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Prévia do material em texto

SUMÁRIOSUMÁRIO
parte 1parte 1
1 Manifestação telúrica1 Manifestação telúrica
2 A coqueluche do2 A coqueluche do grand mondegrand monde
3 O3 O vernissagevernissage
parte 2parte 2
4 As cores da novidade4 As cores da novidade
5 O teatro da Pauliceia5 O teatro da Pauliceia
6 Da Casa Mappin ao Maine6 Da Casa Mappin ao Maine
7 Na terra do Saci7 Na terra do Saci
8 A fúria do Jeca8 A fúria do Jeca
9 Mário de Maria9 Mário de Maria
10 Oswald da mamãe10 Oswald da mamãe
11 Isadora e o Furacão11 Isadora e o Furacão
12 Juca e Miramar12 Juca e Miramar
13 A realeza da República13 A realeza da República
14 Eduardo e Paulo14 Eduardo e Paulo
15 O Rodin bandeirante15 O Rodin bandeirante
16 O estalo do desvario16 O estalo do desvario
17 Máscaras no Trianon17 Máscaras no Trianon
18 Os bandeirantes vão à praia18 Os bandeirantes vão à praia
19 A visita do jovem senhor19 A visita do jovem senhor
20 Organizando a bagunça20 Organizando a bagunça
parte 3parte 3
21 O leão e 21 O leão e a pianista contristadaa pianista contristada
2222 Happening Happening futuristafuturista
23 A consagração do maestro23 A consagração do maestro
24 Turma animada24 Turma animada
Posfácio desinteressantíssimoPosfácio desinteressantíssimo
 Agradecimentos Agradecimentos
NotasNotas
Bibliografia citadaBibliografia citada
Créditos das imagensCréditos das imagens
4/3754/375
11
MANIFESTAÇÃO TELÚRICA MANIFESTAÇÃO TELÚRICA 
7/3757/375
8/375
9/375
10/375
Na madrugada de 27 de janeiro de 1922, a cidade de São Paulo foi
acordada por um tremor. Janelas trepidaram, frascos de remédio
pularam das prateleiras, ornamentos caíram de fachadas e animais en-
traram em alvoroço. “Terremoto”, estampou a Folha da Noite na man-
chete da edição daquela sexta-feira. O “movimento sísmico”, informava o
 vespertino, havia sacudido quase todo o estado de São Paulo, atingira
parte do sul de Minas e propagara-se até o Rio de Janeiro.
No dia seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo dedicou uma página
aos acontecimentos. Dizia que o fenômeno, “o primeiro na capital de tal
intensidade”, provocara “impressionante rumor”. Muitos saíram às ruas,
e o corre-corre sonâmbulo, em horário tão avançado, teria proporcion-
ado, de acordo com a reportagem, um espetáculo “muito interessante”.
Eugenio Egas, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo,
comentou o “grande susto” de ver tudo “a oscilar” e classificou o episódio
de “desagradável e perigoso”.
Embora as primeiras avaliações indicassem prejuízos superficiais, a
 Folha da Noite voltou ao assunto para dizer que danos mais graves po-
deriam ter ocorrido. Suspeitava-se que o viaduto do Chá, já mal das per-
nas, tivesse sido golpeado pela “manifestação telúrica”. Também parecia
inspirar cuidados, de acordo com o jornal, a situação das edificações da
avenida Angélica, no bairro de Higienópolis. Casas estariam balançando
perigosamente à passagem de veículos carregados, num sinal de que os
alicerces perdiam solidez.
11/375
 A  Folha da Noite cobrava inspeções técnicas dos órgãos competentes e
aproveitava para lamentar que o Observatório Astronômico e Meteoroló-
gico, na avenida Paulista, se encontrasse “à míngua de sismógrafos e out-
ros aparelhos”. Mal equipado, não conseguia prestar esclarecimentos de-
talhados — ao contrário do que era comum nas capitais da Europa.
O tremor, é claro, virou o assunto da cidade. Falava-se da ação de gat-
unos durante o rebuliço, dos estampidos de armas de fogo que ecoaram
nos quatro cantos, do infeliz que sofreu um ataque cardíaco, do princípio
de pânico em Ribeirão Preto e dos telhados tombados no Espírito Santo
do Pinhal.
