Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUÇÃO EM DIREITO Karla Rafaela Souza da Silva A LEI DA ANISTIA BRASILEIRA À LUZ DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS TRANSCENDENDO OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E PENAIS: UMA QUESTÃO DE INCONVECIONALIDADE Prof. Orientador: Dr. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão NATAL - RN MAIO – 2014 2 KARLA RAFAELA SOUZA DA SILVA A LEI DA ANISTIA BRASILEIRA À LUZ DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS TRANSCENDENDO OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E PENAIS: UMA QUESTÃO DE INCONVECIONALIDADE Artigo apresentado ao Curso de Graduação em Direito como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Bacharel em Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do prof. Dr. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão. NATAL - RN MAIO – 2014 3 A LEI DA ANISTIA BRASILEIRA À LUZ DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS TRANSCENDENDO OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E PENAIS: UMA QUESTÃO DE INCONVECIONALIDADE Orientando - Karla Rafaela Souza da Silva - Acadêmica do Curso de Direito E-mail: karlarafaelasouza@hotmail.com Orientador - Prof. Dr. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão – Departamento de Direito E-mail: pauloleao61@hotmail.com RESUMO: O presente artigo descreverá as atrocidades vivenciadas durante o período da Ditadura Militar, buscando reconhecer, desde já, a eficácia jurídica das convenções de Direitos Humanos internacionais que foram ratificadas pelo Brasil. Após isso, analisaremos a Lei da Anistia sob o enfoque dos Direitos Humanos, visando demonstrar que a proteção a esses direitos, vai além dos preceitos constitucionais e penais, constituindo como um dos fundamentos da ordem internacional. Em face disso e considerando a interpretação dada pelo STF à Lei da Anistia, ainda em vigor no país, é possível afirmar que a validade dessa lei estaria comprometida, pois constitui uma transgressão do dever do Estado de apurar, processar e punir os crimes cometidos por seus próprios agentes durante o período ditatorial. Ademais, esclareceremos que o entendimento do Pretório Excelso é incompatível com o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial da Organização dos Estados Americanos, do qual o Brasil é Estado-membro, bem como dos demais organismos internacionais, necessitando que haja o devido controle de convencionalidade para que, assim, haja harmonia entre as normas de direito interno como as internacionais. Palavras-chave: Ditadura militar. Direitos Humanos. STF. Controle de Convencionalidade. 1 INTRODUÇÃO Diversas atrocidades foram cometidas contra cidadãos brasileiros durante o período ditatorial, que se estendeu por mais de duas décadas. Com a proteção e o aval do Estado militar, sob o pretexto de assegurar a segurança nacional, diversas pessoas foram torturadas, exiladas e até mesmo mortas nas mãos de agentes estatais. Com o fim do período militar, o Brasil restabelece a democracia, procurando construir um Estado Democrático de Direito baseado, primordialmente, na proteção aos direitos humanos com o intuito de estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária, em oposição às arbitrariedades cometidas pelo Estado no regime anterior. Neste diapasão, o Estado tem o 4 dever de apurar, processar, punir e reparar os crimes cometidos por seus próprios agentes durante o período ditatorial, como forma de concretizar a transação de um Estado totalitário para um Estado democrático. Inúmeros tratados assinados pelo Brasil após o término do período militar consideram que delitos como a tortura, o homicídio e o desaparecimento forçado de pessoas são crimes contra a humanidade, sempre que cometidos num contexto de ataques generalizados à população. Esses tratados preveem a responsabilização do Estado pela violação aos direitos humanos, determinando que sejam feitas as apurações dos crimes, e que os agentes que os cometeram sejam devidamente julgados e condenados pela sua prática, tendo em vista que os crimes dessa natureza são imprescritíveis, inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Ante o exposto, pretende o artigo questionar a compatibilidade da Lei da Anistia em confronto com os preceitos constitucionais, penais e internacionais de proteção aos direitos humanos. Para tanto, será necessário demonstrar que os tratados internacionais sobre direitos humanos assinados e ratificados pelo país possuem eficácia jurídica no sistema legal brasileiro, evidenciando, por fim, que a concessão de anistia aos agentes estatais que praticaram atos atentatórios aos direitos humanos dos cidadãos durante a ditadura é um ato inconvencional, portanto contrário ao entendimento nos tratados e convenções assinados pelo Brasil. 2 FATOS VIVENCIADOS DURANTE A DITADURA MILITAR: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA O contexto histórico mundial no início dos anos 1960 foi marcado pela luta entre o comunismo, representado pela União Soviética, e o capitalismo, que tinha como maior representante os Estados Unidos da América. Apoiados pelo governo dos Estados Unidos, os setores militares golpistas iniciaram uma campanha incitando o medo ao “perigo comunista” 5 na classe média brasileira (TAVARES; AGRA, 2009, p. 75) e no dia 1º de abril de 1964, tropas militares promoveram um golpe que depôs o presidente João Goulart, considerado uma ameaça comunista ao país, e implantaram a ditadura militar no Brasil. Sem encontrar forte resistência por parte da população e do próprio governo deposto, a intervenção militar era anunciada como passageira e veio sob o pretexto de sanear as “mazelas deixadas pela infiltração esquerdista no país”, como afirmam Miriam Dolhnikoff e Flávio de Campos (2001, p. 272). O primeiro militar a assumir a presidência foi o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que estabeleceu Atos Institucionais carregados de medidas antidemocráticas, sob a pretensão de manter a segurança nacional, dentre elas, destacaram-se a instauração de eleições indiretas para o cargo do poder Executivo, a cassação de mandatos, a dissolução de partidos políticos, com a implementação do bipartidarismo, representado pelos partidos MDB e ARENA, dentre outras (ANSARA, 2009, p. 147). Além dos Atos Institucionais, durante o governo de Castelo Branco foi instaurada a Lei de Segurança Nacional, baseada na Doutrina de Segurança Nacional, a qual procurava fundamentar a suspensão das garantias constitucionais, a limitação das liberdades individuais, a introdução da censura aos meios de comunicação e a repressão total aos que se opunham por meio de atividades clandestinas, conforme afirma a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos 1 (2007, p. 22). O período de maior repressão e violação aos direitos humanos na história da República se deu com o Presidente marechal Artur da Costa e Silva. No início de seu governo, ainda no ano de 1967, uma nova Constituição foi outorgada com o principal intuito de “institucionalizar o Estado consequente do golpe, por meio da ilegítima delegação de poderes constituintes ao Legislativo Federal, expurgado de vários representantes da oposição, e assim, organizar a legislação do novo governo.” (DOLHNIKOFF; CAMPOS. 