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Autoras: Profa. Letícia Cunha de Andrade Oliveira Profa. Camila Cristina Ribeiro Luis Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Prof. Mauro Kiehn Análise de Política Externa Professoras conteudistas: Letícia Cunha de Andrade Oliveira / Camila Cristina Ribeiro Luis Letícia Cunha de Andrade Oliveira É doutora em Relações Internacionais pela USP (2019), mestre em Relações Internacionais pela UnB (2013) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-GO (2011). Desde 2015, leciona Comércio Internacional, Integração Regional e Formação Política e Econômica do Brasil no curso de Relações Internacionais do Instituto Nacional de Pós-Graduação (INPG), em São José dos Campos. Em 2017, foi coordenadora do curso de Relações Internacionais do campus de São José dos Campos da UNIP, onde leciona Relações Internacionais Contemporâneas, História das Relações Internacionais do Brasil, História das Relações Internacionais, Formação Econômica do Brasil Contemporâneo, Teoria Contemporânea das Relações Internacionais, entre outras disciplinas. Camila Cristina Ribeiro Luis Formada em Relações Internacionais pela Unesp em 2007, é mestre e doutora também pela Unesp (2018), por meio do programa interinstitucional “San Tiago Dantas”. Iniciou a carreira como docente em 2014 e leciona na UNIP, nos cursos de Relações Internacionais e Ciências Econômicas, desde 2017. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) O48a Oliveira , Letícia Cunha de Andrade. Análise de Política Externa / Letícia Cunha de Andrade Oliveira, Camila Cristina Ribeiro Luis. – São Paulo: Editora Sol, 2022. 172 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Política. 2. Mídia. 3. Burocracia. I. Oliveira , Letícia Cunha de Andrade. II. Luis, Camila Cristina Ribeiro. I. Título. CDU 327 (81) (042) U516.09 – 22 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Profa. Sandra Miessa Reitora em Exercício Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice-Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades do Interior Unip Interativa Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Angélica L. Carlini Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. Deise Alcantara Carreiro Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Vera Saad Leonardo do Carmo Sumário Análise de Política Externa APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 POLÍTICA EXTERNA: ASPECTOS CONCEITUAIS E TEÓRICOS ............................................................ 11 1.1 O conceito de política externa ........................................................................................................ 11 1.2 A política externa enquanto política pública ........................................................................... 15 1.3 As teorias das relações internacionais e a política externa ................................................ 20 1.4 A paradiplomacia e as diplomacias presidencial e empresarial ........................................ 22 2 A ABORDAGEM DE ALLISON ....................................................................................................................... 30 2.1 A Crise dos Mísseis ............................................................................................................................... 30 2.2 Os modelos analíticos ......................................................................................................................... 32 3 A ABORDAGEM DE PUTNAM ...................................................................................................................... 33 3.1 O “jogo de dois níveis” ........................................................................................................................ 33 3.2 Os demais elementos da abordagem ........................................................................................... 35 4 A ABORDAGEM VOLTADA PARA AS NARRATIVAS ............................................................................. 36 4.1 A análise de discurso como técnica de Análise de Política Externa ................................ 37 4.2 Estudo de caso ....................................................................................................................................... 37 4.2.1 A política externa dos Estados Unidos para a América Latina ............................................. 37 4.2.2 Os Partidos Democrata e Republicano nos Estados Unidos .................................................. 51 4.2.3 Os discursos de Bush e Obama .......................................................................................................... 59 Unidade II 5 MÍDIA E POLÍTICA EXTERNA ........................................................................................................................ 85 5.1 A mídia ...................................................................................................................................................... 85 5.2 Estudo de caso ....................................................................................................................................... 86 6 OPINIÃO PÚBLICA, CINEMA E POLÍTICA EXTERNA ............................................................................. 87 6.1 A opinião pública e o cinema .......................................................................................................... 88 6.2 Estudo de caso ....................................................................................................................................... 96 Unidade III 7 POLÍTICA EXTERNA NO BRASIL: CARACTERÍSTICAS ........................................................................111 7.1 O Parlamento brasileiro e a formulação da política externa ............................................112 7.2 A paradiplomacia dos Estados brasileiros.................................................................................119 7.3 A diplomacia presidencial ...............................................................................................................126 7.4 A participação de atores não estatais na política externa do Brasil .............................132 8 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: BUROCRACIA ................................................................................136 8.1 A organização burocrática do Estado brasileiro e a formulação da política externa 137 8.2 O Itamaraty como órgão formulador da política externa .................................................146 7 APRESENTAÇÃO Prezado aluno, Este livro-texto tem como objetivo trazer os elementos teóricos necessários para orientá-lo em seus estudos. Situada no eixo central do curso, esta disciplina, desde a estruturação de nossa área de estudos, é objeto de amplos debates entre os acadêmicos mais renomados e traz os aspectos teóricos fundamentais para compreensão das escolhas e ações de governos e outros atores relacionadosao processo decisório na formulação da política externa dos Estados. Como uma ferramenta de análise teórica, a disciplina tem como objeto de estudo o exame de como as decisões sobre política externa são tomadas. Para tanto, é importante inicialmente considerar que política externa é, antes de mais nada, “a arte de conduzir o intercâmbio com os outros Estados”, conforme nos esclarece Raymond Aron, em seu livro clássico Paz e guerra entre as nações (ARON, 2002, p. 73). Política externa, portanto, é a realização de interlocuções e diálogos proporcionados por escolhas, entre comunidades políticas. Dessa forma, esta disciplina examina como ocorrem as escolhas, dado que tais decisões são fruto de debates no interior das coletividades humanas. Escolhas e decisões nem sempre são um processo fácil. Nós mesmos, como indivíduos, sofremos conflitos internos quando temos que tomar certas decisões, porque escolher implica assumir riscos e modificar comportamentos e, consequentemente, determinar resultados. Considere, então, as comunidades políticas organizadas coletivamente em Estados, envolvidas nos processos e conflitos sociais de escolhas na condução do intercâmbio com as demais nações. Muitas serão as perguntas: Quais elementos precisam ser considerados? Quem são os principais grupos internos interessados nesse processo? Como o outro Estado receberá e reagirá diante de tal política? Quais os custos e riscos envolvidos? Quais fatores levam à escolha por uma determinada política, e não outra? Essas são apenas algumas questões que têm instigado os longos debates entre acadêmicos relacionados a esta disciplina nos estudos das Relações Internacionais e também deverão conduzir, você, aluno, ao longo dessa jornada em Análise de Política Externa. É também fundamental destacar que o cenário internacional contemporâneo é moldado pelos resultados das escolhas políticas, fruto do processo de tomada de decisão em política externa dos Estados. Daí a importância da Análise de Política Externa, como uma disciplina essencial para compreensão dos processos atuais nas Relações Internacionais. Contudo, cada vez mais esses processos tornam-se mais complexos e dinâmicos, na medida em que aumentam o leque de atores que pressionam ou influenciam os governos em seu processo decisório. Considerando todos esses aspectos, o livro-texto procura abordar os principais elementos conceituais sobre a formulação de política externa como uma política pública, seus objetivos e níveis de análise, considerando fatores internos e externos, além das questões motivacionais que influenciam a tomada de decisão. Além disso, vamos observar a influência que atores sociais que compõem as coletividades humanas exercem sobre a burocracia estatal quando ocorre o processo de formulação da política 8 externa. Entre tais atores, daremos enfoque especial à mídia, partidos políticos, grupos