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José Roberto Alves Barbosa
Linguística: Outra introdução
José Roberto Alves Barbosa
Linguística
Outra introdução
Linguística
Outra introdução
José Roberto Alves Barbosa
Mossoró • Rio Grande do Norte • Brasil Março de 2013
Copyright © 2013 José Roberto Alves Barbosa
Diagramação
Raimundo Luz
Revisão
Adalberto Barbosa Júnior
Capa
César Barros
Impressão
GL Gráfica
B238l Barbosa, José Roberto Alves.
Linguística: outra introdução. / José Roberto Alves Barbosa, editor Gustavo Luz. -- Mossoró, RN: Queima-Bucha, 2013.
88 p.
ISBN: 978-85-8112-056-0
1. Linguística. 2. Linguagem. 3.Gramática. I.Título.
CDD: 410
Bibliotecária: Marilene Santos de Araújo
CRB-5/1033
Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.
A violação dos direitos do autor (Lei n. 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.
Editora Queima-Bucha
Rua Jerônimo Rosado, 271 Centro
Mossoró - Rio Grande do Norte
59610-020 / 84 3314 2018
Aos estudantes com os quais tenho dialogado, dentro e fora da sala de aula.
As palavras diversamente arranjadas formam um sentido diferente, e os sentidos, diversamente arranjados, produzem efeitos diferentes
Blaise Pascal
SUMÁRIO
Considerações iniciais...............................................................11 1. A origem da fala humana.....................................................13
2. Histórico dos estudos linguísticos.......................................15
3. Paradigmas científicos da linguística..................................18
4. O objeto de estudo da linguística.........................................20
5. A linguagem animal e a língua humana.............................22
6. A teoria saussuriana do signo..............................................25
7. As dicotomias saussurianas..................................................28
8. O Círculo Linguístico de Praga..............................................32
9. A dupla articulação da língua...............................................35
10. Gramática gerativa...............................................................38
11. Representação da gramática gerativa................................41
12. Princípios e parâmetros......................................................44
13. Competência comunicativa................................................47
14. Texto e discurso...................................................................49
15. Teoria dos atos de fala.........................................................52
16. Esquemas e frames..............................................................55
17. Princípio cooperativo e máximas conversacionais.........58
18. Análise da Conversação.......................................................61
19. Linguística sistêmico-funcional.........................................64
20. Tema/rema: organização textual........................................68
21. Coesão e coerência textual.................................................70
22. Gêneros textuais...................................................................73
23. Gramática do Design Visual................................................76 24. Discurso e criticidade..........................................................80
Considerações finais..................................................................83
Referências..................................................................................85
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Existem vários livros de introdução à Linguística disponíveis nas livrarias do país. Este que o leitor tem em mãos é mais um que não se propõe ser mais completo do que os outros. A diferença deste, em relação aos demais esteja, talvez, no fato de ter surgido como resultado das minhas aulas de Linguística, disciplina que tenho lecionado ao longo destes últimos anos na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Quando iniciamos o Curso de Linguística I e II nessa Instituição de Ensino Superior, optamos, inicialmente, pela leitura de textos de vários teóricos da área. Alguns deles, no entanto, demonstraram ser inviáveis para um curso introdutório. Por isso, decidimos preparar um material próprio, inspirado nas contribuições dos manuais existentes, mas, sobretudo, partindo dos textos fundadores da Linguística, ou seja, diretamente das fontes.
Os próprios alunos, ao longo das conversas em sala de aula, sugeriram que déssemos o formato de livro àquelas aulas. Resistimos por algum tempo a essa ideia, mas finalmente nos rendemos à proposta e tomamos a iniciativa de colocar na tela do computador, e agora no papel, o lio que o leito tem em mãos, o qual temos a expectativa, continuará sendo útil para as aulas de Linguística nesse contexto universitário. Não temos a pretensão de apresentar um material inédito, na verdade, conforme já ressaltamos anteriormente, o diferencial, nessa outra introdução, é o modo de dizer, e mais especificamente, os recortes adotados, cujo critério foi a realidade da sala de aula, com poucas horas disponível para m curso de Linguística, para alunos que, em sua maioria, ainda não tinham ouvido falar da disciplina.
A constituição do material aqui disposto tem tudo a ver com nossa história. A Linguística a qual nos fundamentamos foi influenciada por vários teóricos, muitos deles de tendência anglo-americana. Por isso, destacamos, nesta outra introdução à Linguística, as contribuições de Chomsky, Austin, Searle, Hymes, Halliday e Fairclough. Evidentemente não poderíamos deixar de fora os pensadores clássicos da Linguística Moderna, especialmente Ferdinand de Saussure.
Essas opções teóricas, ainda que não sejam novas, e essa não é a intenção deste livro, seguem um fio condutor que visa dar ao estudante de Linguística outra introdução à disciplina. O leitor que desejar poderá utilizar este livro contrapondo a outras introduções, algumas delas teoricamente mais embasadas. Deixamos, através deste, uma modesta orientação aos estudantes, responsáveis pela transformação dessas anotações de aula em livro.
Por se trata de um material ainda em construção, portanto, inacabado, nos colocamos à disposição dos colegas com vistas à melhoria. Caso esse opúsculo resista ao tempo, e mereça outras edições, acataremos, na medida do possível, as sugestões para publicações futuras.
José Roberto A. Barbosa Fevereiro de 2013
1. A ORIGEM DA FALA HUMANA
E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo... Livro Bíblico do Gênesis 2.20.
Não é fácil determinar historicamente quando o homem começou a falar. Alguns estudiosos suspeitam que a língua falada tenha surgido entre 100.000 a 50.000 anos atrás. Pela própria diferença entre os números anteriormente citados, é possível deduzir que tal estimativa talvez não passe de uma suposição. Dispomos de muitos artefatos arqueológicos que auxiliam a identificação da história da escrita, mas não podemos dizer o mesmo em relação à origem da fala humana. Algumas perguntas persistem: quem foi o primeiro homem e a primeira mulher a falarem? Onde eles habitavam e o que fez com que eles fossem capazes de emitir os primeiros sons da fala?
A primeira teoria, a mais difundida na sociedade ocidental, é a da criação divina. Ao lermos o livro bíblico do Gênesis, identificamos, na narrativa, que Yahweh, quando criou Adão e Eva, dotou-lhes com a habilidade para a fala e esses passaram a dar nomes aos seres existentes. A língua dos seres humanos, de acordo com essa cosmovisão, teria sido a mesma por um longo tempo, até que, em decorrência da rebeldia humana ao construir a Torre de Babel, relatada no capítulo 11 do Gênesis, Elohim, outra terminologia para o Deus dos Hebreus, teria confundido a língua dos homens, de modo que eles não mais se entendessem. A competência para a língua, na espécie humana, seria, então, uma consequência da criação especial de Yahweh.
Outra visão relacionada à origem da fala humana está baseada no conceito desons naturais. Para alguns estudiosos da linguagem, as palavras primitivas teriam sido formadas a partir da imitação de sons naturais preexistentes, que teria dado origem às onomatopéias. A capacidade humana para falar teria surgido da adequação física da espécie para produzir sons para os quais os outros animais não estariam habilitados. Isso porque os seres humanos têm lábios mais flexíveis, bocas menores, uma língua mais fina e muscular que facilita a produção e a diversidade de sons. Além desses aspectos, a laringe, que contem as cordas vocais, difere consideravelmente da de outros primatas, principalmente em sua posição mais baixa. Se a teoria evolutiva estiver correta, poderíamos afirmar que, paradoxalmente, a descida da laringe no homem resultou na ascensão para a espécie.
Para alguns estudiosos, associados ao inatismo, os seres humanos, independentemente de terem sido especialmente criados por Deus com a capacidade para a língua, ou de uma competência proveniente da evolução da espécie, o fator determinante é que eles já nascem predispostos à língua. Assim como é possível à criança andar logo após os primeiros anos de vida, o mesmo acontece em relação à língua. As crianças teriam nascido com uma capacidade inata para tal, uma espécie de dispositivo para a aquisição linguística. A hipótese fundamental seria a predisposição genética para a língua, algo hereditário. Se apelarmos para uma metáfora computacional, poderíamos dizer que o ser humano teria nascido com um programa, e a partir desse as pessoas seriam capazes de produzir os enunciados nas diversas línguas.
2. HISTÓRICO DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS
Hermógenes – Aqui o Crátilo dizia, ó Sócrates, que cada
um dos seres tem um nome correto que lhe pertence por natureza, e que não é nome aquilo a que alguns chamam nome, acordando em chamar-lhe assim, e enunciando uma parcela da sua voz, mas que pertence aos nomes uma certa correção, que é a mesma para todos, sejam Gregos ou bárbaros.
Crátilo - Platão
A Linguística é uma ciência recente, pelo menos de acordo com o paradigma que, nessas últimas décadas, costumou-se denominar de ciência. Os estudos da linguagem, no entanto, remetem a tempos antigos. No século IV a. C., por razões religiosas, os hindus tiveram a preocupação de preservar seus textos sagrados, os Vedas, a fim de que não sofressem modificações. Nesse mesmo período, os gramáticos de origem hindu, entre eles Panini, dedicaramse à descrição detalhada, produzindo modelos para a análise linguística.
Posteriormente, os gregos também se envolveram com o estudo da língua. A principal preocupação dos gregos se concentrava na relação entre o conceito e palavra que o designa. Eles queriam saber se havia uma relação natural entre a palavra e o seu significado. Em Crátilo, Platão apresenta um diálogo entre Sócrates, Hermógenes e Crátilo. O debate gira em torno do caráter natural e/ou convencional da língua. Para Hermógenes, os nomes eram estabelecidos pelo costume, a convenção entre os homens, de tal maneira que sua origem é arbitrária, os defensores dessa posição foram denominados de thései (convencionalistas). Para Crátilo, cada um dos seres tem um nome correto, isto é, que lhe pertence por natureza, os adeptos dessa visão eram conhecidos como physei (naturalistas). Coube a Sócrates a tarefa de estabelecer, dialeticamente, essa relação, construindo um raciocínio intermediário.
Entre os latinos, ainda sob a influência das reflexões dos gregos, interessava ao filósofo-historiador Marcos Terêncio Varrão, no Século II a. C., a descrição da gramática latina. Como os gregos, Varrão estabelece duas dicotomias: o papel da natureza e da convenção na origem das palavras, e a questão da analogia e da anomalia na regulação do discurso. Partindo de Platão, defende que o significado original das palavras, imposto em concordância com a natureza, fora obscurecido pelo tempo, e que a etimologia ajudaria a recuperar o significado original das palavras.
Na Idade Média, os modistas – pequeno grupo de eruditos em atividade na universidade de Paris entre 1250 e 1320 – pretendiam identificar os “modos de significação” – a fim de fornecer um arcabouço para descrever o processo de verbalização. Para esse grupo, o objeto do mundo real, externo ao entendimento humano, poderia ser apreendido como um conceito pelo entendimento, e o conceito, por sua vez, seria dado a conhecer por um signo falado, tornandose, dessa maneira, um significado. Um dos principais críticos do modalismo foi Guilherme de Occam (1285 – 1349). Ele negou a existência de qualquer conexão intrínseca entre a palavra e a realidade.
Com a Reforma Protestante surgiu o interesse pela tradução da Bíblia para as diversas línguas do mundo. Nesse período, como o latim era a língua oficial da Igreja Católica, a Vulgata Latina, tradução da Escritura, do hebraico e grego, realizada por Jerônimo era considerada a versão oficial. Quando Lutero e os demais reformadores propuseram a divulgação da Bíblia entre os povos, o resultado foi a tradução dos textos bíblicos. O próprio Lutero foi um dos primeiros, traduzindo a Bíblia para a língua alemã. O interesse na divulgação das ideias cristãs protestantes favoreceu a criação de sociedades bíblicas com vistas ao estudo e tradução das línguas.
No Século XVII e XVIII ressurgiu o interesse pelas gramáticas universais. Assim, em 1660, foi publicada a Gramática Geral e Racional de Port Royal, de Claude Lancelot e Antoine Arnaud. Essa Gramática tinha por objetivo demarcar a racionalidade gramatical, isto é, que esta é imagem do pensamento. Por conseguinte, seus princípios de análise estabelecidos não deveriam estar relacionados a uma língua particular, antes serviriam a toda e qualquer língua. Essa gramática foi a precursora de uma série de gramáticas gerais, filosóficas e universais que surgiriam posteriormente. Os autores queriam mostrar a presença contundente de princípios lógicos na linguagem, distanciados da arbitrariedade das línguas particulares.
Por outro lado, a busca pelo conhecimento das línguas particulares, no Século XIX, a partir da influência de Charles Darwin, serviu de motivação para a tentativa de identificação da língua-mãe. Através do método históricocomparativo surgiram as Gramáticas Comparadas e a Linguística Histórica. Esses estudos mostraram que as línguas mudam com o tempo, sem que haja dependência da vontade humana, de acordo com suas próprias necessidades e manifestando-se de modo regular. Franz Bopp é o estudioso mais proeminente dessa época. A publicação de sua obra a respeito da conjugação do sânscrito é o marco fundador da Linguística Histórica.
Somente no limiar do século XX, com a publicação do Curso de Linguística Geral, em 1916, obra póstuma de Ferdinand de Saussure, produto das suas aulas na Universidade de Genebra, compilada por seus alunos Charles Bally e Albert Sechahaye, a Linguística se instituiu como ciência moderna. O método de investigação dessa ciência, conforme proposto por Saussure, deveria se basear na observação e descrição dos fatos da língua. Caberia ao linguista a aproximação desses fatos por um quadro teórico específico. A Linguística, que outrora não passava de uma área de conhecimento associada à lógica, filosofia, retórica, história e/ou crítica literária, passou a ser uma ciência com um objeto próprio de investigação: a langue (língua em francês)
3. PARADIGMAS CIENTÍFICOS DA LINGUÍSTICA
Há apenas fatos, eu digo: fatos é o que não há; há apenas interpretações.
