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Índios idealizados: romantismo e as políticas de Rondon Prof. Daniel Vainfas Descrição A questão indígena no Brasil do século XIX aos dias atuais e sua relação com as políticas de Rondon e a antropologia nacional. Propósito Compreender a trajetória histórica das políticas indigenistas é fundamental para uma avaliação crítica da participação dos povos indígenas na sociedade brasileira atual, demarcando a valorização da sua contribuição para a formação da identidade nacional para além de teses clássicas assimilacionistas. Objetivos Módulo 1 A questão indígena no Brasil: disputa dos discursos Reconhecer as bases históricas da política indigenista brasileira. Módulo 2 As Forças Armadas e a questão do indigenismo Relacionar a política indigenista com as questões associadas à segurança nacional e às Forças Armadas. Módulo 3 A decolonialidade do debate Analisar as formas tradicionais de pensar a política indigenista a partir dos conceitos do debate decolonial. Introdução – Professor, acho que você se enganou! Não são “índios”, essa era uma visão antiga... Hoje, falamos em “povos originários”, ou “povos indígenas”, para dar uma pluralidade, não é isso? – Muito bem observado! Mas o termo usado é o termo datado mesmo, para que você consiga ver como eram tidos como uma entidade, algo único. A partir do momento que reconhecemos suas singularidades, hoje, é que notamos que são etnias diversas, daí a valorização de termos plurais. Nosso olhar passa por essa transformação. Vamos entender melhor? Quando pensamos nos povos indígenas brasileiros, somos reféns de duas imagens: de um lado, o indígena dizimado pelo contato com os povos europeus, reduzido a um refugiado na própria terra; de outro, o indígena fossilizado, preso a formas de sociabilidade arcaicas e estagnado em sua cultura material. A realidade, contudo, é muito mais complexa: os povos indígenas são um elemento vivo da sociedade brasileira que atua no cenário nacional desde antes do início da ocupação portuguesa. Seus diversos papéis ao longo da história, assim, se traduzem no complexo drama nacional. 1 - A questão indígena no Brasil: disputa dos discursos Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer as bases históricas da política indigenista brasileira. A idealização do século XIX Inicialmente relatada por Lévi-Strauss e recontada por Viveiros de Castro (2014), uma das anedotas mais famosas acerca da relação entre os povos originários do continente americano e os exploradores europeus, ainda no século XVI, servirá de ponto de partida para nossa jornada. Diante da descoberta de um continente inteiramente novo, ausente de todos os mapas e desconhecido pela antiga civilização greco-romana, a intelectualidade europeia do período ficou em choque. Era preciso, afinal, encaixar aquela nova massa de terra não apenas nos mapas, mas também na cosmovisão europeia da época. Isso significou um acalorado debate entre os jesuítas, vanguarda não apenas da exploração desse mundo desbravado, como também da fronteira intelectual na Europa, acerca da seguinte pergunta: seriam os habitantes do novo mundo dotados de alma? Naturalmente, essa era a forma que um europeu do século XVI, imerso na religiosidade típica do período, marcada pela Reforma Protestante, encontrava para indagar se os povos da América eram pessoas ou não, dada inclusive a ausência de menções ao continente americano nos textos religiosos cristãos. Após anos de discussão e argumentos extensos, os jesuítas se deram por satisfeitos e decretaram que tais povos tinham alma e deviam, portanto, ser convertidos e salvos. Retração da América, Jan Galle, por volta de 1615. Enquanto conduziam esse debate nos círculos intelectuais europeus, os indígenas daqui estavam igualmente estarrecidos com a presença dos europeus, pois se tratava de um povo que viera do mar, de uma terra distante, e que precisava ser encaixado na cosmovisão dos povos americanos. Por isso, capturaram alguns exploradores e iniciaram um debate próprio em torno da humanidade dos visitantes: seriam os habitantes da Europa dotados de corpo? Para os indígenas antropofágicos que fizeram esse contato inicial, essa era a pergunta-chave a ser respondida, porque humano era aquele que tinha corpo e que, por isso, podia ser ritualisticamente devorado e participar do universo religioso. Desse modo, após cozinharem os exploradores e realizarem o ritual adequado, eles chegaram à conclusão de que os europeus eram dotados de corpo, sendo, portanto, gente. O desembarque dos portugueses no Brasil em 1500, Roque Gameiro, por volta de 1900. Essa história é muito ilustrativa não apenas da forma específica pela qual o debate toma corpo, mas também pela simetria dos processos: de ambos os lados do Atlântico, havia um esforço para encaixar cada um dos novos habitantes do mundo na sua cosmovisão vigente. Nos dois casos, o veredito alcançado foi o da humanidade do outro, ainda que com os percalços da época. São justamente esses percalços que nos interessam! A condição humana é sempre idealizada, seja na forma da alma ou na forma do corpo. Por isso, quando observamos o século XIX, vemos um tensionamento entre duas visões distintas sobre os indígenas: Busca pela assimilação dos indígenas por parte do Estado brasileiro Pelo meio que o Estado julgasse conveniente, os indígenas deveriam ser convertidos em trabalhadores disciplinados e produtivos. Busca por justi�car-se como país por parte do Estado brasileiro Como jovem nação, precisavam construir para si uma memória comum e uma unidade simbólica capaz de converter todos os habitantes do território em brasileiros. Para que isso acontecesse, a multiplicidade de nações indígenas mostrava ser um grande entrave: não é possível que haja uma memória coletiva comum se existem tantos povos distintos e – mais grave – se a institucionalidade herdada do antigo regime português reconhece tal multiplicidade. Os indígenas brasileiros não eram simplesmente povos submetidos: muitos deles foram incorporados como súditos do rei pelos mecanismos de vassalagem europeus adaptados aos trópicos. O problema para a política brasileira da época era, portanto, o de contornar essa herança típica das monarquias europeias e homogeneizar os súditos da nova Coroa brasileira. Para isso, deslocou-se o foco do indígena real, que participava da vida política, tinha acordos com o imperador e era reconhecido como vassalo, para um imaginado, idealizado e que, segundo os formuladores dessa ficção, existira no passado, mas já não existia no presente. ecanismos de vassalagem europeus adaptados aos trópicos Um povo que atuasse como aliado da Coroa em uma guerra