empresariais, grupos religiosos, associações da sociedade civil etc. Observe que existe uma multiplicidade de atores que influenciam a política externa, inclusive a do Brasil, tornando esta disciplina desafiadora e multifacetada. Porém, são justamente essas as características que tornam as Relações Internacionais tão ricas e instigantes. Esperamos que você possa mergulhar nos estudos deste livro-texto, elaborado com a pretensão de auxiliá-lo no percurso de novas descobertas e aprendizado em sua jornada de internacionalista. INTRODUÇÃO Análise de política externa é uma área das Relações Internacionais cujo objeto central é a ação estatal no meio internacional e os elementos de conflito e interesse condicionantes a essa ação (OLIVEIRA, 2018, p. 2). A ação estatal corresponde a um ato de diálogo, uma interlocução, com os demais atores das relações internacionais. Assim, diferentemente da política interna, a política externa projeta para os outros Estados aspectos relevantes dos processos internos das sociedades, tornando de maior relevância conhecer a forma pela qual os atores internos estabelecem as diretrizes da política externa. É justamente nesse processo de debates e conflitos que ocorrem as escolhas que levam à formulação da ação estatal. Entretanto, é de suma importância deixar claro que “política externa é a área que representa os interesses e objetivos do Estado no plano internacional e que, por conseguinte, sua definição e implementação é prerrogativa do Estado” (OLIVEIRA, 2018, p. 3). Isso significa que as demandas e interesses dos mais diversificados grupos de pressão internos passam necessariamente pelo crivo das forças políticas da conjuntura estatal. Assim, no plano das relações internacionais, os Estados são os atores legítimos na promoção dos interesses dos cidadãos e demais organizações da sociedade civil que estão dentro de seu território. Além dos elementos concernentes ao processo interno, a Análise de Política Externa dos Estados perpassa o estudo dos fatores sistêmicos, ou estruturais, que limitam ou potencializam determinadas escolhas para realização de interesses nacionais. Grandes potências, por exemplo, terão maior possibilidade de realização das metas de sua política externa do que outros Estados com menos recursos e mais dependência do sistema internacional. Nesse sentido, a política externa é resultante de um esforço para compatibilizar o contexto interno de uma nação com as condicionantes sistêmicas. Portanto, nesta disciplina é muito importante saber diferenciar decisão e ação. Conforme explica o professor Henrique Altemani de Oliveira: A decisão corresponde a um desejo, intenção e é decorrente de um processo de identificação do problema, produção de alternativas, definição e implementação, enquanto a ação reflete o comportamento prático, podendo obter um resultado diferenciado do que tinha sido proposto. A decisão pode ser resultante, de forma isolada ou conjugada, de estímulos provenientes da sociedade, de estímulos provenientes do exterior, ou produto de decisão governamental (OLIVEIRA, 2018, p. 14). 9 Em termos de ação, uma das principais correntes da Análise de Política Externa, chamada de abordagem tradicional, considera que os Estados têm objetivos em torno dos quais suas políticas são definidas pelo cálculo racional das possíveis consequências de determinadas ações. Dessa forma, para essa perspectiva, o Estado é o único ator responsável pelo processo decisório em política externa. A abordagem tradicional perdurou por décadas, desde 1950. Porém, mais recentemente, desenvolveram-se teorias centradas a partir da ideia de decisão que não só questiona centralidade do Estado na formulação da política externa, como também aponta que os governos são formados por seres humanos submetidos a diferentes formas de pressão e influências. Todas essas abordagens serão objeto de reflexões levantadas e organizadas por meio de revisão bibliográfica na unidade I do livro-texto e são fundamentais para a compreensão do desenvolvimento da própria disciplina. Em seguida, na unidade II, optamos por realizar um levantamento da influência dos mais diversificados atores internos que conjugam esforços ou se chocam quanto ao processo de tomada de decisão na política externa dos Estados. Daremos ênfase ao Brasil, visto que nosso olhar para as relações internacionais é moldado pela nossa formação nacional. Por fim, na última unidade, nos debruçaremos com mais atenção na análise da política externa brasileira. Alguns recursos utilizados ao longo do texto, como observação, lembrete e saiba mais, ajudarão no estudo do conteúdo. Além disso, ao final de cada unidade, o resumo e os exercícios, resolvidos e comentados, auxiliarão na retomada do conteúdo estudado. 11 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Unidade I 1 POLÍTICA EXTERNA: ASPECTOS CONCEITUAIS E TEÓRICOS Neste tópico abordaremos os aspectos conceituais da política externa, apresentando seu conceito, discutindo seu papel enquanto política pública e seus objetivos no seio do Estado e apresentando seus aspectos teóricos. Resumidamente,política externa seria o conjunto das atividades políticas através das quais o Estado promove seus interesses no sistema internacional, ou seja, em relação aos demais Estados (WILHELMY, 1988). Mas esse conceito não para por aqui, podendo se desdobrar em dimensões e se transformar conforme a posição dos Estados no cenário internacional, como se verá adiante. 1.1 O conceito de política externa Ao exercer a política externa, o Estado pode levar adiante atividades que se dividem em três dimensões (quais sejam, político-diplomática, militar-estratégica e econômica), que se destinam aos mais diversos atores do sistema internacional, governamentais ou não, governantes, empresas, grupos ativistas etc., e que ocorrem tanto no plano bilateral quanto no plano multilateral (RUSSELL, 1990). Por exemplo, quando o Brasil denuncia a China à Organização Mundial do Comércio (OMC) por dumping, uma prática desleal de comércio que consiste em vender produtos por preços abaixo dos praticados no mercado, toma uma decisão em política externa cujo fim é econômico e que ocorre no plano bilateral. Outro exemplo, quando os Estados Unidos fecham a fronteira para países de determinadas nacionalidades – como ocorreu ao longo do Governo Trump – tomam uma decisão em política externa cujo fim é político-diplomático e que ocorre no plano multilateral. De qualquer forma, o Estado é o principal fator dessa equação. É certo que, cada vez mais, outros atores estão participando dos processos de política externa, empresas, indivíduos, ONGs, sociedade civil organizada etc., mas o Estado permanece como o principal ator dessas interações, até mesmo porque, afinal, é o ente que toma a decisão final, mesmo que essa tenha sido orquestrada por grupos de interesse (OLIVEIRA, 2018). Mas dizer isso não significa dizer que a Análise de Política Externa é uma disciplina centrada no Estado, conforme explica Salomón e Pinheiro (2013): Isso não supõe, necessariamente, que a APE seja uma disciplina “estadocêntrica” no sentido de desconsiderar o papel de atores não estatais e de dinâmicas não protagonizadas pelo Estado na política internacional. Colocar o foco nos processos políticos estatais, como faz a APE, não significa considerar que só estes são relevantes para compreender a realidade internacional. Aliás, a APE é bastante atenta à interação das unidades de 12 Unidade I decisão governamentais com uma pletora de variados atores dentro e fora das fronteiras do Estado que influenciam a formação e implementação dessa política pública (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 41). O fato é que os Estados não são atores monolíticos, eles existem enquanto poder central e enquanto executores de política externa, mas não se pode minimizar o papel que exercem as preferências, os partidos políticos, os lobbies, as coalizões, as instituições, as práticas domésticas, as estratégias de negociadores, as reverberações domésticas e as pressões externas sobre as decisões dos Estados (ALLISON, 1969; PUTNAM, 1988). Por exemplo, quando o governo brasileiro elaborou o Programa Mais Alimentos, uma política que combina a convencional cooperação técnica em agricultura com uma linha de crédito direcionada a pequenos agricultores africanos para a aquisição de maquinário brasileiro voltado para o mercado agrícola (PIERRI, 2013), houve uma série de disputas internas até que o desenho final do programa fosse definido – a Câmara de Comércio Exterior (Camex) defendeu o uso de condicionalidades, priorizou a participação de países africanos com interesse comercial para o Brasil e priorizou as pequenas e as médias empresas, já o Ministério das Relações Exteriores (MRE) defendeu o tradicional princípio de incondicionalidade da cooperação brasileira (CABRAL; SHANKLAND, 2013). Mais tarde, quando as empresas brasileiras enviaram o maquinário aos países africanos, ignoraram as demandas dos agricultores e negociaram um pacote fechado de equipamentos que respondia mais às suas metas de exportação do que às necessidades dos agricultores beneficiados pelo programa brasileiro. Nesse caso, o Estado brasileiro executou o Programa Mais Alimentos, mas foi fortemente influenciado por outros atores – por um lado e em menor medida, pelos próprios órgãos públicos brasileiros, por outro lado e em maior medida, pelo lobby da indústria brasileira de maquinário agrícola interessada em arranjar um mercado consumidor fácil para seus produtos (ANDRADE, 2019). A figura a seguir mostra o adesivo que foi afixado em todos os tratores e implementos exportados para Moçambique através do Programa Mais Alimentos, dando pistas das empresas que foram mais protagonistas nesse processo: Figura 1 – Trator produzido para o Brasil e exportado para Moçambique através do Programa Mais Alimentos 13 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Já a próxima figura mostra o “carimbo brasileiro” num trator exportado para Moçambique: Figura 2 – Made in Brazil Outro exemplo, o conflito do Vietnã, que ocorreu de 1965 a 1973, gerou muitas controvérsias dentro do Congresso dos Estados Unidos e junto à opinião pública estadunidense, ambos viam gastos excessivos numa causa praticamente perdida; essas pressões internas foram preponderantes para a decisão do governo de se retirar humilhado do Vietnã (MILANI; PINHEIRO, 2011). A figura a seguir mostra manifestantes contrários à Guerra do Vietnã em frente ao Pentágono em 1967. Figura 3 – Manifestantes contrários à Guerra do Vietnã em frente ao Pentágono, em 1967 Disponível em: https://bit.ly/3Mmt4gt. Acesso em: 7 jun. 2022. 