Nietzche
A Linguística, depois de Ferdinand de Saussure, assumiu o status de ciência, ainda que tal condição, para alguns teóricos, tenha sido alcançada anteriormente, pelos estudos histórico-comparativistas. Diante desse impasse, talvez seja apropriado indagar a princípio: o que é ciência? Mas essa não é uma pergunta que possa ser facilmente respondida, tendo em vista que a ciência não é uma, mas várias. Por isso que se costuma falar em ciências humanas, exatas, biológicas, entre outras. As ciências agem de acordo com os métodos que são previamente estabelecidospelos seus pares. Kuhn (1970), um teórico da história das ciências, destacou que os cientistas seguem determinados paradigmas, isto é, alguns padrões que determinam como os “quebra-cabeças” devem ser resolvidos. Esses paradigmas, de vez em quando, não se coadunam mais com um determinando posicionamento científico. A esse acontecimento Kuhn denominou de “crise científica” que enseja a construção de outra “ciência normal”. Nos tempos de Saussure, ainda no início do Século XX, o padrão científico vigente era o positivista. Por conseguinte, qualquer estudo que quisesse ser reconhecido como tal, deveria se adequar àquele “paradigma”. Quanto mais imanente fosse a investigação, mais voltada à estrutura e passível de sistematização, maiores seriam as chances de obter legitimidade científica. Coerente com esse padrão, o mestre genebrino propôs uma série de postulados para a análise da língua. Inicialmente, distinguiu a língua humana da linguagem geral, a primeira deveria ser objeto de estudo da Linguística, e a segunda, de uma ciência mais ampla, denominada, por ele, de Semiologia. A Linguística, enquanto ciência, deveria, estudar as modalidades dos sistemas sígnicos, as línguas naturais.
Fora do contexto acadêmico as pessoas costumam apresentar posicionamentos equivocados a respeito do que é a Linguística. Há uma crença comum que a Linguística tem a ver com o conhecimento da Gramática Normativa. Muito pelo contrário, o ponto de vista da Linguística, em relação à língua, é diferente daquele defendido por alguns professores de gramática. Esses últimos, baseados nos livros disponibilizados no mercado, repassam regras previamente estabelecidas, tentam inculcar modelos corretos para a fala e a escrita. A abordagem da Linguística não é normativa, antes descritiva. O estudo científico da língua busca descrever a língua como ela é, não determinar como ela deve ou deveria ser. O linguista evita fazer julgamento de valor, dizer que uma regra gramatical é certa e/ou errada.
Outro equívoco relacionado à definição do que seja a Linguística, é o de pensar que esta se ocupa exclusivamente com o ensino e aprendizado de línguas. Não podemos negar que, de fato, essa ciência, ao longo de sua história, trouxe contribuições significativas para a aquisição de línguas, tanto de Língua Materna (LM) quanto de Segunda Língua (L2). O surgimento posterior da Linguística Aplicada possibilitou a utilização das teorias linguísticas, que, associadas às abordagens da Psicologia, da Educação, Sociologia e Filosofia da Linguagem, favoreceu uma série de reflexões e aplicações práticas ao ensino e aprendizagem de línguas. Mudanças consideráveis aconteceram nesses últimos anos no processo educacional de ensino de línguas decorrentes das contribuições dos estudos linguísticos.
A opção pelo ensino produtivo da língua, menos centrado nas regras descontextualizadas da gramática normativa e voltado para o domínio produtivo da escrita e leitura de textos, é resultado de tais reflexões. Muitas delas advieram das contribuições de algumas das principais áreas da Linguística, que envolve língua e uso (Pragmática), língua e mente (Psicolinguística), língua e sociedade (Sociolinguística) e língua e poder (Análise do Discurso).
4. O OBJETO DE ESTUDO DA LINGUÍSTICA
Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto.
Ferdinand de Saussure
Um objeto de estudo diz respeito ao modo como determinada ciência olha para aquilo que pretende descrever ou explicar. A Linguística, como toda ciência, tem seu objeto de investigação. Mas se assumirmos que a Linguística são várias, podemos também afirmar que múltiplos são seus objetos. Para efeito de delimitação, destacaremos, a princípio, dois olhares distintos, o Estruturalista, de Ferdinand de Saussure, e o Gerativista, de Noam Chomsky. Esses dois posicionamentos, ainda que bastante questionados em determinados círculos acadêmicos, são os paradigmas que alicerçaram, e de certo modo fundamentam muitas pesquisas nos estudos da linguagem.
Para Saussure, em seu Curso de Linguística Geral (CLG), a linguagem é algo mais amplo, ele a define como “heteróclita e multifacetada”, abrangendo vários domínios, e que “não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade” (1969, p. 17). Em virtude da sua amplidão, o linguista de Genebra propôs uma delimitação para os estudos da Linguística, a essa ele chamou de langue – termo francês para língua. Essa seria uma parte da linguagem como um todo, e diferentemente daquela, passível de classificação. Para Saussure, a langue “é um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício da faculdade nos indivíduos” (p. 17).
Saussure distingue langue de parole, ressaltando que essa última é “sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor” (p. 21). Seguindo o seu princípio unificador, e em busca de uma coerência metodológica, desconsidera a parole como objeto de estudo da Linguística e faz opção pela langue. Assim, o interesse da Linguística não deveria ser a linguagem e muito menos a parole, mas a langue “considerada em si mesma, e por si mesma”. Essa asserção saussuriana favoreceu o surgimento de um paradigma científico em relação aos estudos da língua denominado de Estruturalismo. Para seus seguidores, a língua é fundamentalmente uma estrutura, isto é, um sistema constituído por uma rede de elementos, em que cada elemento tem um valor funcional específico.
Em oposição, e de certo modo, em continuidade, Noam Chomsky propôs, em meados do século XX, um objeto distinto para a pesquisa linguística. Em seu livro Syntatic Structures (1957, p. 13), delimita, assim, esse objeto “Doravante considerarei uma língua como um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos”. A lógica da Linguística é nitidamente visível na definição de Chomsky, no processo de explicação do seu objeto. Diferentemente do que propunha Saussure, e seus seguidores, caberia ao linguista descrever as línguas naturais com vistas a determinar as sequências universais da língua, comuns a toda e qualquer língua.
Chomsky baseia seus postulados na premissa de que o ser humano, diferentemente dos seres de qualquer outra espécie, tem uma especificidade inata para a língua. A partir dessa, propôs outra dicotomia, com alguma relação entre a langue e a parole de Saussure, denominada de competência e desempenho. A competência é o objeto de estudo da Linguística e corresponde à porção do conhecimento do sistema linguístico do falante que lhe permite produzir o conjunto de sentenças de sua língua. O desempenho pressupõe a competência e corresponde ao comportamento linguístico, e decorre de fatores sociais, crenças, atitudes emocionais do falante, pressupostos dos interlocutores, entre outros. O propósito de estudo da língua, seguindo o paradigma chomskiano, possibilitou o surgimento de outra escola no âmbito dos estudos linguísticos, o Gerativismo, resultante da percepção dessa capacidade inata dos falantes para produzirem enunciados jamais ouvidos antes.
5. A LINGUAGEM ANIMAL E A LÍNGUA
HUMANA
- Pois bem – explicou o gato -, um cachorro rosna quando
está com raiva e balança a cauda quando está contente compreende?
Enquanto eu rosno quando estou satisfeito e balanço a cauda quando estou com raiva, está entendendo? Portanto eu sou louco?
Aventuras de Alice de Lewis Carroll
Em 1959, Karl von Frisch desenvolveu um estudo clássico a respeito do sistema de comunicação entre as abelhas. Ele constatou que a abelha-obreira, após identificar uma fonte de alimento, regressa à colméia para transmitir a informação às outras abelhas. Isso se dá através de dois tipos de dança, uma circular, trançando círculos horizontais da direita para a esquerda e vice-versa, e outra em forma de oito, em que a abelha contrai o abdômen, seguindo em linha reta, e, em seguida, fazendo umavolta completa à esquerda, de novo correndo em linha reta e fazendo um giro para a direita, e assim por diante. A dança em forma de oito depende da distância na qual se encontra o alimento e indica precisamente o total de metros da fonte do alimento.
Antes disso, em 1930, dois cientistas, Luella e Winhrop Kellogg, tentaram comprovar que um chimpanzé, chamada Gua, seria capaz de compreender aproximadamente cem palavras, ainda que não fosse capaz de reproduzi-las. Na década de 1940, um casal de cientistas, Catherine e Keith Hayes, tentaram, em sua casa, fazer com que um chimpanzé, por nome Viki, pudesse produzir enunciados em inglês, mas a tentativa não obteve sucesso. De vez em quando, algum cientista tenta produzir algum sistema que seja capaz de comprovar a capacidade dos animais para a língua. Os estudos têm mostrado que os primatas não humanos não dispõem de um sistema vocálico fisicamente estruturado para a articulação dos sons usados na fala. Esses animais, assim como as abelhas, podem comunicar, mas não do mesmo modo que os seres humanos.
Na década de 1970, Herbert Terrace, juntamente com Laura Ann Petitto, Richard Sanders e Tom Bever, tentou repetir uma experiência realizada com um chimpanzé macho. Para tanto, ele deu ao animal o nome de Nim Chimpsky – uma alusão irônica a Noam Chomsky – e usaram sinais a fim de categorizar a linguagem do animal. Após o entusiasmo inicial, verificaram que Chimpsky somente imitava, e não era capaz de produzir frases, mas apenas enunciados desestruturados de três palavras. O estudo comprovou ainda que os chimpanzés podem aprender algum vocabulário, mas incapazes de fazerem rearranjos linguísticos, através da combinação de itens gramaticais.
A língua humana tem algumas propriedades que a distingue da linguagem animal. Dentre elas, destacamos: o deslocamento, a arbitrariedade, a produtividade, a transmissão cultural e a dualidade.
1) Deslocamento - tem a ver com a possibilidade que se tem, pela língua, de falar a respeito de coisas e eventos que não se encontram presentes no contexto imediato. Essa propriedade diz respeito à função dêitica da língua, isto é, à capacidade de apontar para as coisas e eventos (como fazemos com os dedos, por exemplo) através da língua. Referimo-nos a uma festa que aconteceu ontem (temporal) em um determinado lugar (espacial), sem necessariamente mostrar no contexto imediato.
2) Arbitrariedade - diz respeito à ausência de uma relação natural ou “icônica” entre o sinal linguístico e o objeto descrito no mundo. Não existe, por assim dizer, uma conexão natural entre uma forma linguística e seu significado. Quando olhamos para um lápis e o denominamos como tal, não vemos uma relação necessária entre o objeto que serve para escrever e o nome “lápis”.
3) Produtividade - é uma das propriedades que distingue com maior especificidade a língua humana da linguagem dos animais. O ser humano tem a capacidade inata para produzir um número infinito de enunciados, alguns deles jamais ouvidos anteriormente. Os sistemas de comunicação das outras criaturas não apresentam esse tipo de flexibilidade. A referenciação dos animais é limitada, por isso, ela costuma ser denominada de referência fixa.
4) Transmissão cultural - essa característica diz respeito à possibilidade que os seres humanos têm de passar a cultura de geração a geração por meio da língua. Os animais nascem com um conjunto de sinais específicos os quais são reproduzidos instintivamente. Os seres humanos, diferentemente desses, se forem isolados na infância, não poderão desenvolver uma linguagem instintiva.
5) Dualidade - a língua está organizada em dois níveis e/ou camadas simultâneas. Essa propriedade está relacionada à dualidade, isto é, a possibilidade de articular duplamente a língua. Num determinado nível os sons distintos, e em outro, os significados distintos. Essa dualidade é fundamental para a propriedade econômica da língua. Isso porque através de um conjunto limitados de sons podemos produzir um número amplo de palavras.
Ao refletirmos a respeito dessas propriedades, concluímos que os animais podem ter algum sistema de comunicação, alguma linguagem, mas não a língua com as propriedades peculiares da espécie humana.
6. A TEORIA SAUSSURIANA DO SIGNO
Um signo é uma coisa que, além da espécie ingerida pelos
sentidos, faz vir ao pensamento, por si mesma, qualquer outra coisa. Agostinho de Hipona.
A atividade linguística é sígnica, isso porque as palavras criam conceitos, e esses, por sua vez, constroem a realidade. Ao partir dessa premissa, Saussure ([1916] 1969, p. 130) assume que
Psicologicamente, a abstração feita de sua expressão por meio das palavras, nosso pensamento não passa de uma massa amorfa e indistinta. Filósofos e linguistas sempre concordaram em reconhecer que, sem o recurso dos signos, seríamos incapazes de distinguir duas ideias de modo claro e constante. Tomado em si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua.
De acordo com essa concepção saussuriana as palavras formam um sistema autônomo que independe do que elas nomeiam. Isso significa que cada língua pode categorizar o mundo de forma distinta. Essa categorização se dá através de signos, os quais, a partir desse paradigma, definem-se em relação aos outros, através de suas diferenças. Por exemplo: a palavra portuguesa professor se refere tanto ao professor do ensino fundamental quanto ao professor universitário. Na língua inglesa, existem duas palavras distintas para tal: teacher, para o professor das séries iniciais, e professor, para o professor-pesquisador universitário. Percebemos, nessa distinção, a noção de valor do signo linguístico, já que um é posto na sua relação com o outro.
Para Saussure, um signo é sempre interpretável por outro signo, e isso acontece no interior do mesmo sistema pelos sinônimos, pelas paráfrases e pelas definições. A dificuldade de tradução de uma língua para outra revela essa particularidade. Não existem, por assim dizer, palavras sinonímicas de uma língua para outra, a não ser funcionalmente, na possibilidade de comunicação. Na verdade, nem mesmo na mesma língua se pode falar em sinônimos perfeitos, basta citar, por exemplo, o verbo morrer cujo significado, em alguns dicionários, é falecer. No entanto, diríamos que alguém morreu ou faleceu, mas dificilmente que um cachorro faleceu.
Isso acontece porque o signo não é a realidade, por isso não podemos incorrer no equívoco de pensar que o signo linguístico une um nome a uma coisa. Essa relação é de um conceito – significado, a uma imagem acústica – significante. O significado não é a coisa propriamente dita, mas a sua representação. Por esse motivo Saussure afirma que o signo é a união de um conceito com uma imagem acústica. A imagem acústica /kaza/ ou /haƱs/, por exemplo, não reclama uma casa particular, mas a idéia geral de casa, que tem valor classificatório. Sendo assim, o signo é uma entidade de dupla face, uma reclama a outra, de modo que não existe significante (imagem acústica) sem significado (conceito).
Outra noção relacionada ao conceito de signo linguístico em Saussure é a de valor. A máxima recorrente no CLG e a de que na langue só existem diferenças. Ele determina ainda que o signo é justamente aquilo que outro não é. Esse valor provém da reciprocidade entre as peças na língua. Além de apontar o valor como uma das peculiaridades do signo linguístico, Saussure ressaltou duas das suas características essenciais: a arbitrariedade e a linearidade. Para ele o signo é arbitrário, isto é, cultural, sendo imotivado. Resgatando a concepção dos theseistas – convencionalistas - gregos, apresentada no Crátilo de Platão, Saussure argumenta que não existe uma relação necessária entre o som e o sentido, que não existe uma união natural entre o significante e aquilo que ele significa. Nada há na palavra /’kaza/ ou /haƱs/ que lembre casa, ela poderia muito bem ser denominada de /zaka/, em português,ou de /zaka/, em inglês. Essa propriedade do signo linguístico diz respeito à convencionalização, à existência de um acordo coletivo.
