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Psicologia Social A Construção da Psicologia Social Desenvolvimento do material Patricia Castro de Oliveira e Silva 1ª Edição Copyright © 2022, Afya. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Afya. Sumário A Construção da Psicologia Social Para início de conversa… ................................................................................ 3 Objetivo ................................................................................................... 3 1. A vida Coletiva como Vida Mental: a Völkerpsychologie, de Wilhelm Wundt ............................................ 4 2. Raízes da Psicologia Social e o Surgimento do Paradigma Psicológico e Sociológico ............................................ 8 Referências .................................................................................................... 16 Para início de conversa… O século XIX forjou os principais marcos históricos e as principais ideias psicossociais, que influenciaram o nascimento da Psicologia Social. Mas como essa área do conhecimento se desenvolveu no século XX, na modernidade? A Psicologia Social tem uma única vertente ou se constituiu de diferentes maneiras, a partir de diferentes referenciais? O que seriam, nesse cenário, a Psicologia Social Sociológica e a Psicologia Social Psicológica? Neste capítulo, será abordada a importância da contribuição de Wilhelm Wundt (1832-1920) para a constituição da Psicologia Social, especialmente por meio da sua proposição da Psicologia dos Povos. Essa é uma área da obra do pensador que ficou sem visibilidade por muito tempo na historiografia da Psicologia, em função do viés positivista que ciências humanas e sociais assumiram ao longo do século XIX, na busca por um tipo de legitimação enquanto ciência. Ademais, veremos a partir de qual perspectiva o berço da Psicologia Social moderna pode ser considerado um fenômeno americano e, ainda, as diferentes vertentes da Psicologia Social a partir da obra de Robert Farr (1999), que faz uma distinção entre a psicologia social fundamentada no experimentalismo, no cognitivismo e no positivismo – a Psicologia Social Psicológica – e aquela que tem suas origens mais fundamentadas na Sociologia nascente e, mais especificamente, nas chamadas Escola de Chicago e no Interacionismo Simbólico – a Psicologia Social Sociológica. Objetivo Compreender a construção da Psicologia Social, correlacionando as aproximações e diferenças entre o paradigma americano e europeu. Psicologia Social 3 1. A vida Coletiva como Vida Mental: a Völkerpsychologie, de Wilhelm Wundt A literatura aponta o surgimento da Psicologia como uma disciplina específica na Alemanha, na segunda metade do século XIX, em especial com o lançamento do livro-texto de Wundt, intitulado Fundamentos da psicologia física (1873 apud FARR, 1999), com a inauguração do laboratório de psicologia na cidade de Leipzig (Alemanha), em 1879, e o lançamento da revista científica Philosophische Studien, em 1881 (FARR, 1999). 1.1 A Influência Alemã na Psicologia Social: Wilhelm Wundt Wilhelm Wundt (1832-1920) é reconhecido como o fundador da Psicologia e teve seu mérito acadêmico inicialmente reconhecido, especialmente por conta da sua psicologia experimental, de cunho empirista, que tinha como objetivo firmar a Psicologia enquanto Ciência. O método experimental da Psicologia consistiria na interferência intencional e controlada do pesquisador sobre o início, a duração e o modo de ocorrência dos fenômenos investigados. No entanto, Wundt reconhecia a limitação de sua psicologia experimental, observando que apenas uma parte da Psicologia era um ramo das ciências naturais. O psicólogo afirmava que seu projeto de psicologia experimental não estava interessado nas mentes individuais, mas na mente em geral, e reconhecia que os processos mentais mais profundos, como pensamento ou imaginação, não podiam ser estudados de modo experimental. O método experimental só servia ao estudo de processos mentais básicos como sensação, imagem e sentimentos. Partindo dessa constatação, Wundt produziu uma importante obra na área da Psicologia Social, chamada Psicologia dos Povos - Völkerpsychologie, escrita em 10 volumes, entre os anos de 1900 e 1920 (FARR, 1999), de estudos sobre linguagem, pensamento, cultura, religião, mitos e costumes, dentre outros. O positivismo é um paradigma nas ciências que nasceu em meados do século XIX e diz respeito ao movimento filosófico que teve início com a obra de Augusto Comte e se