14 Unidade I Um último exemplo, a Crise dos Mísseis de Cuba deixa claro que, se dependesse unicamente dos militares, os Estados Unidos teriam partido para uma ação externa mais agressiva em relação à União Soviética, o que não ocorreu graças à tradicional diplomacia dos Kennedy, que preferiam esgotar as opções de diálogo antes de partir para algo sem volta. Observação A Crise dos Mísseis de Cuba foi um episódio ocorrido nos anos 1960, quando os Estados Unidos descobriram que a União Soviética havia instalado mísseis de longo alcance em Cuba e os havia apontado para o território estadunidense. Mas a influência de outros atores além do Estado não modifica a essência dos interesses nacionais pelos quais a política externa se move. Os interesses nacionais são permanentes e universais, como o desejo de tornar-se forte economicamente, e, ao mesmo tempo, específicos e dinâmicos, como a determinação em criar políticas de contenção de refugiados de tempos em tempos ou de criar políticas de atração de imigrantes para suprir a demanda por mão de obra ocasionalmente (SAUTER, 2017). Quando os Estados alcançam os interesses ditos permanentes e universais, voltam-se para os interesses que variam conforme evolui sua relação com os demais Estados, conforme explica Sauter (2017): Em países como a Índia, caracterizada por estar em desenvolvimento e pelos altos índices de crescimento econômico, os elementos de política externa são de grande importância para a expansão da influência do Estado. A Índia está na posição de fazer o máximo uso de sua política externa para propósitos de desenvolvimento nacional, para defesa e segurança, ajuda externa e colaboração técnica, promoção da exportação e de outros interesses econômicos. Em outras palavras, a Índia está na posição de praticar uma diplomacia de desenvolvimento econômico. Outros países como a Rússia, já estão em uma posição mais favorável, pois ela é respeitada por já ter sido uma superpotência. Desta maneira, o processo de recuperação de sua economia e de sua política externa está mais direcionado para o resgate e um maior reforço nos seus níveis de desenvolvimento já conquistados. Isso é feito através da promoção de regimes de negócios internacionais como, por exemplo, na OMC e no G20, desenvolvendo novos mercados em outros países (SAUTER, 2017, p. 51). O que se observa, portanto, é que a política externa de um país sempre vai almejar o desenvolvimentonacional, mas evolui e pode variar segundo a sua história, as suas capacidades materiais, as suas necessidades e a sua posição no cenário internacional. 15 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA 1.2 A política externa enquanto política pública É importante pontuar que a política externa é uma política pública (MILANI; PINHEIRO, 2011; SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). Isto é, o Programa Mais Alimentos ou o Programa Alfabetização Solidária, empreendidos em países africanos pelo Brasil, são políticas públicas assim como o Programa Minha Casa Minha Vida ou o Programa Criança Feliz. Isso pode causar estranheza porque, quando se trata de política externa, a população brasileira não é politizada, ou seja, não dialoga, não se informa e não discute os temas caros aos interesses nacionais no sistema internacional, o que torna esse tipo de política algo mais “distante”. Observação Política pública é o conjunto das atividades do governo que, agindo direta ou indiretamente, acabam por influenciar o cotidiano dos cidadãos. De fato, os primeiros estudos sobre a transferência de políticas públicas entre países começaram discutindo a difusão dessas políticas entre estados subnacionais dentro de um mesmo país para depois debater a difusão dessas políticas em outros países e acabar se fundindo com os estudos da cooperação internacional em alguma medida. Assim, os projetos de cooperação internacional são as políticas públicas que deram certo num determinado país e que, por isso, são adaptadas e transferidas para outros países, mesmo que noutros contextos, noutras condições e com outros resultados (ANDRADE, 2019). Por exemplo, o Banco de Leite Humano, uma das políticas públicas mais tradicionais e exitosas do Brasil, promove o aleitamento materno executando a coleta, o processamento e o controle de qualidade do colostro (leite produzido nos primeiros dias após o parto), do leite de transição e do leite humano maduro e distribuindo-os para os recém-nascidos internados em unidades neonatais de tratamento intensivo sob prescrição do médico ou do nutricionista (FIOCRUZ, [s.d.]). Em 2003, com o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde, o Brasil iniciou um processo de ampliação da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano para o continente americano e, mais tarde, para o continente africano. Hoje, o Brasil já conta com 224 Bancos de Leite Humano e 215 postos de coleta e, no exterior, com a ajuda da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) através de projetos de cooperação internacional, conta com 110 Bancos de Leite Humano em mais de 20 países da América Latina e Central, Península Ibérica e África (ABC, [s.d.]). Portanto, o Banco de Leite Humano ilustra o fato de que política externa é política pública, embora o processo de implementação e os resultados possam variar nos países de destino, como de fato ocorreu em boa parte dos países africanos que receberam o programa, onde a incidência de HIV na população é mais alta do que no Brasil e onde as mães tiveram que lidar com a difícil escolha de salvar a vida de seus recém-nascidos nutrindo-os com leite de doadoras soropositivas (algo muito comum) ou de deixá-los padecer de desnutrição. Essa situação não afeta significativamente os resultados do Programa Banco de Leite Humano no Brasil, mas importa para países como Angola. 16 Unidade I Observação É possível impedir que o HIV ultrapasse a placenta da mãe, para evitar que uma criança proveniente de progenitora soropositiva contraia o vírus, mas este é transmitido pela amamentação. O que diferencia a política externa das demais políticas públicas é o fato de que ela é implementada fora das fronteiras estatais, o que torna a apuração dos resultados e a prestação de contas mais complexas. Por exemplo, quando o governo brasileiro financiou a construção do Porto de Mariel, em Cuba, com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), houve denúncias ligando a Odebrecht à lavagem de dinheiro durante a obra. Por se tratar de política externa, esse assunto chamou muito menos atenção e foi muito menos divulgado do que qualquer outra denúncia envolvendo escândalos de corrupção nas políticas públicas mais tradicionais, como o desvio de capital destinado à aquisição de merenda escolar ou, mais recentemente, o desvio de capital destinado à aquisição de respiradores para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. A figura a seguir mostra Dilma e Raúl Castro na inauguração da primeira fase do Porto de Mariel, em 2014. Figura 4 – Dilma e Raúl Castro na inauguração do Porto de Mariel, em 2014 Disponível em: https://bit.ly/396ibBX. Acesso em: 7 jun. 2022. É importante também distinguir a política externa de uma mera ação externa, como fazem Salomón e Pinheiro (2013): Por sua condição de política pública, cabe distinguir a política externa da mera “ação externa”, um conceito mais amplo que inclui todo tipo de contatos, planificados ou não, de um governo com outro ator fora de suas 17 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA fronteiras. Por sua vez, entender a política externa como política pública leva a considerar seu processo de elaboração, no qual incidem, como em qualquer outra política pública, as demandas e conflitos de variados grupos domésticos (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 41). Por exemplo, quando membros do Poder Legislativo, como Eduardo Bolsonaro, reproduziram discursos amistosos em relação aos Estados Unidos sob a gestão de Donald Trump, o que foi uma constante durante o Governo Bolsonaro, não se pode tomar essas falas enquanto política externa, mas enquanto ação externa, já que não se institucionalizou uma política pública mais próxima na prática dos Estados Unidos. Outro exemplo, quando o Instituto Butantan desenvolveu vacinas para o combate à pandemia de Covid-19 em colaboração com laboratórios chineses, não se tratava de política externa, mas de ação externa voltada para lidar com um problema repentino e que exige solução rápida. Ademais, também é necessário distinguir política externa de relações internacionais e de diplomacia. A política externa se refere, conforme já afirmado, a medidas e ações que garantam os interesses do país junto à comunidade internacional. As relações internacionais se referem a como os Estados se relacionam com os demais Estados, ou seja, a como eles se inserem no cenário internacional. E a diplomacia é a execução da política externa, feita pelos funcionários do órgão responsável, no caso do Brasil, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores). Claro que podemos falar em