 Alguns se divertiam e faziam piada; outros dramatizavam. Seria pos-
sível comparar o fenômeno aos que abalavam cidades da Itália ou do
México? Houve quem escrevesse carta à imprensa para considerar ex-
agerado o uso do termo “terremoto”; e também quem garantisse que al-
guns segundos a mais de vibração teriam reduzido tudo a “um montão de
ruínas”.
O jovem artista carioca Emiliano Di Cavalcanti, então com 24 anos,
que voltava a São Paulo depois de uma temporada no Rio, sentiu seu leito
deslizar enquanto dormia. Hospedava-se num hotel no centro da cidade e
havia chegado tarde, acompanhado pelo advogado Vicente Rao, seu
amigo, após uma noite “boemiando”. Di recordou a agitação daquela
madrugada em livro de memórias publicado em 1955: “Assim que me
deitei senti a cama correr para a frente. Logo depois gritos de hóspedes,
correria no corredor. Vesti-me depressa e, quando cheguei no meio da
confusão enorme à porta da rua, um italiano gritava glorioso: — Eu sei o
que é. É terremoto!”.
 Ainda atordoado, o pintor diz ter saído em disparada na direção do el-
egante Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman, que ficava junto ao viaduto
do Chá, no endereço em que depois seria erguida a sede das indústrias
12/375
Matarazzo, hoje sede da Prefeitura da cidade. A Rôtisserie recebia o emin-
ente escritor e diplomata Graça Aranha, que retornava ao Brasil após al-
guns anos na Europa. Segundo o relato do pintor, Graça já tinha pulado
dos lençóis e bradava radiante: “É o Cosmos. O Cosmos!”. A cena deve ter
sido divertida — se realmente aconteceu. Em outra ocasião, Di afirmou
que apenas telefonou para o ilustre visitante. A versão cômica das
memórias parece corresponder à incontível vontade do pintor de fazer pi-
ada com as famosas elucubrações filosóficas do personagem, que pregava
a integração do espírito humano à unidade do cosmos.
Trinta anos mais velho que o desenhista carioca, Graça Aranha estava
em São Paulo naquele 27 de janeiro de 1922 para cuidar dos preparativos
de um festival de artes, música e literatura que se realizaria no Teatro
Municipal, intitulado Semana de Arte Moderna. Ele próprio faria a con-
ferência inaugural do evento, que prometia marcar época.
No domingo, dois dias depois do terremoto, o Correio Paulistano no-
ticiava que “diversos intelectuais de São Paulo e do Rio, devido à inici-
ativa do escritor Graça Aranha”, pretendiam apresentar no Municipal
uma demonstração do que haveria de “rigorosamente atual” no mundo
artístico, da escultura à literatura, passando pela música, pela arquitetura
e pela pintura. O programa transcorreria “de 11 a 18 de fevereiro próx-
imo” — e já se divulgava uma primeira lista de participantes.1
O time paulista seria representado pelos escritores Guilherme de Al-
meida, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade; pelo
escultor Victor Brecheret; e pela pintora Anita Malfatti, entre outros.
Tarsila do Amaral — não é demais lembrar — encontrava-se em Paris, e
não participaria da Semana.
Sinal dos tempos, os dois arquitetos da lista publicada pelo Correio
 Paulistano, Georg Przyrembel e Antônio Garcia Moya, eram,
13/375
respectivamente, polonês e espanhol; o pintor John Graz, suíço; o es-
cultor Wilhelm Haarberg, alemão; e Brecheret, embora “nosso”, um filho
da Itália.
Diante de nomes nem sempre conhecidos, a reportagem destacava a
presença, nas atividades musicais, de Guiomar Novaes, a grande celebrid-
ade paulista e nacional do piano, que nada tinha de modernista mas era
garantia de presença de público. O jornal ressaltava também a oportunid-
ade de São Paulo enfim conhecer o “extraordinário compositor brasileiro
 Villa-Lobos”, que chegaria com a caravana carioca, em companhia de po-
etas e artistas, como Ronald de Carvalho e Oswaldo Goeldi.
