça, poder e liberdade, já estavam sendo discutidas séculos antes do nascimento de Jesus Cristo. Entender as teorias modernas da Ciência Política é aprender como tais ideias chegaram até os nossos dias. Hoje em dia, concordamos que foi o italiano Maquiavel quem primeiro percebeu que, para construirmos uma nação, é necessária uma política que se impõe de cima para baixo, em favor dos habitantes de um território. O inglês Hobbes foi quem pensou de forma racional a organização do poder para a construção do Estado. Ele percebeu que a política é uma atividade diferente da religião e da moral e serve para criar e impor a verdade, ou seja, ideias que as pessoas conseguem entender, o que é melhor do que simplesmente criar ideias nas quais as pessoas precisam acreditar. Estudar os fundamentos da Ciência Política não faz ninguém mudar de religião, mas eventualmente pode sugerir um novo entendimento do que é a política. No nosso caso, a política é o nosso objeto de estudo; por isso, vamos tentar entender como esta se constituiu ao longo dos séculos e como devemos começar a estudá-la. INTRODUÇÃO A diferença entre estudar as teorias políticas e os fundamentos da Ciência Política é perceber que as teorias políticas podem ser baseadas em ideias que não são passíveis de ser cumpridas pelos seres humanos. Já a Ciência Política estuda apenas como essas teorias aconteceram na prática, tentando verificar o que funcionou bem e quais as suas consequências para a sociedade humana. Seguindo os preceitos científicos desenvolvidos a partir do Renascimento e estruturados pelo Iluminismo, não desejamos separar as formas políticas em boas ou más. O importante é verificarmos como as ideias causam efeitos e consequências na vida das pessoas. 8 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Este texto tem forte influência filosófica e não julga os acontecimentos a partir de seus resultados históricos. Também não sugere que fatos como a escravidão foram certos ou errados, apenas se contenta em perceber que existiram na vida dos seres humanos. Assim, a leitura deve sempre ser acompanhada da reflexão do aluno sobre aquilo que está lendo. Como os fatos narrados dizem respeito aproximado à época em que eles surgiram, não comparamos ou discutimos a ideia de escravidão na Grécia, em Roma e no Brasil. Mas as conclusões sobre o que aconteceu com as sociedades escravagistas no passado servem para que possamos fazer a ponte sobre a nossa própria história. Isto vale do mesmo modo para as ideias de formas de governo corruptas e degeneradas, e as ações públicas que os governantes tomam e são impopulares, mas necessárias para o bem-estar do povo. O importante é que o aluno perceba que apesar de o ser humano existir na Terra há aproximadamente 150 mil anos e dispormos de uma história escrita aproximada apenas nos últimos 5 mil anos, já acumulamos experiências suficientes para distinguirmos o que é bom, ruim e conveniente para a organização política da sociedade. 9 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA Unidade I 1 A POLÍTICA E OS SEUS SENTIDOS Para desvendarmos os sentidos da política, precisamos antes pensar na cultura que a sustenta. Política é uma atividade que varia de acordo com cada cidade, com cada país. A atividade política é um aspecto da atividade cultural de uma sociedade que acaba influenciando as suas atividades socioeconômicas. Aquilo que é comido depende daquilo que é plantado. Aquilo que é construído depende da forma que é utilizado. As formas de uso são dadas pela cultura. Mas cultura, assim como política, não é um substantivo com uma definição simples. Para aquilo que nos interessa, podemos dar à cultura um sentido mais simples: um conjunto de normas, valores e símbolos que constroem a ideia de tradição de uma sociedade. Limitamos aqui a cultura às representações evidentes que os atores sociais têm de si mesmos. Em outras palavras, cultura é o que as pessoas acreditam que seja uma expressão das ideias delas mesmas.Esses atores reconhecem que a comunidade a que pertencem contribui para a orientação de suas atitudes. O motivo disso é que toda ação humana está inscrita num contexto, desenhado em grande parte pela situação geográfica. Uma cidade à beira-mar tem o mar como influência. Uma cidade no meio das montanhas tem os vales como ponto de referência. Uma cidade à beira de um deserto tem uma relação muito especial com a água. O comportamento humano nos diversos ambientes acaba por formar hábitos e costumes. Hábitos são ações que se repetem diariamente na vida do indivíduo. Costumes são a forma que os indivíduos de um determinado local escolhem para realizar estas ações. Em todos os lugares do mundo é hábito se alimentar, mas os costumes locais vão determinar as diferenças na culinária de cada lugar. O hábito deriva de uma necessidade humana; o costume é construído pela facilidade de criar um hábito. Os costumes formam a tradição, e a tradição cria a herança cultural. Ambas formam padrões de comportamento no campo social e na atividade política. Isso não impede que novidades sejam introduzidas nessas comunidades, mas sempre tais novidades precisam de informação e medidas educativas para que sejam adotadas. Quando olhamos a atividade política de uma sociedade, verificamos de que forma ela se manifesta como parte da ação cultural daquela sociedade. Sempre há um grupo preocupado com a herança cultural da sociedade, que podemos chamar de tradição. A tradição apela sempre à manutenção de costumes do passado. Se minha avó fazia e dava certo, prefiro continuar fazendo assim. Esses costumes formam a tradição simbólica de uma sociedade e afetam seu processo político. 10 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I A tradição simbólica permite que as pessoas construam suas representações sobre as instituições políticas e sobre a prática associativa e colaborativa. No passado, esse papel social estava diretamente ligado às funções e profissões que as pessoas exerciam. Um pescador vestia roupas de pescador, falava como um pescador e treinava seus filhos para serem pescadores. Ora, sabemos que não existem regras fixas para as categorias roupas de pescador ou palavras de pescador. Mas, mesmo assim, o pescador, enquanto ator social, acredita que ele habite a sua aldeia com uma participação especial: a construção da representação de si mesmo. As representações são os indícios que permitem investigar o comportamento político dos atores sociais. Cada grupo que forma a sociedade, sejam familiares ou profissionais, exibe seus costumes e seus humores em relação à vida pública. Podemos até mesmo fazer uma pesquisa para sabermos como cada grupo pensa, verificando sua aprovação ou desaprovação sobre determinadas questões. Tais questões podem ser a adesão às normas ou a transgressão das normas, seu engajamento político num assunto ou sua apatia pelos problemas que afetam outras pessoas. Quando pesquisamos e analisamos a participação política de um grupo dentro de uma sociedade, ou de toda uma cidade, ou mesmo de um país, estamos fazendo ciência política. As análises sobre a cultura política indicam hoje em dia a preocupação com o funcionamento da democracia. Esse ideal moderno de uma sociedade livre e igualitária é tentado em várias sociedades, e até hoje temos dificuldades em implementá-lo. Os princípios políticos da democracia, na sua versão construída pelos filósofos do Iluminismo, vingaram de forma diferente em cada sociedade. Quando fazemos estudos comparativos entre as sociedades, percebemos quais características democráticas são importantes para cada sociedade. Isso significa que existem formas diferentes de as pessoas se sentirem livres e iguais. Há um consenso de que a base da liberdade política é um contrato social, expresso através de uma Constituição que assegura deveres e direitos aos cidadãos. Na política moderna é importante que as sociedades instituam um aparato legal que opere como pilar social. Alguns países, como os Estados Unidos da América, mantêm a mesma Constituição desde 1789, com apenas 27 emendas, que são apêndices ao texto original. Outros, como o Brasil, produziram muitas Constituições, demonstrando uma necessidade histórica de rediscutir o projeto de nação. Saiba mais A Constituição Brasileira de 1988 é a que rege atualmente o Brasil. Uma Constituição é um contrato civil que determina as bases de relacionamento das pessoas numa República. Consulte o texto: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm>. Acesso em: 10 abr. 2014. 