podia requisitar a mercê de ser reconhecido como um vassalo parcialmente autônomo e dotado de um estatuto próprio que o tornava, diante da Coroa e dos demais vassalos, um sujeito dono de direitos e deveres. O último Tamoio, Rodolpho Amoêdo, 1883. Um belo dia era o dia 7 de setembro de 1822, Ângelo Agostini, 1883. Essa separação entre um suposto indígena do passado (heroico e digno, sendo convertido em símbolo nacional) e aquele concreto e contemporâneo (mesmo violento e insubmisso) dialogava com a política assimilacionista do Império. O chamado “índio” simbólico do passado funcionava como um ideal que norteava a política do presente e contribuía para o apagamento dos movimentos indígenas problemáticos ao regime. Iracema, José Maria de Medeiros, 1881. A arte brasileira e os povos originários Confira agora a questão dos povos originários na representação artística do século XIX e sua ressignificação no século XX. A República e a questão indígena Esse processo de apagamento indígena continuou com a transformação do Império em República. Se antes ele era formulado como um súdito do imperador, agora devia ser pensado como um cidadão nacional, submetido, portanto, à égide do Estado brasileiro. Assim como todos os demais cidadãos, o indígena deveria diluir-se na pátria como um em muitose igual a todos. Apesar disso, foi definido no Código Civil de 1928 que o indígena não era cidadão pleno, sendo sujeitado ao chamado poder tutelar, de modo que a participação política dos povos originários foi, ao longo de quase todo o século XX, mediada pelo próprio poder estatal. Essa mediação tomou forma institucional primeiramente a partir do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, posteriormente, da Fundação Nacional do Índio (Funai). Iracema, José Maria de Medeiros, 1881. O SPI teve um papel importante na mediação do contato com os Ka’apor no Pará. Também conhecidos como Urubus por conta dos seus adornos com plumas, os Ka’apor eram um povo habitante da Amazônia que vivia em constante contato com os habitantes brasileiros do Pará. Fotografia de Darcy Ribeiro de um membro do povo Ka’apor, de 1951. Em 1911, o SPI fez um primeiro contato para iniciar os chamados “esforços de pacificação”, oferecendo algumas ferramentas de aço aos Ka’apor. Entretanto, esse primeiro contato terminou com um integrante do SPI ferido pela flechada de um dos indígenas. Os anos subsequentes foram marcados por: Expedições punitivas conduzidas pelo Estado às aldeias Ka’apor. Incursões dos Ka’apor às cidades brasileiras, quase sempre em busca de ferramentas de aço que eles convertiam em pontas de �echas. Esse processo violento só terminou em 1928, quando os Ka’apor dirigiram-se pacificamente a um posto do SPI para sinalizar que as hostilidades deveriam ter fim. Ao mesmo tempo que essas relações do SPI eram marcadas pela violência estatal contra os indígenas, o órgão, ainda na missão do século XIX de “civilizar” e “pacificar” os povos nativos a fim de incorporá-los ao Estado, teve um papel relevante: estabelecer uma linha de contato entre os indígenas e uma nova abordagem etnográfica que ganharia corpo no século seguinte. Escola do Posto Indígena Rodolfo Miranda, Amazônia, 1922. Uma das figuras que sintetiza esse movimento é Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que dedicou sua vida ao estudo dos indígenas brasileiros. Na segunda década do século XX, a serviço justamente do SPI, ele esteve em contato com indígenas amazônicos – entre os quais, os Ka’apor. Curt Nimuendajú. Nimuendajú usou de sua posição com o SPI para denunciar crimes contra os indígenas da região, mesmo no caso de seus perpetradores terem sido inocentados pela justiça da época. Sua postura trazia como norte a preservação da cultura indígena, opondo-se à linha dominante de assimilação ao país. Da mesma forma, os indígenas Ka’apor divergiam entre si quanto à forma de se aproximarem do Brasil que se apresentava a eles. Por isso, seus membros alternavam-se entre incursões militares e negociações pacíficas, o que gerou reflexos tanto nas tensões externas quanto nas divergências internas. Esses tensionamentos também indicavam fraturas no projeto geral do Estado brasileiro. Seus objetivos, afinal, já se tornavam menos monolíticos e os processos de idealização, diferentes. Duas vertentes atuavam dentro do próprio Estado e tensionavam a política nacional: De um lado, havia o campo estabelecido de que os indígenas devem ser assimilados à sociedade como um em muitos e igual a todos. De outro, um conjunto novo de etnógrafos pauta a autonomia do indígena e a defesa de uma política de não contato. O indígena na segunda metade do século XX Em 1967, o SPI, como apontamos, foi convertido em Funai, embora sua missão institucional permanecesse a mesma. Contudo, alguns novos tensionamentos surgiram. Exemplo Ganha destaque a política de demarcação de terras indígenas, cujo caráter inalienável passa a ser estabelecido pela Constituição de 1967. As décadas seguintes são marcadas por uma crescente transformação da linha dominante da política indigenista brasileira. Se até então a tônica era sua incorporação na sociedade brasileira, começa a ganhar destaque agora uma política de preservação cultural. Essa transformação veio acompanhada de outros atores, que passaram a ocupar o palco da questão indigenista. A resistência indígena aos processos de submissão ao Estado geraram frutos dentro da própria sociedade brasileira. Exemplo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que é vinculado à Igreja Católica. Criado em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ao longo da década de 1970, foi responsável pela organização de grandes assembleias entre diversos povos indígenas diferentes. Isso contribuiu para a articulação de uma agenda indígena mais ampla, desfazendo o caráter fragmentário das lutas locais e colocando as reivindicações dos diversos povos como uma questão coesa a ser trabalhada pela institucionalidade brasileira. É também na esteira dessa transformação que surge a União das Nações Indígenas (UNI), em 1981, cujos coordenadores levaram uma proposta para a Constituinte de 1987 acerca da questão indigenista. No ano seguinte, ela foi convertida no capítulo VIII (“Dos índios”) da Constituição de 1988. Indígenas de diversas etnias fazendo vigília no Congresso Nacional para garantir seus direitos na Constituinte, em junho 1988. Trata-se, portanto, da consolidação na lei da busca por autonomia frente ao próprio Estado brasileiro. A partir de 1988, a noção de tutela do Estado sobre os indígenas torna-se uma figura do passado, sendo reconhecido o direito de os indígenas pleitearem frente aos órgãos públicos sem