consolidou em meados do século XX, no chamado positivismo lógico do Círculo de Viena e na análise linguística. Auguste Comte apostava no progresso moral e científico da sociedade por meio da ordem social e do desenvolvimento das ciências. Em sua obra Apelo aos Conservadores (1855), Comte definiu a palavra “positivo” por meio de sete concepções: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. Ele sistematizou o pensamento positivo em três etapas, sendo a primeira a etapa de pensamento teológico (mítico, intuitivo, sensitivo, religioso), a segunda, já mais refinada e aprimorada, o pensamento metafísico (pensamento filosófico, no entanto, sem métodos Psicologia Social 4 sistematizados para comprovação da realidade) e a terceira etapa, o estágio positivo ou científico (no qual, por meio do método científico, o pensamento positivista transforma uma leitura da realidade em verdade) (JACQUES; STREY, 2013). De acordo com Farr (1999, p.56), “para um positivista, a ciência substitui a metafísica”. Positivistas não consideram crenças, superstições ou quaisquer outros tipos de conhecimento que não possam ser comprovados empiricamente, por meio, fundamentalmente, de métodos experimentais. Ademais, o positivismo está baseado em um ideal de progresso contínuo, postulando a ordem social em uma marcha progressiva, que a humanidade tende a seguir a caminho do progresso. A inscrição Ordem e Progresso na bandeira brasileira tem inspiração claramente positivista. Farr (1999) afirma que a Psicologia surgiu em fins do século XIX e início do XX, na Alemanha, como uma ciência natural e social. Em reconhecimento às origens da disciplina, a língua alemã se tornou obrigatória na maioria dos programas de doutorado implantados nas universidades dos EUA e na Inglaterra, a partir das experiências de milhares de pesquisadores que visitaram o laboratório de Leipzig. No entanto, em boa parte das vezes, os laboratórios implantados, em especial, nos EUA desenvolveram produções bastante distintas do que Wundt realizava na Alemanha. Nesse sentido, Farr (1999) chama a atenção para o projeto de estudo de diferenças individuais, que aponta como uma inovação inglesa, francesa e americana, e não como uma proposta alemã. A exigência da língua alemã nesses cursos parece não ter suscitado o efeito desejado, que parecia ser o de manter certa continuidade entre o que era realizado por Wundt em Leipzig e o chamado Novo Mundo. É nessa perda de vínculos com a proposta original alemã que se pode também perceber a não compreensão e valorização do projeto social da psicologia wundtiana, bem como uma sobrevalorização da psicologia experimental, o que contribuiu para a apreensão da psicologia nascente como uma ciência natural. “Se a psicologia se tornou primeiro uma ciência experimental na Alemanha, foi a psicologia social que se tornou, depois, uma ciência experimental nos EUA” (FARR, 1999, p.59). A Psicologia dos Povos influenciou fortemente diversos pensadores e correntes de pensamento, dentre elas a própria constituição da Psicologia Social que Farr nomeará Sociológica. 1.2 A Psicologia dos Povos Conforme afirma Wund (1916, p.3): ‘‘ A consciência individual é totalmente incapaz de fornecer a história do pensamento humano, pois ela está condicionadapor uma história anterior a respeito da qual ela não pode, por si mesma, dar-nos nenhum conhecimento.’’ Em sua Psicologia dos Povos - Völkerpsychologie, Wundt considera a mente um fenômeno histórico, cultural e linguístico, algo que não pode ser Psicologia Social 5 explicado individualmente, afirmando uma íntima relação entre a mente humana e a cultura, entre indivíduo e o contexto cultural no qual ele se desenvolve. Assim propõe, nessa etapa da sua produção, que a psicologia deveria estudar as produções mentais coletivas, originadas das ações de conjuntos de indivíduos, se quisesse efetivamente estudar a mente humana (FARR, 1999). Na primeira etapa de sua produção, a chamada Psicologia Experimental, Wundt se utilizava do método da introspecção (auto-observação rigorosa e controlada dos fenômenos) para o estudo da consciência. Na Psicologia dos Povos, reconhece a ineficácia do método e a impossibilidade de compreender fenômenos complexos, a mente coletiva, a partir apenas da proposição de consciência individual. Assim, Wundt propôs a distinção entre a psicologia experimental, responsável pelo estudo dos processos mentais básicos, e a Psicologia dos Povos - Völkerpsychologie, voltada para o estudo dos processos mentais superiores, em que o método de estudo