11 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA As leis representam acordos públicos, e pensamos que isso deva ser a forma de expressar o consenso daquela sociedade. Mas como o número de humanos cresceu por muito tempo sem que houvesse instrumentos de comunicação capazes de lidar com o crescimento da população, o Iluminismo pensou a democracia representativa com três poderes para resolver este problema. O Poder Legislativo deve ser formado por representantes do povo, escolhidos num processo eleitoral que seja lícito e permita a representação de posições divergentes. O Poder Executivo, também eleito legitimamente, deve administrar. O Poder Judiciário deve demonstrar autonomia em relação ao Executivo e é outro fundamento para a democracia. É interessante notar que, na maioria dos países, o Poder Judiciário constitui um corpo estável de funcionários públicos, que não são votados, mas escolhidos através de concursos públicos apenas entre uma classe de profissionais, que são os advogados. Encontramos em muitos países essa condição formal do Estado democrático, mas as diferenças de classes e sua inevitável desigualdade de acesso às instâncias políticas acabam excluindo da participação aqueles com maiores dificuldades socioeconômicas. Nesse sentido, é importante que a educação para a política seja parte integrante dos esforços culturais de uma sociedade. A sociedade politicamente moderna não exibe apenas uma fachada formal de constituição dos três poderes. A democracia contemporânea exige a transformação da realidade através da cultura política – processo que promove a participação do cidadão e pretende também favorecer uma diminuição das desigualdades sociais. Quando a cultura de uma sociedade permite, através da educação, que os valores cívicos sejam sedimentados na cultura, a política se torna decorrência destes valores. Este tipo de cultura possibilita a formação de cidadãos participativos. Por outro lado, algumas sociedades insistem em manter valores tradicionais, que permitem uma cultura que pretende privilegiar poucos e subjugar a maioria das pessoas. Neste sentido, os valores individualistas apoiados pelo exercício da força acabam causando a apatia da maioria. A política acaba sendo apropriada por interesses de grupos particulares. A Ciência Política pesquisa, portanto, quais os valores dos indivíduos dos grupos que formam uma sociedade. Pesquisas de opinião medem a evolução da cultura política e seus efeitos sobre as instituições. Percebemos também mudanças dos valores políticos em determinadas gerações, ou como consequência de desastres naturais, ou promovidos pelos seres humanos. Um comentário interessante do filósofo Mário Sérgio Cortella é que no Brasil “política é coisa de idiota” (CORTELLA; RIBEIRO, 2010, p. 7). O termo original idiótes, em grego, significa aquele que só vive a vida privada, que recusa a política, que diz não à política. No cotidiano, foi feita uma inversão do sentidooriginal de idiota. Sua expressão generalizada é: “Não me meto em política”. Estudar a participação política através do comportamento dos grupos sociais é tarefa proposta pelo cientista político norte-americano Robert Putnam. Para ele, a eficiência das instituições políticas não é fator suficiente para que a democracia funcione. Também não explica os motivos dos avanços em direção à liberdade e à igualdade em alguns países. Putnam (1997) realizou uma pesquisa comparativa, 12 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I com cidades italianas que dispunham dos mesmos equipamentos institucionais. Segundo ele, o capital social é um fator fundamental para avaliarmos o funcionamento das instituições democráticas. O capital social é o conjunto dos valores e procedimentos normativos sociais que permitem a confiança mútua entre os cidadãos. A confiança opera como elemento de agregação, facilitando a colaboração entre as pessoas e multiplicando os laços associativos. Quando o capital social de uma determinada cultura política é positivo, contribui para o funcionamento das instituições democráticas. Os cientistas políticos discutem hoje em dia se são as instituições que determinam a construção da democracia ou se é a cultura política que influencia esse processo. Neste sentido, Cortella e Ribeiro (2010) comentam: Vou pensar a mesma coisa numa outra frequência: a ideia de democracia é uma ideia que ganha configuração no Ocidente. Não é uma ideia oriental, asiática, do ponto de vista de ação política pública. Se voltarmos nosso olhar para a Índia e a China, por exemplo, para focar duas nações que provavelmente terão o domínio do século XXI, a China adota uma prática confucionista, na qual é forte a noção de dever na tradição, e a lógica do indivíduo está conectada ao imediato da família. Portanto, o “não me importo” é muito sério em uma sociedade que tem formação confucionista: “Não me importo fora do campo da minha comunidade imediata”. Na Índia, em que vigora a noção de casta, a possibilidade de pensar a democracia alcança menos valor do que teve a independência. É curioso supor que um país que conserva, ainda hoje, a organização por castas – apesar de não formalmente, porque a lei não permite, mas é o que existe na prática –, tenha conseguido levar a população a lutar pela independência. Embora a democracia seja uma invenção, digamos, ocidental, isso não quer dizer que ela não possa ser universalizada. Ao contrário, precisa ser universalizada. No entanto, nem no seu próprio berço, no século V a.C., ela era valorizada como o foi depois (CORTELLA; RIBEIRO, 2010, p. 45). 1.1 O estado de natureza e o meio ambiente Toda vez que os pensadores da civilização propuseram alguma forma de organização política, se reportaram ao estado de natureza. Isso é simplificado na tradição judaico-cristã como o tempo em que o ser humano viveu no paraíso. Mas, para os pensadores, o estado de natureza de alguma forma sempre foi visto como um momento de grande dificuldade para a humanidade. Essa dificuldade sempre foi determinada como uma dificuldade de sobrevivência. 13 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA Platão escreveu no III Livro de Leis sobre a condição em que os homens ficaram depois da destruição de suas cidades por enormes catástrofes: Esta é a condição dos homens depois da catástrofe: uma terrível e ilimitada solidão, a terra imensa e abandonada; mortos quase todos os animais e os bovinos, sobrou apenas um pequeno grupo de cabras, qual mísero resto, para que os pastores recomeçassem a vida (PLATÃO, 2010, p. 677). Por outro lado, Sêneca exaltou o estado de natureza como uma condição ideal para o ser humano. Ele descreveu a idade de ouro, em que os homens eram inocentes, felizes e viviam com simplicidade, sem necessidade de bens supérfluos. Não tinham necessidade de governo ou de leis, porque obedeciam aos mais sábios. Mas o progresso da técnica trouxe a ganância e a corrupção (SÊNECA, 1970), por isso foi necessária a instituição do Estado. Outra descrição dura do estado de natureza foi feita por Hobbes, que sugeriu que o estado de natureza foi a guerra de todos contra todos: “Enquanto vivem sem um poder comum ao qual estejam sujeitos, os homens encontram-se na condição que chamamos de guerra, e tal guerra é de um homem contra o outro”. Isto acontece porque, sendo iguais por natureza, os homens também têm os mesmos desejos e, desejando as mesmas coisas, procuram preponderar uns sobre os outros (HOBBES, 2008, p. 13). A fundação do