Outra propriedade do signo linguístico é a linearidade, o que faz com que esse se desenvolva ao longo do tempo linear, um após o outro, numa sucessão que pode ser também espacial. Por causa dessa particularidade do signo é improvável que alguém seja capaz de produzir mais de um elemento linguístico simultaneamente, seja um som, uma palavra, uma frase ou um texto, esses sempre virão um após o outro. Para a produção de /’kaza/ ou /haƱs/, é preciso, sucessivamente, que os sons /k/, /a/, /z/, /a/, e /h/, /a/, /Ʊ/, /s/, sejam postos um após o outro. Para Saussure (1969), essa característica do signo está restrita à parte imaterial do signo, isto é, ao significante. Isso porque “os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após outro; formam uma cadeia” (p. 84).
7. AS DICOTOMIAS SAUSSURIANAS
Pater noster, qui es in caelis, sanctificetur nomen
tuum, adveniat regum tuum, fiat voluntas tua sicut in caelo et in terra. Panem nostrum supersubstantialem da nobis hodie; et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris, et ne nos inducas in tentationem, sed libera nos a Malo Oração do Senhor.
Em seu Curso de Linguística Geral (1969, p. 15), Ferdinand de Saussure, ao delimitar o objeto de seu estudo, discorre a respeito da palavra nu, e sua correspondência latina nudum, analisando a língua em suas mudanças históricas. Ele mostra, através da comparação entre as duas palavras, que é possível estabelecer uma correlação histórica no francês. Em português, poderíamos fazer o mesmo, para tanto partiremos da oração do Pater Noster em latim. Houve um tempo em que era assim que se rezava nas igrejas até que se optou pelo vernáculo.
O objetivo dessa análise é a explicitação de alguns conceitos saussurianos, apresentados na forma de dicotomias. A palavra dicotomia, no grego, quer dizer “divisão em partes iguais”. De acordo com a proposta saussuriana para os estudos linguísticos, uma dicotomia se trata de um conceito interrelacionado a outro. As dicotomias comumente denominadas de saussurianas são: diacronia/sincronia, língua/fala e sintagma/paradigma. O mestre genebrino, por meio dessas dicotomias, faz uma contraposição com base em cada uma das duas partes da língua, a fim de estabelecer a metodologia para o estudo científico da langue.
Diacronia e Sincronia são formas distintas de abordar o estudo da língua. A diacronia – que vem da composição do grego dia – através – e chronos – tempo, diz respeito à dimensão temporal da língua. Na perspectiva diacrônica estudamos as mudanças que a língua sofreu ao longo de um determinado período de tempo. A proposta dos estudos realizados pela Linguística Histórica é a de traçar o grau de parentesco nos diferentes níveis da língua – fonológico, morfológico, lexical e sintático. A palavra latina Pater, por exemplo, vem do grego πατήр, que, por sua vez, veio do sânscrito Pitar. No português – pai, em espanhol – padre, em francês – père, e em italiano – padre. O latim, desse modo, seria a língua-mãe dessas que seriam as línguas-filhas.
A sincronia diz respeito à ausência de elementos temporais numa descrição linguística. Essa palavra é uma composição do grego syn – juntamente e chronos – tempo, cujo significado é “ao mesmo tempo”. Em uma proposta sincrônica para a análise linguística, a atenção é posta num dado momento do tempo. Isso não quer dizer que se trata apenas de uma descrição da língua no tempo presente. O estudo do português do tempo de Luis de Camões é considerado um estudo sincrônico. Para Saussure, a Linguística deve se preocupar com a descrição sincrônica da língua. Ele argumenta que esta, e não a diacronia tem princípios de regularidades. Para explicar esse paradigma, ilustra com o jogo de xadrez, justificando que, numa partida, o fundamental é identificar a disposição das peças e as regras do jogo num determinado momento, não interessando o percurso que as peças percorram até chegar à condição atual.
Na dicotomia langue (língua) / parole (fala), Saussure reforça que o objeto de estudo da Linguística é a língua e não a fala. Ele define esse objeto como um sistema de elementos que forma um todo. A língua, nessa perspectiva, é um conjunto de elementos organizados sistematicamente, um em função dos outros. A proposta de Saussure, com essa delimitação, é separar os fatos da língua dos fatos da fala. Os primeiros dizem respeito à estrutura do sistema linguístico e os segundos ao uso desse sistema. A pertinência dessa dicotomia, para Saussure, está na possibilidade de estudar os fatos da língua (langue) separadamente dos fatos da fala (parole). Fazendo alusão à oração do Pai Nosso, é possível que existam variações no português para pronunciar as palavras da oração. Mesmo assim, essas diferenças não costumam afetar o sistema fônico da língua. O fato de alguém pronunciar [dia] ou [dӡia] não afeta o sistema fônico da língua.
Para Saussure, há algumas relações dentro do sistema linguístico que são estabelecidas em dois eixos distintos – da combinação (sintagmático – do grego sintagma, que quer dizer coisa posta em ordem) e o da seleção (paradigmático – do grego paradigma que quer dizer modelo). Os elementos estão relacionados em presença ou ausência um do outro. Assim, em Pai Nosso que estás no céu, os elementos < Pai – Nosso – que – estás – no – céu > encontram-se em uma sequência de combinação, vindo um após o outro em presença, obedecendo às regras do sistema. Numa relação seletiva, ao invés de Pai, seria possível substituir a palavra por Mãe, minha por meu, tua; que estás no céu – por estás na terra, entre outras opções.
p
a
r
a
d
i
g
m
á
t
i
c
o
sintagmático
Eixos Paradigmático (seleção) e Sintagmático (combinação)
É preciso destacar que essas relações ocorrem em diversos níveis da análise linguística: fonológica: /pai/ - /vai/; morfológica: am – a - ria – s / beb – e – ria – s; lexical: Pai, Mãe, Deus, Filho; e sintática; Pai Nosso que estás no céu / mãe querida que está na terra. Para entender melhor essa relação, façamos uma analogia com as peças de roupas disponíveis num guarda roupa. A que alguém está vestido: calça, camisa, meias e sapatos, seria a combinação (sintagmática), enquanto que as roupas que se encontram no guarda roupa, e que poderiam ser usadas, mas não foram, é a seleção (paradigmática). Ou comparando com uma partida de futebol, os jogadores em campo seriam elementos sintagmáticos. Os paradigmáticos aqueles que se encontram no banco de reserva, à disposição do técnico.
8. O CÍRCULO LINGUÍSTICO DE PRAGA
O mistério da ideia incorporada à matéria fônica, o
mistério da palavra, do símbolo linguístico, do Logos, um mistério que pede para ser elucidado.
Roman Jakobson
O Círculo Linguístico de Praga ou Escola de Praga era composto por um grupo de linguistas e críticos literários que atuaram entre os anos de 1928 a 1939. Seus proponentes desenvolveram métodos de análise literária de cunho estrutural. Entre os membros desse grupo estavam alguns pensadores russos tais como Roman Jakobson, Nicolai Trubetzkoy e Sergei Karcevsky. O primeiro presidente do Círculo foi o linguista Vilém Mathesius que comandou os trabalhos do grupo até a sua morte em 1945.
Os estudos do Círculo romperam com a posição estrutural clássica de Ferdinand de Saussure. Eles defendiam que os métodos de estudo das funções da língua deveriam ser aplicadas tanto sincronicamente quanto diacronicamente. A funcionalidade dos elementos linguísticos e a importância de sua função social passaram a ser abordados enquanto aspectos essenciais para o programa de pesquisa. O resultado inicial das reflexões desse grupo foi publicado em um congresso realizado em Praga em 1929. Aos primeiros volumes dessa publicação foi dado o título de Travaux du Cercle Linguistique de Prague [Trabalhos do Círculo Linguístico de Praga].
Nesses trabalhos essa escola ressaltou a função dos elementos internosda língua, o contraste desses elementos entre si e o sistema que formulava tais elementos. Os pesquisadores desenvolveram a análise de traços linguísticos distintivos, principalmente na fonologia, mostrando como cada som é composto por um grupo de características acústicas e articulatórias em que os sons são diferenciados por pelos menos um traço distintivo. O paradigma funcionalista linguístico da Escola de Praga pode ser descrito como uma proposta de abordagem que considera cada componente de uma língua - o fonema, o morfema, a palavra ou a sentença - a fim de cumprir uma função comunicativa particular.
Eles consideravam a língua como um sistema de subsistemas em que cada parte está interligada a um campo mais amplo. Assim sendo, a língua nunca se encontra em estado de equilíbrio, por isso, a ocorrência de múltiplos desvios. São justamente esses desvios que fazem com que a língua se desenvolva e funcione como um sistema vivo. Em consonância com esse pensamento Trubetzkoy (1964) argumentou que um sistema fonológico não é apenas uma soma mecânica de fonemas isolados, mas um todo orgânico em que os fonemas são membros da estrutura e submissos às suas leis.
O Círculo também demonstrou forte preocupação com a análise das funções da linguagem e isso incluía tanto a função como o ato de comunicação como a língua em sociedade. Por esse motivo tais linguistas são denominados de funcionalistas, justamente por atentarem não apenas às formas, como faziam os estruturalistas, mas também às funções desempenhadas pelas estruturas linguísticas. Com essa preocupação, Jakobson mostrou que os elementos de um sistema e suas mudanças não são apenas compatíveis, antes contêm laços indissolúveis. Esses laços foram demonstrados com bastante propriedade pelos Círculo nos estudos fonéticofonológicos.
Nesse campo específico de atuação, a Escola contribuiu com uma teoria rigorosa e com procedimentos para a análise. A fonologia, conforme descrita pelos fundadores do Círculo, deveria descrever cientificamente uma língua a fim de compreender as características do seu repertório, e, ao mesmo tempo, identificar suas diferenças significativas. Através da fonologia comparada seria possível a formulação de leis gerais que regem as correlações dentro do quadro de um determinado sistema fonológico. A história fonética, nessa perspectiva, se transformaria na história da evolução do sistema fonológico. Os estudos fonológicos deveriam identificar as características particulares do sistema em termos da língua em suas diferenças significativas para distinguir os tipos de diferenças e formular leis que regulassem as relações dessas correlações.
Trubetzkoy contribuiu significativamente para a construção da teoria da fonética e da fonologia. Ele é responsável pelo nascimento da fonologia funcional e por fazer a distinção entre fonética – a ciência que estuda os sons da fala humana - e fonologia – a ciência que estuda os sistemas de sons das línguas. Defendia a necessidade de adotar critérios para diferenciar fonemas e sons. Para tanto recorreu à dicotomia saussuriana langue/parole, definindo o fonema como um conjunto de traços distintivos no sistema linguístico (langue) e os sons enquanto manifestações individuais da fala humana (parole).
As contribuições do Círculo Linguístico de Praga para os estudos linguísticos é reconhecida por vários teóricos. Algumas das reflexões formuladas por essa Escola foram retomadas posteriormente por movimentos que, com as devidas adaptações, se apropriaram de seus conceitos para um redimensionamento dos estudos linguísticos. Os estudos recentes da comunicação, e o enfoque na relação entre língua e sociedade devem bastante às discussões do CLP. Isso porque, a fim de desvendar o mistério da palavra, e na tentativa de elucidar os enigmas do signo linguístico, desbravaram, com a mesma maestria, o solo íngreme da linguística e os emaranhados labirintos da teoria literária.
9. A DUPLA ARTICULAÇÃO DA LÍNGUA
O segundo projeto era representado por um plano de
abolir completamente todas as palavras, fossem elas quais fossem
[...]. Em vista disso, propôs-se que, sendo as palavras apenas nomes para as coisas, seria mais conveniente que todos os homens trouxessem consigo as coisas de que precisassem falar ao discorrer sobre determinado assunto [...] ... muitos eruditos e sábios aderiram ao novo plano de expressarem por meio de coisas; cujo único inconveniente residia em que, se um homem tivesse que falar sobre longos assuntos e de várias espécies, ver-se-ia obrigado, em proporção, a carregar nas costas um grande fardo de coisas, a menos de poder pagar um ou dois criados robustos para acompanha-lo [...].
Outra vantagem oferecida pela invenção consiste em que ela serviria de língua universal, compreendida em todas as nações civilizadas, cujos utensílios e objetos são geralmente da mesma espécie, ou tão parecidos que o seu emprego pode ser facilmente percebido. As viagens de Gulliver, Jonathan Swift (1735).
A teoria da dupla articulação da linguagem é uma contribuição do pensamento funcionalista de André Martinet. Essa linha de pensamento situa-se no paradigma estruturalista europeu, em uma abordagem funcional, prosseguimento dos estudos linguísticos de Praga. A partir dos trabalhos de Trubetskoy, Martinet desenvolveu uma série de pesquisas sobre o indo-europeu e a fonologia, a partir da qual propõe um enfoque sobre a diversidade das línguas, levando em conta suas diferenças. Para Martinet, a língua é definida como um “instrumento de comunicação duplamente articulado e de manifestação vocal” (1991, p. 20).
Essa proposição o situa num paradigma funcional da Linguística. Martinet (1989) define o termo funcional, demonstrando sua identificação com o Círculo Linguístico de Praga:
[...] em seu sentido mais corrente implica que os enunciados linguageiros são analisados em referência à maneira como eles contribuem para o processo de comunicação. A escolha do ponto de vista funcional deriva da convicção de que toda pesquisa científica se fundamenta no estabelecimento de uma pertinência e que é essa pertinência comunicativa que melhor permite compreender a natureza e a dinâmica da linguagem. Todos os traços linguageiros serão, então, prioritariamente, apreendidos e classificados em referência ao papel que desempenham na comunicação da informação (p. 53).
Para Martinet (1989), a pertinência comunicativa constitui-se em outro ponto de vista, distinto daquele de Saussure, em relação ao objeto de estudo da Linguística. Ele argumenta que
[...] cada ciência é caracterizada menos pela escolha dos objetos que pela escolha de certas características desses objetos. Cada ciência se fundamenta em uma pertinência. Na linguística funcional, estimamos que a pertinência é a pertinência comunicativa (p. 37).