diplomacia empresarial e em diplomacia presidencial, e essas variações também tratam da promoção de interesses, mas não necessariamente dos Estados (BORELLI, 2016). Outro ponto que também merece destaque quando falamos em política externa é a distinção entre política de Estado e política de governo: trata-se de política de Estado quando a política externa se guia por interesses nacionais que pouco se alteram ao longo do tempo e independentemente do partido político que está no poder; trata-se de política de governo quando a política externa se guia por interesses que variam ao longo do tempo, de acordo com as vontades dos partidos políticos que estão no poder (BORELLI, 2016). Por exemplo, as políticas sociais costumam ser políticas de Estado, como a reprodução do Programa Banco de Leite Humano em outros países, que persiste sendo executado pela Agência Brasileira de Cooperação “entra governo, sai governo”; já o Programa Mais Médicos acabou se tornando uma política de governo, implementada pelo Governo Lula e extinta pelo Governo Bolsonaro, sendo, portanto, uma política orientada por simpatias ideológicas. É necessário discutir alguns desdobramentos recentes da Análise de Política Externa. Em primeiro lugar, tem havido uma crescente complexificação das agendas políticas, domésticas e internacionais, fazendo com que os atores tradicionais da política externa sejam levados, senão constrangidos, a considerar cada vez mais as visões e as demandas de atores não centrais e não estatais nos processos decisórios (MILANI; PINHEIRO, 2011). Em segundo lugar, a partir do momento em que a política externa passa a afetar mais diretamente uma porção significativa da população, em todos os países, um grupo cada vez mais amplo de pessoas tende a se interessar pelas decisões tomadas pelo governo nesse aspecto (MILANI; PINHEIRO, 2011). 18 Unidade I É interessante perceber, por exemplo, que no Brasil, depois que o Itamaraty começou a falar a linguagem do “brasileiro médio”, as pessoas passaram a discutir muito mais política externa, se achando até bastante entendidas em alguns casos, algo que não se imaginava no Governo FHC. Em terceiro lugar, o aumento de interesse e o debate público podem conduzir a um processo gradual de abertura e politização do campo da política externa, embora não na mesma proporção em que ocorre nas políticas públicas mais tradicionais, e esse processo precisa ser ordenado de forma que a sociedade civil possa vir a ser uma variável mais influente na definição da política externa (MILANI; PINHEIRO, 2011). Por fim, para se entender a tomada de decisão em política externa, Russell (1990) demarca a diferença entre estrutura e processo: [...] a estrutura está integrada por um ou vários atores governamentais domésticos que têm a um tempo a capacidade de comprometer os recursos de uma sociedade e de evitar que a decisão adotada possa ser facilmente revertida; o processo de tomada de decisões, por sua parte, vincula-se com a dinâmica decisória. Nele participam atores governamentais e não governamentais, do país e do exterior, numa sequência temporal que se inicia a partir do momento em que uma conjunção de estímulos internos e externos requer a tomada de uma decisão determinada até que ela seja efetivamente adotada (RUSSELL, 1990 apud OLIVEIRA, 2018, p. 15). Isso significa que, para que um país tenha política externa, ele carece antes de uma estrutura sólida, composta pelas instituições domésticas e pela legislação nacional, e de um processo previamente definido pelos atores envolvidos, que respondam tanto a incentivos internos quanto a incentivos externos. Lembrete No Brasil, a instituição que exerce a política externa é o Ministério das Relações Exteriores (o Itamaraty). Não existe uma teoria para analisar a política externa dos países, mas há modelos capazes de explicar certas situações. Apesar da inexistência dessa teoria geral, existem certos pressupostos para se analisar qualquer política externa, quais sejam: a) os Estados possuem políticas externas coerentes, implementadas em ações particulares; b) os Estados têm objetivos, que dão origem a políticas direcionadas; c) os Estados consideram não só suas ações, mas também as consequências delas, ou seja, são atores racionais (OLIVEIRA, 2018). Esses pressupostos passam a ideia de um Estado unitário e monolítico. E realmente essa era a ideia que prevalecia pelo menos até os anos 1950, quando os estudos de Análise de Política Externa começaram a florescer. Antes disso, o Estado tinha um papel muito bem definido: 19 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Na perspectiva tradicional, o Estado não só era considerado como o principal ator das relações internacionais, como se presumia que os governos que atuassem internacionalmente em nome do Estado poderiam ser considerados como atores monolíticos, unitários. E, nessa linha de raciocínio, considerava-se que os governos estivessem internamente unidos perante o internacional com o objetivo de maximizar o poder e a segurança (OLIVEIRA, 2018, p. 16). Com o desenvolvimento de estudos com foco em teorias de decisão, ocorreu uma importante mudança de mentalidade – a atenção passou a dirigir-se dos Estados, enquanto abstrações, e dos governos, enquanto blocos monolíticos e unitários, para os atores decisores de política externa, enquanto seres humanos submetidos a diferentes pressões e influências, tanto de dentro (de outros órgãos domésticos) quanto de fora (vindas de outros países) (OLIVEIRA, 2018). Para Snyder, um dos pais fundadores das teorias do processo decisório em política externa, é preciso definir o Estado pelos seus órgãos decisórios, ou seja, aqueles atores cujos atos são, para todos os efeitos, atos dos Estados. Isso significa que a ação do Estado é a ação definida pelos atores que atuam em seu nome (OLIVEIRA, 2018). Portanto, a partir de 1950, passaram a existir diferentes enfoques a respeito do processo decisório, alguns que consideram a tomada de decisões como uma ação abstrata, baseada em possíveis alternativas, e outros que o têm como um processo gradual com opções e compromissos entre os grupos de interesse e pressões burocráticas (OLIVEIRA, 2018). Apesar dessas diferenciações, Arenal (apud OLIVEIRA, 2018) considera que é possível destacar algumas características gerais das análises sobre tomada de decisão: a) Em primeiro lugar, e em geral, pode-se dizer que trata-se de explicar o comportamento externo do Estado desde a perspectiva analítica do Estado, até a do sistema internacional; b) Em segundo lugar, estimam que os órgãos decisórios, ou melhor, os indivíduos que têm essa responsabilidade, atuam no marco de um meio que inclui tanto o próprio sistema político nacional, com todas suas forças e fatores, como o próprio sistema internacional; c) Em terceiro lugar, a percepção desempenha um papel importante em uma grande parte das teorias. A decisão não aparece somente como o resultado quase mecânico de vários fatores externos ao que a toma, senão também como o resultado de uma percepção da realidade. É a realidade tal como é percebida, e não tal como é, a que determina a decisão; 20 Unidade I d) Em quarto lugar, em geral, tende-se a considerar o processo de tomada de decisões como um processo racional, se bem que não cabe uma generalização estrita deste ponto (OLIVEIRA, 2018, p. 17). 1.3 As teorias das relações internacionais e a política externa A Análise de Política Externa é um campo de estudos consolidado dentro das Relações Internacionais. O que atribui particularidade à Análise de Política Externa é seu foco nas ações internacionais de unidades particulares, ou seja, governos específicos, seus determinantes, objetivos, tomada de decisões e ações efetivamente realizadas ou mesmo anunciadas (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). O objeto de estudo da Análise de Política Externa sempre foi um governo nacional, embora recentemente outros níveis governamentais (supranacional ou subnacional) também passaram a ser considerados por desenvolverem sua própria política externa (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). Essa área de estudos nasceu precisamente em 1954, quando Richard Snyder, Henry Bruck e Burton Sapin publicaram um artigo intitulado “Decision-making as an approach to the study of international politics”. Salomón e Pinheiro (2013) afirmam que: A partir da contribuição de Snyder, foram traçados dois caminhos distintos de desenvolvimento da APE: o primeiro, fortemente atrelado à Ciência Política behaviorista, procurou desenvolver uma “grande teoria” da política externa; o segundo, metodologicamente mais plural e introduzindo elementos de diversas perspectivas disciplinares (teoria das organizações, geografia, psicologia social, psicologia cognitiva), se materializou na construção de teorias mais específicas, de médio alcance, sobre uma grande variedade de fenômenos relacionados com a produção da política externa (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 43). O primeiro projeto, desenvolvido sob a liderança acadêmica de Rosenau, deu fôlego a essa área de estudos por quase dois decênios. O objetivo do projeto era muito ambicioso, queria chegar a uma teoria geral da política externa, capaz de explicar qualquer política externa e até de predizer o comportamento dos Estados em relação aos demais. Para chegar a essa teoria geral, tão poderosa e tão almejada pelos Estados Unidos e outros paísesdesenvolvidos, era preciso identificar, a partir de dados extraídos de múltiplas fontes, as correlações entre as características das nações e os tipos de comportamento de umas com relação às outras (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). As secretarias de Estado e de Defesa dos Estados Unidos, em plena Guerra Fria, ansiavam por uma teoria que lhes apetecesse no sentido de prever os passos do inimigo soviético e, por isso, financiaram generosamente o projeto de Rosenau e seus colegas (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). 