2001, p. 275). 1 Comissão instituída pela Lei nº 9.140/95, a fim de buscar soluções adequadas aos casos de desaparecimentos e mortes de opositores políticos por autoridades do Estado durante o período do regime militar. 6 Percebendo que o governo militar suplantava o caráter temporário e se consolidava no poder, sem perspectiva de ser extinto, as camadas populares, representadas principalmentepelas forças estudantis e pelas classes operárias e camponesas, começaram a insurgir-se contra a força dominante. Como consequência do grave clima de confronto entre as camadas populares e o governo ditatorial, ao final do ano de 1968 foi decretado o Ato Institucional nº 5, que vigorou no país até o ano de 1978 e se tornou a maior representação do poder repressivo, arbitrário e violento do Estado. As manifestações populares, contudo, foram tomando força, culminando no surgimento de grupos guerrilheiros armados, que se insurgiam contra a repressão do governo militar utilizando-se de práticas como assaltos a bancos e sequestro de agentes favoráveis ao governo, como forma de negociar a libertação de presos políticos. Em 1969, com a ascensão de Emílio Garrastazu Médici ao poder, o combate à resistência popular se intensificou. Na medida em que a revolta da população crescia, o governo intensificava seu aparato repressivo, com a criação de órgãos ligados ao Conselho de Segurança Nacional, como o Destacamento de Operacões e Informações (DOI) e o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), responsáveis por refrear as ações de militantes esquerdistas que se opunham ao governo. Sobre o governo Médici, conhecido como período dos “Anos de Chumbo”, declara a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (2007, p. 23): A estrutura de informação montada fortaleceu sua capacidade para travar a guerra surda que se deu por meio dos interrogatórios com torturas, das investigações sigilosas, da escuta telefônica, do armazenamento e processamento de informações sobre atividades consideradas subversivas. Eram enquadradas nesse campo, desde simples reivindicações salariais e pregações religiosas, até as formas de oposição por métodos militares. Antônio Carlos Fon (1979, p. 71-79), vítima da repressão militar no período ditatorial descreve diversas formas de tortura praticadas pelos agentes governamentais, exempli gratia, técnicas como o afogamento, a extração de dentes, o afogamento, espancamentos e o pau-de- arara. Há estimativas de que, ao longo dos mais de 20 anos de ditadura militar, houve cerca de 7 300 mortes, incluindo-se os desaparecidos, além de 25 mil prisões políticas e 10 mil exílios (PARIZ, 2006, p. 1). Em 1974 o general linha-dura é substituído por Ernesto Geisel, cujo governo foi marcado pela abertura política e pelo enfraquecimento do aparelho repressivo estatal. Durante os cinco anos no poder houve a revogação do principal meio legitimador das arbitrariedades estatais, o AI-5, além do restabelecimento da liberdade de imprensa. Em 1979, assume o poder João Batista Figueiredo, governo cujo marco principal foi a promulgação da Lei da Anistia, que permitiu o retorno dos exilados políticos ao país, mas que ainda não anistiava os acusados de crimes de terrorismo e sequestro (ANSARA, 2009, p.151). O processo de abertura política culminou na campanha pelas eleições diretas e na eleição, ainda indireta, de Tancredo Neves para o cargo de Presidente da República em 1985. Tancredo Neves, primeiro Presidente não militar eleito após 21 anos de um regime ditatorial faleceu antes mesmo de assumir o poder, dando lugar a seu vice, José Sarney. Como presidente, Sarney convoca, em 1987, a assembleia constituinte responsável pela elaboração da Constituição de 1988, marcada por um forte teor axiológico e principiológico. A nova Constituição Federal traz como fundamento a dignidade da pessoa humana, assegurando inúmeros direitos fundamentais que competem a todos os cidadãos, dentre os quais estão incluídos a liberdade de expressão, a vedação à tortura e ao tratamento desumano ou degradante, a liberdade de associação, dentre outros. Após a promulgação da Carta de 1988, a luta pela apuração dos crimes cometidos pelo governo militar toma novos rumos. Os familiares e amigos dos desaparecidos e as vítimas das atrocidades praticadas pelos agentes do governo pleiteavam a indenização e a punição aos crimes, como afirmam André Ramos Tavares e Walber de Moura Agra (2009, p. 81). Em 1995, no governo democrático de Fernando Henrique Cardoso, surge o primeiro instrumento legal que levou ao Estado a responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos por motivos políticos, prevendo a concessão de indenização financeira aos familiares das 8 vítimas, além de criar a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. No entanto, os agentes repressores continuam acobertados pela Lei da Anistia, de maneira que não respondem pelos crimes comuns que praticaram. No ano de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Seu objetivo maior era declarar que o disposto no §1º do artigo 1º da Lei nº 6683/79, concedendo a anistia a todos os que, em determinado período, cometeram crimes políticos ou crimes a eles conexos – que seriam crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política 2 – não havia sido recepcionamento pela nossa CF/88. O STF, por 7 votos a 2 decidiu pela não revisão da lei, mantendo a interpretação extensiva aos agentes torturadores. É fundamental destacar, contudo, que a decisão do Pretório Excelso revela-se contrária à dimensão internacional de proteção aos Direitos Humanos, que ultrapassa as barreiras da soberania do Estado, tendo em vista a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada “pelos processos de universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sobre o prisma da indivisibilidade” (PIOVESAN, 2009, p. 201). Diante disso, torna-se forçoso compreender o posicionamento dos organismos internacionais acerca de crimes cometidos pelos agentes estatais em confronto com direitos humanos dos cidadãos e o dever de reparação dos Estados Nacionais mediante essas atrocidades. 