Estado, de um poder soberano, é o único meio para sair da condição de guerra, própria do estado de natureza. No Iluminismo, durante o século XVIII, o estado de natureza volta a ser elogiado por Jean Jacques Rousseau. Antes dele, Locke já pensava o estado de natureza como um estado de perfeição. Para ele, na medida em que cada um, através da liberdade de suas próprias ações, pudesse manter suas posses sem a permissão de nenhuma estrutura de poder hierarquizada, seria um estado de perfeita liberdade (LOCKE, 2006). De alguma forma, vemos que essa descrição é muito parecida com as descrições idealizadas do funcionamento de uma tribo de índios. Rousseau exaltou a perfeição desta concepção do estado de natureza no livro Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, com o argumento de que nessa condição o homem obedece apenas ao instinto, que é infalível (ROUSSEAU, 1978). No seu tratado sobre educação, Emílio, Rousseau afirmou que tudo o que era criado por Deus seria perfeito – portanto, toda a natureza. Mas aquilo que o homem tocava acabava por degenerar (ROUSSEAU, 2014). Para Rousseau, o estado de natureza seria o critério para julgar a sociedade presente e construir um ideal de progresso. Sua proposta para um estado de civilização seria alcançado com um contrato social. Para Kant, no estado de natureza não prevalecia nenhuma justiça; portanto, não há como se falar em um estado de perfeição para o convívio humano (KANT, 2013). Hegel acreditou que o estado de natureza fosse um conceito equivocado no qual estaria incluída a premissa de que há um direito natural. Segundo ele, a interpretação do “direito natural” como algo presente no estado de natureza difere do direito determinado pela natureza da coisa (KANT, 1989). Depois de Hegel, a noção de estado 14 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I de natureza deixou de ser estudada pelos filósofos, mas permanece até hoje no senso comum, por causa da força que essa fantasia encontra no pensamento religioso e no pensamento utópico. Também no pensamento sociológico o estado de natureza é visto muitas vezes como a condição humana antes da constituição da sociedade civil, e isso é uma herança do pensamento contratualista, que também fundamenta muito do pensamento do direito até hoje. Já a noção de natureza como sinônimo de meio ambiente percorreu um vasto caminho histórico. Aristóteles pensava o ambiente através de suas observações da influência das condições físicas, especialmente do clima, sobre a vida dos animais e do homem em particular, inclusive da sua vida política (ARISTÓTELES, 2008). Em 1648, no século XVII, Montesquieu (2005) supôs que o clima atuasse de forma importante sobre a formação do caráter e das paixões dos seres humanos. As leis de cada povo de alguma forma espelhavam essas diferenças. Então a consequência da junção entre essas duas ideias era de que o meio ambiente é determinado pelanatureza do local. A principal diferença entre o estado de natureza e a atual noção de meio ambiente é que o estado de natureza não tinha tamanho limitado. Todo o planeta vivia no estado de natureza. Hoje sabemos que cada parte do planeta acaba se diferenciando da outra, tanto pelo clima como pela fauna e flora, que estão presentes, e isso configura diversos ambientes. O meio ambiente é um complexo de relações entre o mundo natural e o ser vivo, que influi na vida e no comportamento do ser humano. Tal noção tem como primeiro registro mais aceito a obra do biólogo Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1835). Augusto Comte (1978) adotou o termo com o mesmo sentido, e assim nós o utilizamos até hoje. O positivismo atribuiu ao ambiente físico e biológico a causa determinante de todos os fenômenos propriamente humanos, desde a literatura até a política. A obra de Hippolyte Taine contribuiu para a difusão da tese de que os ambientes físico, biológico e social sempre determinam todos os produtos e valores humanos, e isso basta para explicá-los. Em Filosofia da Arte na Grécia, de 1865 (1970), Taine afirmou que a obra de arte é produto necessário do ambiente e que, por isso, pode-se inferir dele não só o desenvolvimento das formas gerais da imaginação humana como também a explicação para as variações de estilos, as diferenças de escolas nacionais e até mesmo os caracteres gerais das obras individuais (TAINE, 2009). Esta é a noção que permanece até hoje. A noção de ambiente, ou meio ambiente, continua fundamental para as ciências biológicas, antropológicas e sociológicas. Mas o conceito original de Taine foi se diluindo gradualmente. Não existe uma relação mecânica e automática entre o ambiente e o organismo, nem entre o ser humano e o grupo social. Não se acredita mais que exista uma relação de determinismo causal absoluto entre as duas coisas. Em 1934, Kurt Goldstein percebeu que a ação seletiva do ser, sobre o qual o ambiente age, “[...] não é algo acabado, mas vai-se formando continuamente, à medida que o organismo vive e age. Poder-se-ia dizer que o ambiente é extraído do mundo pela existência do organismo, ou, mais objetivamente, que um 15 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA organismo não pode[rá] existir se não conseguir encontrar no mundo, talhar nele, para si, um ambiente adequado, contanto, naturalmente, que o mundo lhe ofereça essa possibilidade” (GOLDSTEIN, 2000). Da mesma forma, Arnold Toynbee (1987) escreveu: O ambiente total, geográfico e social, em que está compreendido tanto o elemento humano quanto o não humano, não pode ser considerado um fator positivo a partir do qual as civilizações foram geradas. É claro que uma combinação virtualmente idêntica dos dois elementos do ambiente pode originar uma civilização num caso e deixar de originá-la em outro, sem que seja possível, de nossa parte, explicar essa diferença absoluta em seu surgimento com alguma diferença substancial nas circunstâncias, por mais exatos que tenham sido os termos da comparação (TONYBEE, 1987). Há uma ação do ambiente sobre a vida e sobre as criações dos seres humanos, mas que deve ser entendida como causa, e não como princípio da ação. George Herbet Mead disse: “O ambiente é uma seleção dependente da forma viva” (MEAD et al.,1938). Quando Heidegger analisou o ser no mundo, afirmou que a determinação essencial da existência é existir no mundo, pois sem existir no mundo não se existe. Ele questionou a noção de ambiente, sugerindo que a biologia apenas pressupõe o que é ambiente (HEIDEGGER, 2006). Você deve entender que toda forma de organização social surge quando os seres humanos se organizam para sobreviver na natureza. Sobreviver na natureza, sem a construção de aldeias e nenhuma organização social além de um grupo de seres vagando por savanas e se escondendo em cavernas, é o que caracteriza o estado de natureza. Há muita dúvida sobre como começa de fato a organização social. Alguns sugerem que é antes da fundação das aldeias, quando as famílias se organizam em tribos nômades vivendo da caça e da colheita de frutas e tubérculos. Outros sugerem que é no momento em que começam a enterrar seus mortos. Há também outra linha de pensamento, que considera apenas o momento em que a agricultura é desenvolvida, criando a necessidade da construção das aldeias em volta dos campos. Porém, todos os pensadores antigos e modernos concordam com a ideia de que não teria sido possível começar a construir aldeias se não houvesse algum nível de entendimento entre eles, um combinado que permitia alguma organização das tarefas necessárias para o sucesso da agricultura. É isso que é chamado de contrato. As pessoas contrataram (mesmo que apenas verbalmente) suas tarefas. Observação Ao longo deste livro, assim como aconteceu ao longo da história, a discussão será sempre como e por que a liberdade, a justiça e toda a organização social foram construídas pelos seres humanos, para evitarem a volta ao estado de natureza e facilitar sua sobrevivência no mundo. 