a mediação de nenhum órgão específico, por exemplo, a Funai. Evidentemente, essa transformação não foi realizada sem obstáculos. A própria existência de um regime ditatorial ao longo desse período já indica uma situação de tensão que transbordava em violência estatal. Um indígena foi mostrado no pau-de-arara em Belo Horizonte, durante solenidade de formatura da primeira turna do reformatório Krenak, em fevereiro de 1970. Esses centros de detenção arbitrária de indígenas tinham como objetivo liberar terras para posseiros. Exemplo Em 1982, a Funai assina um contrato com uma empresa de mineração permitindo a exploração econômica das terras dos Waimiri-Atroari no estado do Amazonas. Anos antes, entre 1972 e 1974, uma incursão do Exército brasileiro para a construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, causou a morte de mais de 2.000 membros dessa etnia por conta do uso de armas de fogo pelas tropas brasileiras contra as populações indígenas locais. Esses massacres e a relação dos órgãos estatais (tanto o SPI quanto a Funai) com o ocorrido ficaram conhecidos por conta do trabalho de dois missionários do CIMI: Egydio Schwade e sua esposa, Doroty Schwade. Egydio Schwade em Roraima, na aldeia Yawara. ao lado dos Waimiri-Atroari, a quem ajudou a alfabetizar entre 1985 e 1986. Ambos descobriram a tragédia após terem implementado um projeto de alfabetização na língua nativa entre 1985 e 1986, pois seus arquivos contavam com desenhos dos alunos da alfabetização retratando os massacres, além de diversos recortes de fontes oficiais em que havia algum registro das violações de direitos que vitimizaram os indígenas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 O projeto indigenista nacional apresenta transformações e permanências ao longo do século XX. Com base nisso, é correto afirmar que Parabéns! A alternativa C está correta. Em oposição à linha tradicional de incorporação do indígena ao Estado brasileiro, o reconhecimento da inalienabilidade da terra indígena representa uma maior autonomia desses povos, já que eles podem exercer suas formas de reprodução social sem a tutela do Estado. A forma atual dessa jurisdição é, em si mesma, fruto das reivindicações dos anos 1980 e representa uma conquista frente às formas tuteladas de existência anteriores. A o projeto de integração do indígena como trabalhador nacional é a tônica atual da legislação indigenista presente na Constituição Federal. B a integração do indígena visava à sua transformação em trabalhador industrial, contribuindo para o desenvolvimento econômico do país. C a garantia do direitoinalienável à terra foi uma conquista de autonomia indígena e ampliou suas possibilidades de autodeterminação. D o reconhecimento pela Constituição Federal de 1967 do direito das comunidades indígenas à inalienabilidade da terra representa uma continuidade da política do SPI de incorporação do indígena à cidadania brasileira. E as transformações na política indigenista ocorreram sem sobressaltos, sendo fruto da continuidade política vigente desde o fim do Império. Questão 2 A idealização romântica do indígena no século XIX foi um fenômeno basilar da construção da identidade nacional, porque Parabéns! A alternativa C está correta. O esforço de idealização do indígena heroico está associado à criação de um exemplo pacífico que teria existido no passado, sendo distinto dos indígenas violentos com os quais o Império tinha contato. Ao criar o exemplo de um indígena a ser seguido, tal figura mitológica não apenas permitia uma referência comum de um passado brasileiro, como também norteava o projeto assimilacionista. A permitiu a unificação do povo brasileiro a partir das experiências concretas das relações com os indígenas. B representou uma tendência jurídica herdada do antigo regime europeu, no qual a identidade nacional era moldada pela relação de vassalagem ao rei. C transformou os indígenas reais em figuras conflituosas e justificou a política de assimilação pela força. D permitiu substituir o indígena real dos conflitos armados por um indígena pacificado, o qual, sendo imaginário, seria capaz de homogeneizar a população indígena e nortear a política de assimilação. E representou os ideais de nacionalismo europeus adaptados para a figura do indígena real em constante guerra com o antigo Estado português, sendo, portanto, um ícone de rebeldia e insubordinação. 2 - As Forças Armadas e a questão do indigenismo Ao �nal deste módulo, você será capaz de relacionar a política indigenista com as questões associadas à segurança nacional e às Forças Armadas. Questão nacional No âmbito nacional, a questão fundamental para as políticas indigenistas é a relação com a terra e os recursos naturais a elas associados. Tanto os recursos minerais quanto os hídricos, assim como a própria utilização das terras para a agropecuária, são elementos de tensão entre as comunidades indígenas e a economia nacional. Um exemplo típico dessa tensão é a questão do garimpo em terras indígenas. Mesmo proibido, ele é praticado em larga escala desde os anos 1970 com a corrida do ouro na região Norte do país. Estimativas apontam a entrada e a atuação ilegal de cerca de 40 mil garimpeiros na região, o que teria aumentado o conflito com os indígenas, além de expor populações isoladas a doenças infectocontagiosas. Atividades de extração ilegal de ouro no Rio das Tropas, na Terra Indígena Munduruku, na região do Alto Rio Tapajós, no sudoeste do Pará. Esse processo não acontece sem a anuência do Estado. Pelo contrário: ele costuma ser um agente promotor da exploração econômica das terras indígenas, muitas vezes opondo-se às próprias determinações legais elaboradas por outros agentes estatais. Um caso emblemático foi a exploração das terras Yanomâmi pelo garimpo nos anos 1980 que contou com o apoio da Funai. Essa fundação atuou para remover as organizações internacionais e religiosas que atuavam na região sob o pretexto de que elas estariam incentivando a hostilidade contra os garimpeiros. Esse processo só foi revertido com a demarcação definitiva das terras Yanomâmi em 1992. Porém, com a elevação da cotação do ouro, o problema retornou na década de 2020. Planet/MapBiomas / site-antigo.socioambiental.org Planet/MapBiomas / site-antigo.socioambiental.org A Terra Indígena Apyterewa em 2017 e 2020. A Terra Indígena Apyterewa foi uma das áreas que mais sofreu com a interrupção das operações do Ibama em abril de 2020. O recrudescimento dos problemas diante da elevação do valor monetário de determinado recurso associado às terras indígenas se repete quando o assunto é a questão fundiária. Conforme o preço da terra sobe e ela se valoriza como ativo, há