seria o histórico-comparativo (ÁLVARO; GARRIDO, 2006). Nessa perspectiva, conteúdos religiosos, artísticos, linguísticos e socioeconômicos são analisados transversalmente. Uma das principais distinções entre a ciência experimental de Wundt e a sua Volkerpsychologie é a proposição da diferença entre consciência e cultura. Ele defendia que certas representações, sentimentos e comportamentos poderiam ser pensados em estágios, que apresentariam características psicológicas específicas de cada período da evolução mental, e propunha essa evolução em quatro estágios: Primitivo; Totemismo; Heróis e Deuses; Evolução em direção à Humanidade. O cientista acreditava que o exame dos estados psíquicos anteriores possibilitaria aportar pistas sobre as produções culturais mais complexas e sofisticadas. Nessa direção, a Völkerpsychologie não trata apenas de povos, mas de famílias, grupos, comunidades, entre outros. Em sua perspectiva, a categoria povo seria transversalizada por outras categorias (classe, etnia, estirpe etc.). No entanto, na visão wundtiana, uma verdadeira Psicologia consagrada aos estudos das culturas humanas deveria ampliar seu campo de estudo até se constituir uma Psicologia da Humanidade. A Psicologia dos Povos de Wundt influenciou pensadores como Sigmund Freud, que escreveu seu Totem e Tabú como uma resposta a Wundt quanto à sua produção sobre o totemismo. Influenciou, ainda, Émile Durkheim, que, mesmo não tendo reconhecido publicamente a influência de Wundt em sua concepção das representações coletivas, foi influenciado pela concepção de resultantes coletivos wundtiana. Resultantes coletivos, em Wundt, dizem respeito ao fato de que “em todas as combinações psíquicas, o produto não é a mera soma dos elementos que compõem tais combinações, mas representa uma nova criação” (WUNDT, 1973 [1912], p.164 apud ABIB, 2009, p.198). Para ele, o fenômeno coletivo não é o mesmo que a soma das partes que o compõem, é um fenômeno novo, coletivo, que precisa ser estudado e entendido deste modo. Para Psicologia Social 6 Wundt, a cultura é algo que está além da consciência individual, algo que as pessoas mantêm e reproduzem. É importante salientar que a linguagem foi o importante objeto de estudo da Psicologia dos Povos, e o trabalho de Wundt influenciou também o campo da linguística, tendo tido entre seus admiradores Saussure, Delbrick e Bloomfield, que vieram a se tornar referência no campo de estudos da linguagem. Em seu projeto científico sobre os povos, Wundt também estudou a religião, costumes, mitos, magia, entre outros. Seus estudos partiam da premissa da impossibilidade de uma abordagem reducionista e individualista desses fenômenos, em uma perspectiva bem semelhante à proposição de representações coletivas de Durkheim. Farr (1999) coloca que, na verdade, as semelhanças entre Wundt e Durkheim foram maiores que as diferenças. Talvez a maior das diferenças seja o fato de que Durkheim encarava a Psicologia dos Povos como um ramo das ciências sociais e sua ideia para a área da Sociologia, ou para construção dessa disciplina, era pensá-la fundamentada no positivismo. Wundt era um antipositivista e não pensava em fazer ciência nesses parâmetros, tendo o positivismo como paradigma e os métodos das ciências naturais como modelo único para fazer ciência. A rejeição da afirmativa de Wundt sobre seu projeto científico para a Psicologia enquanto ciência, no que diz respeito ao reconhecimento da limitação do método experimental para o estudo dos fenômenos mentais superiores, resultou em um movimento na Academia, que ficou conhecido como o “repúdio positivista de Wundt”, conforme postulado por Danziger (apud FARR, 1999). As gerações seguintes a Wundt queriam provar que Wundt estava errado e questionavam veementemente a afirmativa wundtiana de que apenas em parte a Psicologia poderia ser compreendida como uma ciência natural, pois seria uma ciência que se encontrava entre as ciências da natureza e da cultura. Essa nova geração de experimentalistas era repudiada por Wundt, assim como Wundt era repudiado pelos positivistas (FARR, 1999). Wilhelm Wundt estabeleceu três objetivos para sua carreira ao longo de sua vida, tendo conseguido alcançar todos: 1) construção de uma psicologia experimental ou de construção da psicologia como uma ciência independente; 2) construção de uma filosofia científica ou metafísica científica; 3) criação de uma psicologia social. O que Dazinger (apud JACQUES; STREY, 2013) aponta ao cunhar o termo “repúdio positivista a Wundt” diz respeito