16 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I 1.2 Uma breve investigação sobre a igualdade Para o ser humano moderno, a democracia é um ideal. Mas nenhuma democracia pode existir sem que se aceite o princípio de igualdade. Vamos examinar como se pode determinar a igualdade dos seres humanos. Já percebemos que o meio ambiente influencia o desenvolvimento dos seres humanos, mas, por algum motivo que ainda desconhecemos, isso acontece de forma diferente para cada ser e para cada grupo de seres humanos. Para que os seres humanos se entendam como iguais, é necessário estabelecer um contrato entre eles. A isso se dá o nome contrato social. Para que haja um contrato social, é necessário que se parta do princípio desenvolvido por Rousseau, de que todos são iguais perante a lei, que é a base da sociedade contratualista. A discussão do que é igualdade, porém, trilhou um longo caminho até que se pudesse formular essa ideia. Para Aristóteles, o significado de igualdade deveria ser entendido como uma categoria de quantidade. Assim, para ele, são iguais as coisas “[...] que têm em comum a quantidade” (ARISTÓTELES, 2012). Para Leibniz (2004), igualdade é a relação entre dois termos, quando um pode substituir o outro. Dois termos são considerados iguais quando podem ser substituídos um pelo outro no mesmo contexto, sem que mude o valor do contexto. A noção de igualdade como possibilidade de substituição serve tanto para as relações puramente formais de equivalência matemática quanto para as relações políticas, morais e jurídicas. Assim, a igualdade dos cidadãos perante a lei é a possibilidade de substituição dos cidadãos nas situações previstas pela lei, sem que mude o procedimento desta. Nesse sentido, Charles Sanders Peirce [s.d.] insistiu que a igualdade moral ou jurídica de uma pessoa numa determinada condição não pode ser diferente daquela de outra pessoa nas mesmas condições. Portanto, o juízo de igualdade só pode existir dentro de um contexto, que serve para a determinação das condições às quais os termos devem satisfazer para serem considerados substituíveis. Isso significa que a autoridade deve ser instituída para que se resguarde o valor da igualdade de todos os indivíduos de uma sociedade. Um policial ou um juiz deveriam, portanto, entender que todas as pessoas devem receber igual tratamento. Mas sabemos que isso não acontece sempre, porque inventamos os fundamentos da autoridade em cada sociedade, já que eles não existem no estado de natureza. Chamamos de autoridade todo poder exercido por um homem ouum grupo sobre outro homem ou todo um grupamento social. Tal relação existe numa infinidade de casos. Temos a autoridade do Estado, a dos partidos políticos, a da Igreja, mas também a autoridade do cientista. Todo poder de controle sobre as opiniões e os comportamentos individuais ou coletivos é chamado de autoridade. 17 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA Mas, para a Filosofia, qual a justificativa da autoridade? Como podemos validar o princípio da autoridade? O problema filosófico da autoridade diz respeito à sua justificativa, isto é, ao fundamento sobre o qual sua validade está fundamentada. A primeira teoria para tal fundamento vem de Platão, sendo adotada também por Aristóteles: a autoridade deve pertencer aos melhores, e a natureza é que se incumbe de decidir quem são os melhores. A conclusão é que, se não nascemos diferentes no estado de natureza, tornamo-nos diferentes por causa do estado de natureza. Platão divide os homens em duas classes: os que são capazes de se tornarem filósofos e os que não o são. Os filósofos são movidos naturalmente por uma tendência irresistível à verdade; os outros são “naturezas vis e mesquinhas” que não entendem o que é a filosofia. Portanto, a própria natureza acaba fazendo uma divisão entre os que podem exercer a autoridade e os demais, que estão destinados à submissão (PLATÃO, 2000). Essa desigualdade radical dos homens também é aceita por Aristóteles como fundamento natural da autoridade: A própria natureza ofereceu um critério discriminativo fazendo que dentro de um mesmo gênero de pessoas se estabelecessem as diferenças entre os jovens e os velhos; e, entre estes, a uns incumbe obedecer, a outros mandar [...] (ARISTÓTELES, 2008, p. 1333). A diferença entre jovens e velhos é temporária, pois os jovens ficarão velhos e no momento certo assumirão o comando. Então a diferença substancial e fundamental fica limitada ao pequeno número de cidadãos dotados de virtudes políticas. Portanto, seria justo que eles se alternassem no governo, já que a maioria dos cidadãos comuns é desprovida de virtudes e destinada a obedecer (ARISTÓTELES, 2008, p. 1261). Assim, a ideia dessa concepção grega de autoridade é uma divisão natural dos cidadãos em duas classes, das quais só uma possui o direito de exercê-la. Dessa forma, Platão e Aristóteles criaram o critério de distinção entre duas classes. Toda ideologia que pressupõe esse tipo de pensamento sugere a existência de uma aristocracia. Essa distinção justifica todo tipo de exclusão, como o racismo e até mesmo o capitalismo. A segunda teoria é a de que a autoridade se baseia na divindade. É isso o que está escrito por Paulo no Capítulo XIII da Epístola aos Romanos (1980, p. 457): Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. Por isso, quem resiste à autoridade opõe-se à ordem querida por Deus, e os que se opõem receberão a condenação. É que os detentores do poder não são temidos por quem pratica o bem, mas por quem pratica o mal. Não queres ter medo da autoridade? Faz o bem e receberás os seus elogios. De fato, ela está ao serviço de Deus, para te incitar ao bem. 18 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I Mas, se fazes o mal, então deves ter medo, pois para alguma coisa ela traz a espada. De fato, ela está ao serviço de Deus para castigar aquele que pratica o mal. É por isso que é necessário submeter-se, não só por medo do castigo, mas também por razões de consciência. Essa epístola foi fundamental para a concepção cristã de autoridade. Santo Agostinho (2012a) insiste no caráter sagrado do poder temporal, considerando o soberano como representante de Deus na Terra. Lembrete Muitas vezes este livro trará pensamentos de Paulo, que foi o primeiro teólogo de fato da Igreja Católica. Paulo nasceu romano e se converteu ao cristianismo depois de adulto. Foi o primeiro grande escritor dos ensinamentos do cristianismo. Os católicos mantiveram seus escritos no Novo Testamento. Ele é muitas vezes chamado de São Paulo ou de Paulo de Tarso. A mesma tese foi adotada por São Tomás de Aquino quando afirmou que Deus é o primeiro dominante e que dele deriva todo domínio (AQUINO, 2011). Essa concepção de autoridade do soberano coincide em parte com a dos filósofos gregos, mas de forma invertida, pois, na concepção teológica, a autoridade independe do consenso dos súditos, ela é imposta. Mas a autoridade de Deus justifica toda autoridade que seja exercida de fato. A autoridade defendida por Platão e Aristóteles não sugere que a classe dominante se perpetue no poder. Mas a autoridade advinda de Deus permite que toda autoridade que é exercida de fato foi disposta ou estabelecida, e isto basta para que ela seja considerada legítima. Assim, nada impede que ela seja perpétua, ou seja, que o filho do rei herde tal autoridade. Essa forma de autoridade é aceita também por Hegel no século XVIII. Para ele, o Estado é “a realização da liberdade” ou “o ingresso de Deus no mundo” (HEGEL, 2010), o que estabelece que a autoridade e a força coincidam: quem possui força para impor-se não pode deixar de gozar de uma autoridade válida, já que toda força nasce de Deus e, portanto, é divina. A terceira ideia de autoridade se opõe a essa autoridade que vem de Deus. A autoridade não é a posse de uma força, mas o direito de exercê-la, que deriva do consenso daqueles sobre quem ela é exercida. Essa doutrina nasceu com a filosofia dos estoicos, e seu primeiro defensor foi o pensador romano Cícero. O pressuposto fundamental desse tipo de autoridade é a negação da desigualdade entre os homens. Para Cícero, todos os homens receberam da natureza a razão, e esta é a verdadeira lei que comanda e proíbe retamente; por isso, todos são livres e iguais por natureza (CÍCERO, 2004b). Entendida dessa forma, a autoridade se origina na vontade dos seres humanos, porque, segundo Cícero, quando os povos mantêm íntegro o seu direito, nada há de melhor, de mais livre, de mais feliz, uma vez que são senhores 19 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA das leis, dos juízos, da guerra, da paz, dos tratados, da vida e do patrimônio de cada um. Cícero pensava que só um estado assim pode ser chamado legitimamente de república, isto é, “coisa do povo”. 