A ênfase de Martinet é posta, assim, sobre a função mais englobante, acentuando a troca verbal entre os atores da comunicação, e não apenas sobre um elemento do processo comunicativo. Para tanto, distingue dois tipos de pertinência: a pertinência distintiva (dos fonemas), e a significativa (dos monemas). Por meio dessa distinção, Martinet estabelece a dupla articulação da linguagem como uma das características das línguas humanas. Para ele, “cada uma das unidades que resultam de uma primeira articulação está, portanto, articulada, por sua vez, a unidades de um outro tipo” (1991, p. 13).
A primeira articulação possibilita a combinação, entre si, das unidades mínimas significativas, a fim de ordenar “a experiência comum a todos os membros de uma comunidade linguística” (1991, p. 14). Ao mesmo tempo, a infinita possibilidade de combinação dá a cada locutor a capacidade de produzir enunciados singulares. As unidades da primeira articulação possuem um significado e uma forma vocal, são signos com duas faces, um significante e um significado (monemas). O monema tanto pode ser um segmento linguístico distinto quanto uma diferença formal.
Para ele, a primeira articulação somente é possível porque os monemas são constituídos deunidades sucessivas menores, não detentoras de significado: os fonemas, sendo esses os elementos da segunda articulação. A diferença primordial entre eles é que a lista de monemas de uma língua é aberta, já que toda língua se encontra em constante evolução, os fonemas é fechada e constitui um sistema. Por essa razão, o monema livro é constituído de cinco unidades da segunda articulação /΄livru/. A dupla articulação da língua favorece a quantidade de possibilidades linguísticas, considerando que o sistema fônico, bastante econômico, pode formar várias monemas (ou morfemas).
10. GRAMÁTICA GERATIVA
O cérebro - é pesado como Deus - se na balança - os pões - serão iguais - ou quase - tal e qual - a sílaba e o som
Emily Dickinson
O Gerativismo é uma corrente dos estudos linguísticos que surgiu no final da década de 1950, nos Estados Unidos, a partir dos trabalhos do linguista Noam Chomsky. O ano de 1957 é considerado o marco inicial da Linguística Gerativa, em virtude da publicação do livro Syntact Structures [Estruturas Sintáticas] desse estudioso que trouxe contribuições bastante significativas para a percepção das teorias linguísticas. Esse modelo teórico formal, inspirado na matemática, propõe não apenas a descrever, mas a explicar abstratamente o que é e como funciona a língua humana. Para tanto, Chomsky (1975, p. 84) pressupõe
um falante-ouvinte ideal, situado numa comunidade linguística completamente homogênea, que conhece a sua língua perfeitamente, e que, ao aplicar o seu conhecimento da língua numa performance efetiva, não é afetado por condições gramaticalmente irrelevante, tais como limitações de memória, distrações, desvios de atenção e de interesse, e erros (casuais ou característicos).
Para situar melhor a teoria gerativista, é preciso destacar, que essa surgiu em reação ao modelo behaviorista, o qual se propunha a descrever os fatos da língua. Para este modelo, o comportamento humano deveria ser estudado, especificamente, em termos de processamento físico. A proposta behaviorista seria descrever como um evento externo – um estímulo – causava uma mudança no comportamento de um indivíduo – uma resposta. Esse movimento influenciou várias áreas da ciência, dentre elas, a Psicologia, a Educação e também a Linguística. Um dos nomes mais representativos da Linguística Estrutural Behaviorista foi o linguista americano Leonard Bloomfield.
Para ele, a língua era interpretada como um condicionamento social, uma resposta que o organismo humano produzia mediante os estímulos que recebia da interação social. Por isso, a partir da repetição constante e mecânica, seria possível transformar a língua num hábito, caracterizando, assim, o comportamento linguístico do falante. No contexto dessas discussões teóricas, em 1959, Noam Chomsky criticou o livro Verbal Behaviour [Comportamento Verbal], escrito pelo behaviorista B. F. Skinner. Essa crítica radical resultou no declínio dessa teoria na academia e na consolidação de uma escola de investigação na Linguística denominada Gerativismo.
O Gerativismo, por outro lado, argumentou em prol da existência de uma Gramática Gerativa, isto é, um conjunto de regras finitas ou infinitas que possibilita a criação infinita de frases. Chomsky (1957), na constituição desse paradigma linguístico, assume: “Considerarei a língua como um conjunto (finito ou infinito) de sentenças” (p. 13). Assim, se as frases de uma língua podem ser comparadas a um conjunto, argumenta que existe um conjunto de regras que possibilita a produção dessas sentenças. Para Chomsky (1957), que se inscreve num paradigma racionalista dos estudos linguísticos, essa capacidade humana para criar frases é resultante de um componente inato, uma capacidade genética, interna ao organismo humano.
Essa disposição inata, inerente à espécie humana, existe por causa de uma Faculdade da Linguagem. Ela está relacionada à Competência Linguística, à capacidade natural e inconsciente para produzir frases. Por sua vez, não existe em qualquer outro ser vivo e separa os seres humanos dos primatas superiores e do resto do mundo natural. Essa competência (Língua-I), para Chomsky (1957), deve ser diferenciada da Performance (Língua-E) – que envolve o uso concreto da língua e diversos tipos de habilidades que não são linguísticas, tais como atenção, memória, emoção, nível de estresse, conhecimento de mundo, etc. Para ele, a Linguística deve explicar a Competência, não a Performance (ou Desempenho). Partindo desse pressuposto, Chomsky (1980) argumentou que o objetivo da Linguística Gerativa será construir um modelo teórico capaz de explicar a natureza e o funcionamento dessa faculdade, um dos aspectos mais importantes da mente humana.
11. REPRESENTAÇÃO DA GRAMÁTICA GERATIVA
Não devemos nos surpreender se cada legislador das palavras utiliza as mesmas sílabas, mas como todos os ferreiros não usam o mesmo ferro, mesmo quando fazem o mesmo instrumento para o mesmo fim. Desde que eles produzam a mesma forma, o instrumento é igualmente bom, seja aqui ou entre os bárbaros
Teeteto, Platão
Por se tratar de uma Gramática nos moldes da lógica matemática, os estudiosos do Gerativismo utilizam uma série de símbolos para representar as estruturas sintáticas. Tais símbolos apontam para algumas categorias, entre elas destacamos: a Sentença (S), o Sintagma Nominal (SN), o Nome (N), o Determinante (Det), entre outros. Outros símbolos são utilizados nas representações das descrições sintáticas. O primeiro deles é a seta →. Esse símbolo é interpretado como “consiste de” e é utilizado na regra SN → Det N. Trata-se de uma forma abreviada de dizer que um sintagma nominal consiste de um determinante e um nome, como no sintagma: O príncipe.
SN → Det N
O segundo símbolo é o par de parentes ( ) que é utilizado para representar o caráter opcional do elemento que se encontra dentro deles. No sintagma nominal: O pequeno príncipe, o elemento pequeno é um adjetivo, portanto, um constituinte opcional do sintagma. Como se pode ver na anotação abaixo, os parênteses ( ) indicam que o adjetivo é opcional. SN → Det (Adj) N
Outro símbolo utilizado nas anotações da Gramática Gerativa é o par de chaves { }. Eles indicam que apenas um entre os elementos deve ser selecionado. Assim, o sintagma nominal exemplificado – o príncipe – Det N – pode consistir também de um pronome ou nome próprio.
SN → Det N
SN → Pro
SN → NP
Ou, recorrendo às chaves:
SN → {Det N}
SN → {Pro} SN → {NP}
Ou, de outro modo:
SN → {Det N, Pro, NP}
De modo geral, os símbolos apresentados significam, respectivamente: S – Sentença, N – Nome, V – Verbo, Det – Determinante, SN – Sintagma Nominal, SV – Sintagma Verbal, Adj – Adjetivo, Pro – Pronome, NP – Nome Próprio, Adv – Advérbio, Prep – Preposição, SP – Sintagma Preposicional, * - sentença agramatical, → - consiste de, ( ) – constituinte opcional, { } – apenas um dos elementos constituintes deve ser selecionado. A apresentação desses símbolos pode ser feita também através de diagrama arbóreo, conforme mostrado a seguir, em relação à sentença O príncipe viu a raposa.
Os estudos gerativistas também compreendem que os falantes têm intuições a respeito das estruturas sintáticas que produzem. Essa percepção tem a ver com a noção de erro, comumente compreendido como um desvio linguístico estabelecido pela norma. Mas para a Gramática Gerativa existem dois tipos de erros, um que está ligado à competência (error em inglês) e o outro, ao desempenho (mistake em inglês), esses de maior interesse da Psicolinguística. No primeiro tipo estão as estruturas que não são atestadas porque, de fato, não existem. Essas são sequências que fogem à gramaticalidade, ou seja, são agramaticais, sendo marcadas com um asterisco:
O pequeno príncipe viu a raposa
* Viu o pequeno príncipe raposa
12. PRINCÍPIOS E PARÂMETROS
É fácil conceber que uma máquina seja feita de tal modo que profira palavras, e até que profira algumas a propósito das ações corporais que farão algumas mudançasem seus órgãos: como quando a tocamos em algum lugar, ela pergunte o que queremos lhe dizer; se a tocamos em outro lugar, ela pergunte o que queremos lhe dizer; se a tocamos em outro lugar ela grite que a machucamos, e coisas semelhantes; mas não que ela as arranje em sua presença, assim como os homens mais broncos podem fazer Discurso do Método, de René Descartes.
A hipótese da Gramática Universal de Chomsky
(1995) é a da existência de um algoritmo, ou seja, um sistema gerativo binário, um conjunto de instruções semelhantes àquelas inscritas num programa de computador que possibilita o desenvolvimento da gramática de uma língua. A fim de descrever a natureza e o funcionamento da Gramática Universal, os gerativistas formularam uma teoria denominada de princípios e parâmetros. Essas pesquisas foram realizadas a partir do desenvolvimento do Programa Minimalista (PM) nos anos 1990 e privilegiaram a sintaxe.
A opção pela sintaxe é justificada devido à existência universal dos aspectos da sentença, tais como sujeito, predicados e complementos. Essa prerrogativa sempre foi considerada no âmbito dos estudos linguísticos. A sintaxe, enquanto módulo autônomo, pode ser estudada em virtude de suas regras próprias, não dependendo dos outros módulos (lexical, fonológico, morfológico e semântico). Com base nesse pressuposto, o Programa Minimalista faz a diferença entre “princípios” e “parâmetros”.
Os princípios gramaticais são propriedades que são válidas para todas as línguas naturais, ao passo que os parâmetros são as possibilidades limitadas de variação entre as línguas. Analisemos as sentenças a seguir: (1) Pedro disse que ele vai viajar; e (2) Ele disse que Pedro vai viajar. Em (1) o pronome “ele” tanto pode se referir a “Pedro” quanto a outro homem citado anteriormente. Em (2) o pronome “ele” não pode se referir a “Pedro” e necessariamente faz referência a outra pessoa. Em ambos os casos o pronome “ele” se refere a elemento citado anteriormente no texto – trata-se de um pronome anafórico. O princípio da Gramática Universal, portanto, é: “uma anáfora deve suceder o seu referente e jamais o contrário”.
Por isso em (1) o pronome “ele” pode ser tanto “Pedro” quanto outra pessoa já que ambos os termos antecedem os pronomes. Mas em (2) “Pedro” não pode ser o referente de “ele”, pois o pronome antecede o nome. A tradução de (1) e (2) para outra língua terá sempre o mesmo efeito, portanto, esse é um princípio da Gramática Universal, já que isso ocorre em todas as línguas naturais. Vejamos a tradução dessas sentenças para o inglês:
(1) Peter said that he is going to travel.
(2) He said that Peter is going to travel.
Os parâmetros, diferentemente dos princípios, pressupõem a possibilidade de variação das sentenças entre as línguas naturais. Em (1) traduzida para o inglês não seria possível a extração do sujeito da oração subordinada: (1) Peter said that Ǿ is going to travel. Isso porque em inglês o sujeito nulo não é permitido, fazendo com que a sentença seja agramatical em inglês, ainda que não em português: (1) Pedro disse que Ǿ vai viajar. Por isso, em português é comum a existência de sentenças do tipo: “está chovendo”, algo que seria agramatical no inglês “Ǿ is raining”.
O sujeito nulo é uma propriedade do português bem como de outras línguas tais como o espanhol e o italiano, ainda que não seja comum a todas as línguas naturais. Por esse motivo, quando traduzimos sentenças do tipo “chove” para o inglês [ - sujeito nulo], precisamos preencher o Sintagma Nominal (SN), diferentemente do português [ + sujeito preenchido]. O sujeito nas sentenças é um princípio da Gramática Universal, mas a possibilidade de deixá-lo nulo é um parâmetro.
S
Uma analogia para compreender a diferença entre princípios e parâmetros é o ato de dirigir em um dos lados da estrada. O princípio é que dirigimos em apenas um dos lados, o parâmetro é a opção de fazê-lo do lado direito ou esquerdo. Outro exemplo é o fato de as línguas serem estruturadas em sintagmas: nominal, verbal, preposicional. Em tais casos, o princípio é o núcleo do parâmetro: nome, verbo ou preposição. Mas a posição desses núcleos dentro do sintagma pode varias, sendo, portanto, um parâmetro.
O objetivo da Gramática Gerativa, dentro do escopo do Programa Minimalista, é observar comparativamente as línguas naturais e analisar seus fenômenos sintáticos, a fim de identificar os princípios e parâmetros que regem a competência linguística no intuito de explicar a faculdade da linguagem. Essa distinção entre princípios e parâmetros é determinante para o processo de aquisição da Primeira Língua (L1) pelas crianças.
13. COMPETÊNCIA COMUNICATIVA
Uma língua é sobretudo um produto social e cultural e como tal deve ser entendida... É peculiarmente importante que os linguístas, que são frequentemente acusados – e justamente acusados – de falhar em olhar mais além dos padrões da sua matéria de estudo tornem-se mais conscientes do que a sua ciência pode significar para a interpretação da conduta humana em geral.
Edward Sapir
A noção de competência comunicativa, conforme defendida por Hymes (1972), concebe a proposta gerativista de Chomsky (1965), mas o critica, já que a este interessava apenas a gramaticalidade, isto é, a capacidade inata para produzir frases. Para Hymes (1972), tal competência somente se concretiza em sua contraparte, o desempenho. Hymes (1972) defende a necessidade de enfocar o aspecto que carece à teoria gerativista, a ausência de fatores socioculturais e a relação que se pretende estabelecer entre desempenho e imperfeição. A crítica central de Hymes (1972) a esse modelo diz respeito ao princípio da Linguística Moderna que enfocou demasiadamente a estrutura em detrimento do uso da língua.