3 A PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS FRENTE ÀS ATROCIDADES COMETIDAS PELOS AGENTES ESTATAIS Pode-se dizer que o reconhecimento dos direitos humanos fundamentais iniciou-se na era Moderna. Em referência ao jurista Gregorio Peces-Barba Martinez, Norberto Bobbio, em sua obra intitulada A Era dos Direitos (2004, p.67), divide a evolução dos direitos humanos 2 Maiores informações disponíveis em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf> acesso em18 de maio de 2012. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf 9 em três etapas, sendo a primeira delas a positivação desses direitos, processo iniciado com a Declaração Francesa de 1789 e seguido pelos diplomas de diversos países. A segunda etapa é a da generalização desses direitos, a qual se iniciou por influência dos movimentos populares, principalmente das classes operárias, no mundo inteiro. Como consequência desses movimentos, novos gamas de direitos vão sendo reconhecidas, promovendo a inserção de elementos mais igualitários ao direito positivo ao longo do tempo. A terceira e última etapa é a da internacionalização, que se inicia em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, decretada pela ONU. Em sequência à promulgação da Declaração, diversos tratados e convenções foram, e ainda vêm, surgindo como forma de consolidar os direitos humanos como normas de status internacional, alicerçada nos princípios da universalização, da integralidade e da indivisibilidade, como afirma Antônio Augusto Cançado (2003, p. 408). O jurista, membro do Tribunal Internacional de Justiça afirma, ainda, que: No plano operacional, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao consagrar valores e interesses comuns superiores consubstanciados na salvaguarda dos direitos da pessoa humana, concebe o funcionamento de seus mecanismos de proteção mediante o exercício da garantia coletiva. A salvaguarda dos direitos humanos passa a servista como sendo interesse de todos, constituindo uma meta comum e superior a ser alcançada por todos em conjunto; em suma, passa a configurar-se como uma questão de ordre public internacional. A concepção de proteção internacional aos direitos humanos eleva o ser humano, segundo entendimento de Cançado Trindade (2003, p. 447-473), ao status de Sujeito de Direito Internacional dos Direitos Humanos, de maneira que medidas estatais que venham a violentar esses direitos devem ser fortemente combatidas pela comunidade internacional. Nesse contexto, passa-se a questionar a responsabilização do Estado mediante arbitrariedades por ele cometidas em violação aos direitos humanos de seus cidadãos. Restou claro que diversos crimes foram cometidos pelos agentes estatais durante o período ditatorial que tomou lugar no Brasil durante duas décadas. Dentre esses crimes, a tortura, o homicídio e 10 o desaparecimento forçado de pessoas aparecem como os mais graves, trazendo à tona o protesto acerca da concessão de anistia aos agentes que os cometeram contra a população. No plano interno, deve-se mencionar que a Constituição Federal de 1988 tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Traz, ainda, em seu artigo 5º um extenso rol de direitos fundamentais dos cidadãos, destacando-se entre eles a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; a vedação ao tratamento desumano ou degradante; a vedação à ação de grupos armados civis ou militares que atentem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, e a vedação à tortura, estes últimos considerados crimes imprescritíveis, inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Ademais, prevê a Carta Magna a inafastabilidade do controle jurisdicional da lesão ou ameaça a direito. Diante dos citados preceitos, percebe-se que o Estado tem o dever constitucional não apenas de proteger os cidadãos de qualquer ameaça à sua dignidade, como também de apurar atos que violem os direitos coletivos e individuais. Considerando-se o plano internacional, é mister destacar que as violações cometidas durante o regime militar, porquanto empreendidas numa conjuntura de ataques generalizados à população civil, podem ser consideradas verdadeiros crimes contra a humanidade, com previsão expressa no artigo 7º do Estatuto de Roma, o qual criou o Tribunal Penal Internacional e do qual o Brasil é signatário. Ademais, diversos outros tratados assinados pelo Brasil versam acerca de crimes correlatos aos cometidos pelos militares, considerando-os como passiveis de sanção, imprescritíveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 138) cita dentre esses tratados a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, assinada pelo Brasil em 1985; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, assinada em 1986; e o Pacto de São José da Costa Rica, assinado no ano de 1992. Ainda no âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas, órgão do qual o Brasil é estado-membro, já demonstrou seu posicionamento acerca da necessidade de 11 responsabilização do Estado em virtude do cometimento do crime de desaparecimento forçado de pessoas. A Resolução nº 47/133, aprovada pela Assembleia Geral do órgão cupular no ano de 1992 definiu como deveres dos Estados a investigação e apuração dos fatos vinculados aos desaparecimentos forçados, devendo os responsáveis ser identificados, processados e julgados criminalmente por seus crimes. Determina, ainda, que esses responsáveis não sejam beneficiados por Lei de Anistia especial, ou medidas que tenham como efeito a remissão de seus atos (COMPARATO, 2001, p. 57). A existência de diversas normas de caráter internacional contrárias à recusa do Estado em cumprir seu dever de apuração dos crimes contra a humanidade por eles cometidos leva- nos à discussão acerca da recepção desses tratados no sistema jurídico nacional. Faz-se necessário, portanto, maior aprofundamento em torno desse debate. 