21 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA O projeto de Rosenau falhou, conforme explicam Salomón e Pinheiro (2013): Porém, esses ambiciosos objetivos não foram atingidos. Em vez de uma teoria geral, os comparativistas tinham, depois de décadas de trabalho, apenas uma extensa lista de possíveis variáveis relevantes. O fracasso se deveu em parte a que, como reconheceu a figura fundamental do movimento behaviorista em ciência política, David Easton, os objetivos eram inatingíveis: o estudo das sociedades humanas exige métodos diferentes dos da física. E em parte porque os desenhos de pesquisa behavioristas eram bastante deficientes. Eles se baseavam, com efeito, na ideia “indutivista ingênua”, pré-popperiana (Chalmers, 1993), de que era possível proceder a generalizações a partir da simples observação dos dados, sem uma teoria prévia a partir da qual se identificassem as conexões relevantes (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 44). Depois disso, os pesquisadores envolvidos reconheceram que a construção de uma teoria geral da política externa não era algo possível, dado que o estudo das sociedades humanas exigia métodos diferentes dos das ciências naturais. Essa falha reforçou o segundo projeto, focado na elaboração de teorias “de médio alcance” sobre fenômenos muito mais restritos, o qual deu origem a trabalhos como os de Graham Allison e Robert Putnam, conforme veremos mais adiante. Além disso, houve um crescente interesse pelos atores e fatores domésticos nos enfoques mais gerais das Relações Internacionais, o que intensificou a conexão entre a Análise da Política Externa e a grande área de Relações Internacionais e fez com que o liberalismo, o realismo e o construtivismo deixassem suas marcas na Análise de Política Externa. O liberalismo sustenta a Análise de Política Externa, e a razão disso, segundo Salomón e Pinheiro (2013): [...] é a própria resposta que o liberalismo oferece às grandes questões das Relações Internacionais: o conflito recorrente entre Estados é evitável, a cooperação é possível, e o indivíduo, agindo por meio de instituições, é o principal agente de mudança na política internacional. Uma das principais inovações da nascente subdisciplina da APE nos anos 1950 foi a de abrir a caixa preta do Estado e passar a considerar a importância dos fatores domésticos na formação de políticas externas (sem que isso significasse ignorar os fatores sistêmicos); a influência das correntes liberais na APE é evidente (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 45). Já no caso do realismo, embora a Análise de Política Externa tenha sido construída em oposição aos pressupostos realistas, a contribuição realista para a compreensão da política externa não pode ser ignorada, porque, excluindo o neorrealismo de Waltz, as diferentes versões do realismo se ocuparam e continuam se ocupando da política externa (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). 22 Unidade I Hans Morgenthau, por exemplo, tratou tanto das escolhas políticas do governante e de outros tomadores de decisão (política externa) quanto dos fatores sistêmicos que afetam a todos os estados da mesma forma (política internacional) (MORGENTHAU, 1948 apud SALOMÓN; PINHEIRO, 2013). Por fim, o construtivismo não é uma teoria das Relações Internacionais propriamente dita, mas uma teoria social mais ampla que pode ser aplicada ao estudo da política internacional. O construtivismo postula a importância das ideias nas relações sociais em geral, sendo estas, para os teóricos construtivistas, mais importantes que os próprios Estados. Mas existem duas conexões entre o construtivismo e a Análise de Política Externa: Uma primeira conexão que podemos detectar é a influência dos enfoques sociocognitivos presentes na APE na constituição da corrente Construtivista em relações internacionais, influência reconhecida por vários autores (Finnemore; Sikkink, 2001; Wendt, 1992). Esses enfoques, com elementos provenientes da Sociologia, da Psicologia Social e da Psicologia Cognitiva, tinham sido deixados de lado pelas correntes dominantes em RI nos EUA, mas nunca deixaram de estar presentes na APE. Além disso, a APE e o construtivismo guardam outra importante convergência, para além das suas respectivas ênfases na cognição, qual seja a importância que ambos atribuem à ação dos agentes na política internacional. É possível que, na atualidade, o construtivismo seja mais influente na APE que vice-versa, e que a rica pesquisa construtivista sobre formação de interesses (Wendt, 1992, 1999), normas internacionais (Finnemore; Sikkink, 1998), redes de ativismo transnacional (Keck; Sikkink, 1998) ou interação de estruturas e agentes (Wendt, 1999), entre outros temas, ao ser aplicada à análise das políticas externas individuais, esteja reforçando essa dimensão cognitiva que já existia na APE (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 47). É importante ressaltar que, de forma geral, os estudos sobre política externa não vêm atrelados a interpretações teóricas das Relações Internacionais, ou seja, os teóricos que os publicam deixam suas pesquisas empíricas falarem por si só, sem a necessidade de uma conexão explícita entre a Análise de Política Externa e as Relações Internacionais. 1.4 A paradiplomacia e as diplomacias presidencial e empresarial A paradiplomacia consiste no desenvolvimento de uma ação externa institucionalizada por parte de atores subnacionais e nasceu nos países desenvolvidos do hemisfério norte para se expandir depois pelo restante do mundo (CORNAGO PRIETO, 2004; SOLDATOS, 1990). Na América Latina, a redemocratização iniciada nos anos 1980 criou um contexto favorável para que estados federados e municípios com alto grau de internacionalização começassem a exercer a diplomacia subnacional (MILANI; PINHEIRO, 2011). 23 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Nessa década, surgiram as primeiras estruturas de gestão das relações internacionais em estados federados brasileiros. Atualmente, a maioria dos estados brasileiros e cerca de 30 municípios de cidades grandes ou médias executam ação externa estruturada que pode ser encarada como paradiplomacia (MILANI; PINHEIRO, 2011). Os estados do Rio de Janeiro (1983) e do Rio Grande do Sul (1987) foram os pioneiros nesse sentido, criaram escritórios de relações internacionais em suas estruturas governamentais e formularam estratégias externas definidas. Sobre isso, Milani e Pinheiro (2011) assinalam que: A Prefeitura do Rio de Janeiro (1987) foi o primeiro governo municipal a fazer isso. Porém, é importante destacar que a maioria das atividades hoje consideradas paradiplomáticas, como a promoção comercial ou a cooperação cidade-cidade através de acordos de irmanamento, vinham sendo desenvolvidas há décadas, embora de maneira dispersa e não coordenada, por diferentes departamentos ou secretarias dos governos subnacionais, sem nunca ter sido integradas em uma estratégia mais ampla do próprio governo subnacional (MILANI; PINHEIRO, 2011, p. 278). No caso do Rio de Janeiro, na ocasião, o então governador Leonel Brizola buscava suporte e legitimidade política a partir do exterior, num contexto em que enfrentava o regime ditatorial que ainda vigia no Brasil. No caso do Rio Grande do Sul, a Secretaria Especial de Assuntos Internacionais (Seai), criada pelo governador Pedro Simon, pretendia coordenar todas as atividades internacionais do governo: as de cooperação, os negócios internacionais e as relacionadas com a integração regional, presentes desde muito cedo na história do sul do país (MILANI;PINHEIRO, 2011). As estruturas dos dois estados federados sofreram grandes mudanças e enfrentaram fases de menor e maior atividade, mas ambas ainda existem – a Subsecretaria de Relações Internacionais do Estado do Rio de Janeiro supervisiona e participa de atividades de cooperação, captação de investimentos e promoção econômica de todo o aparato do governo estadual; a Seai foi fundida, em 1994, com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Social, dando origem à Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais (Sedai), que tem funções mais amplas que as de uma estrutura paradiplomática, mas não controla todas as atividades internacionais do governo estadual (a captação de recursos de agências internacionais, por exemplo, é atribuição de uma secretaria específica e dissociada da Sedai) (MILANI; PINHEIRO, 2011). Há também os casos dos estados federados que não criaram estruturas específicas para relacionar-se com o exterior, mas, mesmo assim, não deixaram de internacionalizar-se. O governo do Paraná, por exemplo, ainda que sem uma estrutura específica de relações internacionais, desenvolve há alguns anos uma atividade internacional com o apoio do Escritório do Ministério das Relações Exteriores no Paraná (Erepar) – foi nesse contexto que o estado importou a iniciativa europeia de cooperação transregional dos Quatro Motores da Europa para transformá-la nos Quatro Motores do Mercosul. No Pará, a Coordenadoria de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento Sustentável, criada em 2007, dirige o Fórum de Autoridades Locais da Amazônia. No Ceará, já existe uma dinâmica voltada para o comércio exterior e para a cooperação internacional (SARAIVA, 2004). 