Essa tendência acabou por retirar de foco um dos aspectos essenciais à comunicação humana: o contexto. Hymes (1972) lembra que toda resposta linguística ocorre dentro de um determinado contexto, é nele que o indivíduo obtém controle a respeito da dependência dos julgamentos de valor, bem como das capacidades sobre o próprio contexto. Assim sendo, as regras linguísticas não podem ser reduzidas a um conjunto de regras finitas e/ou infinitas capazes de gerar um número infinito de frases. Existem outras regras, e essas associadas ao uso, sem as quais as regras gramaticais seriam impraticáveis. Assim, para reconhecer a gramaticalidade de uma determinada frase, é preciso verificar sua adequação quanto ao uso.
Hymes (1972) justifica que a competência gramatical é apenas um entre outros aspectos da competência comunicativa.
Para a construção de uma teoria apropriada dos usos da língua, e de seus usuários, esse autor defende o interesse pelos demais elementos, os quais seriam: se (e em que grau) algo é formalmente possível; se (e em que grau) algo é factível em virtude dos meios disponíveis de implementação; se (e em que grau) algo é apropriado (adequado, feliz, bem sucedido) em relação ao contexto em que é utilizado e avaliado; e se (e em que grau) algo acontece na realidade, se efetua verdadeiramente, e o que isso acarreta. Isso é importante porque uma frase pode ser gramaticalmente correta, mas estilisticamente truncada, socialmente diplomática e de uso pouco frequente.
Hymes (1972) explica cada um desses aspectos do seguinte modo: 1) para que algo seja formalmente possível, é preciso que seja viável dentro do escopo da gramaticalidade; 2) deve ser factível, e nesse ponto, o fator psicolinguístico é preponderante, levando em conta a existência da limitação da memória e adequação quanto aos mecanismos de percepção; 3) a adequação ao contexto também é fundamental, considerando a apropriação contextual, pois todo julgamento se dá dentro de algum contexto específico; e 4) o fato de algo dito ser ou não bem sucedido não pode ser ignorado. Uma frase pode muito bem ser possível, factível, apropriada, e mesmo assim, não conduzir a um desempenho efetivo.
A proposta do estudo da competência comunicativa, a partir de Hymes (1972), atenta tanto para a dimensão linguística quanto paraa social. Esse paradigma integrativo da língua, percebida em uso, favoreceu uma série de aplicações discursivas nos estudos da linguagem. Essa teoria se ajustou a alguns contextos educacionais, principalmente aqueles relacionados ao ensino de Segundas Línguas (L2), diminuindo a influência do estruturalismo e behaviorismo nas metodologias de ensino de L2. Por conseguinte, ao invés de tentar consolidar hábitos linguísticos, através do estímulo, resposta e repetição, a ênfase passou para a competência do falante, não apenas para produzir frases, mas para usá-las adequadamente nos diversos contextos comunicativos.
14. TEXTO E DISCURSO
Não se pode entrar no rio duas vezes
Heráclito
Os estudos dos textos e do discurso, nesses últimos anos, passaram a ter espaço significativo no âmbito da Linguística. A mudança em direção a esse paradigma advém das contribuições da Pragmática. Por isso, a fim de contextualizarmos as análises textuais, discutiremos os fundamentos dessa abordagem linguístico-filosófica. Para Brown (2010), a Pragmática pode ser definida como o estudo do que os falantes querem significar ou do significado do falante. Para esse autor, a Pragmática lida com o estudo do significado “invisível”, isto é, sobre como os indivíduos são capazes de reconhecer o que é significado, mesmo quando algo não é explicitamente escrito ou falado.
A palavra-chave nos estudos da Pragmática é contexto. Não por acaso, para alguns linguistas, essa disciplina poderia ser denominada de “contêxtica”. Outra noção bastante significativa nos estudos pragmáticos, ou contextuais, é a de “intenção”, haja vista que se busca, na associação da forma linguística com o contexto, a identificação das intenções do falante e/ou escritor. Observamos, assim, que essa tendência de investigação linguística representa uma ruptura na tradição, considerando que, diferentemente de Saussure, cuja preocupação central era a língua, e de Chomsky, com a competência linguística, o foco da pragmática está no uso, na parole ou no desempenho, que foram desconsiderados pelos linguistas formalistas.
A instauração do discurso como objeto de estudo da Linguística é atribuída a Benveniste (1974), ao reconhecer a regularidade da parole. Para ele a língua deve ser diferenciada do seu “exercício”. Isso porque cada uma dessas instâncias tem estatutos distintos. O exercício da linguagem não é simplesmente uma virtualidade, como é a língua, mas sua realização. Assim, o que permite a passagem do virtual ao realizado é a enunciação.
Esta, por conseguinte, é a “colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização” (1974, p. 80).
Esse funcionamento da língua, como enunciação, comporta uma intencionalidade. Para tanto, leva-se em consideração tanto o contexto quanto o co-texto. O primeiro é visto como o ambiente físico no qual uma palavra ou expressão linguística é utilizada. O co-texto, por sua vez, relaciona-se a todos os aspectos linguísticos dentro do texto. A título de exemplificação, vejamos os textos a seguir:
(1) SILÊNCIO
(2) PROIBIDO FUMAR
(3) NÃO PISE NA GRAMA
Observemos que os textos supracitados estão escrito em português, não em inglês ou espanhol. O texto (1) é constituído de uma palavra, o segundo de duas e o terceiro de quatro. No último caso podemos ressaltar que existe uma combinação de palavras a fim de constituir outra unidade. O contexto é constituído pelos aspectos físicos que possibilitam a construção do sentido das frases. No ambiente reservado de um hospital, no qual doentes estão em processo de tratamento, os textos (1) “Silêncio” e/ou (2) “Proibido fumar” são adequados. Em (3) “Não pise na grama”, talvez já não caiba naquele contexto, e seja mais apropriado para uma “praça”. O co-texto, no exemplo (3), é constituído pelas palavras tomadas uma em relação às outras, na totalidade e dentro de cada um dos textos.
Tomando por base os pressupostos pragmáticos, atentemos para uma entre as muitas definições de texto. De acordo com Widdowson (2007), um texto – falado ou escrito - pode ser compreendido em sua comparação com a sentença. Isso porque esta não passa de uma construção abstrata, independente do contexto. O texto, por sua vez, é o uso real da língua, identificado como uma parte da língua na medida em que é possível reconhecer um propósito comunicativo. Se procurarmos o significado da palavra “silêncio” no dicionário, a denotação não é a mesma que sua referência no contexto. Em todos os exemplos anteriormente citados (1), (2) e (3), a intenção é a de proibição. Sejam simples ou complexos, fato é que todos os textos são usos da língua que são produzidos com a intenção de se referirem a algo com algum propósito.
Podemos identificar se uma dimensão linguística é um texto por causa da possibilidade de reconhecimento da sua intenção comunicativa. A identificação de um texto, entretanto, não está condicionada à percepção do seu sentido. É possível que alguém saiba que algo seja um texto, mas não seja capaz de compreender o que está sendo referido. O processo de construção de sentidos envolve fatores diversos na interação social. O propósito dos falantes/escritores, e mesmo dos ouvintes/leitores, não pode ser desconsiderado.
Não podemos esquecer que as pessoas produzem textos com fins diversos, para obter uma resposta, para expressar ideias e crenças, para explicar alguma coisa, para coagir as pessoas a fazer o que pensam ser a verdade. A Pragmática, de tendência britânica, sob a influência de Austin (1962) e Searle (1969), refere-se às intenções comunicativas como “discurso”, tendo em vista que este subjaz aos textos e motiva a sua produção, bem como sua compreensão.
A interpretação do texto, enquanto discurso, depende do ouvinte e/ou leitor, considerando que o texto, isoladamente, não contém significado, ele apenas media os discursos, ainda que seja constitutivo desses. Os textos servem para mediar alguma convergência, os horizontes de encontro, entre os discursos. Por esse motivo ninguém pode garantir que determinado texto será compreendido tal qual foi falado ou escrito. Mesmo tomando as precauções necessárias ao processo de textualização, haverá sempre a possibilidade de a interpretação ser feita de outro modo. Por esse motivo, a palavra discurso, no âmbito dos estudos linguísticopragmáticos, é usada para referir-se tanto ao que o produtor textual quer significar quanto ao que o texto significa para o leitor/ouvinte.
15. TEORIA DOS ATOS DE FALA
A linguagem se parece com um explosivo, visto que a junção de um elemento mínimo pode produzir efeitos terríveis.
Bertrand Russell
A teoria dos Atos de Fala foi desenvolvida pela Linguística a partir da Filosofia da Linguagem Britânica, cujos principais expoentes foram J. L. Austin e J. Searle. O primeiro enfatizou os enunciados performativos, e o segundo, os atos locucionários, ilocuionários e perlocucionários. Os atos de fala vão além das análises semânticas (sentido desconstextualizado das palavras) e sintáticas (estrutura/sentido das frases). Os atos de fala enfatizam o que é possível fazer através das palavras, isto é, por meio da língua. A língua não apenas tem a ver com o que é verdadeiro ou falso, mas com o que é ou não realizável.
Através da língua é possível, por exemplo, prometer, ordenar, saudar, advertir, convidar, parabenizar etc. A partir desse princípio, os atos de fala são analisados em três níveis distintos: locucionário, ilocucionário e perlocucionário. Um ato locucionário de um enunciado diz respeito ao próprio enunciado, seu significado específico. Um ato ilocucionário tem a ver com a ‘força ilocucionária do enunciado, isto é, o significado pretendido enquanto ação verbal socialmente válida. O ato perlocucionário é o efeito do enunciado, e está relacionado à possibilidade de fazer com que alguém realize algo que tenha sido ou não pretendido (AUSTIN, 1962).
Dentre essas noções, a de ato ilocucionário é a mais importante para a teoria dos atos de fala. De acordo com Austin (1962), a ideia de um ato ilocucionário concebe a seguinte premissa: “ao dizermosalguma coisa, fazemos alguma coisa”. Por exemplo, quando um juiz, pastor ou sacerdote diz:
(1) Eu vos declaro marido e mulher
Alguns atos de fala ilocucionários foram denominados por Austin (1962) de performativos:
(2) Eu nomeio Carlos o novo presidente
(3) Eu o sentencio a dez anos de prisão
(4) Prometo devolver.
Em tais casos a ação que a sentença descreve (nomear, sentenciar e prometer) é desempenhada pela própria sentença. A partir dessa categorização, Searle (1975) apresentou a seguinte classificação para os atos de fala ilocucionários:
1) Assertivos – atos de fala que comprometem o falante em relação à verdade expressa na proposição. Ex. recitar o Credo.
2) Diretivos – atos de fala que fazem com que o ouvinte desempenhe uma ação particular. Ex. pedidos, ordens, conselhos.
3) Comissivos – atos de fala que comprometem o falante para uma ação futura. Ex. promessas e votos.
4) Expressivos – atos de fala que expressam as emoções e atitudes do falante em relação à proposição. Ex. felicitações, condolências, desculpas, agradecimentos.
5) Declarativos - – atos de fala que modificam a realidade de acordo com a proposição da declaração: batismos, casamentos, julgamentos.
Mas é preciso atentar também para os atos de fala indiretos, aqueles que são utilizados para rejeitar propostas ou fazer pedidos. Vejamos o convite a seguir:
(5) Você gostaria de tomar um sorvete?
O ouvinte pode responder:
(6) Tenho uma consulta marcada.
Este fez uso de um ato de fala indireto para rejeitar
a proposta. Dizemos que se trata de indiretividade porque a declaração: “Tenho uma consulta marcada” não implica diretamente em rejeição. Os atos de fala funcionam a partir de estruturas linguísticas distintas:
(7) Você toma sorvete? (interrogativa – convite)
(8) Tome o sorvete (imperativo – ordem, pedido)
(10) Você tomou o sorvete (declarativo – declaração).
Os atos de fala indiretos são uma maneira de demonstrar polidez, a fim de que o falante não tenha a sua face ameaçada (BROWN e LEVINSON, 1987). Os falantes e ouvintes têm faces positivas e negativas, a primeira está relacionada ao pertencimento, e a segunda à independência. Por isso, ao invés de dizermos:
(11) Passe o sal
Preferimos
(12) Você pode passar o sal?
Por meio desse ato de fala indireto não queremos saber se o ouvinte tem a habilidade de passar o sal. Essa pergunta é uma maneira de utilizar uma estrutura linguística interrogativa para desempenhar a função de pedir. Isso também acontece com declarações. Ao dizer
(13) A janela está aberta.
O falante não está apenas fazendo uma constatação, mas se trata de um enunciado cuja função é a de pedir que alguém feche a janela. Ao invés de recorrer a um imperativo, o falante, a fim de resguardar a face, e de demonstrar polidez, faz uso de uma forma declarativa para fazer um pedido. Os atos de fala, sejam eles diretos ou indiretos, demandam, dos ouvintes, a competência não apenas para interpretar o que é dito, mas também o que se quer dizer através da língua.
16. ESQUEMAS E FRAMES
As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo.
Ludwig Wittgenstein
Um esquema é um construto que parte de um conhecimento familiar. O funcionamento do esquema foi inicialmente explicado por Barlett (1932). Esse autor aplicou um teste a um grupo de estudantes britânicos, solicitando que esses explicassem uma narrativa indígena norte-americana intitulada The war of the ghosts [A guerra dos fantasmas] e que a escrevessem posteriormente de memória. Ele observou que os estudantes adaptaram os eventos às suas realidades, distanciando-os da representação original. Essa diferença ocorreu porque a realidade cultural da narrativa era diferente daquela dos alunos que leram o texto.
Isso diz respeito ao conhecimento esquemático e explica porque acontecem os desentendimentos culturais. Como as pressuposições esquemáticas resultam do conhecimento partilhado por uma determinada cultura, Barlett (1932) destacou que essas são construtos culturais. O processo de construção de sentidos, através do conhecimento esquemático, se aplica à interpretação de todos os textos. Será improvável que alguém possa atuar na construção do sentido de um texto a não ser que parta de conhecimentos preconcebidos. A máxima é a seguinte: todo dado novo está relacionado ao que foi dito anteriormente.
Essa premissa, no entanto, depende de uma gradação, isto é, algumas vezes é relativamente fácil acomodar a informação nova a um esquema existente, outras vezes é relativamente difícil. Alguma acomodação, porém, sempre será efetivada. Vejamos o seguinte exemplo:
(1) O presidente americano visitou o país.
A língua, na interpretação do texto, é fundamental a fim de desencadear uma série de estados familiares, um conhecimento esquemático a respeito do que se espera adiante. O texto anterior trata da visita de um presidente, indicando, assim, um frame de referência, e, ao mesmo tempo, projeta a atenção do leitor para o que virá adiante.