4 RECONHECIMENTO DA EFICÁCIA JURÍDICA DAS CONVENÇÕES DE DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS RATIFICADAS PELO BRASIL Dois dispositivos constitucionais versam sobre a recepção dos tratados internacionais no sistema jurídico brasileiro. O primeiro deles, de caráter originário, é o § 2º do artigo 5º, o qual prevê que a Carta Magna não traz uma relação exauriente dos direitos e garantias dos cidadãos, de maneira que diversos outros direitos podem ser depreendidos tanto das normas que regem a CF/88, como dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O segundo dispositivo, inserido na CF após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que deu origem ao § 3º do mesmo artigo em apreço, prevendo que os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos passam a sustentar caráter constitucional quando recepcionados conforme os parâmetros de aprovação das emendas constitucionais. A existência da referida regra, contudo, não obsta o reconhecimento das normas internacionais de direitos humanos sob um aspecto diverso, mas ainda assim oponível e com 12 eficácia jurídica. Isso ocorre porque, como já mencionado, a evolução histórica dos direitos humanos acabou por conferir a essas normas eficácia em âmbito internacional, transcendendo as barreiras nacionais de cada Estado e tornando-se matéria de ordem pública internacional. Em decorrência dessa nova realidade, deixa a CF/88 de ser a única norma com força suficiente para servir de referência no controle das normas internas, de maneira que também os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos tornam-se parâmetros para o controle vertical das normas que compõem o sistema jurídico. Dessa forma, além de passar pelo crivo constitucional, devem as normas internas ser analisadas de acordo com sua convencionalidade, ou seja, sua adequação aos tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, estabelecendo-se a necessidade de se exercer um controle de convencionalidade das normas que integram o sistema jurídico, com fundamento nos princípios da boa-fé e da pacta sunt servanda (MAZZUOLI apud MARTINS; MOREIRA, 2011, p.469). Não se trata de uma concepção de superioridade da norma internacional sobre a norma constitucional. Como afirma George Galindo (2002, p. 249), o “Direito Internacional dos Direitos Humanos é comprometido muito mais com a supremacia da norma mais favorável ao indivíduo, o que quer dizer uma supremacia substancial, dentro da lógica de complementaridade e da cooperação”. Fica claro, mediante tais considerações, que como participante ativo da ordem internacional, o Brasil não pode se eximir de apurar os crimes cometidos pelos seus agentes em violação aos direitos humanos de diversos cidadãos. A escusa é injustificável, pois que configura afronta aos direitos humanos fundamentais. A assinatura e ratificação de tratados que se mostram contrários à violação de direitos humanos, prevendo sanções e regras acerca da responsabilização do Estado, confere a esses tratados eficácia jurídica no âmbito interno, independente de sua inclusão como norma constitucional. 13 5. LEI DA ANISTIA BRASILEIRA EM CONFRONTO COM OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS RECEPCIONADOS PELO BRASIL 5.1 A Anistia ampla, geral e irrestrita Como já mencionado, diante das truculências praticadas pelos militares a pressão social ganhava maior destaque. Apreciando essa nova conjuntura que ganhava relevo, os políticos da época despertaram ideais pelo retorno ao Estado Democrático de Direito, ensejando na criação de Comitês em prol da Anistia. Estes, por sua vez, tiveram a capacidade de fomentar o movimento denominado de anistia ampla, geral e irrestrita, cujo objetivo central era obter o perdão para todos que se intentaram contra o regime opressor e ilegítimo por meio da lutaarmada; bem como devolver automaticamente a todos os direitos políticos e civis; além disso, almejavam à punição dos torturadores e o desmantelamento dos órgãos de repressão política com o fim do período ditatorial. Como consequência, foi promulgada a Lei da Anistia, que concedeu o perdão a todos os que cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativos e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamentos em Atos Institucionais e Complementares durante o período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 3 . Apesar de ter sido concedida em face dos anseios populares, a lei da anistia não atendeu de forma integral os objetivos almejados, deixando de fora as pessoas condenadas por terrorismo, assalto ou sequestro e àquelas que cometeram os denominados “crimes de sangue” e que somente foram libertadas sob condicional ou mediante cumprimento integral da pena. 3 Correspondência com o art. 1º da Lei de nº 6.683/1979. 14 Ao contrário disso, uma contradição se estendeu, mesmo que não esteja de forma explícita na lei, o governo ditatorial acabou por se beneficiar da mesma, deixando que tal entendimento se perpetuasse ao longo da história, de que os agentes da repressão também estavam anistiados, incluindo-se os responsáveis pelas práticas de torturas, tornando a lei bastante ampla no rol de pessoas beneficiadas. Apura-se, desde já, que a intenção da referida lei foi consolidar-se como um acordo conciliatório entre os agentes que estavam no poder e a sua maioria no Congresso Nacional em conjunto com a oposição burguesa e moderada, sendo uma das formas encontradas para evitar uma eclosão de conflitos, visto que o Brasil na época temia a força do movimento operário, que já se encontrava em greve em todo o país. Assim é o pensamento de Mezarobba Glenda de que o estabelecimento da lei da anistia foi basicamente para manter a pacificação e o esquecimento favorável aos integrantes do aparato repressivo, deixando em segundo plano a promoção da justiça e o esclarecimento da verdade a suas vítimas. Tal fato, na tese da autora supracitada, deveu-se, em parte, ao enorme poder de pressão que os militares ainda possuíam e ao fato de que o regime autoritário não tinha sido extinto (2006, p. 43). Consoante é o posicionamento sustentado pelo autor Carlos Fico (2011, p. 321): A menção aos crimes conexos realmente demandava uma extraordinária capacidade de tergiversação, dada a esdrúxula circunstância de o projeto anistiar pessoas desconhecidas e não condenadas. A fórmula obscura foi adotada porque o governo não estava apenas preocupado com torturadores. Ao anistiar os “crimes políticos ou praticados por motivação política”, o projeto garantia que, no futuro, nenhum militar seria punido em função das ilegalidades praticadas durante a ditadura. Conforme registrou Ana Lagôa, a propósito do atentado à bomba que integrantes da linha dura perpetraram contra uma comemoração pelo Dia do Trabalho, em 1981, no pavilhão do Riocentro, no Rio de Janeiro, “(...) em função da anistia (...), nenhum militar se sentará no banco