a um processo de seleção enviesada da vasta obra de Wundt, feita por determinados historiadores e fundamentada no positivismo e em uma perspectiva utilitarista, que relegou a um certo obscurantismo a Psicologia dos Povos. Conforme Farr (1999) afirma, a influência da leitura positivista da obra de Wundt teve efeito devastador na historiografia da Psicologia, em especial na produção de língua inglesa. Psicologia Social 7 Pensar em Wundt como o pai da Psicologia e Durkheim como o pai da Sociologia ajuda a compreender que a Psicologia Social nasce justo dessas duas áreas, e não como uma área exclusiva da Psicologia. A Psicologia dos Povos, uma corrente europeia do pensamento, teve grande influência na constituição da vertente sociológica da Psicologia Social, em especial pela ênfase atribuída à determinação sócio-histórica do indivíduo e ao uso da metodologia não experimental (NEIVA; TORRES, 2011). 2. Raízes da Psicologia Social e o Surgimento do Paradigma Psicológico e Sociológico Antes de seguir, é preciso lembrar que a escolha de um(a) autor(a) ou de uma escola para pensar a origem de determinada área do conhecimento significa sempre abandonar outras possibilidades. Esse tipo de escolha, na maioria das vezes, termina em um relato parcial da história, em que se narra origens a partir da sua proximidade ou distanciamento com determinada perspectiva, deixando de lado outras possibilidades reflexivas. Conforme afirmam Álvaro e Garrido (2006), a visão do presente da disciplina termina sempre em uma visão distorcida do passado. Nesse sentido, uma das obras referenciais para o estudo do nascimento da Psicologia Social é o livro-texto de Robert Farr, As raízes da psicologia social moderna (1999). Nessa obra, Farr critica as versões parciais da historiografia dessa área do conhecimento, fazendo uma análise de obras tidas como históricas, produzidas e editadas nos EUA. Farr (1999) busca delimitar as origens e diferenças de uma Psicologia Social predominantemente psicológica e marcar as diferenças dessa para a sociológica. Farr (1999) colocam ainda, que, para compreendero “florescimento” dessa área do conhecimento nos EUA com um fenômeno tipicamente americano, é preciso compreender também suas “raízes” europeias com relação à influência que seus maiores representantes tiveram ou não das ideias psicossociais nascidas na Europa em fins do século XIX. O fenômeno histórico da Segunda Guerra Mundial está profundamente vinculado ao desenvolvimento da Psicologia Social na modernidade. À época, os cientistas sociais contribuíram na realização de levantamentos sobre comportamentos adaptativos dos soldados ao cotidiano no exército, participação nos combates e consequências dessa participação sobre suas vidas e, ainda, na avaliação da eficácia das diferentes maneiras de se instruir o corpo militar. Os resultados dessas pesquisas foram publicados após a guerra, na série The American Soldier. Além disso, é importante destacar que vários pesquisadores europeus se fixaram nos EUA, fugindo da perseguição nazista. A publicação dessa série foi Psicologia Social 8 fundamental para o desenvolvimento de programas de doutorado em Psicologia Social de cunho interdisciplinar, em geral em programas conjuntos de Psicologia e Sociologia, incluindo, por vezes, a Antropologia (FARR, 1999). Ademais, alguns pesquisadores seguiram contribuindo com estudos após o fim da guerra, em especial o grupo de pesquisa coordenado por Hovland (apud FARR, 1999), na universidade de Yale, realizando estudos sobre comunicação e atitude, com interesse especial no estudo experimental da comunicação de massa. As publicações sobre estudos experimentais do pós-guerra contribuíram para a consolidação desse método como estratégia preferida de pesquisa. Outro grupo de pesquisadores de destaque em Psicologia Social que se estabeleceu no pós-guerra foi o de Kurt Lewin, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) – o Centro de Pesquisa para Dinâmica de Grupo –, que contribuiu muito para o estabelecimento da Psicologia Social moderna como um fenômeno norte-americano. O fato de Lewin ser um psicólogo alemão da área da Gestalt que se refugiou nos EUA fundamenta a afirmativa de Robert Farr (1999, p.21) de que as raízes dessa disciplina “foram europeias, embora a flor fosse caracteristicamente americana”. Muitos dos pesquisadores em Psicologia Social da modernidade tiveram sua formação em um desses dois centros de referência – MIT e Yale. Essa nova onda de pesquisadores que se constituíram em solo americano com