(2) Ele ficou encantando com as belezas naturais.
O processo de construção de um frame apropriado de referência é tão comum que nos acostumamos naturalmente a ele. Por isso, supomos que o significado já esteja no próprio texto e que não depende de algum tipo de inferência esquemática. Mas não é difícil demonstrar o quanto a interpretação depende dos esquemas. Vejamos outro exemplo:
(3) A manga não está boa
No dicionário, a palavra ‘manga’ traz vários significados. No Aurélio destacamos os seguintes: 1) parte do vestuário onde se enfia o braço; 2) filtro afunilado, para líquidos; 3) qualquer peça de forma tubular que reveste ou protege outra peça; 4) parte do eixo dum veículo que se encontra dentro da caixa de graxa e recebe todo o peso do carro; 5) o fruto da mangueira; e 6) pastagem cercada onde se guarda o gado. A indagação é: qual desses significados dicionarizados é apropriado em um determinado texto? A resposta é que não é possível saber a menos que seja incluído um frame de referência a fim de que possamos antecipar o que virá adiante. Podemos, por exemplo, modificar o texto dizendo: (4) A manga madura não está boa
Agora, em virtude do acréscimo do termo ‘madura’, tenderemos a interpretar ‘manga’ como o fruto da mangueira. Podemos antecipar o que virá depois do que foi anteriormente dito.
(5) A manga madura não está boa. Ela deveria ter ficado na geladeira.
Para que haja interpretação, é preciso que um frame de referência seja identificado. Será improvável interpretar o texto acima, a menos que conheçamos as palavras ‘manga’, ‘boa’ e ‘geladeira’, ou seja, que tais esquemas sejam ativados. Os esquemas podem ser definidos como representações mentais do que é familiar ou costumeiro. Mas é importante salientar que isso tudo é relativo, pois o que é familiar para um grupo de pessoas pode muito bem não o ser para outro porque os costumes variam de comunidade para comunidade. Os esquemas são maneiras distintas que usamos para ordenar o mundo, são versões diferenciadas da realidade.
Os esquemas servem para fornecer um modelo para a compreensão. Sem eles, nos perderíamos no processo de construção do sentido de qualquer texto. Mas os esquemas têm suas desvantagens, pois nos impõem padrões preconcebidos sobre como são as pessoas e as coisas, impedindo-nos de reconhecer conceitos alternativos da realidade. O ouvinte/ leitor corre o risco de, ao ativar um determinado esquema, interpretar tudo o que segue em referência a ele, considerando pressuposições que o texto não sustenta. Uma projeção esquemática em particular pode ir além dos sinais textuais o que permite o engajamento num esquema distinto, isso porque os sentidos não estão restritos ao texto, seguem além dele.
17. PRINCÍPIO COOPERATIVO E MÁXIMAS CONVERSACIONAIS
Sabe, caro Watson, não é difícil fazer uma série de
inferencias, cada qual dependendo da sua antecedente e cada qual simples em si mesma. Feito isso, se a gente derrubar as inferências centrais e apresentar à audiência um ponto de partida e a conclusão, pode produzir um efeito assustador, embora possivelmentefalso.
Sherlock Holmes, em Os dançarinos de Arthur Conan Doyle
Grice (1975) explicitou, com base na Pragmática, que em uma conversação ordinária os falantes e ouvintes partilham o princípio cooperativo. A partir desse, o filósofo britânico estipulou quatro máximas a fim de explicar a relação entre enunciados e o que é compreendido a partir deles. As máximas griceanas estão fundamentadas no seguinte princípio: faça com que sua conversa contribua de modo desejado, no estado em que ocorre, pelo propósito aceito ou direção da troca de fala na qual está envolvido. Para ele, os falantes e ouvintes devem falar cooperativamente e mutuamente a fim de se fazerem compreendidos.
O princípio cooperativo descreve a eficiência da comunicação na conversação em situações sociais comuns, resultantes das quatro máximas: Qualidade, Quantidade, Relevância e Modo. Sobre a Máxima da Qualidade diz: seja sincero, diga somente o que você acredita ser verdadeiro e apenas diga o que você pode provar. A respeito da Máxima da Quantidade ressalta: contribua na conversação com as informações requeridas para os propósitos correntes na troca, não torne sua contribuição mais informativa do que demandada. Quanto a Máxima da Relevância, faça com que sua contribuição seja relevante para a interação e indique quando ela não for. A última Máxima, de Modo, recomenda: evite prolixidade desnecessária, ambiguidade, seja breve e ordenado.
Em relação ao princípio cooperativo, Grice (1975) destaca ainda que o falante geralmente observa esses princípios, bem como o ouvinte. Isso porque existe a possibilidade de implicaturas, isto é, de que os significados que não sejam explicitamente transmitidos no que é dito possam ser inferidos. Um exemplo disso é quando Ana diz que Paulo não está presente e Carla responde que Paulo está doente. A implicatura é que Paulo não está presente porque está doente. Esse é, no mínimo, o motivo possível da ausência de Paulo. A partir dessa teoria griceana, o termo implicatura passou a ser recorrente tanto na linguística quanto na pragmática.
Para esse filósofo, implicatura, grosso modo, diz respeito ao que é sugerido a partir de um enunciado ainda que o expressado possa somente ser implicado pelo enunciado. Vejamos outro exemplo a partir da declaração:
(1) Sara deu a luz e se casou.
Pelo enunciado infere-se que o bebê nasceu antes do casamento. Mas isso somente é estritamente verdadeiro se Sara deu a luz e depois se casou. Mas se adicionarmos a qualificação:
(2) Sara deu a luz e se casou, não necessariamente nessa ordem.
ao enunciado, a implicatura é cancelada, ainda que o significado original da sentença não seja modificado.
A implicatura conversacional, por conseguinte, independe do princípio cooperativo e de suas máximas. Uma declaração como:
(3) Francisco está feliz, mas está pobre.
implica que felicidade e pobreza são incompatíveis, pois “apesar da pobreza”, “Francisco está feliz”. Pela interpretação convencional do mundo a forma “mas” sempre cria uma implicatura de contraste. De modo que “Francisco está feliz, mas pobre” necessariamente implicará que, por incrível que pareça, Francisco está feliz ainda que esteja ou seja pobre.
Além do conceito de implicatura, Grice (1975) destaca também o de “acarretamento” e de “escalonamento”. O primeiro diz respeito à conclusão lógica que se chega a partir de um enunciado. Se alguém diz:
(4) O presidente foi assassinado.
acarreta-se que “O presidente está morto”. O segundo está relacionado a certas informações que são comunicadas através das escolhas de uma palavra que expressa um valor em escala. Isto é particularmente óbvio nas expressões de quantidade tais como: tudo e alguns / sempre, frequentemente, raramente. Na produção de um enunciado, o falante seleciona a palavra a partir de uma escala que é ou mais informativa (quantidade) ou confiável (qualidade). Isso quer dizer que quando uma forma na escala é escolhida, as outras, por sua vez, são implicadas.
A seguinte piada ilustrará o princípio cooperativo e as máximas conversacionais: uma jovem está passeando enquanto é acompanhada por um cachorro. Um jovem se aproxima e pergunta: “Seu cachorro morde?”. A moça responde: “Não”. Quando o jovem chega mais perto da moça é mordido pelo animal. Perplexo indaga: “mas você não disse que seu cachorro não mordia?”. Ela respondeu: “esse sim, mas este não é o meu”. Pergunta: O rapaz e a moça envolvidos no diálogo levaram em conta o princípio cooperativo? Que implicações foram feitas pelo rapaz e pela moça nessa piada? Quais máximas conversacionais foram desrespeitadas? Evidentemente, as respostas a essas perguntas dependem de certas implicaturas.
18. ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO
As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender.
Fernando Pessoa
A Análise da Conversão (AC) surgiu na década de 60 com o objetivo de descrever as estruturas da conversação e seus mecanismos organizadores. Sob a influência da Etnometodologia, fundada por Garfinkel, defendia que os aspectos da interação social seriam passíveis de investigação e convencionalização. Gumperz (1982) defendia que a AC deveria se preocupar não apenas com os conhecimentos linguísticos da conversação, mas também com os paralinguísticos e socioculturais, por conseguinte, essa abordagem põe o foco não só na descrição, mas também na interpretação das interações.
Marchuschi (1998) destaca que, a rigor, a AC se propõe a responder às seguintes perguntas: como é que as pessoas se entendem ao conversar? Como sabem que estão se entendendo? Como sabem que estão agindo coordenada e cooperativamente? Como usam seus conhecimentos linguísticos e outros para criar condições adequadas à compreensão mútua? Como criam, desenvolvem e resolvem conflitos interacionais? Na tentativa de responder a essas perguntas, a AC se fundamenta metodologicamente na indução, partindo de dados empíricos, coletados em situações reais.
Para esses dados, a AC considera tantos os aspectos verbais quanto os paralinguísticos. Por isso, os dados dessa última categoria precisam ser descritos na transcrição da conversa. Para tanto, o analista recorre a uma simbologia própria, reconhecida por aqueles que fazem esse tipo de estudo. Trata-se de um sistema ortográfico, com base na escrita padrão. Esse sistema não é fechado, os analistas da conversação fazem suas adaptações. Eis a representação de algumas palavras pronunciadas: né, pra, prum, comé, tava, qué, sô, vô, e de truncamentos, tais como: compr (= comprou), vam di (= vamos dizer) etc.
Destacamos, a seguir, algumas recomendações da AC, sugeridas por Marchuschi (1998), para a transcrição de dados: Ele orienta a indicação dos falantes com siglas (iniciais do nome ou letras do alfabeto), a não cortar as palavras na passagem de uma linha para outra e a de evitar maiúsculas em início de turno. Entre os símbolos elencados, destacamos:
Falas simultâneas [[;
Sobreposição de vozes [,
Sobreposições localizadas [ ],
Pausas e silêncios (+) para cada 0.5 segundos e para as pausas além de 1.8 segundos indica-se o tempo entre parênteses
(1.8);
Dúvidas e suposições, marcadas com parênteses ( ) com o comentário no interior, Truncamentos bruscos /
Ênfase ou acento forte é marcado por meio de MAÍSCULA; Alongamento da vogal, com dois pontos :: que podem ser repetidos;
Comentários do analista entre parênteses duplo (( ));
Silabação usa-se hífens - - - - - -;
Sinais de entonação ” (aspas duplas) para uma subida rápida, ’ (aspa simples) para uma subida leve e , (aspa simples abaixo da linha) para descida leve ou brusca; Repetições através da reduplicação da letra;
Pausa preenchida, hesitação ou sinais de atenção através das expressões eh, ah, oh, ih:: entre outras, e indicação de transcrição parcial ... ou /.../.
Uma das categorias fundamentais à AC é a noção de turno, isso porque as práticas comunicativas são regidas por regras que regulamentam a alternâncias das falas. A conversa envolve pelo menos dois interlocutores que falam alternadamente. O falante, por sua vez, tem o direito de mantero turno até o momento em que o entrega ao próximo falante. Os turnos são negociados, tanto de forma explícita: ex. “deixe-me falar” quanto implícita, através de sobreposições, aumento da intensidade vocal, ou outros recursos.
As interrupções também ocorrem, ainda que sejam evitadas, já que demonstram falta de polidez. A intromissão também não é bem vista, sendo considerada uma subversão às regras da conversação, e assumidas como prática ilegítima. Esses fundamentos nos levam a argumentar que existe uma gramática da conversação, regida por fatores contextuais diversos, entre eles: o cenário, o tipo de interação, a sequência, as trocas e as intervenções de turnos.
Os estudos etnometodológicos fundamentaram as pesquisas inicias na AC, mas, nesses últimos anos, esse campo de investigação se expandiu. Os enfoques psicológicos e psiquiátricos, representados pela Escola de Palo Alto, se preocupam com a ordem das conversas a fim de tratar, entre outros casos, das disfunções da relação conjugal e crianças esquizofrênicas.
A etnografia da comunicação, inspirada nos trabalhos de Hymes (1972) e Gumperz (1982), se interessa pelo aspecto etnossociológico da conversa, atentando para a competência comunicativa dos falantes. O paradigma filosófico, a partir da noção de atos de fala de Austin e Searle, influenciado por Wittgenstein e Grice, analisa as conversações com o intuito de mostrar que “dizer é fazer”.
19. LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL
A língua é uma cidade para cuja construção cada ente humano contribuiu com uma pedra.
Ralph Waldo Emerson
A Linguística Sistêmico-Funcional diz respeito a uma teoria geral do funcionamento da linguagem humana, concebida a partir de uma abordagem descritiva, baseada tanto na forma quanto no uso linguístico. Halliday (1970) desenvolveu, juntamente com colegas da Universidade de Sydney e de Macquarie na Austrália, uma discussão a respeito da natureza da língua. Para esses, a língua está intimamente relacionada às necessidades que lhe impomos, com funções específicas e comuns a todas as culturas.
Ao rejeitar as descrições meramente formais, Halliday (1970) opta pelo uso enquanto fator determinante para a categorização linguística. Sendo assim, a proposta do seu paradigma é analisar, simultaneamente, tanto o sistema da língua quanto suas funções, a partir do princípio fundamental de que a forma particular assumida pelo sistema gramatical de uma língua está intimamente relacionada às necessidades sociais e pessoais que a língua é chamada a desempenhar. Isso porque a língua se organiza em torno de redes relativamente independentes de escolhas e essas correspondem a funções básicas da linguagem.
Para Halliday e Matthiessen (2004), a funcionalidade é intrínseca à linguagem. Isso porque “toda a arquitetura da linguagem se organiza em linhas funcionais. A língua é como é por causa das funções em que se desenvolveu na espécie humana” (p. 31). O termo ‘metafunção’ foi adotado para sugerir que função é um componente nuclear na totalidade da teoria. Por meio das metafunções é possível verificar descritivamente como as línguas naturais se estruturam, se organizam, fundamentadas nesses princípios funcionais, considerando que “todo o texto – isto é, tudo o que é dito ou escrito – acontece em algum contexto de uso” (HALLIDAY, 1994, p. 13).
Essas funções, de acordo com o modelo de Halliday (1970), são: a ideacional, interpessoal e textual. A língua serve para expressarmos conteúdos, para dar conta das nossas experiências no mundo; para estabelecermos e mantermos relações sociais uns com os outros, para desempenharmos papeis sociais comunicativos (falantes/ouvintes); e por fim, para estabelecermos relações entre partes de uma mesma instância de uso da fala, entre essas partes e a situação particular de uso da língua, tornando-as entre outras possibilidades, situacionalmente relevantes.