dos réus. O desagrado que isso possa provocar no meio civil é irrelevante, do ponto de vista da segurança, e passageiro, do ponto de vista da estratégia de gradual e lenta democratização do país (...)” Do contexto, passamos questionar se a referida lei não está realmente deturpando os preceitos constitucionais e internacionais de direitos humanos, atingindo de maneira direta as bases consagradas pelo Estado Democrático de Direito a fim de deixar impunes os agentes ditatoriais. Desde logo, deixa-se transparente que a manutenção da Lei da Anistia no 15 ordenamento jurídico brasileiro configura uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente (PIOVESAN, 2009, p. 203). Dessa forma, acredita-se ser considerada válida a efetiva punição dos agentes repressores da ditadura militar. Para que isso ocorra, contudo, é necessário que haja manifestações contra a Lei da Anistia e, consequentemente, punição de todos aqueles que cometeram atrocidades, sendo as vítimas, portanto, reparadas dos males por elas sofridos. 5.2 O entendimento da Corte Brasileira na decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 Como já destacado, a discussão acerca da adequação da interpretação dada pelo STF à Lei da Anistia ganhou maior destaque quando o Conselho Federal da OAB propôs, em 2008, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante a Corte Nacional. Com ela, pretendia o Conselho defender que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não deveria se estender aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 180), para assim evitar interpretações que afrontem os preceitos constitucionais, como é o caso de admitir a anistia aos crimes de tortura, que são considerados insuscetíveis de graça e anistia. Ademais, com relação ao fato de a lei da Anistia ter sido fruto de um acordo político, sustentou a OAB que os direitos humanos são inegociáveis, invocando os preceitos fundamentais constitucionais de isonomia, direito de verdade e os princípios republicanos, democrático e da dignidade da pessoa humana. (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 180) 16 Não obstante o forte rol argumentativo apresentado pela Ordem, a decisão proferida pelo Tribunal da Corte Brasileira, por maioria de votos dos ministros 4 , foi pela improcedência da ADPF, mantendo a interpretação de que a Lei da Anistia era ampla, geral e irrestrita, alcançando tanto as vítimas como os que praticaram as atrocidades. Tal deliberação causou grande repercussão, conforme apontado por André Carvalho de Ramos (2011, p. 182), pois além do tema e do forte impacto sobre os familiares que até hoje esperam por justiça, a ADPF surpreendeu por um fato inédito: pela primeira vez uma ação perante o STF com efeito vinculante e erga omnes foi processada simultaneamente a um processo internacional semelhante, em curso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (o caso Gomes Lund) 5 . Acerca desse fato, o autor criticou o risco assumido pela Suprema Corte Brasileira em tomar uma decisão que meses depois poderia ser contrária à decisão da Corte de San José, o que poderia causar uma repercussão internacional negativa para o país. Acredita-se que a Corte Brasileira deveria ter agido com maior cautela, pedindo o adiamento do julgamento da ADPF para assim analisarem os argumentos da futura sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que envolvia uma questão amplamente discutida no âmbito internacional: a violação dos direitos humanos. Ao analisar os argumentos expostos pelos ministros a favor da improcedência da arguição, depara-se com uma preocupação, por parte deles, em anunciar que a Lei da Anistia teria sido expressão de um acordo político, de uma conciliação nacional, o qual envolvia “diversos atores sociais, anseios de diversas classes e instituições políticas”, não devendo o Supremo “avançar sobre a competência constitucional do Poder Legislativo”, tendo em vista 4 A saber, houve participação de nove ministros, dos quais sete ministros declararam pela improcedência da arguição – o relator Eros Grau, Carmen Lúcia, Ellen Gracie, Marcos Aurélio, Cezar Peluso, Celso de Mello e Gilmar Mendes – e dois ministros se posicionaram pela procedência parcial do mérito – Min.Lewandowski e Carlos Britto. 5 A título de informação o caso Lund Gomes é um dos fatos referentes às ações de repressão realizadas pelas Forças Armadas no período entre 1972 e 1975, nas margens do rio Araguaia, no Pará. Os atos violentos foram de detenção, tortura, desaparecimento e execução de pelo menos 70 pessoas, segundo informações do Centro de Justiça e o Direito Internacional. Das 70 vítimas desaparecidas, somente foram encontradas os corpos de quatro delas, auxiliado pelas ações de parentes. O caso é o primeiro a chegar para a Corte Interamericana relacionado com crimes cometidos durante a Ditadura Militar e dele foi debatido os alcances da Lei da Anistia que até o momento impediu que se investigasse a fundo o ocorrido, deixando os autores desses atos bárbaros impunes. 17 que “a revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá de ser feita pelo Poder Legislativo e não pelo Poder Judiciário” (PIOVESAN, 2011, p. 81). Porém, o tema vai muito além, motivo pelo qual se deveria levar em consideração a discussão acerca dos direitos humanos, e não se a lei da anistia foi fruto de um acordo político, tendo em vista que os direitos humanos são inegociáveis e qualquer ato de violação a esses direitos é passível de apuração a qualquer momento, pois são eles imprescritíveis. Sobre o tema, assim disserta a doutrinadora Flávia Piovesan (2009): [...] há que se afastar a insustentável interpretação de que, em nome da conciliação nacional, a lei de anistia seria uma lei de ‘duas mãos’, a beneficiar torturadores e vítimas. Esse entendimento advém da equivocada leitura da expressão ‘crimes conexos’ constante da lei. Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas, que se encadeiam em suas causas. Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não àqueles; perdoou às vítimas e não aos que delinquem em nome do Estado. Ademais, é inadmissível que o crime de tortura seja concebido como crime político, passível de anistia e prescrição. Em sequencia, consta como um dos argumentos apresentados pelo ministro relator Eros Grau, pela improcedência da ADPF 153, que a invalidação da lei iria de encontro com um dos postulados mais consagrados pela nossa Constituição: a segurança jurídica, pois ao revogá-la estaria penalizando os militares por crimes que já foram anistiados, não devendo retomar um passado de mais de 30 anos, caso contrário iria colidir com o princípio da irretroatividade da lei penal, contemplado no art. 5º, inciso XI, da CF/88. O relator, ainda, acrescentou a sua argumentação o fato da anistia consistir como uma “via de mão dupla”, em que a promulgação da Lei da Anistia representava um momento histórico no qual a sociedade desejava esquecer o passado e seguir em frente. 