os estudos sobre a grande guerra e no pós-guerra desempenhou papel fundamental no estabelecimento da face marcadamente experimental da Psicologia Social moderna enquanto fenômeno nos/dos EUA. Além da afirmativa da Psicologia Social na era moderna como um fenômeno tipicamente norte-americano relacionado às questões e consequências que envolviam a Segunda Guerra Mundial, Farr (1999) coloca que, nesse momento, a perspectiva hegemônica era de individualização do social, no que mais tarde seria conhecido como vertente psicológica da Psicologia Social. Essa individualização foi implementada tanto pela influência do behaviorismo, no período entre as duas guerras, como pelo cognitivismo no pós-Segunda Guerra Mundial. É importante lembrar que, antes da instalação e institucionalização dessa perspectiva individualista em solo norte-americano, houve o surgimento de uma psicologia social comparativa, baseada em uma perspectiva evolucionista que pode ser identificada no Manual de psicologia social, de Murchison, de 1935 (apud FARR, 1999). Esse trabalho, segundo Farr (1999), já revelava uma perspectiva sociológica, por estar fundamentado em uma análise histórica dos fenômenos filogenéticos, considerando o social a partir de metodologia multidisciplinar de análise dos fatos e fenômenos sociais (ALMEIDA, 2012). Porém, com o fortalecimento hegemônico do behaviorismo no período entre as duas guerras mundiais, Psicologia Social 9 essa perspectiva foi invisibilizada nos EUA. Essa hegemonia ocorreu em função do declínio do evolucionismo e pela segmentação das disciplinas como áreas distintas entre si. Ainda de acordo com Almeida (2012, p.127): ‘‘ A vitória do behaviorismo contra o funcionalismo e a Psicologia comparada marcou a derrota da perspectiva histórica na análise do comportamento, dando lugar a uma perspectiva a-histórica que se fundamentava na busca de leis que regem as interações sociais. A visão de que a pesquisa deveria servir para a depuração precisa das variáveis, pelo meio de pesquisas ex post facto e experimentais, foi tomando espaço até tornar-se hegemônica com o advento do cognitivismo.’’ Em seu livro publicado em 1924, Social Psychology, Allport postula a Psicologia Social como ciência comportamental e experimental, partindo da ideia de que essa área do saber não seria uma ciência humana ou social, conforme propunha Wundt em sua Psicologia dos Povos, mas uma ciência natural. Assim, para o estudo do binômio indivíduo-sociedade, a Psicologia Social deveria se valer do modo de fazer ciência advindo das ciências da natureza, fundamentado na perspectiva positivista. A Psicologia Social moderna que floresce nos EUA entre as grandes guerras, mas fundamentalmente, a partir da Segunda Guerra Mundial, tem um fazer experimental, embasado na perspectiva positivista que, posteriormente, será conhecido como a vertente psicológica. 2.1 Diferenças e Aproximações entre a Psicologia Social Psicológica e a Psicologia Social Sociológica A institucionalização da Psicologia Social enquanto disciplina na modernidade pode ser referenciada a duas obras, publicadas no ano de 1908, no EUA: Uma introdução à psicologia social, de William McDougall, e Psicologia social: uma resenha e um livro texto, de Edward Ross (FERREIRA, 2010). A publicação dessas obras seminais já indicava os diferentes caminhos que seriam percorridos pela Psicologia Social em suas vertentes compreendidas como psicológica e sociológica. Ross era sociólogo e McDougall psicólogo, o que levou a que cada obra fosse academicamente situada no âmbito de uma disciplina e outra. Farr (1999) afirma que a Psicologia Social nasceu no berço de duas disciplinas distintas: a Sociologia e a Psicologia. Ainda segundo o autor, as diferenças entre as formas da Psicologia Social na modernidade têm origem no fim do século XIX, dentre outros, no debate sobre as relações entre psicologia e sociologia protagonizado por Tarde e Durkheim. Conforme visto anteriormente, a Psicologia e a Sociologia nem sempre foram disciplinas constituídas enquanto tal e marcadamente distintas entre si. Ambas são áreas do saber que se inspiraram e inspiram em outras áreas como a Filosofia, Biologia, Fisiologia, dentre outras; além disso, seus precursores se dedicaram tanto ao estudo dos fenômenos individuais quanto coletivos. Nesse contexto, a psicologia social se Psicologia Social 10 desenvolveu tanto como uma psicologia social psicológica como uma psicologia social sociológica (FERREIRA, 2010). A ênfase maior dada ao indivíduo ou à sociedade fez com que