1.3 A autoridade na Idade Medieval Às vezes o reconhecimento de que a fonte da autoridade é o povo une-se ao reconhecimento do caráter absoluto da própria autoridade. Essa foi a forma de ideia de autoridade assumida na Idade Média. Em 1310, Dante Alighieri escreveu: “O povo romano, por direito e não por usurpação, assumiu a tarefa do monarca, que se chama império, sobre todos os mortais” (ALIGHIERI, 2006, p. 3). Em 1347, Guilherme de Ockham (apud GOLDAST, 1960, p. 899) entendeu que “[...] o Império Romano foi certamente instituído por Deus, mas através dos homens, isto é, por intermédio dos romanos” (GOLDAST, 1960, p. 899). Ainda segundo Ockham, a autoridade papal seria limitada pelas exigências dos direitos e da liberdade das pessoas sobre as quais essa autoridade se estendia. Seria uma autoridade de um principado ministrativus, não dominativus (OCKHAM apud GOLDAST, 1960, p. 899). Nicolau de Cusa sugeriu, em 1434, que até as autoridades eclesiásticas deveriam respeitar este princípio, pois: Como todos os homens são naturalmente livres, qualquer autoridade que afaste os súditos da práticado mal e limite sua liberdade com o temor de sanções deriva só da harmonia e do consentimento dos súditos, quer resida na lei escrita, quer na viva, representada por aquele que governa (CUSA, 1964, p. 56). No mundo de hoje, para que as leis possam organizar uma sociedade justa, vemos o predomínio do contratualismo e do jusnaturalismo. O contratualismo abrange uma grande quantidade de teorias filosóficas, políticas e jurídicas, que nascem da ideia de Rousseau de que o Estado precisa de um contrato social entre as pessoas, que permite organizar o direito positivo. O direito natural é aquele derivado das forças da natureza, mas, em outras interpretações, derivado também de Deus. Mas esta forma de direito precisa ser detalhada para poder dotar o Estado de mecanismos de direito. Já o jusnaturalismo se divide em dois momentos distintos: o jusnaturalismo medieval é uma forma de direito que nasce com São Tomás de Aquino a qual pressupõe que toda ordem jurídica nasce do poder de Deus. Já o jusnaturalismo moderno parte do princípio de que o direito é subjetivo e anterior ao direito positivo, que é o direito que regulamenta as ações a partir de um contrato que constitui o Estado. Portanto, cabe ao direito positivo, ou seja, às leis e aos mecanismos do direito, garantir que os direitos subjetivos sejam respeitados. Essa corrente de pensamento defende que, quando uma lei que rege um determinado assunto prejudica uma pessoa, deve prevalecer o seu direito individual. Embora essas formas de entendimento do direito não possam ser invocadas como justificativas suficientes nem para a constituição do Estado, nem mesmo do direito e suas leis, ninguém mais duvida de que a origem da autoridade é humana. Mas como se alcança um consenso que permita que a autoridade possa ser exercida? E quais são os limites a que devemos obrigar que a autoridade obedeça? 20 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I Sabemos que, na política, a autoridade abrange um campo maior do que o da pesquisa científica. Portanto, as pessoas precisam chegar ao consenso de quais são os limites que precisam ser impostos às pessoas que desejam exercer autoridade. Qual o limite do que um presidente pode fazer? Qual o limite da autoridade de um delegado de polícia? O que precisa ser proibido no comportamento público de um juiz? Também no campo acadêmico, a autoridade científica precisa ser conquistada dentro dos limites próprios de cada campo do conhecimento. É o reconhecimento público das pesquisas e das ideias que confere a aceitação que fundamenta toda autoridade científica. As modalidades, as formas e os limites institucionais desse reconhecimento são muito diferentes e constituem os problemas fundamentais na política, no Estado ou na Academia. Devido ao reconhecimento da dificuldade de se alcançar o consenso, a filosofia moderna abandonou o princípio de autoridade como princípio assumido para a disciplina e a orientação da pesquisa. A autoridade em filosofia é representada pela tradição religiosa, moral, política ou mesmo pela simples tradição filosófica. Mesmo quando a autoridade não se apoia na força das instituições políticas que nela se fundam, a autoridade age sobre a pesquisa filosófica tanto de forma explícita, com o prestígio que confere às teses que apoia, quanto de forma disfarçada, impedindo e limitando o questionamento e apoiando a ignorância e os tabus. Portanto, é fazendo uso da autoridade que pensamos a também política. Essa é a autoridade que evocamos quando fazemos ciência política. E o que é política? 1.4 A compreensão da política Política é um nome que serve para designarmos muitas coisas. Pensamos na doutrina do direito e da moral como política, a teoria do Estado é política, a arte ou a ciência de governar é política, o estudo dos comportamentos intersubjetivos também é política. Vamos ver como se configura cada caso. A doutrina da moral e do direito foi descrita na Ética de Aristóteles. A investigação do que devem ser o bem e o bem supremo, segundo Aristóteles, pertence a uma ciência: “Essa ciência parece ser a política. Com efeito, ela determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto” (ARISTÓTELES, 2009, p. 109). Esse conceito da política manteve-se por muito tempo na filosofia. Hobbes escreveu que: A política e a ética, ou seja, a ciência do justo e do injusto, do equânime e do iníquo, podem ser demonstradas a priori, visto que nós mesmos fizemos os princípios pelos quais se pode julgar o que é justo e equânime, ou seus contrários, vale dizer, as causas da justiça, que são as leis ou as convenções (HOBBES, 2012, p. 59). Portanto, neste tipo de compreensão, política é saber organizar os princípios do que é justo, para que as pessoas alcancem o bem supremo. O segundo significado de política foi exposto no livro Política, de Aristóteles: 21 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA Está claro que existe uma ciência à qual cabe indagar qual deve ser a melhor constituição: qual a mais apta a satisfazer nossos ideais sempre que não haja impedimentos externos; e qual a que se adapta às diversas condições em que possa ser posta em prática. Como é quase impossível que muitas pessoas possam realizar a melhor forma de governo, o bom legislador e o bom político devem saber qual é a melhor forma de governo em sentido absoluto e qual é a melhor forma de governo em determinadas condições (ARISTÓTELES, 2008, p. 21). Segundo Aristóteles, a política teria duas funções: descrever a forma do Estado ideal e determinar a forma do melhor Estado possível em relação às circunstâncias. A política, enquanto teoria do Estado, seguiu o caminho utópico da descrição do Estado perfeito, como Platão havia feito quando escreveu a República. Mas também serviu de manual dos modos e dos instrumentos para melhorar a forma do Estado, de acordo com o realismo trilhado pelo próprio Aristóteles, de ajustar o ideal ao real. Nem sempre conseguimos distinguir uma coisa da outra. Quando Hegel propôs o Estado enquanto “o Deus real”, e o caráter da divindade do Estado foi aceito pela historiografia, a política pretendeu dar caráter descritivo e normativo