6 Tal argumento não faz sentido, a sociedade não esqueceu o passado com a Lei da Anistia, pelo contrário ainda há sentimentos de revoltas com a injustiça praticada àquela época. Além do mais, ao defender os direitos humanos, buscamos consolidar a estabilidade 6 O voto do ministro Eros Grau, na íntegra, está disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf> acesso em 22 de maio de 2012. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf 18 tão idealizada do Estado Democrático de Direito e, com isso, a segurança jurídica de que esses crimes não voltariam a ocorrer. Destarte, urge afirmamos que não estaríamos transgredindo a segurança jurídica, pelo contrário, estaríamos a consolidá-la, principalmente quando se adota essa tese perante o âmbito internacional. Mais a frente, após uma análise minuciosa dos votos dos ministros Eros Grau, Ellen Gracie, Marcos Aurélio, é possível afirmar que os respectivos não se atentaram em mencionar a Convenção Americana de Direitos Humanos, que poderia realmente influenciar em uma decisão favorável à ADPF 153, considerando que existem votos do próprio STF em outros julgados a favor da dignidade constitucional de todos os tratados de direitos humanos, exatamente pelo fato de esses expressarem interesses primordiais para a base de Estado Democrático de Direito. Quanto ao ministro Celso de Mello, este priorizou a não condenação desses crimes já assegurados pela segurança e irretroatividade penal, e enfatiza que esse fato nada obsta que o indivíduo possa averiguar o ocorrido durante o período ditatorial, assim são as suas palavras: Vê-se, portanto, que assiste a toda a sociedade o direito de ver esclarecidos os fatos ocorridos em período tão obscuro de nossa história, direito este que, para ser exercido em plenitude, não depende da responsabilização criminal dos autores de tais fatos, a significar, portanto, que a Lei nº 6.683/79 não se qualifica como obstáculo jurídico à recuperação da memória histórica e ao conhecimento da verdade.7 Mediante tais afirmações, questiona-se se adiantaria investigar a verdade, se não pode ser ela efetivamente julgada e condenada. Isso certamente poderia instigar um sentimento de revolta pela não impunidade. Essas indagações são realidades as quais não conseguiremos abandonar, já que elas colidem frontalmente com os consagrados direitos humanos. Outro argumento que deve ser mencionado é o do ministro Celso de Mello, que apesar de fazer referência à jurisprudência internacional, procurou apenas enfatizar que os precedentes existentes seriam aplicáveis somente a casos de leis de autoanistia, reiterando que 7 Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo588.htm> > acesso em 25 de maio de 2012. http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo588.htm 19 no Brasil a Lei de Anistia, por ser fruto de um acordo político, não poderia ser considerada autoanistia e, assim, seria incabível invalidá-la. Por outro lado, não apreciou o posicionamento da Corte de San José e outros órgãos internacionais, os quais condenam a impunidade dos violadores de direitos humanos, não importando a questão formal da origem da lei de anistia, seja ela por acordo ou por autoanistia. Os votos dos ministros que se tornaram mais coerente para a tese aqui firmada foram os de Lewandowski e de Carlos Ayres Brito. O primeiro, apesar de não adentrar na tipificação dos delitos e a imprescritibilidade dos mesmos, por ter considerado desnecessário tal fundamento, expôs o dever brasileiro de investigar, processar e punir criminalmente os autores das violações graves de direitos humanos na época da ditadura, reconhecendo a necessidade de cumprir a interpretação dos direitos previstos no Pacto Internacional de Diretos Civis e políticos, ao invés de criar uma estranha “interpretação nacional” e afirmar, posteriormente, estar em linha com os direitos humanos internacionais. Tal fato demonstrou sintonia com os tratados internacionais de direitos humanos e, consequentemente, com os preceitos arrolados na Constituição. Já o ministro Carlos Ayres Britto trouxe à baila o instituto da recepção, segundo o qual toda norma promulgada anteriormente à vigência de uma nova Constituição não pode colidir com o novel texto Constitucional, sob pena de ser declarada não-recepcionada por esta Lei Maior. Sendo assim, fez uma análise do dispositivo presente no artigo 5°, XLIII, da CF/88, que veda expressamente a concessão de anistia, graça ou fiança ao “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, a tortura e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”, nos reportando que toda a legislação anterior a Carta Maior de 1988 deve se adequar a esta nova realidade, principalmenteno que diz respeito a Lei da Anistia. Frente às considerações atribuídas pelo Pretório Excelso quanto à confirmação da validade da interpretação da lei da Anistia, percebe-se nitidamente que o mesmo não 20 considerou as obrigações assumidas no âmbito internacional, tornando-se controversa no país, pois em momento algum foi colocado em pauta a convencionalidade da lei no julgamento da ADPF 153. Dentre elas podemos destacar o esquecimento da Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção para a Repressão do Crime de Genocídio, pilares do Direito Internacional dos Direitos Humanos; e as convenções de Genebra que constituem um dos principais fundamentos do Direito Internacional Humanitário. (VENTURA, 2011, p. 195) O posicionamento do STF, tendo em vista o julgamento de validade da Lei da Anistia, não considerou o que há de mais importante, que é processar e, se assim necessário, condenar os responsáveis pelos crimes desumanos praticados no regime ditatorial. “Trata-se de uma justiça tardia”, como afirma Luis Flávio Gomes (2011), mas que não pode ser esquecida, de forma a tornar aqueles impunes. Com o desprezo dado as normas internacionais, a Suprema corte acabou por denegar às vitimas o direito à justiça, por mais que ainda tenha afirmado ser direito da mesma esclarecer sobre os fatos vivenciados no período da Ditatura Militar. E em face dessa omissão colocou em risco os princípios humanistas e democráticos consagrados na constitucional brasileira, bem como vai de encontro o teor das obrigações internacionais assumidas pelo Brasil paulatinamente, graças às numerosas convenções relativas aos Direitos Humanos incorporados à ordem jurídica pátria. 