Dito de outro modo, vemos a língua como tendo valor: 1) ideacional – a língua tem metafunção representacional, uma vez que a usamos para codificar nossas experiências do mundo, ou seja, ela faculta-nos imagens da realidade (física ou mental); 2) interpessoal – a língua serve para codificar interação e para mostrar quão defensáveis achamos as nossas posições, os nossos enunciados. Ajuda-nos a codificar significados de atitudes, interação e relações sociais; e 3) textual – a língua serve para organizar os nossos significados ideacionais e interpessoais num todo linear e coerente.
Por isso é preciso compreender a noção de texto de
Halliday (1978, p. 122), que o define como
uma forma linguística de interação social. É uma progressão contínua de significados [...] Os significados são as seleções feitas pelo falante das opções que constituem o potencial de significado; o texto é a atualização desse potencial de significado, o processo de escolha semântica.
O texto, de acordo com esse paradigma, é uma instanciação do sistema, de modo que sistema e língua não são fenômenos separados, mas apenas o mesmo fenômeno visto de ângulos diferentes, o da potencialidade e o da instanciação. Conforme explicam Halliday e Matthiessen (2004), o texto é um instrumento para o conhecimento do sistema, uma espécie de janela para este, tornando-se, assim, uma unidade de análise para a Linguística SistêmicoFuncional. A potencialidade textual se dá, por conseguinte, por meio das escolhas do falante. Halliday (1978) destaca que a análise da língua em uso ocorre através do olhar não apenas sobre o que o falante/escritor disse, mas na sua relação com o que poderia ter sido dito.
Ele fala de um “envolvimento a ser definido paradigmaticamente: usar a língua para fazer escolhas no envolvimento de outras escolhas” (p. 52). Essas escolhas dependem do contexto, concebido como o ambiente imediato que determinado texto está sendo produzido. Isso explica o motivo de certos textos serem ditos ou escritos em ocasiões particulares, e ao mesmo tempo, a causa de outros não poderem. Isso acontece porque a partir do momento em que o falante lê e ouve, ele faz previsões acerca do que será reproduzido em seguida, influenciado pelo contexto da interação, operacionalizando as metafunções da linguagem: o que é dito (ideacional), de quem para quem (interpessoal), e de que modo (textual).
Halliday e Matthiessen (2004) descrevem os parâmetros para uma descrição dessas metafunções no contexto do enunciado. Para esse tipo de análise, em uma perspectiva experiencial, os autores destacam as seguintes categorias: Ator (Actor), Processo (Process) e Meta (Goal). Em relação à perspectiva interpessoal, enfocam o Sujeito (Subject), Finito (Finite), Predicador (Predicator), Complemento (Complement), e Adjunto (Adjunct). No tocante à análise textual, consideram o Tema (Theme) e Rema (Rheme).
Cumpre dizer, porém, que a categorização ideacional é feita de acordo com o processo sendo representado, não sendo exaustivamente mostrada aqui. No entanto, apontamos, a seguir, exemplos de categorização gramatical, a partir do modelo da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF):
Análise a partir de uma perspectiva experiencial (metafunção ideacional)
Did
Daniel
bring
his car?
Ator
Processo
Meta
Was
the car
brought
by Daniel?
Meta
Processo
Ator
Análise a partir de uma perspectiva interpessoal (metafunção interacional)
Did
Daniel
bring
his car?
Finito
Sujeito
Predicador
Complemento
Was
the car
brought
by Daniel?
Finito
Sujeito
Predicador
Adjunto
Análise a partir de uma perspectiva textual (organizacional)
Did Daniel
bring his car?
Tema
Rema
Was his car
brought by Daniel?
Tema
Rema
20. TEMA/REMA: ORGANIZAÇÃO TEXTUAL
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Evangelho segundo João.
Existem maneiras diferentes de formularmos uma proposição a fim de fazer referência a um estado de coisas. Em qualquer língua, existem modos diferentes de textualização. A oração No princípio era o Verbo, por exemplo, pode ser dita, em português, de outra maneira: O Verboera no princípio. Em termos de estrutura textual, a primeira parte da oração, que é posicionada como sujeito da sentença, é denominada de Tema, e o restante do enunciado, de Rema. Essa teoria foi inicialmente desenvolvida pelos linguistas da Escola de Praga e posteriormente redimensionada por Halliday (1994).
Para esse autor, o Tema é o elemento que serve como ponto de partida da mensagem, é o que localiza e orienta a oração em seu contexto. Rema seria o desenvolvimento do Tema, isto é, o que sobra dele. Para esse modelo, a estrutura Tema/Rema pode ser continuada no texto. Assim, A sentença No princípio (T) era o Verbo (R) pode ser invertida para O Verbo (T) era no princípio (R), de modo que o Tema pode passar a ser Rema.
A utilização da voz ativa e passiva, contudo, é apenas uma dentre outras possibilidades de destacar a relação Tema/ Rema. Na sentença (1), a tematização pode ser feita por meio da mudança sequencial dos constituintes do enunciado sem afetar sua estrutura, como ocorre em (2) e (3):
(1) O que o professor fez (T1) foi reprovar os alunos.
(2) O professor (T) reprovou os alunos antes do tempo (R).
(3) Antes do tempo (T1), o professor (T2) reprovou os alunos (R).
Tema e Rema, nas diversas línguas, possibilitam a convencionalização dos modos de expressão proposicional. Cabe aos usuários da língua fazerem uso dessas diferentes possibilidades. Eles podem ser identificados como características da produção textual que demonstram a intenção comunicativa em relação à escolha de uma ou outra palavra, de uma ou outra sequência oracional. O Tema costuma confirmar um conhecimento partilhado e apontar para uma informação nova provida pelo Rema. Aquele sinaliza para um determinado tópico a respeito do qual se deseja falar. Este, por sua vez, diz respeito ao comentário sobre o referido tópico.
Na construção das ligações textuais, a relação Tema/Rema é uma forma geral de organização informacional e transporta a referência de uma proposição para outra. Essas ligações, no entanto, dependem da identificação de outras conexões menores e mais específicas que servem para estabelecer a continuidade textual. No processo da comunicação, o que é dito anteriormente, seja na fala ou na escrita, é fundamental para a compreensão do que virá depois. Atentemos para o enunciado a seguir:
(4) A presidenta fez sua primeira viagem ao Japão. Dilma defendeu o livre comércio entre os países. Ela criticou a política protecionista americana.
No texto anterior, a utilização do pronome atua como um elemento pró-forma, isto é, uma forma linguística que fundamenta outra expressão no texto através da manutenção de determinados traços semânticos. Esse tipo de conexão interna ao texto, de natureza cotextual, é conhecido como anáfora. Assim, as expressões presidenta – Dilma – Ela são elementos anafóricos. Mas é preciso destacar que uma conexão anafórica apropriada depende da inferência do que faz mais sentido num determinado contexto. Por esse motivo costumase recomendar a utilização moderada dessas pró-formas, a fim de evitar confusão no processo de referenciação textual, resultando em ambiguidades, tal como as do texto (5) a seguir:
(5) Amanhã eles irão à praia com os colegas da faculdade. Eles não sabem se irão se divertir. Mesmo assim, concordaram em ir. Eles disseram na televisão que vai chover. Mas eles não querem desistir do passeio. Eles estão sem dinheiro, mas vão tentar dar um jeito nisso.
21. COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL
“Embora soneto, vivo meu porém. No encontro do todavia,
sou mas. Contudo, encho-me de ainda. Na espera do quando, desando ou desbundo. Viver é apesar. Amar é a despeito. Ser é não obstante. Destarte, sou outrossim. Ilusão, sem embargo. Malgrado senão”.
Paulo Alberto M. M. de Barros, 1986
Através da identificação de conexões linguisticamente marcadas, tais como a relação entre um pronome e um sintagma nominal, é possível reconhecer a coesão do texto. Os elementos coesivos, contudo, não se restringem aos pronomes pessoais. As relações de um sintagma nominal antecedente podem ser recuperadas por meio de pró-formas que consistem de substantivos gerais ou de significados inclusivos:
(1) Fomos para Portugal ano passado. Aquele é um país muito bonito. Adoramos o lugar.
Conforme observamos no texto acima, as pró-formas coesivas variam na quantidade de informações recuperados a partir do antecedente. O substantivo geral “lugar” é mais amplo que o substantivo particular “país”. Os sintagmas verbais também operam no texto com as mesmas características:
(2) Paulo: Fomos para Portugal ano passado.Carlos: Nós também.
Paulo: Achamos que era um lugar bonito. Carlos: Nós não.
Na conversa acima, os falantes discutem a respeito de um “lugar”. Paulo diz ter ido para Portugal e Carlos diz que também foi. O verbo “ir” se encontra em elipse no diálogo. Isso acontece também com o verbo “achar”. Esse recurso mostra que os elementos coesivos podem ser mais ou menos explicitados no texto. Tanto os nomes quanto os verbos servem, assim, como elementos coesivos do texto. Eles atuam a fim de conectar partes dentro de um texto.
Essas pró-formas coesivas podem ter função anafórica – atuam retrospectivamente a fim de recuperar características de expressões antecedentes em um texto, quanto catafórica – operam prospectivamente a fim de preceder uma menção textual a ser explicitada:
(3) Quando a presidenta viajou para os Estados Unidos, ela (←) deixou algumas recomendações aos seus ministros. (anáfora)
(4) Quando ela (→) viajou para os Estados Unidos, a presidenta deixou algumas recomendações aos seus ministros. (catáfora)
O princípio linguístico-pragmático do menor esforço rege a utilização desses elementos anafóricos e catafóricos. De modo que eles somente funcionam mediante a identificação e interpretação do elemento antecedente ou precedente. Isso acontece porque somente utilizamos as formas linguísticas que são extremamente necessárias à comunicação. A dificuldade consiste na possibilidade de regular o grau de explicitude cotextual através da escolha das pró-formas.
Os elementos coesivos apenas auxiliam a compreensão e funcionam quando os leitores (ou ouvintes) constroem significados a partir do sentido contextual, isto é, eles dependem da coerência. Isso quer dizer que é a coerência – a interpretação do texto para que esse faça sentido, e não a coesão – as pró-formas interligadas nas relações cotextuais - que determinam a textualidade, conforme defendiam inicialmente Halliday e Hasan (1976).
O texto a seguir mostra como a existência da coesão não é determinante para a coerência textual:
(5) Sofia não estuda nesta escola.
Ela não sabe qual é a escola mais antiga da cidade.
Esta escola tem um jardim.
A escola não tem laboratório de línguas.
Por outro lado, um texto sem elementos coesivos pode muito bem ser coerente:
(6) Lucas estuda Inglês.
Sofia vai todas as tardes trabalhar no Instituto.
Lúcia obteve 16 pontos no teste de Matemática. Todos os meus filhos são estudiosos.
Em suma, o sentido de um texto não é dado a priori. É no contexto que o leitor/ouvinte constrói a coerência textual. A interpretação de um texto coerente sempre dependerá da possibilidade de relacioná-lo externamente às realidades contextuais, aos esquemas ideacionais e interpessoais com os quais os leitores/ouvintes estejam familiarizados no mundo sociocultural no qual estão inseridos.
22. GÊNEROS TEXTUAIS
Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar. Arte Poética, Aristóteles.
Existem diversas abordagens de estudo dos gêneros textuais. Uma das mais conhecidas é a do teórico russo Mikhail Bakhtin, pensador geralmente associado aos estudos literários. Num ensaio de 1979, originalmente publicado em russo, Bakhtin postula que os gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (1992, p. 279). Após definir gêneros discursivos, Bakhtin também os categoriza em dois tipos secundáriose primários:
Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea (1992, p. 281).
Tal distinção amplia, primeiramente, o conceito de gênero, pois inclui não apenas o que tradicionalmente se considerava como produção literária, mas também os gêneros do cotidiano. Ao redimensionar o estudo do gênero para além do escopo literário, Bakhtin (1992) antecipou as tendências atuais nas pesquisas linguísticas de análise dos gêneros não-literários. Uma dessas perspectivas recentes partiu das análises de textos produzidos para fins acadêmicos e profissionais, realizadas por Swales (1990). Para ele, é o propósito comunicativo que molda o gênero, determinando sua estrutura interna e impondo limites quanto às possibilidades de ocorrências linguísticas e retóricas.
A fim de construir sua definição de gênero, Swales (1990) partiu do enfoque de diferentes disciplinas: estudos folclóricos, literários, linguísticos e retóricos. Para ele
Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Tais propósitos são reconhecidos pelos membros especialistas da comunidade discursiva de origem e, portanto, constituem o conjunto de razões (rationale) para o gênero. Essas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e influenciam e impõem limites à escolha de conteúdo e de estilo. (1990, p. 58)
Essa conceituação destaca o propósito comunicativo enquanto traço definidor do gênero, sendo esse compartilhado pelos membros da comunidade na qual o gênero é praticado. Os demais traços, como as convenções, o estilo, o canal, o vocabulário e a terminologia específicos, embora importantes, não exercem a mesma influência sobre a natureza e a construção do gênero. Isso porque esse, por sua vez, atua como veículo comunicativo para a realização de determinados fins.
Os elementos elencados por Swales (1990) para a investigação dos gêneros são: 1) classe – o gênero é uma classe de eventos comunicativos, constituído do discurso, dos participantes, da função do discurso e do ambiente onde o discurso é produzido; 2) o propósito comunicativo – os gêneros têm a função de realizar um objetivo ou objetivos; 3) prototipicidade – um texto será classificado como gênero se possuir os traços especificados na definição do gênero; e 4) logicidade – o gênero tem uma lógica própria, existem convenções esperadas e manifestadas no gênero.
Em relação ao segundo elemento, o propósito comunicativo, Askehave e Swales (2001) rediscutem sua centralidade na constituição do gênero. Desde o início da década de 80, o propósito comunicativo havia sido usado como um dos principais critérios para a conceituação e categorização dos gêneros. Dada a sua complexidade, a concepção de propósito comunicativo acabou sendo redimensionada. Isso porque existem gêneros que têm o mesmo propósito e que são diferentes em termos de aspectos formais, de organização textual, assim como há textos idênticos ou quase idênticos com propósitos comunicativos bem diversos.
A lista de supermercado, por exemplo, serve para demonstrar esse aspecto do propósito comunicativo do gênero. O propósito aqui parece muito evidente: apenas lembrar o que é preciso comprar. No entanto, há quem faça uma lista para saber o que não comprar por autodisciplina, para conter seus impulsos consumistas. Ao contrário do que se acreditava a princípio, é provável que um mesmo gênero tenha propósitos comunicativos distintos. Ao mesmo tempo, isso não significa dizer que a concepção de propósito tenha perdido sua importância, e que se possa limitar a análise apenas às características formais dos gêneros.