à Teoria do Estado. Heinrich von Treitschke foi um pensador alemão, um dos primeiros defensores do nacionalismo moderno. Para ele: A tarefa da política é tríplice: em primeiro lugar deve investigar, através da observação do mundo real dos Estados, qual é o conceito fundamental de Estado; em segundo lugar, deve indagar historicamente o que os povos quiseram, produziram e conseguiram e por que conseguiram na vida política; em terceiro lugar, fazendo isto, consegue descobrir algumas leis históricas e estabelecer os imperativos morais (TREITSCHKE, 1916, p. 2-3). A obra de Treitschke demonstra como deve ser a política: um comportamento público derivado da Teoria do Estado. Ao mesmo tempo, ele defende que a Teoria do Estado é uma força, pois este é de fato o significado de qualquer divinização do Estado. Em outras palavras, se o Estado é o bem supremo, ele também deve ser tratado como uma coisa divina. Em seu terceiro significado, a política surge como arte e ciência de governo. Este é o conceito defendido por Platão em seu discurso Político (2009), com o nome de “ciência régia” (ARISTÓTELES, 2008, p. 259). Aristóteles assumiu este conceito como a tarefa da Ciência Política e propôs uma descrição: “Um terceiro ramo da investigação é aquele que considera de que maneira surgiu um governo e de que maneira, depois de surgir, pôde ser conservado durante o maior tempo possível”(ARISTÓTELES, 2008, p. 27). Foi este conceito aristotélico de política que Maquiavel acentuou com suas palavras: 22 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I E muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca foram vistos nem conhecidos como existentes. Porque é tanta a diferença entre como se vive e como se deveria viver, que quem deixa o que faz pelo que deveria fazer aprende mais a arruinar-se do que a preservar-se, pois o homem que em tudo queira professar-se bom é forçoso que se arruíne em meio a tantos que não são bons. Donde ser necessário ao príncipe que, desejando conservar-se, aprenda a poder ser não bom e a usar disso ou não usar, segundo a necessidade (MAQUIAVEL, 1996, p. 22). Portanto, essa terceira percepção de política é aquela mais próxima do senso comum, que entende como “fazer política” todo tipo de comportamento ou ação que beneficie diretamente o poder de uma pessoa. É isso também o que o iluminista alemão Christian von Wolff definiu como “[...] a ciência de dirigir as ações livres na sociedade civil ou no Estado” (1969, p. 222). Essa é a ciência ou a arte política à qual fazemos referência no discurso comum. Sobre este conceito, Kant (2010) escreveu: Embora a máxima “A honestidade é a melhor política” implique uma teoria infelizmente desmentida com frequência pela prática, a máxima igualmente teórica “A honestidade é melhor que qualquer política” é imune a objeções; aliás é a condição indispensável da política (KANT, 2010, p. 44, tradução nossa). Hegel (1997), por outro lado, escreveu: Já se discutiu muito sobre a antítese entre moral e política e sobre a exigência da segunda conformar-se à primeira. Sobre isso cumpre apenas notar, em geral, que o bem do Estado tem um direito completamente diferente do bem do indivíduo, e que a substância ética, o Estado, tem sua existência, seu direito, imediatamente numa existência concreta, e não abstrata, e que somente essa existência concreta (e não uma das muitas proposições gerais, consideradas como preceitos morais) pode ser o princípio de sua ação e de seu comportamento. Aliás, a visão do suposto erro que sempre deve ser atribuído à política nesta suposta antítese baseia-se na superficialidade das concepções de moralidade, de natureza do Estado e de suas relações do ponto de vista moral (HEGEL, 1997). É interessante notar que Hegel aqui concorda com Maquiavel quanto ao princípio da moral e da política. O que Hegel denomina como existência do Estado é o que Maquiavel denomina de realidade efetiva. Apesar de Hegel ter declarado superada a antítese entre política e moral, o conflito entre as duas coisas existe na prática política e na consciência comum. Até hoje as formas de equilíbrio que às vezes a política e a consciência alcançam são provisórias e instáveis. 23 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA O atual significado de política foi adotado a partir de Augusto Comte, o fundador do positivismo. Este conceito é o mais próximo do que é aceito pela Sociologia. Comte deu o nome de Sistema de Política Positiva (1854) à sua obra máxima sobre Sociologia. Ele acreditava que os fenômenos políticos, tanto em coexistência quanto em sucessão, estivessem sujeitos a leis invariáveis, cujo uso pode permitir influenciar esses mesmos fenômenos. Na prática, foi o primeiro a pensar política não como filosofia, mas como ciência. Em outras palavras, Comte percebeu que em todas as nações, em todas as épocas, em todos os povos, a política fabrica acontecimentos semelhantes. Então deve existir uma forma científica de se observar esses comportamentos, para que se possa prever e prevenir as ações dos seres humanos na condução do Estado. Foi nesse sentido que Gaetano Mosca, certamente o primeiro cientista social italiano, entendeu por política a ciência da sociedade humana. Justificou esse termo da seguinte maneira: Chamamos de Ciência Política o estudo das tendências acima mencionadas (“leis ou tendências psicológicas constantes, às quais os fenômenos sociais obedecem”) e escolhemos essa denominação porque foi a primeira a ser usada na história do saber humano, porque ainda não caiu em desuso e também porque a nova denominação sociologia, adotada depois de Auguste Comte por muitos escritores, ainda não tem significação bem-determinada e precisa, compreendendo, no uso comum, todas as ciências sociais (MOSCA, 1923, p. 4). Hoje em dia não podemos mais confundir Sociologia com o estudo da Ciência Política, porque a Sociologia se tornou mais do que apenas isto. 1.5 A política é uma expressão da sociedade Apenas em uma coisa todas as definições de política concordam: é uma expressão do comportamento de uma sociedade de seres humanos. Num sentido geral a sociedade é um campo de relações intersubjetivas, ou seja, das relações humanas de comunicação. É a sociedade que engloba a totalidade dos indivíduos entre os quais ocorrem essas relações regidas pela comunicação. As relações ocorrem entre as pessoas de forma condicionada ou determinada. Portanto, sociedade é sempre alguma coisa contratada, mesmo que o contrato não seja escrito. A primeira ideia de sociedade foi introduzida na cultura ocidental pelos estoicos, principalmente por Cícero. Para os gregos e os romanos, os aspectos estruturais e sociais de um grupo humano estavam ligados, e não se podia distingui-los do conceito de polis – o espaço da cidade onde a política acontece. Mas como os estoicos eram cosmopolitas e habitavam várias cidades tanto no período grego como no romano, a sociedade passou a ser considerada como independente do Estado e da organização política. Quando expôs a doutrina dos estoicos, Cícero considerou que os homens nascem para sua agregação e para a sociedade e a comunidade do gênero humano. Esse é o conceito de sociedade adotado pelo jusnaturalismo moderno. Também como na filosofia estoica, o conceito de sociedade é acompanhado do conceito de direito natural. 