5.3 A invalidação da Lei da Anistia Brasileira pela Corte Interamericana de Direitos Humanos Apesar de a Suprema Corte ter ratificado a validade da Lei da Anistia, defende-se ser mais adequado o posicionamento contrário, em conformidade com o perpetrado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo em vista que a disposição presente na Lei da Anistia sendo ampla, geral e irrestrita viola os preceitos estabelecidos pela Convenção 21 Americana de Direitos Humanos. Corrobora-se, portanto, com a ideia de que a referida lei não carece de efeitos jurídicos, não podendo existir e, com isso, se tornar um entrave para a investigação de graves violações de direitos humanos, bem como a identificação e a respectiva punição dos agentes responsáveis pelas atrocidades. Destarte, estamos a demonstrar a priorização da devida proteção dos direitos humanos com a prevalência da verdade e da justiça, o direito de não ser submetido à tortura; e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violações de direito. Daí surge à responsabilidade internacional do Estado, seja em virtude de ato ou omissão legislativa, pois deve o Estado adotar medidas necessárias para investigar, processar, punir e reparar. E a primeira medida a ser adotada deveria ser a revogação da Lei da anistia, pois assim configuraria uma forma de reparação não pecuniária. Em decisão prolatada acerca do caso dos desaparecidos durante a Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece a responsabilidade do Estado Brasileiro pela violação dos direitos humanos durante o período ditatorial, como se pode perceber: (CARVALHO RAMOS, 2011, p. 196-197) O Estado Brasileiro deteve arbitrariamente, torturou e desapareceu os membros do PCdoB e os camponeses listados no parágrafo 94 deste Relatório. Além disso, a CIDH conclui que, em virtude da Lei 6.683/1979 (lei de Anistia), promulgada pelo governo militar do Brasil, O Estado não levou a cabo nenhuma investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis por estes desaparecimentos forçados; que os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos não forma efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos forçados; que os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos o acesso à informação desses familiares; e que o desaparecimento forçado das vítimas, a impunidade dos seus responsáveis, e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos.8 De acordo com o que defende a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o presente estudo defende que o Brasil, ao reconhecer a ineficácia da Lei da Anistia aos agentes torturadores, só tende a fortalecer o Estado Democrático de Direito, dissipando qualquer 8 Disponível em: <http://www.cidh.org/demandas/11.552%20guerrilha%20do%20Araguaia%20Brasil%2026mar09%20PORT.pdf >, acesso em 01 de fevereiro de 2011. 22 ameaça ou instabilidade democrática em tempos futuros, pois demonstraria um combate ao abuso de autoridade frente aos direitos humanos. 5.4 A necessidade do controle de convencionalidade das decisões dos tribunais brasileiros. Preliminarmente, o conceito de controle de convencionalidade, foi apresentado no Brasil pelo doutor e professor Valério de Oliveira Mazzuoli, como um meio judicial de declaração de invalidade de leis incompatíveis com os tratados de direito internacional do qual o Brasil é membro, seja ela por via de exceção (controle de difuso ou concreto) ou por meio de ação direta (controle concentrado ou abstrato), a fim de tornar compatíveis as normas de direito interno com as convenções internacionais, evitando, por sua vez, que o Estado se exima da sua responsabilidade perante a Corte Internacional. (MAZZUOLI, 2011. p. 75) Dessa forma, torna-se de extrema importância o Estado Brasileiro fazer valer o controle de convencionalidade, para que assim fortaleça o valor atribuído aos diretos humanos perpetrado na CF/88, bem como exerça com os compromissos assumidos no âmbito internacional, sendo observados os princípios gerais de boa-fé e o da pacta sunt servanda. Constata-se que a CIDH acusou o Estado Brasileiro de não ter realizado o controle de convencionalidade da Lei de Anistia no tocante à Convenção Americana, que segundo o próprio STF tem valor supralegal. Veja-se uma parte da sentença prolatada pela Corte Interamericana 9 : (...) O Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a 9 Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf> acesso em 23 de maio de 2012. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf 23 responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno. O que fez a CorteInteramericana foi controlar a convencionalidade da Lei da Anistia brasileira em substituição ao Judiciário nacional, que o deveria ter feito. A consequência prática dessa decisão dada pelo Tribunal foi que a Lei de Anistia perdeu seu valor jurídico, não podendo o Estado deixar impunes os autores dos crimes bárbaros cometidos durante a Ditadura Militar, frente a atual dimensão que se encontra os direitos humanos. Diante disso, é necessário reconhecer que quando não exercido o controle de convencionalidade pelo Judiciário interno, faz-se necessário que a Corte Interamericana o realize, valorando os instrumentos, principalmente, os direitos humanos, não mais sendo a Constituição o único paradigma de controle desses direitos. A necessidade de um efetivo controle de convencionalidade configuraria nas palavras de Mazuolli (2011, p. 89) em um “seguro avanço do constitucionalismo pátrio rumo à concretização do almejado Estado constitucional e Humanista de Direito”, visto que seria um meio de evitar que o Estado aja com instintos contrários aos direitos humanos, já que se torna um meio mais amplo que o controle de constitucionalidade. Defesa plausível de ser suscitada para dar validade à tese apontada no presente artigo é a retratada pelos autores Leonardo Martins e Thiago Oliveira Moreira (2011, p. 12). Utilizando como norte o artigo 52, X, da CF/88, os autores citados defendem a possibilidade de adaptação do dispositivo para as decisões prolatadas pela CIDH, podendo o Senado Federal exercer sua discricionariedade de suspender a execução da lei inconvencional como tal declarada em decisão definitiva daquela Corte, paralelamente a sua competência para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF. 24 Se assim ocorresse teríamos mais um instrumento que visa pela máxima proteção dos direitos dos indivíduos, apreciando enfaticamente o princípio da dignidade da pessoa humana, pois além de garantir os preceitos constitucionais referentes aos direitos humanos, estaria o direito internacional a preencher lacunas de proteção desses, por isso a necessidade do controle de convencionalidade. 