diferentes autores (STEPHAN; STEPHAN, 1985 apud FERREIRA, 2010) começassem a defender a existência das duas modalidades de Psicologia Social. Nesse sentido, quanto mais a psicologia se aproxima do indivíduo e se afasta do social enquanto objeto de estudo, mais se afasta da Sociologia. Farr (1999) observa, oportunamente, que, mesmo na contemporaneidade, a Psicologia tem um cunho mais social em algumas culturas que em outras, como no caso de a Rússia ser comparada aos EUA. Isso porque o individualismo não é um valor cultural pregnante naquela como o é em solo norte-americano. A separação das disciplinas de origem, Psicologia e Sociologia, está na origem do desenvolvimento da Psicologia Social, o que acabou por contribuir para a produção de vertentes em Psicologia Social que têm pouco ou nada em comum (FARR, 1999). No entanto, é importante observar que a Psicologia Social se diferencia e se consolida como disciplina científicaindependente simultaneamente ao processo que ocorria com a própria Psicologia e com a Sociologia. Diante disso, não cabe o entendimento de que a Psicologia Social seria uma área que se constitui a partir de uma ou outra disciplina matriz, mas uma disciplina- irmã (ÁLVARO; GARRIDO, 2017). Quanto a isso, Álvaro e Garrido (2017) ressaltam a arbitrariedade da tomada de qualquer marco histórico como aquele que efetivamente revela o nascimento da Psicologia Social como disciplina. Os autores, propõem que, ao invés dos primeiros manuais publicados com o título Psicologia Social, em 1908, poderíamos tomar um curso universitário como marco inaugural da disciplina. Eles ainda destacam a relevância do curso ministrado por George Mead na Universidade de Chicago, a partir de 1920. Conforme Farr (1999), a separação entre Psicologia e Sociologia enquanto disciplinas distintas no campo das ciências estava consolidada no início dos anos 1920. A partir de então, as pressões em sentidos contrários sobre as formas de se pensar e fazer Psicologia Social passaram a ser no sentido de trazer essa área do conhecimento para mais próximo das novas disciplinas: Psicologia e Sociologia. As formas que se aproximariam mais da Psicologia pensariam as questões humanas a partir de uma perspectiva individualizante, desconsiderando a influência do contexto social. Já aquelas que se aproximariam da Sociologia, buscariam compreender os fenômenos humanos com forte ênfase nas influências da sociedade sobre o comportamento dos indivíduos e pensando a constituição do indivíduo tão somente a partir das relações entre as pessoas. Ao fazer isso, exercem uma força contrária a que se tome o indivíduo como objeto de estudo da Psicologia. Ambas as perspectivas tomam o indivíduo de maneira dicotômica, a partir de uma perspectiva individualizante (como é o caso das correntes psicológicas), ou como fruto do social. Psicologia Social 11 2.2 A Psicologia Social Psicológica Segundo Allport (1954 apud FARR, 1999), a Psicologia Social Psicológica procura explicar os sentimentos, pensamentos e comportamentos do indivíduo na presença real ou imaginada de outras pessoas. Essa corrente busca estudar processos intraindividuais, que são responsáveis pelo modo como as pessoas respondem a estímulos sociais. Já a Psicologia Social Sociológica, segundo Stephan e Stephan (1985 apud FERREIRA, 2010), teria como foco a experiência social que o indivíduo adquire a partir de sua participação nos diferentes grupos sociais nos quais se insere; nessa linha, os psicólogos sociais privilegiam os fenômenos que emergem dos diferentes grupos e sociedades. Floyd Allport (1924) defendia que a Psicologia Social deveria se concentrar no estudo experimental do indivíduo, propondo que o grupo, alvo dos estudos da vertente sociológica, seria apenas mais um estímulo do ambiente, e não alvo dos estudos em si. Para o autor, a Psicologia Social Psicológica é uma disciplina objetiva, de base experimental e focada no indivíduo. A Psicologia Social Psicológica estruturou-se, em especial nos EUA, como uma ciência natural e empírica, que não considerava o papel das estruturas sociais e dos sistemas culturais sobre os indivíduos. 