também movimentos para incorporar as terras indígenas ao setor dinâmico da agricultura, ou seja, o agronegócio. Essa incorporação ocorre principalmente na fronteira agrícola do país. Trata-se, no caso atual, da Amazônia, que também se destaca como um espaço de expansão da mineração associada ao garimpo, o que se verifica no caso das terras Yanomâmi. Uma das construções incendiadas nas terras Yanomâmi, Roraima, em maio de 2022. Pensando no processo de ocupação territorial da Amazônia, existe uma sequência da exploração econômica que cria desafios para a territorialidade indígena. A ponta de lança costuma ser a instalação de uma empresa mineradora ou a descoberta de algum recurso mineral de alto valor que estimule o influxo de garimpeiros. Com a instalação da mineradora ou dos próprios garimpeiros, é construída uma infraestrutura básica necessária para a circulação e o escoamento dessa matéria- prima. Durante sua construção, o que se verifica predominantemente no caso das estradas, iniciam-se os contatos com os territórios indígenas, já que as estradas construídas, muitas vezes, passam pelo interior das suas terras. Essa violação inicial é acompanhada pelo avanço de outras empresas extrativistas, como as madeireiras, que usam a infraestrutura construída pela mineração e pelo garimpo para o transporte dos seus produtos. Isso significa maior fluxo de carga e de pessoas pelas estradas que cortam as terras indígenas. Nesse cenário, as tensões se acirram, aumentando os riscos de confronto entre indígenas e mineradores ou madeireiros. Garipeiros usando mercúrio, substância altamente poluente, para separar o metal dos dejetos, em Roraima, fevereiro de 2021. Como a exploração de madeira reduz a densidade florestal, isso possibilita a chegada dos primeiros fazendeiros. Eles não ocupam a terra inteira, mas se apossam de pequenos lotes das terras abertas, eventualmente convertidas em propriedade privada própria por meio da chamada grilagem das terras. A grilagem é o processo de conversão de um assentamento irregular em um título legal de propriedade com a chancela do Estado. Trata-se de um processo típico da ocupação de terras na fronteira dos assentamentos existentes, sendo muito associada ao processo de expansão sobre a Amazônia. Ela é uma grande fonte de conflito com os indígenas, já que, às vezes, o assentamento inicial ocorre em terras indígenas em processo de demarcação. Isso cria uma dupla titularidade dessas terras, que passam a ser disputadas por indígenas e grileiros. Terra Indígena Piripikura após a invasão de grileiros, madeireiros e criadores de gado, Mato Grosso, em março de 2022. Por fim, com as terras convertidas em propriedade de fato, os pequenos lotes são adquiridos por algum empreendimento do agronegócio e convertidos em latifúndios, entrando de fato no mercado de terras mais amplo. Esses latifúndios consolidam a ocupação do território e sedimentam a infraestrutura irregular inicial, o que cristaliza um cenário de violação da integridade territorial indígena. Atenção! É importante notar que, por mais que o direito à terra inalienável seja garantido aos povos indígenas, boa parte dessa operação descrita ocorre às margens da legalidade. Muitas vezes, o Estado entra no fim do processo para chancelar as mudanças na paisagem e reconhecer o direito à propriedade dos agentes privados que ocuparam aquele território. Isso cristaliza a divisão territorial construída ao longo do assentamento dessas novas populações, fator que, às vezes, envolve alguma violação das terras indígenas – mesmo daquelas previamente demarcadas. Resultado: a situação de conflito original é perpetuada. Questão internacional Até agora vimos a política indigenista a partir de um prisma histórico nacional. No entanto, existe também uma dimensão internacional nessa questão, já que a convivência entre as populações de origem coloniale os indígenas não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, estando presente em diversas partes do globo. A partir da década de 1970, a causa indígena dá início a um processo de internacionalização a partir de uma série de conferências entre líderes regionais. O marco inicial desse processo é a Primeira Reunião de Barbados (1971), seguida pela Segunda Reunião de Barbados (1977) e pela Reunião de São José na Costa Rica (1981). Vicente Kañas, o Kiwxi, membro do Conselho Indigenista Missionário, assassinado em 1987 a mando de fazendeiros interessados nas terras do povo Enawenê-Nawê, com os quais atuava. . Consolidadas na Declaração de São José (1981), essas reuniões internacionais pautaram dois temas gerais da causa indígena americana que estão intimamente relacionados. Vamos conferi-los! Etnocídio Trata-se de um termo usado para descrever a destruição da cultura de um povo, em vez do povo em si mesmo. Na leitura de tais conferências, o maior responsável pelo etnocídio era justamente a política de crescimento econômico associada a uma visão de modernização e de exploração econômica do território que via nas comunidades indígenas um entrave a esses processos. Direito ao etnodesenvolvimento O etnodesenvolvimento surge, portanto, como uma resposta. Ele propõe que as comunidades indígenas sejam as protagonistas da própria trajetória de evolução, construindo um novo paradigma de desenvolvimento no qual a preservação das características étnicas seja valorizada. Tal protagonismo na trajetória de desenvolvimento significa algum grau de autonomia (administrativa e política) sobre o próprio território para tomar as decisões que a comunidade julga necessárias, a fim de concretizar esse ideal próprio de evolução. Isso, porém, abriu margem para alguns questionamentos por parte dos Estados que convivem com a questão indígena, como o Brasil, porque essa previsão de autonomia poderia dar margem a um processo de secessão do território no qual os movimentos indígenas atuariam como movimentos separatistas. Diante dessa ressalva sobre a integridade territorial, a qual constituiu uma preocupação de diversos Estados signatários da ONU, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) organizou, em 1991, a Convenção nº 169. Nessa convenção, a OIT explicitamente desfez a relação entre o termo “povo” e o direito internacional, o que, em tal debate em particular, significa que: a autonomia indígena não se confunde com a soberania nacional. Organização Internacional do Trabalho (OIT). Outro tema que surgiu a partir desse debate foi a questão das terras de fronteira, já que a noção de autonomia político-administrativa representaria um problema ao patrulhamento nas fronteiras e poderia ser instrumentalizada de modo a torná-las mais porosas. Esse fato seria