24 Unidade I Embora o surgimento das primeiras estruturas voltadas para a paradiplomacia tenha ocorrido antes da promulgação da Constituição de 1988, esta foi importante por criar um sistema federal de três níveis, no qual a União, os estados e os municípios são considerados entidades federadas. Isso significa que, apesar de as relações internacionais do Brasil serem atribuição do Poder Executivo, as competências e obrigações alocadas às unidades federadas com respeito ao desenvolvimento local deram certa legitimidade aos atores subnacionais para buscarem recursos no exterior e até firmarem acordos de cooperação com governos subnacionais (MILANI; PINHEIRO, 2011). É certo que, ao longo dos anos 1990, o número de estados e municípios com estruturas para o exercício da paradiplomacia aumentou, mesmo que lentamente e de forma desigual (essas iniciativas se concentravam no eixo Sul-Sudeste). Mas foi em 2003, com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, que esse processo ganhou ímpeto, sendo que muitas das novas estruturas foram criadas em estados e cidades do Norte e do Nordeste, quebrando assim a tendência de internacionalização dos atores subnacionais brasileiros (MILANI; PINHEIRO, 2011). Apesar de o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul terem iniciado a criação de estruturas institucionais de relações internacionais, no Brasil, a paradiplomacia municipal cresceu mais depressa do que a estadual. Também se percebe uma maior consciência, por parte das autoridades municipais, da existência da paradiplomacia como campo específico e como instituição com certas práticas consensuais (MILANI; PINHEIRO, 2011). Isso se deve a duas razões, segundo Milani e Pinheiro (2011): Uma foi a influência do movimento internacional de cidades, em efervescência desde inícios da década de 1990 e com atividade especialmente intensa entre 1996 (celebração, em Istambul, da Conferência das Nações Unidas Hábitat II, também conhecida como Cimeira das Cidades) e 2004 (criação da organização mundial Cidades e Governos Locais Unidos [CGLU], a partir da unificação da United Cities and Local Governments [Iula] e da Fédération Mondiale de Cités Unies-United Towns Organization [FMU-UTO] […]. Delegações de várias prefeituras brasileiras compareceram à Hábitat II e à Assembleia das Cidades, evento paralelo à conferência, e, a partir de então, ficaram envolvidas nas negociações para a fusão da Iula e da UTO, assim como nas iniciativas que visavam a uma maior participação dos governos locais no sistema da ONU, especialmente no programa Hábitat (MILANI; PINHEIRO, 2011, p. 279). A segunda razão tem a ver com o PT. Os prefeitos mais ativos no movimento internacional de cidades (que eram, naquele momento, Tarso Genro, de Porto Alegre, Marta Suplicy, de São Paulo, e posteriormente Elói Pietá, de Guarulhos) eram todos petistas – não por acaso, pois o envolvimento dos prefeitos petistas no movimento internacional das cidades explica-se por dois motivos: por um lado, havia sintonia política entre o movimento da paradiplomacia e o PT; por outro lado, a cooperação internacional entre atores subnacionais e a difusão de boas práticas se adequavam bem aos modelos inovadores de governo que o PT queria implantar nas cidades onde se elegia (MILANI; PINHEIRO, 2011). 25 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Em suma, a chegada do PT aos governos municipais de várias cidades brasileiras foi determinante para o desenvolvimento da paradiplomacia brasileira nos últimos anos. A Prefeitura do Rio de Janeiro criou pioneiramente uma estrutura de relações internacionais em 1987, responsável por questões protocolares. Mas essa estrutura, criada pelo governo do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e mantida pelos governos que o sucederam, nunca teve uma atividade muito significativa. Entre suas principais funções estão a preparação das viagens dos prefeitos ao exterior, a solução de questões protocolares levantadas pelas visitas de representantes estrangeiros e os contatos com o corpo consular presente na cidade (MILANI; PINHEIRO, 2011). Sobre isso, Milani e Pinheiro (2011) afirmam que: Talvez a ação mais digna de nota empreendida tenha sido a ocorrida em 2007, durante o mandato de César Maia, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro se retirou das principais redes de cooperação internacional de que participava, pelo menos formalmente, entre as quais a rede de cooperação dos governos municipais do Mercosul – a Mercocidades –, formada principalmente por prefeitos progressistas com os quais as autoridades municipais do Rio de Janeiro não se sentiam identificadas (MILANI; PINHEIRO, 2011, p. 282). Já Porto Alegre criou uma Secretaria Especial para a Cooperação Internacional e a Captação de Recursos em 1994, passando a ser um dos governos subnacionais brasileiros mais ativos internacionalmente. E, não por acaso, o fato de o PT ter permanecido no poder durante quatro mandatos consecutivos tornou possível o desenvolvimento de uma política externa subnacional relativamente estável, duradoura e coerente, a exemplo da difusão internacional do Orçamento Participativo, em 2001 (SALOMÓN; NUNES, 2007). Em 2005, quando um partido de centro-direita ganhou as eleições em Porto Alegre, a secretaria foi mantida e conservou as mesmas atribuições de antes, mas houve evidente mudança de ênfase, sendo que a prioridade da secretaria passou a ser a captação de recursos privados, e não mais de agências públicas internacionais. Quatro anos mais tarde, com a reeleição do prefeito, a secretaria foi extinta, o que não significa que Porto Alegre tenha deixado de atuar nas estruturas de cooperação subnacional (o estado mantém inclusive a divulgação internacional do Orçamento Participativo) (MILANI; PINHEIRO, 2011). Na cidade de São Paulo, foi também um governo do PT que criou a Secretaria Municipal de Relações Internacionais, em 2001 (JAKOBSEN, 2004; MATTOSO, 2001), que não tardou a servir de modelo para todos os órgãos de relações internacionais no Brasil, conservando sua atuação sólida durante o mandato da prefeita Marta Suplicy. Em 2005, o PMDB substituiu o PT no governo municipal e a Secretaria de Relações Internacionais foi mantida – inclusive seu pessoal permaneceu no posto. Todavia, ao contrário do que aconteceu em Porto Alegre, a atuação daSecretaria mudou radicalmente, e até mesmo os principais programas de cooperação foram cancelados para serem substituídos pela promoção comercial e pela atração de investimentos privados (MILANI; PINHEIRO, 2011). 26 Unidade I As cidades de Salvador (PDT), Palmas (PT) e Recife (PT) também criaram seus próprios órgãos de paradiplomacia em 2005, desafiando o monopólio das cidades do eixo Sul-Sudeste em atividades paradiplomáticas. Salvador, por exemplo, criou o maior órgão de relações internacionais municipais. Curitiba também inaugurou em 2005 sua própria Secretaria de Relações Internacionais e Protocolo, sob um governo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e é a cidade que mais visitas recebe de delegações de governos locais de todo o mundo (em 2007, por exemplo, foram 96 delegações de 23 países, interessadas em conhecer diferentes aspectos do planejamento urbano de Curitiba, especialmente o transporte público e os sistemas de reciclagem de resíduos sólidos) (MILANI; PINHEIRO, 2011). Por fim, Guarulhos, distintamente das cidades já mencionadas, porque não é capital de um estado, mas uma cidade média ao redor de São Paulo, foi a cidade brasileira mais destacada nas redes internacionais de cidades. Sua estrutura institucional de relações internacionais (uma assessoria), apesar de muito pequena (com apenas um assessor do prefeito e três funcionários), tinha uma valiosa rede de contatos, pelo que logrou introduzir Guarulhos no núcleo da política internacional de cidades (MILANI; PINHEIRO, 2011). A diplomacia presidencial consiste na condução pessoal de assuntos de política externa pelo presidente, ou, no caso de um regime parlamentarista, pelo chefe de Estado. A Constituição Brasileira de 1988 (art. 84) já estabelece que as competências do presidente, ao exercer a diplomacia são, essencialmente: VII – manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; [...] XIX – declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional; XX – celebrar a paz, autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional (BRASIL, 1988). A diplomacia presidencial se materializa quando o presidente vai além das supramencionadas funções e avança para um papel mais proativo na concepção e na execução da política externa do país. A expressão nasceu por causa de Theodore Roosevelt, cuja atuação representou um marco para a diplomacia americana (PRETO, 2006). Nos primeiros anos do período republicano, o Brasil não teve presidentes que se destacaram na diplomacia, cabendo mencionar apenas a visita oficial de Campos Sales à Argentina, em 1899. Mas só se começa a falar em diplomacia presidencial a partir de FHC e de suas visitas oficiais, que começaram a chamar a atenção da mídia, da opinião pública, do Congresso e dos meios acadêmicos (DANESE, 2017). 