24 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I O direito natural é utilizado pelo jusnaturalismo para delimitar o campo da sociedade. Huig van Groot (Grócio) escreveu que a conservação da sociedade em conformidade com a inteligência humana é fonte do direito propriamente dito (GROOT, 1925, tradução nossa). Da mesma forma, para Hobbes a sociedade era uma associação decorrente das necessidades humanas e do medo. Ela seria constituída pelas relações humanas de utilidade recíproca (HOBBES, 2008). Também Kant (1963) nos forneceu definições indiretas da sociedade, nos textos que denotam a tendência natural do homem para a sociabilidade: O homem tem inclinação a associar-se porque no estado de sociedade sente-se mais homem, vale dizer, sente que pode desenvolver melhor suas disposições naturais. Mas também tem forte tendência a dissociar-se (isolar-se) porque tem em si também a qualidade antissocial de querer voltar tudo para seu próprio interesse, em virtude do que deve esperar resistência de todos os lados e, por sua vez, sabe que terá de resistir aos outros (KANT, 1963, tradução nossa). Em Fichte, o conceito de sociedade surge da mesma forma: “Chamo de sociedade a relação recíproca entre seres racionais” (FICHTE, 1794, p. 33, tradução nossa). Podemos até mesmo propor a partir deste ponto de vista que a análise científica da sociedade pode ter como objetivo a finalidade que o gênero humano deve buscar, através dos meios que a razão indicar para alcançar esta finalidade, que seriam as formas dapolítica. Isso é o que as teorias políticas de Platão e de Aristóteles sugerem. Também as teorias jusnaturalistas pensam a sociedade buscando essa mesma razão. Podemos examinar ainda as condições que possibilitam as relações humanas. Essas condições foram definidas de várias maneiras, e sua definição pode ser considerada a primeira tarefa da Sociologia. Max Weber identificou essas condições de relacionamento humano na atividade social, que ocorre de acordo com uma ordem deliberada e relativamente constante (WEBER, 1913, tradução nossa). Émile Durkheim considerou uma característica da sociedade humana os modos de agir que são impostos de fora e se consolidam nas instituições (DURKHEIM, 2001). A própria ação ou o próprio comportamento pode ser considerado como um elemento objetivo, que pode definir o campo das relações humanas, segundo o pensamento de Talcott Parsons (2010). A forma de Parsons entender a sociedade atribui a ela esse caráter de “campo”. Isso torna a sociedade o resultado de um constructo conceitual. Em outras palavras, a sociedade deixa de ser uma forma de se chamar as pessoas que vivem numa determinada cidade e passa a ser a forma que denominamos todas as pessoas que vivem de acordo com um mesmo conjunto de regras. Por isso podemos utilizar o termo sociedade brasileira, que engloba milhões de pessoas diferentes, em lugares diferentes. Isso retira da ideia de sociedade sua característica de totalidade real e do ideal normativo. Em outras palavras, a ideia de sociedade passa a ser aquilo que determinamos que é: pode ser toda a sociedade brasileira, mas também apenas os jogadores de um time de futebol, ou mesmo apenas as crianças de um bairro. Em outras palavras, uma sociedade passa a ser um grupo de pessoas com características 25 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA semelhantes que queremos delimitar. Como consequência, a política passa a ser os comportamentos e as ações que devem ser assumidos pelas pessoas, para zelarem pela continuidade daquela sociedade. O conceito de sociedade como totalidade de indivíduos entre os quais há relações intersubjetivas, ou seja, enquanto mundo social, está ligado ao conceito de sociedade como organismo. Os gregos já haviam comparado a comunidade política e o Estado a um organismo. Os estoicos também compararam a sociedade como comunidade de seres racionais a um organismo. Também Augusto Comte chama a sociedade de “organismo coletivo” (COMTE, 1978, p. 442). Por sua vez, Herbert Spencer (1820-1903) chama de superorgânica a evolução que conduz à sociedade e considera a própria sociedade como um organismo cujos elementos são, em primeiro lugar, as famílias e depois os indivíduos isolados. Segundo Spencer (1873), o organismo social difere do organismo animal porque a consciência pertence apenas aos elementos que o compõem, pois a sociedade não tem órgãos de sentidos como os animais, mas vive e sente apenas através dos indivíduos que a compõem. A concepção de Karl Marx de sociedade não difere muito dessas definições anteriores. Sua visão se baseia em Hegel (2010), para quem a sociedade civil é uma fase imperfeita ou preparatória do Estado, que é a Ideia Divina realizada na Terra: A substância que, enquanto espírito, se particulariza abstratamente em muitas pessoas, em famílias (a família é entendida como uma pessoa) ou em indivíduos, que por si estão em liberdade, são independentes e particulares, e perde seu caráter ético; isso porque essas pessoas, enquanto tais, não têm na consciência e como objetivo a unidade absoluta, mas sua própria particularidade e seu ser por si: daí nasce o sistema da atomística (HEGEL, 2010, p. 174). Este sistema é precisamente a sociedade civil enquanto “conexão universal e mediadora de extremos independentes e de seus interesses particulares” (HEGEL, 2010, p. 184). Assim, a sociedade civil compreende, em primeiro lugar, o sistema das necessidades; em segundo lugar, a administração da justiça; e em terceiro lugar, a polícia e a corporação, ou seja, os órgãos que detêm a tutela dos interesses particulares (HEGEL, 2010, p. 188). Mas Marx inverteu a relação da sociedade civil com o Estado e considerou a sociedade como princípio de explicação do próprio Estado e de toda ideologia: “A minha investigação desembocava no resultado de que tanto as relações jurídicas como as formas de sociedade e estado não podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito da sociedade humana, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, sob o nome de sociedade civil, e que a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política” (MARX, [s.d.]). Na linguagem comum e mesmo nas disciplinas da Sociologia, a palavra sociedade costuma ser usada com o significado de conjunto de indivíduos caracterizados por uma atitude comum ou institucionalizada. Neste sentido, a ideia de sociedade designa tanto um grupo de indivíduos quanto 26 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I a instituição que caracteriza esse grupo, como acontece nas expressões sociedade comercial ou sociedade capitalista. Esse emprego é tão óbvio que não se encontram definições nem filosóficas, nem científicas dele. Mas há uma pequena parcela da sociedade que chamou especial atenção à Sociologia contemporânea. Isso porque seu estudo é ao mesmo tempo uma discussão das ideias de aristocracia propostas por Platão e Aristóteles. Neste sentido, o matemático e pensador italiano Vilfredo Pareto foi o primeiro a perceber que uma pequena minoria sempre detém o poder em qualquer forma de sociedade humana. No Trattato di Sociologia Generale (PARETO, 1923), o autor percebe que essa minoria decide sobre qualquer ramo ou campo de atividade e, mesmo em política, é essa minoria que decide sobre os problemas do governo. Pareto conceituou a elite como o conjunto “[...] daqueles que têm os padrões mais elevados em seu ramo de atividade” (PARETO, 1923, p. 9) e chamava de “classe governante eleita” aqueles que, direta ou indiretamente, formam o governo. Sugere inclusive que há uma “circulação da classe eleita” (PARETO, 1923, p. 10) para explicar o fenômeno da passagem de grupos humanos da classe eleita para a classe não eleita e vice-versa. Essa teoria foi um dos pontos fundamentais da doutrina política do fascismo e do nazismo. Percebemos então que a discussão sobre a sociedade e suas políticas acaba por abordar a relação entre o indivíduo e o grupo. Caímos então naquilo que parece fundamentar esse movimento das elites, que é o individualismo. Individualismo é toda ideologia ou política que atribui ao indivíduo humano um valor preponderante em relação à comunidade da qual ele faz parte. Isso pode chegar ao absurdo de alguém acreditar na tese de que o indivíduo tenha valor infinito e a comunidade tenha valor zero. Várias correntes de pensamento antagônicas entre si, como o anarquismo e o liberalismo, adotam alguma forma de individualismo. Sobre o individualismo também se constrói o jusnaturalismo moderno do direito, da filosofia do contratualismo, do liberalismo econômico e da luta contra o Estado. O jusnaturalismo sugere que se atribua ao indivíduo direitos originais e