2.3 A Psicologia Social Sociológica, Escola de Chicago e o Interacionismo Simbólico A consolidação da Psicologia Social Sociológica ocorreu marcadamente nos EUA, onde podemos destacar as contribuições de Charles Horton Cooley e dos sociólogos vinculados à chamada Escola de Chicago. A publicação do livro de Edward Ross, em 1908, pode ser considerada um marco da consolidação dessa vertente da Psicologia Social. A Escola de Chicago diz respeito a um grupo de sociólogos americanos que integravam o corpo docente do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, fundado pelo historiador e sociólogo Albion W. Small. Esses sociólogos se dedicavam, de maneira pioneira, ao estudo dos fenômenos sociais urbanos. O surgimento dessa escola está relacionado ao processo de expansão urbana e crescimento demográfico da cidade de Chicago no início do século XX. Nesse momento, a cidade se deparou com problemas sociais urbanos, como o crescimento da criminalidade, aumento da desigualdade social, desemprego, imigração e surgimento dos chamados guetos. Em sua primeira fase, a Escola de Chicago foi influenciada primordialmente por Émile Durkheim, embora não deixe de citar as contribuições de Gabriel Tarde. Muitas vertentes da Psicologia Social tiveram origem na Escola de Chicago, como o Behaviorismo Social de George Mead, os estudos sobre Psicologia Social 12 atitudes sociais de William Thomas, as técnicas para medição de valores sociais de Louis Leon Thurstone, o Interacionismo Simbólico de Hebert Blumer e, na modernidade, a sociologia das relações interpessoais de Gustav Ichheiser e “as formas dramatúrgicas de psicologia social de Goffman” (FARR, 1999, p.161). Ross (1908 apud ÁLVARO; GARRIDO, 2017), influenciado pelos trabalhos de Gabriel Tarde e sua teoria da imitação, compreende a Psicologia Social como uma área da Sociologia que deveria se voltar ao estudo das uniformidades no comportamento decorrentes da interação social, cujas explicações possam ser encontradas em causas sociais e ignorando explicações derivadas de fatores biológicos (ÁLVARO; GARRIDO, 2017). Ross propunha que os mecanismos explicativos do comportamento seriam a sugestão, a imitação e a invenção. Sua obra se apresentou como um contraponto às explicações inatistas na perspectiva da teoria dos instintos, oferecida no Manual de Psicologia Social, do psicólogo McDougall (1908 apud ÁLVARO;GARRIDO, 2017). O interacionismo simbólico tem seu início entre os anos de 1930 e 1940, consolidando-se como área das ciências nas duas décadas seguintes. O nome dessa linha de pesquisa psicossociológica foi dado por Herbert Blumer, em 1937. Nessa perspectiva, o significado é “um dos mais importantes elementos na compreensão do comportamento humano, das interações e dos processos” (CARVALHO; BORGES; REGO, 2010, p.153). Os interacionistas propõem que, para se compreender plenamente os processos sociais, é necessário a apreensão dos significados que são experienciados pelos indivíduos em um contexto particular (JEON, 2004 apud CARVALHO; BORGES; REGO, 2010). Blumer (1969/1982), apoiado na obra de George Mead, reafirma o significado como produto social, como criação das atividades dos indivíduos à medida que estes interagem (CARVALHO; BORGES; REGO, 2010). Para Blumer (1969), o interacionismo simbólico tem como base a análise de três premissas: A primeira é que o ser humano orienta seus atos em direção às coisas em função do que estas significam para ele... A segunda é que o significado dessas coisas surge como conseqUência da interação social que cada qual mantém com seu próximo. A terceira é que os significados se manipulam e se modificam mediante um processo interpretativo desenvolvido pela pessoa ao defrontar-se com as coisas que vai encontrando em seu caminho. (BLUMER, 1969, p.2 apud CARVALHO; BORGES; REGO, 2010, p.153) O tema central do Interacionismo Simbólico é a interação social, compreendida como ação social orientada e recíproca, que é analisada em seu caráter simbólico – o significado. Psicologia Social 13 A obra de Mead foi, inicialmente, nomeada como Behaviorismo Social. Acredita-se que isso ocorreu em virtude de, à época, o Behaviorismo ser o paradigma dominante na Psicologia e, também, porque Mead tecia uma crítica ao Behaviorismo clássico de Watson. Mead se opunha ao reducionismo do que ele chamou de watsonismo e que era identificado nas tendências da Psicologia Social nos EUA. O Behaviorismo Social de Mead é bastante distinto das demais formas vigentes à época, em especial porque ele considerava a linguagem como objeto de estudo privilegiado, pensando-a como um fenômeno inerentemente social. Mead foi concebido por seus pares, inicialmente, como um behaviorista, no entanto, suaobra se afasta das perspectivas behavioristas por ser, efetivamente, antirreducionista. Somente após a sua morte, com a retomada por Herbert Blumer de sua obra, ele passou a ser concebido como um interacionista simbólico, nome