27 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Danese (2017) afirma que: Em contraste com alguns dos seus antecessores, o presidente Fernando Henrique Cardoso adotou um estilo globe trotter que imediatamente passou a ser um assunto de impacto na imprensa brasileira e na política interna. As visitas se desenrolaram de forma intensa, proporcionando alguns ganhos diplomáticos e constituindo o cerne da implementação do projeto de política externa do governo. Em dois anos e meio de mandato, o presidente cumpriu uma agenda de 47 compromissos internacionais (viagens e escalas), cobrindo praticamente todo o leque das principais modalidades da diplomacia de visitas, deslocamentos e encontros, e recebeu no Brasil um número semelhante de visitantes. Nesse período, graças aos compromissos multilaterais e a encontros paralelos, e por iniciativa sua ou dos seus interlocutores, encontrou-se com praticamente todos os mandatários do mundo, com vários deles mais de uma vez, com muitos dos latino-americanos várias vezes e com os demais presidentes do Mercosul mais de uma dezena de vezes cada um (DANESE, 2017, p. 38). O Governo Lula caracterizou-se por uma continuidade da diplomacia presidencial, verificada na opção pela estabilidade financeira e pelo avanço do processo de inserção internacional do país, iniciado nos anos 1990 (BARNABÉ, 2010). Essa continuidade ficou evidente logo na campanha eleitoral, quando o PT teve que moderar seus posicionamentos para participar da corrida presidencialista, se aproximando mais do “centrão” e abandonando algumas bandeiras históricas, como a defesa da moratória da dívida externa. Só assim foi possível vencer as eleições de 2002, embora alguns membros do partido ainda insistissem nas “velhas concepções” ainda em 2002 (GIAMBIAGI, 2011). Quando tomou posse, Lula acalmou o mercado anunciando as seguintes medidas: • Nomeação de Henrique Meirelles para o cargo de presidente do Banco Central, bem como manutenção de todo o restante da diretoria, herdada da gestão de Armínio Fraga; • Definição de metas de inflação para 2003 e 2004 em 8,5% e 5,5%, respectivamente; • Elevação das taxas de juros básicas (Selic); • Rigor na meta de superávit primário, que passou de 3,75% para 4,25% do produto interno bruto (PIB) em 2003; • Ordem para um corte de gastos; • Inclusão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da mesma meta fiscal de 4,25% do PIB de superávit primário para o triênio 2004-2006 (GIAMBIAGI, 2011). 28 Unidade I Todavia, não obstante as semelhanças, a diplomacia presidencial de Lula apresentou características próprias com influência direta na elaboração e na execução da política externa e no papel do Itamaraty. Em outras palavras, no Governo Lula, houve um dinamismo da diplomacia brasileira sem precedentes e uma participação pessoal do presidente nos assuntos internacionais com intensidade sem igual. Tratava-se de uma diplomacia marcada por um ativismo exemplar, acompanhado por um ativo circuito de contatos, viagens de trabalho e conversações a cargo do chanceler (ALMEIDA, 2004). Para marcar uma mudança com o governo anterior, Lula não empregava a expressão diplomacia presidencial, mas chamava seu empenho de “ativismo diplomático”. Celso Amorim transformou em slogan a afirmação de que a diplomacia do Governo Lula era “ativa e altiva”. Para de fato materializar essa frase, Lula imergiu de maneira mais incisiva em temas que FHC tinha tratado de maneira mais retórica, por exemplo, a cooperação Sul-Sul, o multilateralismo, o Mercosul, a liderança brasileira etc. E, além de superar seu antecessor no número de viagens ao exterior, Lula mudou o enfoque da política externa, mais centrada nas questões do hemisfério sul, no objetivo de lograr um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, sem, contudo, abandonar os diálogos com os países desenvolvidos (BARNABÉ, 2010). É interessante pontuar que a política externa conduzida no Governo FHC tinha no Itamaraty sua base de apoio (até os conselheiros do presidente eram diplomatas de carreira). Já no Governo Lula, o Itamaraty passou a partilhar a formulação e até mesmo a execução da política externa com assessores presidenciais (BARNABÉ, 2010). Em suma, os governos FHC e Lula promoveram, através da diplomacia presidencial, um novo padrão de inserção internacional do Brasil e avançaram no sentido da institucionalização da nossa diplomacia de cúpula. Depois que deixaram a presidência, coube ao Itamaraty, em primeiro lugar, mas também outros atores domésticos como a imprensa, o Congresso e a opinião pública, seguir esse caminho, o que não se pode dizer que aconteceu, principalmente após o Governo Bolsonaro. A diplomacia empresarial pode ser entendida como um conjunto de atividades com o objetivo de gerar condições favoráveis para que as empresas conduzam suas atividades e realizem seus objetivos organizacionais.A diplomacia empresarial abarca atividades como: a) influência sobre outros atores econômicos e sociais com o fim de criar e explorar oportunidades de negócios; b) colaboração com autoridades que influenciem processos comerciais e investimentos; c) gestão de possíveis conflitos com tomadores de decisão externos; d) minimização do risco político relacionado aos negócios; e) atração do apoio da mídia e dos formadores de opinião com o objetivo de criar a imagem e a reputação da empresa (SANER; YIU, 2003). Pode parecer que essa definição se assemelhe muito à definição de lobby, mas o lobby é apenas uma das ferramentas da diplomacia empresarial e tem como fim algo mais pontual: influenciar o Executivo (o governo) ou o Legislativo (os políticos) tendo em vista a defesa dos seus interesses (SANER; YIU, 2003). No Brasil, o primeiro movimento em favor de setores empresariais de que se tem registro aconteceu no governo de dom Pedro I, tendo como intermediária sua amante Domitila de Castro Canto e Melo, que 29 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA mais tarde se tornou a Marquesa de Santos (FIGUEIREDO, 2011). Em 1827, seu ex-sogro, Felício Moniz Pinto Coelho da Cunha, escreveu a Domitila para pedir que ela intercedesse por ele junto a dom Pedro I no sentido de ajudá-lo a vender aos ingleses suas lavras de minérios na província de Minas Gerais. Na carta, o empresário prometia pagar à amante do imperador uma comissão correspondente a 50% do valor da venda, que seria superfaturada. Não se sabe se o negócio do senhor Felício prosperou, mas a carta comprova que a marquesa exercia poder junto ao imperador para obter vantagens pessoais (SOUSA, 1957). Ainda que muitas vezes utilizado como sinônimo para grupos de interesse, o lobby possui um significado mais pontual, consistindo em uma das práticas desempenhadas pelos grupos de interesse em sua busca por moldar as políticas públicas. Todavia, a palavra lobby é marcada por uma imagem negativa e é geralmente associada à corrupção (OLIVEIRA, 2018). Os mecanismos utilizados pelos lobistas para fazer pressão são variados (THOMAZ, 2012), sendo o mais utilizado a mobilização de recursos para o financiamento de campanhas políticas de parlamentares, o que coloca o Congresso Nacional numa posição de aquiescência em relação aos lobistas (BOARIN, 2015). Contudo, é fato que, ainda que determinantes em muitas situações, os recursos financeiros não representam todo o processo de lobbying, existindo indícios de que, no caso das grandes indústrias atuando como grupos de interesse, o mecanismo mais importante é a reputação de certos atores, seguida pelos contatos que estabelecem e, por fim, pela expertise que possuem (SCHLOZMAN; TIERNEY, 1986; SANTOS, 2007). Outro mecanismo importante da diplomacia empresarial é o advocacy, uma prática mais ampla da defesa de interesses que engloba aspectos políticos e sociais e que pode ser separada em mobilização, representação e empoderamento: A mobilização consiste em criar um pensamento positivo e encorajar seu cliente a falar em seu nome, uma vez que ele esteja apto a expressar suas indagações e desejos, com finalidade de uma negociação para buscar que eles sejam concedidos, isso ocorre principalmente em reuniões com membros do governo, onde o cliente irá expor suas reivindicações diretamente com a parte interessada, pois ele já foi instruído capacitado a fazer por si próprio, sem a necessidade de uma terceira pessoa. Já a representação ocorre quando o cliente não se sente em condições de apresentar sua própria defesa, com isso o diplomata empresarial estará apto a defender os interesses frente ao governo, de maneira a colocar em prática tudo o que foi previamente discutido com seu cliente, com transparência e qualidade. Outra ação importante competente ao advocacy é a do empoderamento, uma vez que ele tem a missão de passar para todos aqueles que desejam que seus interesses sejam defendidos que eles têm voz e o direito de serem ouvidos, sejam eles a sociedade civil, organizações não governamentais e até mesmo as empresas multinacionais (SILVA, 2016, p. 36). 30 Unidade I É importante dizer que a diplomacia empresarial está presente em diversas áreas de modo a planejar e praticar todos os interesses que a empresa tenha ou venha a ter. A atuação de uma empresa multinacional em um país em particular ou no cenário internacional como um todo depende da reputação que a empresa tem no mercado e de como ela age com os outros atores internacionais, o que é determinado pela política externa corporativa da empresa e por suas ações de responsabilidade social. Nesse sentido, o diplomata empresarial é uma figura importante e, embora exista uma demanda crescente por ele, não há profissionais qualificados em número suficiente no Brasil. A maioria dos cursos de Ensino Superior, exceto Relações Internacionais, não prepara para esse tipo de atividade que, como adiantamos, exige qualificação multidisciplinar. O nível fluente no inglês é um requisito indispensável, mas o ideal é saber se comunicar também em outros idiomas, desenvolver a capacidade e o conhecimento necessários para analisar e avaliar cenários, fazer prospecções, negociar, representar, convergir interesses, minimizar conflitos e trazer resultados positivos para a organização que representa. O perfil de liderança é uma das competências determinantes para mover várias pessoas em torno de um mesmo objetivo e deve ser uma marca do diplomata empresarial, que reúne pessoas de diferentes crenças, ideologias e capacidades, presentes em vários setores de uma cadeia produtiva, voltadas para o mesmo fim e unidas pelo espírito de equipe. Tendo que lidar com pessoas, o diplomata empresarial precisa conhecer diferentes culturas, hábitos de compra e até mesmo gostos artísticos, pois só assim será capaz de reunir as condições necessárias para bem representar a sua organização e fazê-la chegar mais longe. 2 A ABORDAGEM DE ALLISON Neste tópico, falaremos da abordagem político-burocrática de Graham Allison, que tomou forma em 1969 e utiliza a Crise dos Mísseis de Cuba, ocorrida em 1962, para esclarecer como as pressões domésticas influenciam a tomada de decisão em política externa, no caso, como os segmentos internos estadunidenses determinaram as decisões tomadas por Kennedy durante o episódio. 