agravado pela existência de comunidades indígenas em mais de um Estado nacional cujas fronteiras cortassem as áreas de tais comunidades. Atenção! Sobre alguns movimentos a esse respeito, a questão da fronteira é um falso problema, pois a soberania territorial se estende sobre as áreas indígenas e necessariamente sobre o seu entorno. A questão nesse âmbito diz mais respeito a disputas políticas internas do que propriamente a uma questão internacional do indigenismo. Lógica vinculada ao Exército A questão da fronteira reaparece quando nos voltamos para a relação entre os indígenas e o Exército. Uma das grandes preocupações dessa corporação é a integração territorial brasileira, com um apreço peculiar às terras fronteiriças, onde seria mais necessário resguardar a soberania nacional. Essa relação triangular entre exércitos, indígenas e fronteiras adquiriu diversos matizes ao longo da história brasileira. Ainda na década de 1930, o SPI foi transferido para o Ministério da Guerra, e uma de suas diretrizes passou a ser a incorporação dos indígenas como guardas de fronteiras. Lideranças indígenas, em protesto, deixaram em frente ao Ministério de Minas e Energia (MME) um rastro de sujeira similar àquele que o garimpo tem deixado para povos, como os Yanomami, os Munduruku e os Kayapó, em Brasília, em março de 2022. Tal processo envolvia uma modalidade de “educação cívica” desenvolvida para fomentar o sentimento de: A postura do Exército brasileiro com as regiões afastadas dos grandes centros populacionais (e, em especial, a Amazônia) pode ser condensada nas palavras de ordem “Integrar para não entregar”, cunhadas ainda na época da ditadura militar. A preocupação com a soberania nacional se traduz na ocupação e na integração do território fronteiriço à economia nacional. Isso ganha contornos mais visíveis quando setores do Exército se manifestam contra a demarcação dos territórios Yanomâmi na parte norte de Roraima, levantando o fantasma do risco da porosidade das fronteiras em função da autonomia das terras indígenas. Além disso, existe o risco aventado de uma partição do território nacional à luz da soberania indígena, possibilidade trabalhada pelos militares brasileiros como um risco real, mesmo nunca sendo concretizada. Nacionalidade brasileira. Rejeição a qualquer tentativa dos estrangeiros do outro lado da fronteira de aproximação e de criação de vínculos. Yanomamis, Mundurukus e Kayapós se cobrem de sangue e lama para protestar contra o Projeto de Lei nº 191/2020, que libera a mineração e o garimpo em terras Indígenas, em Brasília, em março de 2022. Além dos debates da intelectualidade militar ou as manifestações políticas de suas lideranças, houve casos mais concretos, estando associados à construção da infraestrutura que atravessa as terras indígenas. Exemplo Temo o caso da BR-174 nos anos 1970, em que o Exército foi responsável pelo massacres de indígenas da etnia Waimiri-Atroari. Outro caso é a mobilização das Forças Armadas contra o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da demarcação das terras indígenas de Raposa/Serra do Sol, em Roraima, sob a alegação de que ela representaria um risco à soberania territorial nacional, uma vez que eram terras de fronteira. Muito disso se deve ao fato de que, dentro da doutrina de segurança nacional, o indígena conceitualmente deixa de ocupar a posição de aliado – prevista, por exemplo, na política do SPI de treinar guardas de fronteira indígenas – e passa a ser categorizado como inimigo (real ou potencial). Trata-se de uma doutrina do inimigo interno na qual o próprio povo do país pode entrar nessa categoria, já que ele se opõe a um projeto político próprio das Forças Armadas. Rondon A despeito da relação conflituosa entre o Exército e os povos indígenas, houve também alguns momentos de convivência positiva. Uma figura central que demonstra as possibilidades de um contato pacífico e benéfico é a do Marechal Rondon. Marechal Rondon. Nascido ainda na época do Império, em 1865, na cidade de Mimoso, próximo a Cuiabá, hoje no estado do Mato Grosso, Cândido Mariano da Silva Rondon entrou no Exército aos 16 anos, em 1881. Por meio dos estudos nas academias militares, ele conseguiu galgar degraus na hierarquia e formou-se como oficial de engenharia nove anos depois, capacitando-se para o trabalho que lhe abriria as portas do sertão brasileiro. Bem situado no pensamento positivista que vigorava entre os militares brasileiros da época, Rondon acreditava na missão civilizatória do Estado brasileiro que tomava muitas vezes a forma de uma expansão tecnológica pelo interior do país. No contexto de então, isso significava a criação de linhas telegráficas entre algumas cidades espalhadas pelo sertão. Em 1890, Rondon participou de sua primeira missão, integrando a equipe que deveria construir a linha telegráfica entre Cuiabá e Araguaia. Outras missões vieram em seguida: até 1910, Rondon liderou os trabalhos para estabelecer linhas de comunicação do Rio de Janeiro ao Acre. Foi no contexto dessas missões que o militar desenvolveu suas técnicas de contato com as populações indígenas. Tais técnicas seriam adotadas pelo Serviço de Proteção aosÍndios (SPI), instituição fundada pelo próprio Rondon em 1910. Ao contrário das experiências de contato anteriores, profundamente marcadas pela violência, Rondon buscava, antes de tudo, estabelecer uma relação de amizade com os indígenas com os quais tinha contato, preconizando uma postura defensiva que minimizasse os conflitos. Após o estabelecimento de um vínculo de confiança, ele fazia a mediação entre os indígenas e o governo (local ou nacional) para garantir, de um lado, a disponibilidade de terras para a sobrevivência daquela população e, de outro, o espaço necessário para a passagem da linha telegráfica em construção. Tal postura diplomática e apaziguadora foi encapsulada no princípio norteador das expedições rondonianas: “Morrer, se preciso for; matar, nunca”. Essa posição era pautada pela percepção de Rondon de que havia legitimidade na visão indígena de que aquelas terras eram deles, e não do Brasil. Assim, as expedições eram, à sua maneira, uma forma de invasão! Consciente, portanto, do seu caráter de invasor, Rondon buscava negociar com os indígenas o reconhecimento da legitimidade do pleito brasileiro ao uso daquele espaço, sem, entretanto, impor isso a eles. Rondon explicando o funcionamento de um relógio aos indígenas Caianã. Um jovem Tacuatépe e Marechal Rondon. Rondon estava inserido na tradição positivista e civilizatória, uma vez que, nas missões de exploração e instalação de linhas telegráficas, sua lógica militar e suas preocupações com a segurança nacional são patentes. Mesmo assim, ele tinha características que o destacavam dos demais personagens de seu tempo – em especial, por ter uma visão que se refinava com o passar dos anos. Apesar de inicialmente pensar suas expedições como dotadas de um caráter civilizatório, esse militar foi um dos primeiros a reconhecer o direito à diferença no sentido de uma proposição étnica, isto é, os povos indígenas não deveriam ser necessariamente convertidos em brasileiros. A eles, portanto, deveria ser dada a escolha sobre o próprio destino. É sob a égide de Rondon que os irmãos Villas-Bôas – Leonardo, Cláudio e Orlando – e o SPI idealizaram o Parque Nacional do Xingu (chamado, hoje, de Parque Indígena do Xingu). Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Bôas, indigenistas e prosseguidores da obra de defesa das populações indígenas iniciada por Marechal Rondon e fundadores do Parque do Xingu, primeira reserva indígena brasileira. Isso não apenas marcou a garantia de sobrevivência material e cultural dos povos do alto Xingu, como também inaugurou uma nova fase do projeto indigenista, que passa a ser pautado também pela antropologia nacional. A disputa pela demarcação de terras do Xingu Confira agora um caso famoso e que nos ajuda a entender as relações entre política indigenista com questões associadas à segurança nacional e às Forças Armadas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Dois conceitos fundamentais para o indigenismo atual são o etnocídio e o etnodesenvolvimento. Qual relação podemos estabelecer entre ambos? A Segundo a visão atual, a principal causa do etnocídio é a política de crescimento econômico associada à exploração das terras indígenas. Nesse sentido, o etnodesenvolvimento configura uma forma de frear o etnocídio, trazendo uma alternativa ao programa desenvolvimentista tradicional. B Parabéns! A alternativa A está correta. Sabendo que o etnocídio é a destruição de determinada etnia e de sua cultura, e que o etnodesenvolvimento se refere a uma forma de desenvolvimento na qual a diversidade étnica é valorizada e cada povo tem autonomia para traçar a própria trajetória de desenvolvimento, o etnodesenvolvimento constitui uma forma de evitar o etnocídio. Questão 2 Considerando a trajetória de vida de Rondon e a transformação de seu pensamento ao longo do tempo, assinale a alternativa correta. Atualmente, vigora a compreensão de que o etnocídio é causado pelo etnodesenvolvimento, já que este envolve a exploração de terras indígenas por grandes conglomerados econômicos. C Na concepção atual, o etnodesenvolvimento é a forma para atingir o etnocídio, isto é, garantir a autonomia dos povos indígenas, para pautar a própria trajetória de desenvolvimento, em oposição ao programa desenvolvimentista clássico. D De acordo com as interpretações contemporâneas, o etnodesenvolvimento é o caminho para evitar o etnocídio, porque permite a assimilação das populações indígenas ao corpo nacional, homogeneizando a diversidade étnica. E No século XXI, consolidou-se a ideia de que o etnocídio é um fator causativo do etnodesenvolvimento, isto é, a destruição étnica dos indígenas é o caminho pelo qual é possível realizar o programa de crescimento nacional. A O pensamento de Rondon começa muito vinculado ao positivismo, mas, no fim da vida, ele adota posições similares ao assimilacionismo contemporâneo. B Rondon considera que os indígenas são os legítimos senhores do seu espaço; portanto, as tropas brasileiras devem sempre proceder como se fossem os estrangeiros. Parabéns! A alternativa B está correta. Apesar de inserido na mentalidade do Exército brasileiro, que é profundamente marcada pelo positivismo desde o século XIX, Rondon mostrava uma forte preocupação com o direito à diferença. No fim da vida, preconizou projetos fundamentais, como a consolidação do Parque Indígena do Xingu, com o intuito de garantir as condições para a reprodução cultural e material dos povos indígenas, com a manutenção da sua autonomia e o direito à diferença. C A postura de Rondon pode ser bem entendida na constituição do Parque Indígena do Xingu, espaço que ajudou a obter reconhecimento do Estado, pois nele se manifesta a missão civilizatória do Estado brasileiro a partir do reconhecimento do direito à diferença. D A tônica da abordagem rondoniana está na importância conferida às tecnologias de comunicação. Se, no início da sua vida militar, o objetivo era instalar linhas telegráficas, com o passar dos anos, sua preocupação se voltou para as linhas telefônicas e a infraestrutura de transporte. E Rondon é um personagem multifacetado, porque, ao mesmo tempo que estava vinculado ao Exército brasileiro, ele foi diretor do SPI quando da sua fundação. Esse conflito de missões fez com que o militar saísse da visão positivista típica dos antropólogos do SPI para uma postura civilizatória associada ao Exército brasileiro. 3 - A decolonialidade do debate Ao �nal deste módulo, você será capaz de analisar as formas tradicionais de pensar a política indigenista a partir dos conceitos do debate decolonial. De Darcy a questões internacionais de crítica Outro personagem importante no indigenismo nacional é Darcy Ribeiro. O autor nasceu em Minas Gerais, na cidade de Montes Claros, em 1922. No começo de sua trajetória, Darcy foi influenciado pelas ideias positivistas, assim como Marechal Rondon, chegando mesmo a visitar brevemente a Igreja Positivista do Rio de Janeiro. Mas foi em São Paulo, na Escola de Sociologia e Política, que consolidou sua formação, concluindo o bacharelado em 1945 e o mestrado dois anos depois. Darcy Ribeiro. É nesse contexto intelectual que Darcy Ribeiro teve contato com os intérpretes do Brasil e começava a se preocupar em trazer os grandes esquemas teóricos da intelectualidade da época para as questões específicas da brasilidade, dentro da qual se destaca a relação com os povos indígenas. Ao pensar a formação do povo brasileiro e de sua especificidade, ele enfatizava a matriz indígena (em especial, a tupi) na configuração do país nascente, ênfase essa bastante original para a época, uma vez que até mesmo as obras mais relevantes do período colocavam o enfoque sobre os colonos portugueses ou sobre os africanos escravizados. Para Darcy Ribeiro, o fenômeno de formação do povo brasileiro seria, antes de mais nada, a criação de um rosto pelos povos descaracterizados pelo processo de colonização. Por isso,apesar de não poder ser caracterizado como um pensador decolonial, ele apresentava em sua obra características que permitem um diálogo com a decolonialidade contemporânea. Especialmente ao expandir o conceito de universal para além da experiência ocidental, associada ao norte