dado por Blumer, em referência à concepção de Mead quanto aos processos de interação social, que ocorrem entre indivíduos ou grupos mediados por relações simbólicas. Os sociólogos consideram Mead o criador do interacionismo simbólico (FARR, 1999), mas desconsideram suas proposições no campo da evolução da espécie, visto que Mead era um darwiniano comprometido e coerente. O fato de a Psicologia Social de Mead ter sido absorvida pelos sociólogos fez com que sua obra tenha sido ignorada por psicólogos sociais da modernidade e que estavam alinhados com as formas psicológicas de Psicologia Social, que eram predominantes. Assim como Wundt, Mead foi repudiado pelos positivistas da época. A psicologia social de Mead está fundamentada na tradição do pensamento filosófico ocidental, sendo também um fenômeno caracteristicamente norte-americano. Uma das maiores contribuições de Mead à Psicologia Social foi ter demonstrado a natureza dialética da relação entre indivíduo e sociedade, mostrando que a individualização é resultado dos processos de socialização, e não seu extremo oposto. Para esse pensador, o self (ou “si mesmo”) deve ser pensado em termos da evolução da espécie, em perspectiva com o desenvolvimento de cada membro individual da espécie. Com relação à separação das vertentes da psicologia social psicológica e sociológica, tem-se, na obra de Serge Moscovici, uma tentativa pioneira de reaproximação das duas correntes. Moscovici tem uma compreensão de que os fenômenos humanos ocorrem na interseção das esferas individuais e sociais, e não apenas em uma ou em outra. O estudo das representações sociais de Serge Moscovici (2003) costuma ser classificado como uma vertente sociológica da Psicologia Social, efetivamente bastante distinta da vertente psicológica, especialmente no que diz respeito à não individualização dos fenômenos humanos. Psicologia Social 14 A construção teórico-conceitual das representações sociais de Moscovici representa uma importante crítica ao entendimento de uma natureza exclusivamente individual, conforme o entendimento de Psicologia Social nos EUA e na Inglaterra. De acordo com Farr (1999, p.162), “de certa maneira, ela contém o antídoto para o processo de individualização da psicologia social nos Estados Unidos”. O contraste entre a pesquisa sobre representações sociais francesa e a pesquisa sobre atitudes e opiniões nos EUA e Inglaterra é um exemplo claro das diferenças entre as vertentes sociológica e psicológica da Psicologia Social. Moscovici afirma que psicólogos são incapazes de construir formas de Psicologia Social que sejam úteis para outros cientistas sociais, por isso, “estes cientistas sociais irão criar suas próprias formas de Psicologia Social” (FARR, 1999, p.165). Hoje, efetivamente, é possível a identificação de várias formas de se fazer Psicologia Social que foram construídas em outros campos do saber e das quais psicólogos(as) vêm se aproveitando para renovação e (re)construção do campo. A influência da produção alemã na construção da Psicologia Social pode ser referida primordialmente à Wilhelm Wundt, considerado por muitos como o pai da Psicologia, em especial pelo desenvolvimento de sua psicologia experimental no laboratório de Leipzig, e que também contribuiu em muito para o desenvolvimento da Psicologia Social. A tentativa positivista de fazer da psicologia social nascente uma disciplina exclusivamente das ciências naturais fez com que essa parte da sua obra fosse ignorada. Assim, é possível compreender que a Psicologia Social que floresce em solo americano, em especial durante e após a Segunda Guerra Mundial, é fundamentada sob uma perspectiva experimentalista. O livro-texto de Robert Farr (1999), referência para compreensão do nascimento da Psicologia Social moderna, evidencia que essa área do saber se constitui simultaneamente à separação da Psicologia e Sociologia enquanto disciplinas distintas, o que faz com que a Psicologia Social em florescimento, também se apresente de forma bastante diferenciada conforme se aproxima de uma ou outra área. Ou seja, apresentando-se em sua vertente psicológica – que estuda processos intraindividuais que são responsáveis pelo modo como as pessoas respondem a estímulos sociais – e sua vertente sociológica – que privilegia os fenômenos que emergem dos diferentes grupos e sociedades, das interações entre os indivíduos. Psicologia Social 15 Referências ABIB, J. A. D. Epistemologia pluralizada e história da psicologia. 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