Essas reformulações teóricas nos ajudam a perceber que os estudos de gênero não podem circunscrever-se às classificações estáveis e definitivas, nem fechar a discussão em torno de critérios definidores. Um gênero textual não é um conjunto de regras rígidas para a formação de textos. Portanto, textos, gêneros e práticas sociais são susceptíveis às mudanças que acontecem a todo o momento. Por essa razão, o conceito de gênero textual é dinâmico, não estático, e esse é o motivo pelo qual professores e alunos precisam atentar para a fluidez das práticas sociais e dos textos que tornam esses gêneros possíveis.
23. GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL
A imagem define e demarca as fronteiras da minha ação. A imagem não induz minha ação, mas estabelece suas condições e possibilidades.
Jacques Ellul
Vivemos em um mundo rodeado por imagens, e nesse contexto, a Gramática Visual elaborada por Kress e van Leewen (2006) contribui significativamente para a identificação e sistematização das estruturas imagísticas. A proposta desses teóricos é descrever as imagens partindo do pressuposto de que os seus elementos internos são combinados entre si para comunicar um “todo coerente” para expressarem significados distintos. A análise das estruturas visuais pode incluir pessoas, lugares ou objetos na forma de participantes representados que podem estar organizadas em diferentes níveis de complexidade.
A teoria da Gramática Visual foi adaptada pelos autores a partir das metafunções de Halliday (1994). As metafunções visuais são: representacionais (ideacionais), interativas (interpessoais) e composicionais (textuais). A metafunção representacional diz respeito à relação estabelecida entre os participantes internos de uma composição de imagem. Isso porque a imagem é realizada por elementos denominados vetores, os quais correspondem à categoria de ação na linguagem verbal (processos).
Os participantes podem ser categorizados em dois
tipos: 1) participantes interativos – aqueles que falam, ouvem ou escrevem e leem, produzem imagens ou as visualizam; ou 2) participantes representados, aqueles que são o sujeito da comunicação, ou seja, pessoas, lugares ou coisas representadas na ou pela fala, ou escrita, ou imagem, os participantes sobre os quais falamos ou escrevemos ou produzimos imagens. As representações narrativas, por sua vez, são classificadas pelas circunstâncias, ou pelo contexto no qual o participante está inserido e seus complementos, tais como artefatos, ferramentas e as figuras secundárias que complementam os significados das imagens. As circunstâncias de uma imagem podem ser categorizadas em: circunstância de locação; circunstância de meio; e circunstâncias de acompanhamento.
Os processos conceituais, por sua vez, representam
os participantes de maneira estática, já que esses não possuem ações expressas por vetores. Os processos conceituais, na linguagem verbal, se referem aos processos relacionais e existenciais, uma vez que, conforme explicita Kress e Van Leeuwen (2006, p. 114) “representam o mundo em seu estado mais ou menos permanente de afazeres e verdades”. As estruturas conceituais simbólicas estabelecem a identidade do participante visual através de atributos proeminentes tais como tamanho, escolha das cores, dos posicionamentos, dos usos da iluminação.
No que tange à metafunção interativa, Kress e Van Leeuwen (2006) indicam que aspectos como contato, distância social, perspectiva e modalidade têm papel fundamental na identificação da relação entre leitor/observador da imagem e a imagem propriamente dita. O contato é representado quando o participante olha diretamente nos olhos do leitor/observador, estabelecendo um contato de demanda, convidando o leitor /observador para participar da interação, olhando-o de forma sedutora, agressiva ou imperativa. Mas se o participante não olha diretamente nos olhos do leitor/ observador, ocorre um contato de oferta.
Para a análise interacional, uma categoria relevante é a Distância Social. Quando os participantessão retratados em close-up ou plano fechado, cada detalhe de seu rosto e de sua expressão facial é captado, auxiliando, assim, a identificação de traços da sua personalidade. Esse plano abrange o enquadramento, que vai da cabeça até os ombros do participante representado. Diferentemente de quando o participante é apresentado em long-shot ou plano aberto, que contribui para representar os participantes de uma dada composição visual de forma distanciada, mostrando todo o corpo. Há ainda um plano intermediário, que é o medium shot ou plano médio que representa o participante até a cintura ou o joelho, indicando que a sua relação com o leitor é do tipo social.
Em relação ao ponto de vista ou perspectiva, Kress e Van Leeuwen (2006) consideram os ângulos frontais, oblíquos e verticais. A utilização do ângulo frontal está associada à atitude de um envolvimento entre o leitor/observador e o participante. O ângulo oblíquo conduz a um sentido de desligamento ao apresentar o participante em perfil, deixando subentendido que a representação não pertence ao nosso mundo. O ângulo vertical e suas variantes (alto, baixo ou de nível ocular) apontam para as diversas relações de poder representadas entre o participante e o leitor/observador.
A modalidade ou valor de realidade é representado por meio da modalidade naturalista ou sensorial. A modalidade naturalista se concretiza através da congruência que existe entre o objeto de uma imagem e aquilo que se percebe pelo olho naturalmente. Assim, quanto maior for a correspondência entre a imagem e o real, maior será a modalidade da imagem. Kress e Van Leeuwen (2006) ressaltam ainda que as imagens naturalistas geralmente possuem: 1) alta saturação de cores, no lugar de preto e branco; 2) cores diversificadas, ao invés de cores monocromáticas; e 3) cores moduladas.
Em relação à metafunção composicional, cabe a essa integrar os elementos visuais das outras metafunções a fim de constituir um todo coerente. Para tanto, envolve o valor da informação, que se refere à disposição dos elementos dentro da composição visual, disponibilizados nas seguintes dicotomias da zona pictográfica: esquerda/direita; topo/ base; centro/margem. Para Kress e Van Leeuwen (2006), o lado direito da imagem geralmente contem a informaçãochave, para qual o leitor/observador preste maior atenção, já que nela se apresenta o elemento novo. No lado esquerdo se encontra o elemento dado, previamente conhecido pelo leitor/observador, com o qual tem alguma familiaridade.
O posicionamento no topo e na base da imagem apresenta traços distintos. A colocação de tais elementos na parte superior expressa a informação ideal, a essência idealizada e generalizada, a promessa do produto, o que evoca os sentidos emotivos no intuito de expressar o que o produto pode ser e não o que ele é. Ao elemento na base da imagem, por oposição, cabe a solicitação das informações a respeito do produto. Quando o posicionamento se encontra na parte central e marginal há uma predominância de certos elementos na imagem ou a ausência dela, isso acontece nos casos de elementos subordinados a uma imagem central, colocados em posição hierárquica inferior em relação à informação nuclear.
Outro elemento composicional é a saliência que se refere à ênfase dada aos elementos visuais a fim de tornálos mais preponderantes do que outros. A disposição de um elemento em primeiro plano ou em plano de fundo, seu tamanho, contrastes de cores podem reforçar ou diminuir o grau de saliência, na medida em que criam uma identificação do participante principal representado na imagem.
24. DISCURSO E CRITICIDADE
Não é possível pensar em linguagem sem ideologia e sem poder.
Paulo Freire
O paradigma crítico em relação ao texto está atrelado a uma tendência recente nas pesquisas linguísticas. As influências iniciais remetem à sociolinguística e à etnografia da fala. Os estudos discursivos propriamente ditos, na tradição britânica, estão associados à Pragmática, especialmente à teoria dos atos de fala. Sua vertente crítica fundamentou-se nas contribuições da Linguística Crítica, que deu origem a Análise do Discurso Crítica (ADC), cujo principal proponente é Fairclough (1989), ao identificar a relação necessária nos estudos sociais entre língua e poder.
Em seus estudos Fairclough (1989) atrela as dimensões sociais às análises textuais. Para tanto, parte das contribuições de vários teóricos, dentre eles Bourdieu e Foucault, e para abarcar os aspectos linguísticos, volta-se para a Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday. Fairclough (2001, p. 99,100) justifica o papel que o texto tem na ADC:
A prática discursiva manifesta-se em forma linguística, na forma do que referirei como ‘textos’, usando ‘texto’ no sentido amplo de Halliday, linguagem falada e escrita (Halliday, 1978). A prática social (política, ideológica, etc.) é uma dimensão do evento discursivo, da mesma forma que o texto [...] A análise de um discurso particular como exemplo de prática discursiva focaliza os processo de produção, distribuição e consumo textual. [...] A prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum partilhados (...) as práticas dos membros são moldadas, de forma inconsciente, por estruturas sociais, relações de poder e pela natureza da prática social em que estão envolvidos, cujos delimitadores vão sempre além da produção de sentidos.
Fairclough (2001) destaca ainda que o procedimento que trata da análise textual pode ser denominado de ‘descrição’, e as partes que tratam da análise da prática discursiva e da análise da prática social da qual o discurso faz parte de ‘interpretação’. Na análise da prática social dois conceitos são fundamentais: 1) ideologia – baseada em Thompson (1995), é inerentemente negativo, tendo em vista que essa se encontra a serviço do estabelecimento e da sustentação das relações de poder (dominação); e 2) hegemonia – baseado em Gramsci (1988) – percebida como domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado no consenso.
Fairclough (2003) amplia os postulados teóricos da ADC ao propor uma articulação entre três aspectos: gêneros, discurso e estilo. Os gêneros constituem “o aspecto especificamente discursivo de maneiras de ação e interação no decorrer dos eventos sociais” (p. 65). Eles funcionam como mecanismo articulatório que controlam o que pode ser dito a fim de regular o discurso. O discurso é a representação dos atores sociais nos textos através de posicionamentos ideológicos em relação a eles e suas atividades. O estilo identifica os atores sociais nos textos através dos pressupostos, modalidades (objetivas e subjetivas), as metáforas
(conceituais, orientacionais e ontológicas).
A integração desses três significados: acional (gêneros), representacional (discursivo) e estilístico (identificacional) é dialética. Eles somente podem ser subdivididos para efeito explicativo. Os discursos são realizados em gêneros e consolidados através de estilos. As ações e identidades, por sua vez, são discursivamente representadas. A fim de orientar as análises discursivas em uma perspectiva crítica, Fairclough (2003) sugere as seguintes perguntas: 1) gênero – o texto está situado em que cadeia de gênero? Existe uma mesclagem de gêneros? Quais são as características dos gêneros apresentados? 2) discurso – quais traços caracterizam o discurso (relações semânticas entre as palavras, colocações, metáforas, pressuposições, traços gramaticais); e 3) estilo – como os autores se envolvem em relação à verdade (modalidades epístêmicas), obrigações e necessidades (modalidades deônticas).
Como as práticas sociais se materializam em textos, Fairclough (2003) argumenta que esses são elementos dos eventos sociais, que causam efeito, mudanças. Ele justifica que os textos provocam alterações em nossos conhecimentos (podemos aprender coisas com eles, em nossas crenças, em nossas atitudes, em nossos valores). Os textos também causam efeitos de longa duração – considerando que a experiência prolongadacom um determinado gênero de texto, como os da publicidade, contribui para moldar as identidades das pessoas, nos casos dos textos comerciais, assumindo o papel social de “consumidores”. Os textos também podem iniciar guerras ou contribuir para transformações na educação, ou nas relações industriais.
A ADC, consoante ao exposto por Fairclough (2001), tem empreendido várias pesquisas com vistas à mudança social, com destaque para as seguintes áreas: 1) burocracia – tendência de controle das pessoas – tecnologias discursivas – tipos de discursos que envolvem a aplicação do conhecimento científico com fins de controle burocrático; 2) pedagogia – crítica dos processos educacionais a fim de desenvolver uma percepção para a mudança social; 3) política – análise do discurso político de esquerda e direita em suas operações estatais nas negociações de âmbito local e internacional; e 4) propaganda e consumismo – essa é uma propriedade do capitalismo moderno que envolve um desvio do foco ideológico da produção econômica para o consumo econômico, empreendendo mudanças nas vidas das pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Linguística segue seu percurso na constituição das ciências, dialogando com as mais diversas áreas do conhecimento humano. As intersecções são várias, bem como os cruzamentos, com seus encontros e desencontros. As rotas seguem por dois históricos trajetos epistemológicos na história das ciências que sempre atraíram os pesquisadores: racionalistas e empiristas.
Desde tempos remotos essas vias prosseguem, e certamente continuarão, indo em direção ao horizonte, na tentativa de dar explicações, algumas delas além do infinito. Há linguísticas que se identificam com a lógica, ficam absortos diante das categorias. Outros querem ir para além do aparente, negam-se a restringir seus estudos ao observável.
O estudante da Linguística precisa estar atento a esses movimentos, ter cuidado com a dialética das palavras, não se deixar seduzir por todos os encantos, para não se tornar presa dos modismos. Isso porque na estrutura superficial todos eles passarão, deixarão para traz os rastros e dissabores, principalmente se apostarmos todas as fichas em um determinado paradigma.
É preciso permanecer atento às tendências acadêmicas é uma questão de sobrevivência, mas fazer o que se gosta também não pode ser descartado. Por isso, recomendamos o encontro de um meio termo, sem ingenuidades, ciente das disputas e interesses que perpassam e controlam o poder acadêmico. Manter-se aberto em relação ao novo, mas sem negar os princípios, buscando fundamentação no antigo.
Conhecer um pouco da história de uma ciência auxilia não apenas no amadurecimento do iniciante em um determinado paradigma. Isso resultará também em um olhar mais crítico, uma percepção das rotas pelas quais uma ciência normal se institui. Esperamos que, com esta outra concisa introdução à Linguística, o iniciante possa ter adentrado às suas veredas, algumas delas sinuosas, e se descubra em caminhos que possam levá-lo mais além.
Essas poucas, e talvez significativas páginas, tiveram a intenção de desafiar o iniciante nos estudos linguísticos a prosseguir em seu trajeto. Não tivemos a pretensão de apresentar aqui um mapa, com todos os seus detalhes e legendas, mas apenas um roteiro de viagem, com todas as suas limitações. Há um longo caminho a ser trilhado, prepare a bagagem, pois os desafios são muitos.
Mas valerá a pena, principalmente se tivermos coragem diante das opções que se apresentam. Nos momentos difíceis, encontraremos inspiração nas palavras do poeta americano Robert Frost:
Direi isso suspirando
Em algum lugar, daqui muito e muito tempo
Dois caminhos se separam em um bosque e eu … Eu escolhi o menos percorrido E isso fez toda diferença.
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