global, Darcy colocou o terceiro mundo no centro da questão. Não se trata apenas de formular uma lógica local diferente, e sim de pensar que lógica gestada nesse terceiro mundo tem validade e importância gerais. Darcy entre os Urubu-Ka’apor, Maranhão, 1949. Darcy com pintura Kadiwéu, Mato Grosso do Sul, 1947. Nessa nova proposta, a violência do projeto colonial, na forma de massacres e genocídios, tem de ceder espaço a uma convivência positiva, que é regida pela diversidade oriunda da periferia do mesmo sistema. Ao negar os conceitos de pureza e unidade, tal diversidade abre brechas para que se reconheça no outro possibilidades de existência diferentes, o que aproxima o pensamento de Darcy Ribeiro das pautas contemporâneas associadas, por exemplo, ao etnodesenvolvimento presente na Convenção nº 169 da Organização internacional do Trabalho (OIT). Esse pensamento indigenista (de valorização da perspectiva de outro agente que não está inserido no campo semântico da modernidade colonial) também aproxima a visão de Darcy de tendências intelectuais internacionais associadas ao pensamento crítico pelo olhar dos excluídos nos processos históricos de colonização. Assim, embora seja anacrônico – no sentido mais literal – associar a antropologia brasileira do século XX a um movimento intelectual pós-colonial ou decolonial, pois, quando Darcy nasceu, o Brasil já não era colônia havia um século, existe ainda um sentido figurado desse rótulo colonial. Dica No sentido figurado, “colonial” refere-se ao pensamento orientado pela noção de modernidade com a qual estão associados outros termos do mesmo campo semântico, como uniformidade, pureza e Ocidente. Desse modo, o anticolonial, nos seus múltiplos rótulos, é o pensamento que se pauta pela valorização do que é multifacetado e misturado, assim como das ideias do outro, que está subjugado ao sistema colonial intelectual. Isso é justamente o que configura o cerne da contribuição de Darcy Ribeiro para a questão indígena. Darcy Ribeiro e um outro olhar sobre os povos originários Conheça agora a perspectiva de Darcy Ribeiro sobre a questão indígena. A valorização dos grupos e suas ideias Seguindo nessa toada da valorização da etnicidade própria dos povos indígenas, chegamos ao cenário contemporâneo. Tal cenário é profundamente marcado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela mobilização internacional de diversos grupos indígenas, como verificamos no módulo anterior. Se atualmente a tônica é dada pela garantia da autonomia indígena no uso de suas terras para que eles busquem aquilo que coletivamente julgam fazer parte de sua trajetória de desenvolvimento, esse processo não pode prescindir de uma reflexão intelectual própria que balize conceitualmente o seguinte ponto: em que consiste essa autonomia? Mulher com cinzas e lágrimas passadas no rosto – uma forma de luto dos Yanomami, Roraima, 1996. Uma das vertentes que cria possibilidades interpretativas para isso é a ideia de valorização dos saberes indígenas a partir de uma perspectiva decolonial. Isso significa recolocar os diferentes paradigmas interpretativos formulados por diversas sociedades indígenas no centro da reflexão, substituindo a homogeneidade das formulações coloniais pela diversidade oriunda desse giro decolonial. O primeiro passo nessa trajetória intelectual é a recolocação da hierarquia do sistema-mundo colonial. Se a modernidade colonial foi pautada pela sobrepujação do outro pelo colonizador, então as formulações intelectuais da decolonialidade precisam traduzir-se em não hierarquias, fazendo com que o outro (sujeito relegado aos aspectos secundários ou submissos do projeto colonial) torne-se um agente autônomo do próprio destino. Mulher Kaxinawá, Acre, 1994. Caçadores Zo'é, Pará, 2009. Isso, por sua vez, se traduz, em primeiro lugar, na diversidade de propostas. Se, no início do século XX, como vimos, a tônica era a integração dos povos indígenas ao projeto desenvolvimentista nacional, que pode ser entendido como crescimento econômico, modernidade e industrialização regidos pelo republicanismo moderno, busca-se, no século XXI, reconhecer a multiplicidade de destinos elegida pelos diversos povos. Atenção! Não se trata de erigir uma nova hierarquia pautada pela autenticidade, isto é, determinado povo não é mais importante ou digno por viver da mesma forma há 500 anos. Trata-se, na verdade, de reconhecer a autonomia dos diversos povos para escolher como viver e fornecer os meios sem realizar qualquer julgamento pelas escolhas tomadas. Esse mundo novo pela diversidade ecoa ideias presentes nas diferentes cosmovisões indígenas, sobretudo aquelas associadas aos lugares de enunciação (ou de fala). O que se identifica como pensamento colonial envolve sempre a enunciação da verdade a partir de um não lugar, isto é, toma-se o valor do que é dito como universal. A guinada decolonial se propõe a enfatizar a raiz do enunciador e tratar do que é dito como uma possibilidade entre muitas, sendo todas elas igualmente válidas. Em oposição às dicotomias típicas do pensamento colonizado, essa multiplicidade serviria como vetor de renovação intelectual geral não apenas dos povos indígenas de onde os saberes se originassem, mas também de todos os outros, incluindo-se aí os povos coloniais. Em essência, ela é a tradução epistemológica do que os pensamentos de Darcy Ribeiro e de Rondon (em suas manifestações já no fim da vida) preconizavam, por exemplo, na concretização do Parque Indígena do Xingu. O Parque Indígena do Xingu vem registrando altas taxas de desmatamento nas últimas décadas. O espaço preserva menos os modos fossilizados de reprodução material (análogos ao cativeiro de um zoológico humano), e mais as possibilidades inerentes a qualquer modo de reprodução vivo. A voz do pajé Confira agora a luta e a sua importância para os povos indígenas, a partir da fala dos próprios. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Considerando o pensamento de Darcy Ribeiro, em que medida a valorização da matriz indígena antecipa pontos do debate decolonial? Parabéns! A alternativa E está correta. A matriz indígena da formação do povo brasileiro, conforme Darcy Ribeiro propõe, envolve a valorização da perspectiva de um agente histórico que se encontra excluído do campo semântico norteador do pensamento colonial. Conferida a uma perspectiva tradicionalmente excluída, essa ênfase o coloca em diálogo direto com o campo decolonial. Questão 2 Considerando as propostas de autonomia indígena que preconizam o direito de cada povo de pautar o próprio caminho, por que podemos dizer que o pensamento decolonial fundamenta esse tipo de A No pensamento de Darcy Ribeiro, o indígena possui caráter secundário ao ser situado como um dos elementos constitutivos do povo brasileiro, o que está em sintonia com a ideia decolonial de valorização da multiplicidade étnica. B Darcy Ribeiro se aproxima do debate decolonial ao tratar da matriz indígena como uma unidade que se sobrepõe aos conceitos do pensamento colonial, por exemplo, modernidade e pureza. C A obra de Darcy Ribeiro compartilha da preocupação do pensamento decolonial de valorizar a multiplicidade como uma construção hierarquicamente superior à unidade moderna colonial. D Para Darcy Ribeiro, a ênfase na matriz indígena é uma forma de contrarrestar os processos coloniais de valorização de multiplicidade étnica. E Ao enfatizar a matriz indígena, Darcy Ribeiro propõe uma valorização da perspectiva dos excluídos pelos processos de colonização, estando em sintonia com os debates decoloniais do século XXI. proposta? Parabéns! A alternativaA está correta. O principal conceito da decolonialidade a balizar a proposta de que cada povo deve pautar o próprio caminho de desenvolvimento é o da multiplicidade, já que, a partir dela, é possível justificar a tese de que os diferentes projetos de desenvolvimento são igualmente válidos e que a opção por um caminho ou outro precisa ser tomada pelo próprio povo. A Ao substituir a homogeneidade do pensamento colonial pela multiplicidade de formulações oriundas dos povos indígenas, o pensamento decolonial coloca em pé de igualdade tanto os projetos gestados pela matriz de pensamento ocidental/colonial quanto aqueles desenvolvidos pelos povos indígenas. B O pensamento decolonial inverte as hierarquias tradicionais e possibilita que os projetos de desenvolvimento próprios dos povos indígenas sejam considerados melhores que o projeto de desenvolvimento tradicional. C É a igualdade dentro da multiplicidade proposta pelo pensamento decolonial que permite que os saberes indígenas sejam valorizados e, portanto, que cada povo indígena possa formular a própria trajetória de crescimento econômico. D A substituição do conceito colonial de unidade pelo decolonial de multiplicidade confere uma abertura para a consolidação de um desenvolvimento próprio para o povo indígena associado a determinada pureza étnica própria em contraste com as vertentes assimilacionistas coloniais. E Enquanto o pensamento moderno/colonial tratava do desenvolvimento como uma possibilidade acessível a todos, a abordagem decolonial visa garantir que ele não atinja as comunidades indígenas, de modo que elas continuem com os mesmos modos de vida anteriores ao contato com os povos europeus. Considerações �nais Vimos neste conteúdo que a questão indígena brasileira é um fenômeno multifacetado. Desde os tempos do Brasil Colônia, os povos indígenas possuem relações com a institucionalidade da Coroa portuguesa, já que, nos moldes clássicos da vassalagem do antigo regime, eles eram possuidores de um estatuto próprio como súditos da monarquia. Com a independência, demonstramos que a preocupação com a formação de uma identidade nacional se tornou a tônica da política do Império. Nesse contexto, a busca por uma unidade simbólica aos moldes do nacionalismo europeu contribuiu para o apagamento da multiplicidade étnica dos povos originários, utilizando-se de um ideal de indígena romantizado em consonância com a pauta política da época. Destacamos ainda que, no século XX, a política indigenista ganhou contornos institucionais mais definidos com a formação de órgãos específicos para a questão: em primeiro lugar, o SPI; e, em seguida, a Funai. Ambos tiveram uma atuação-chave nesse processo, constituindo os vetores tanto das políticas assimilacionistas associadas ao etnocídio quanto das políticas de defesa dos indígenas, como é o caso da demarcação da terra indígena do Xingu. Frisamos também que é nesse período que tal questão passa a ter um caráter internacional patente, havendo a realização de grandes conferências mediadas por organismos internacionais. Isso vem acompanhado de maior destaque da questão indígena dentro do debate de segurança nacional, sobretudo no que diz respeito à segurança das fronteiras. Por fim, no século XXI, destacamos a consolidação de uma perspectiva decolonial sobre os indígenas. Segundo esse viés, a valorização dos saberes indígenas ganha centralidade no debate com a valorização da multiplicidade étnica como riqueza coletiva. Podcast Ouça agora os principais aspectos da questão indígena no Brasil. Referências ALMEIDA, M. R. C. Os índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo. História hoje, v. 1, n. 2, 2012, p. 21-39. ALVES, D.; VIEIRA, M. V. A legislação indigenista no Brasil republicano do SPI à FUNAI: avanços e continuidades. Albuquerque: revista de história, v. 9, n. 18, 2017. CASTRO, E. V. de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2014. CUNHA, M. C. da. O futuro da questão indígena. Estudos avançados, v. 8, 1994, p. 121-136. ESCADA, M. I. S. et al. Processos de ocupação nas novas fronteiras da Amazônia: o interflúvio do Xingu/Iriri. Estudos avançados, v. 19, 2005, p. 9-23. FIGUEIREDO, A. M. de. O índio como metáfora: política, modernismo e historiografia na Amazônia nas primeiras décadas do século XX. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 41, 2010. MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial. In: CALIXTRE, A. B.; ALMEIDA FILHO, N. (Orgs.). Cátedras para o desenvolvimento: patronos do Brasil, 2014, p. 109-130. RIBEIRO, M. I. F. da C. A. Mineração e garimpo em terras indígenas. Rio de Janeiro: CETEM/MCTIC, 2016. Série Estudos e Documentos, 92. VERDUM, R. Etnodesenvolvimento: nova/velha utopia de indigenismo. 2006. Tese (doutorado em Ciências Sociais). Brasília: Universidade de Brasília, 2006. Explore + Confira as indicações que separamos para você! Conheça mais sobre a diversidade étnica dos povos indígenas brasileiros com os recursos virtuais do Museu do Índio. Confira a trajetória dos irmãos Villas-Bôas e da criação do Parque Indígena do Xingu, que foi adaptada para o cinema no filme Xingu, em 2012. Recomendamos ainda a leitura destes três textos: Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Constituinte: as Forças Armadas e o capítulo dos índios da Constituição brasileira de 1988, de Fernandes Pádua (2015). Por que saberes indígenas no século XXI ? - uma guinada decolonial, de Morgan Ndlovu (2017). Povos indígenas, fronteiras amazônicas e soberania nacional. Algumas reflexões a partir dos Ashaninka do Acre, em Proceedings from the 61st Annual Meeting of the Brazilian Society for Scientific Progress: Amazon Science and Culture, de José Pimenta.
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