2.1 A Crise dos Mísseis Allison nasceu em 1940, é cientista político e professor de Governança na John Kennedy School of Governament de Harvard. Seu artigo seminal foi publicado pela The American Political Science Review em 1969. Allison (1969) utiliza a Crise dos Mísseis de Cuba, ocorrida em 1962, para esclarecer como as pressões domésticas influenciam a tomada de decisão em política externa, no caso, como os segmentos internos estadunidenses determinaram as decisões tomadas por Kennedy durante a crise de 1962. A Crise dos Mísseis foi o momento de maior tensão da “coexistência pacífica”. Em 1961, os Estados Unidos instalaram mísseis nucleares na Turquia, atitude que gerou desagrado nos soviéticos e que causou preocupação pela possibilidade de um ataque através de uma posição muito privilegiada. Na mesma época, os Estados Unidos também tentaram invadir Cuba em virtude do regime socialista que vigorava e avançava na ilha. 31 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA No dia 14 de outubro de 1962, os Estados Unidos divulgaram fotos, coletadas através de um voo secreto sobre Cuba, que denunciavam a instalação de mísseis nucleares soviéticos na ilha. O então presidente estadunidense, John Kennedy, tratou de comunicar sua população do risco iminente e encarou o fato como um ato de guerra. Do lado soviético, Kruschev alegou que a base consistia apenas numa ação defensiva e servia também para impedir uma nova invasão na ilha. No dia 28 de outubro, ficou acordado que a União Soviética retiraria imediatamente os mísseis de Cuba e que os Estados Unidos retirariam em até cinco anos os mísseis da Turquia (ALLISON, 1969). A figura a seguir é uma das fotos registradaspelo piloto americano que sobrevoou Cuba em outubro de 1962. Figura 5 – Vista aérea da Base de Lançamento de Mísseis em Cuba Disponível em: https://bit.ly/3zpaUaV. Acesos em: 8 jun. 2022. O episódio afetou bastante a opinião pública nos Estados Unidos. Por um lado, muitas manifestações, sobretudo da sociedade civil, ocorreram no sentido de apaziguar e de pedir a Kennedy que tratasse do conflito com cuidado. Por outro lado, grupos domésticos nos Estados Unidos, como os militares e os republicanos, criticaram a forma como Kennedy tratou a questão, considerando o presidente muito maleável no trato com os soviéticos. Saiba mais Para aprofundar seus conhecimentos sobre a Crise dos Mísseis de Cuba e sobre como o modelo de Allison se aplica ao episódio, assista: 13 DIAS que abalaram o mundo. Direção: Roger Donaldson. Estados Unidos: Beacon Pictures, 2000. 145 min. 32 Unidade I 2.2 Os modelos analíticos Para analisar o episódio, Allison (1969) propôs três modelos. O Modelo I ou Modelo do Ator Racional parte da premissa de que qualquer ação particular de um governo resulta da combinação de objetivos e valores relevantes, de alternativas de ação percebidas, de estimativas das consequências que seguem cada alternativa e da avaliação de cada conjunto de consequências. Entre as suas proposições estão os seguintes elementos: • Um aumento nos custos percebidos em uma alternativa de ação reduz a possibilidade de que essa ação seja escolhida; • Um decréscimo nos custos percebidos de uma alternativa aumenta a possibilidade de essa alternativa ser a escolhida. O Modelo II ou Modelo do Comportamento Organizacional parte da premissa de que, num dado instante, um governo consiste de um conglomerado estabelecido de organizações, cada uma delas com suas tarefas críticas, capacidades especiais, programas e repertórios. Entre as suas proposições estão os seguintes elementos: • Capacidades organizacionais existentes influenciam as escolhas governamentais; • As prioridades organizacionais configuram a implementação organizacional, sendo que as organizações tendem a enfatizar, na prática, os objetivos mais afinados com suas capacidades especiais e com sua cultura; • A implementação reflete rotinas previamente estabelecidas e procedimentos operacionais padrão. O Modelo III ou Modelo da Política Governamental parte da premissa de que as decisões e as ações dos governos não se constituem numa solução para o problema, mas são o resultado de negociações; assim, as decisões e ações surgem de um processo de barganha entre os membros individuais do governo com poderes distintos e forças desiguais. Entre suas proposições estão os seguintes elementos: • As preferências particulares e as posições individuais dos jogadores influenciam o resultado final; • As vantagens e as desvantagens de cada jogador diferem de um procedimento estabelecido (ou de um canal de ação) a outro; • Os detalhes da ação resultante não são escolhidos por nenhum dos indivíduos e raramente seriam idênticos aos que qualquer um dos jogadores sozinho escolheria; • “O que você defende depende de onde você está sentado”, isto é, as apostas de um jogador podem ser antecipadas sabendo-se a que organização ou facção pertence. 33 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Diferentemente das teorias estadocêntricas, a abordagem dos modelos conceituais de Allison reconhece que por trás de toda decisão em política externa existe pressão doméstica. O Modelo I, do Ator Racional, é o mais frequentemente abarcado pelas abordagens teóricas tradicionais nas Relações Internacionais, e Allison mostra que tal modelo pode ser complementado pelos Modelos II, do Comportamento Organizacional, e III, da Política Governamental. O episódio da Crise dos Mísseis contém os três modelos conceituais de Allison e, na atualidade, outros fenômenos podem ser explicados por tais modelos. 3 A ABORDAGEM DE PUTNAM Neste tópico, falaremos sobre abordagem político-burocrática de Robert Putnam, que utiliza a Cúpula de Bonn, ocorrida em 1978, para esclarecer como a política doméstica e as relações internacionais se entrelaçam. 3.1 O “jogo de dois níveis” Putnam nasceu em 1941, é cientista político e professor de Política Pública na John Kennedy School of Governament de Harvard. Seu artigo seminal foi publicado pela International Organization em 1988. A política doméstica e as relações internacionais estão sempre entrelaçadas de alguma forma, mas as teorias ainda não desvendaram como. Saiba mais Leia o artigo de Putnam na íntegra: PUTNAM, R. Diplomacy and domestic politics: the logic of the two-level games. International Organization, v. 42, n. 3, p. 427-460, 1988. Putnam utiliza a Cúpula de Bonn, de 1978, para esclarecer como a política doméstica e as relações internacionais se entrelaçam. Putnam explica a Cúpula de Bonn: Em meados dos anos 1970, um programa de recuperação global liderado pelas economias “locomotiva” dos Estados Unidos, da Alemanha e do Japão propôs favorecer a recuperação ocidental após o primeiro choque do petróleo. Essa proposta recebeu um forte impulso do iniciante governo Carter, além de ser calorosamente apoiada pelos países mais fracos, pela Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) e por muitos economistas independentes. Esses economistas argumentavam que o programa superaria os desequilíbrios internacionais das balanças de pagamentos e promoveria o crescimento de todos. Por outro lado, alemães 34 Unidade I e japoneses protestaram dizendo que não se deveria pedir a administradores econômicos prudentes e bem-sucedidos que salvassem administradores esbanjadores. Ao mesmo tempo, o ambicioso Programa Nacional de Energia de Jimmy Carter permanecia travado no Congresso, enquanto Helmut Schmidt liderava um coro de reclamações sobre o descontrolado apetite americano por petróleo importado e sua aparente despreocupação em relação ao dólar em queda (PUTNAM, 1988, p. 427-428, tradução nossa). Putnam argumentou que, em Bonn, Estados Unidos, Alemanha e Japão adotaram políticas diferentes daquelas que seriam utilizadas na ausência de negociações internacionais e que o acordo aconteceu apenas porque uma forte minoria no interior de cada governo apoiou domesticamente a política requerida internacionalmente. A figura a seguir é um registro dos líderes da Itália, Japão, Estados Unidos, Alemanha e França reunidos na Cúpula de Bonn nos anos 1970. Figura 6 – Cúpula de Bonn Disponível em: https://bit.ly/3NAMIGX. Acesso em: 8 jun. 2022. Para o autor, o acordo de Bonn combinou com sucesso as pressões nacionais e as internacionais, sendo que nem uma análise puramente interna nem uma puramente externa poderia verificar o que de fato aconteceu. Por isso, Putnam se impôs a tarefa de construir um modelo analítico que desse conta simultaneamente das interações entre os fatores domésticos e entre os fatores internacionais. As teorias estadocêntricas julgam o Poder Executivo como um tomador de decisões unitário e alheio a pressões internas. Mas existe um embate político entre os atores domésticos quando da formulação da política externa: os partidos, as classes sociais, os grupos de interesse, os legisladores e mesmo a opinião pública e as eleições participam desse processo, cada qual com seu peso e sua influência (PUTNAM, 1988). 35 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA Nesse sentido, o Poder Executivo tem um papel especial na mediação das pressões domésticas e internacionais exatamente porque está diretamente exposto a ambas as esferas, e não porque seja um ator unificado em todas as questões (PUTNAM, 1988). A luta política de várias negociações internacionais pode ser utilmente encarada como um jogo de dois níveis. No nível nacional, os grupos domésticos perseguem seu interesse pressionando o governo a adotar políticas favoráveis a eles, e os políticos buscam o poder constituindo coalizões entre esses grupos. No nível internacional, os governos nacionais buscam maximizar suas próprias habilidades
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