inalienáveis que ele conserva, mesmo que de maneira diferente ou limitada, em todos os corpos sociais de que faz parte. Um grande exemplo disso são os direitos humanos. O contratualismo consiste em considerar que a sociedade humana e o Estado são resultantes de convenção entre os indivíduos. No início da Idade Moderna, a revolta dos calvinistas em Genebra constituiu estadoutrina, que foi frequentemente usada como negação do absolutismo do Estado ou como base moral para limitar os poderes do Estado. O liberalismo econômico, próprio dos fisiocratas e da escola clássica de Economia Política, é a luta contra a ingerência do Estado nos assuntos econômicos, e a defesa da iniciativa econômica para o indivíduo. Este é um aspecto característico do liberalismo individualista e fundamenta o capitalismo. Seu maior exemplo é a defesa do empreendedorismo como comportamento desejado. Portanto o individualismo pode ser resumido na Sociologia como a luta contra o Estado e a tendência a estabelecer limites à sua ação. Um dos mais importantes documentos do liberalismo moderno é a obra de Herbert Spencer, O Homem contra o Estado (1884), em que ele combate a ingerência do Estado (e do governo constituído) na esfera econômica, e até mesmo na saúde e no ensino público. 27 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA A defesa do individualismo pretende defender os interesses do cidadão, quando estes não estão de acordo com os interesses do grupo. Adam Smith, em Riqueza das Nações (1776), considerava que a ordem natural era a característica dos fatos econômicos e servia como garantia dessa coincidência de interesses (SMITH, 2008). 1.6 O liberalismo e a defesa do indivíduo Em 1690, John Locke, na obra Ensaio sobre o Entendimento Humano fez uma crítica à predestinação e aos conhecimentos inatos. Ele foi um dos primeiros que formulou teoricamente o empiricismo: a ideia de que os conhecimentos vêm das experiências sensíveis e não estão nos indivíduos como uma herança de sangue. Ao nascer, o indivíduo teria uma mente aberta à aquisição dos saberes, tal qual uma página em branco (LOCKE, 2012). Essa formulação teve efeitos importantes sobre a Pedagogia. É uma reflexão que está associada ao espírito liberal, porque reforça a ideia de igualdade natural entre os indivíduos. Também valoriza a autonomia dos sujeitos no processo de aprendizagem e autoconstrução. Para John Locke, à medida que as relações interpessoais se tornam mais complexas, as leis naturais se mostram insuficientes para controlar os juízos parciais e o exercício das paixões. Para evitar riscos e preservar seus direitos, os homens, por livre consentimento, devem decidir realizar um contrato social para estabelecer a autoridade estatal. A nova instituição terá como finalidade manter a segurança e a garantia dos direitos individuais (LOCKE, 2006). A passagem do estado de natureza para a sociedade política, via contrato social, não representa para Locke uma ruptura. O contrato social seria estabelecido para preservar os direitos naturais. Para ele, alguns direitos individuais são inalienáveis, intransferíveis, pois são naturais. São o direito à vida, o direito à propriedade e à busca da felicidade que devem permanecer na posse do indivíduo. O liberalismo pensa a sociedade civil como uma esfera separada e autônoma do Estado. A sociedade civil deve ser uma dimensão com regras próprias, imune à ação do poder governamental. Portanto, o indivíduo do liberalismo se mostra precavido em relação ao Estado. O Estado deve ser vigiado, e qualquer ameaça do Estado contra os direitos individuais torna legítima a rebelião contra as autoridades. Os liberais aceitam que a autoridade democraticamente estabelecida exerça a coerção contra o indivíduo, dentro de limites predefinidos. Esses limites são a legalidade e a transparência dos procedimentos. Qualquer ação repressiva deve atuar para preservar os direitos sociais. A instituição política deve ter a função de proteger a sociedade dos indivíduos para que eles, no exercício das suas liberdades, possam aprimorar a si próprios e, por consequência, as instituições. As regras da política devem garantir o exercício da livre competição entre indivíduos proprietários. Portanto, o liberalismo acredita que é a análise do comportamento dos indivíduos que explica o processo histórico e social. A liberdade é pensada como a causa e o efeito das interações individuais. Os indivíduos, competindo entre si pela realização dos seus interesses, acabam por beneficiar toda a sociedade. 28 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 Unidade I Como decorrência dessa competição, os melhores se destacam, e a comunidade fica protegida da paralisia e da fraqueza apática das massas e de sua simbiose com o estado burocratizado. Esse pensamento é que fundamenta a defesa moderna do capitalismo. Confia-se que os indivíduos, na busca da realização dos seus interesses, formem uma associação perfeita, com interdependência, equilíbrio e desenvolvimento. Essa apologia à sociedade do contrato torna-se então a celebração do mercado. Assim, o pensamento liberal entende que o mercado nada mais é do que a maior expressão da liberdade. A perspectiva liberal introduz a preocupação com a divisão dos Poderes do Estado em Executivo, Legislativo e Judiciário. As três esferas devem funcionar com autonomia relativa, e cada uma delas tem a função de controlar e contrabalançar as demais. Tal divisão é uma das garantias contra a formação de Estados absolutos. O Poder Judiciário deve se restringir à aplicação da lei sem distinção. O governante é apenas um executor das leis que os representantes do povo elaboram. As leis traduzem a vontade geral nas casas legislativas, onde as decisões devem obedecer ao princípio da maioria. Para evitar o risco de a maioria se tornar totalitária, os liberais adotam a pluralidade como valor democrático. As sociedades que se querem livres devem preservar a existência de diferentes grupos, inclusive os minoritários. Devem também estimular a concorrência destes grupos na sociedade. Isso só é possível com a manutenção da autonomia dos indivíduos e dos grupos sociais no mundo político. Outra característica do liberalismo é a participação política indireta. A forma político-institucional aceita pelos liberais não prevê a ação direta dos cidadãos na gestão política. Não há plebiscitos. Os interesses devem ser apresentados através de organizações e processos representativos. Para um liberal, a representação de interesses convive com a ideia de liberdade política. O parlamento, os partidos e as associações representativas constituem, dentro da perspectiva liberal, o contraponto ao Poder Executivo. O conjunto das associações representativas, o espaço econômico do mercado e a dimensão da formação da opinião pública constituem em seu conjunto a sociedade civil. Esta se encontra separada do Estado e é autônoma, com a função de exercer influência sobre as decisões e ações de governo. Alguns instrumentos do direito político contemporâneo, como o habeas corpus, cujo princípio de lei garante que ninguém pode ser mantido preso sem acusação formal, mas também as cartas de direitos do homem (Os Direitos Humanos, o Estatuto da Criança e do Adolescente etc.) são resultado da preocupação liberal em conter o Estado. Mas quando a economia da Revolução Industrial começou a demonstrar sinais de enfraquecimento, percebeu-se que o afastamento do Estado das atividades econômicas não resolve todos os problemas, nem a desordem, nem as desigualdades sociais. Quando isso aconteceu, a fase individualista do liberalismo chegou ao fim, e os liberais passaram também a recorrer à ação do Estado. A primeira vez que isto aconteceu claramente foi na queda da Bolsa dos Estados Unidos, em 1929. 29 SO CI - R ev isã o: L uc as /G io va na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 9/ 01 /2 01 5 FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA As ideias
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