6 CONCLUSÃO Do exposto, podemos concluir que não se pode consentir que um Estado Democrático de Direito, baseado na proteção aos direitos humanos, permita que as atrocidades cometidas durante a ditadura militar fiquem impunes e que as vítimas daquele sistema não sejam reparadas pelos males sofridos. Assim, considerando a imprescritibilidade dos delitos cometidos pelos agentes estatais durante o período ditatorial, por se tratarem de crimes contra a humanidade, bem como o reconhecimento da eficácia jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, podemos declarar a inconvencionalidade da Lei da Anistia. Dessa forma, o Estado deve ser responsabilizado pelos atos cometidos por seus agentes, devendo investigar, punir e reparar as vítimas e os seus parentes. Com base nisso, percebe-se que, apesar do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal ir de encontro com o pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o assunto iniciado na ADPF 153 não se encontra encerrado. A Ordem dos Advogados do Brasil opôs embargos de declaração em face da decisão definitiva, que apesar de não possuir condão de afastar o acordão inicialmente proferido, encontram-se, desde 28 de junho de 2012, conclusos com o novo ministro relator do processo, Luiz Fux 10 . E agora, nasce uma nova 10 O ministro Eros Grau aposentou-se em 30 de julho de 2010. Luiz Fux foi empossado do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal em 03 de março de 2011. 25 esperança, haja vista que a composição atual do STF encontra-se substancialmente diferente da que julgou inicialmente a ação, pois assim como o ministro Eros Grau, também se aposentaram os ministros Cezar Peluso, Ellen Gracie e Ayres Britto. Além disso, na data do julgamento, não se encontravam presentes os ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli. Por fim, esperamos e nos filiamos à ideia de declarar a Lei da Anistia inválida, para que assim sejam consolidados os Direitos Humanos e firmadas as bases do Estado Democrático de Direito, com a eliminação definitiva de qualquer ameaça ou instabilidade à democracia. Ademais, e não menos importante, tal fato configura-se um dever decorrente das obrigações jurídicas firmadas pelo Estado Brasileiro em âmbito internacional. REFERÊNCIAS ANSARA, Soraia. Memória política, repressão e ditadura no Brasil. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos humanos, 2007. COMPARATO, Fábio Konder. A responsabilidade do Estado brasileiro na questão dos desaparecidos durante o regime militar. In: TELES, Janaína (Org.). Mortos e Desaparecidos Políticos: reparação ou impunidade? 2. ed. São Paulo: Humanitas; FFLCH; USP, 2001. p. 55- 63. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/7010197/Janaina-Teles-Mortos-e- Desaparecidos-PolIticos-Reparacao-Ou-Impunidade> Acesso em: 28 de abril de 2012. DOLHNIKOFF, Míriam; CAMPOS, Flávio de. Manual do Candidato: História do Brasil. 2.ed. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmao, 2001. Disponível em: <http://www.funag.gov.br/biblioteca/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=4 7&Itemid=41> FICO, Carlos. A Negociação Parlamentar Da Anistia De 1979 e o Chamado “Perdão Aos Torturadores”. Revista Anistia Polítca e Justiça de Transição. Ministério da Justiça, nº 4, 2011 FON, Antônio Carlos. Tortura: A história da repressão política no Brasil. 4.ed. São Paulo: Global Editora, 1979. 26 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. GOMES. Luís Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Crimes contra a humanidade a jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (org). Crimes da Ditadura Militar - Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011 MARTINS, Leonardo; MOREIRA, Thiago Oliveira. Constitucionalidade e Convencionalidade dos atos do poder público: concorrência ou hierarquia? Um contributo em face da situação jurídico-constitucional brasileira. In: Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Ano XVII. Montevidéu: Konrad Adenauer Stiftung, 2011. p. 463-483. Disponível em <http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/dconstla/cont/2011/pr/pr30.pdf> Acesso em 28 de abril de 2012. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis. 2ª ed. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2011. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Imprescritibilidade dos crimes de tortura. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e Verdade: A justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p.135- 140. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências, um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Humanitas/Fapesp,2006. PARIZ, Tiago. Ditadura brasileira não foi tão violente como a do Chile, diz Lula. Portal G1, Brasília, 15 de dezembro de 2006. Disponível em <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,AA1389501-5601,00.html> Acesso em: 19 de maio de 2012. PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos Direitos Humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.).Memória e Verdade: A justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p.197-212. PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o caso brasileiro. In GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (org). Crimes da Ditadura Militar - Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 73-86. RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e aCorte Interamericana de Direitos Humanos. In GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (org). Crimes da Ditadura Militar - Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 174- 225 TAVARES, André Ramos; AGRA, Walber de Moura. Justiça Reparadora no Brasil. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e 27 Verdade: A justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p.69-91. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 1.ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. 3 v. VENTURA, Deisy. A Interpretação Judicial Da Lei De Anistia Brasileira E O Direito Internacional. Revista Anistia Polítca e Justiça de Transição. Ministério da Justiça, nº 4, 2011.
Compartilhar