14/375
MÁRIO x CÂNDIDO
Um press release distribuído pelos organizadores e divulgado por alguns
órgãos da imprensa afirmava que a notícia da Semana fora recebida “com
um frêmito de curiosidade” nas rodas intelectuais e “altamente
mundanas” de São Paulo, o que seria natural, pois se tratava da primeira
tentativa de realizar no Brasil “um certame dessa natureza”. O texto
anunciava que o presidente do estado, Washington Luís (ainda não se
usava o termo “governador” naquele tempo), compareceria ao vernissage
da exposição, que aconteceria no saguão do teatro. Previam-se agora —
como de fato ocorreu — três apresentações, nos dias 13, 15 e 17 de fever-eiro — respectivamente segunda, quarta e sexta.
 A primeira delas seria dedicada à pintura e à escultura; a segunda, à
literatura, e a terceira à música. O comunicado prometia para breve um
programa mais detalhado e, no final, alertava: “Escusado será dizer que,
desde já, grande é a procura de bilhetes”.
No dia 3 de fevereiro, a Gazeta retornava ao assunto com uma nota in-
titulada “A semana futurista”. Na mesma linha do release, dizia que a
proposta vinha “agitando de tal forma o meio artístico e intelectual” que
ignorá-la seria dar provas de um parti pris incompatível com o progresso
da imprensa. O diário aproveitava a ocasião para apresentar um
15/375
colaborador, o poeta Mário de Andrade, que nas edições seguintes es-
creveria “em defesa da arte moderna”.
O articulista tinha, então, 29 anos incompletos, era autor de artigos
sobre música, literatura e arte e professor do Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo. Depois de uma estreia conservadora, seus primeir-
os versos modernistas já haviam sido divulgados pela imprensa e lidos em
rodas literárias, mas seu livro Pauliceia desvairada ainda estava por sair
— o que aconteceria alguns meses mais tarde.
Na Gazeta, Mário faria contraponto com os artigos de um jornalista
que escrevia sob o nome de Cândido e bombardeava, sem piedade, os pro-
fetas da nova estética. Por trás do pseudônimo voltairiano estava a figura
de Salisbury Galeão Coutinho. Tinha 25 anos e era natural de Curral del
Rey, hoje Belo Horizonte. Seu nome homenageava o primeiro-ministro do
Império Britânico. Começara a trabalhar em jornalismo na cidade de San-
tos, como redator da Tribuna, em 1915, de onde se transferiu para a Gaz-
eta, na capital — e lá fez carreira.
Cândido era um daqueles que, embora lidos e cultos — ou talvez por
isso mesmo —, não engoliam a pregação espalhafatosa do italiano Filippo
Tommaso Marinetti, líder do movimento futurista, que pretendia sub-
stituir a arte do passado por outra, moldada pelo mundo da velocidade e
da máquina. Em 1909, o italiano havia publicado seu manifesto beliger-
ante no jornal francês Le Figaro. “Até hoje a literatura tem exaltado a
imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento
agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto-mortal, a bofetada e o
murro”, dizia o texto, que glorificava a guerra — “única higiene do
mundo”. É da Itália, anunciava Marinetti, “que lançamos ao mundo este
manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos
nosso futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gan-
grena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários”.
16/375
O efeito foi explosivo. A expressão “futurismo” resumia um senti-
mento de época, e incendiou a imaginação de artistas e escritores dentro e
fora da Europa. A primeira exposição da nova corrente aconteceu em
Milão, em abril de 1911. Outra, realizada na galeria Bernheim-Jeune, em
Paris, em fevereiro de 1912, circulou depois pela Inglaterra, França e
Holanda, com impacto nos meios artísticos.
Na literatura, os futuristas lançaram o brado de “liberdade para as pa-
lavras”, sugerindo a exploração do design tipográfico da época, da lin-
guagem publicitária e da escrita fragmentada. Mas com a participação da
Itália na guerra o movimento se dispersou. O escultor Umberto Boccioni
foi morto, e o músico e pintor Luigi Russolo, seriamente ferido. Embora
continuasse a se autodenominar “futurista”, o círculo em torno de Mari-
netti, a partir de 1918, já não tinha o mesmo vigor e se aproximava da ca-
ricatura — e do fascismo.
Os modernistas de São Paulo, em especial Menotti del Picchia e
Oswald de Andrade, usavam habitualmente o termo “futurismo”, mas o
faziam em sentido elástico, para designar as propostas mais ou menos
renovadoras que se opunham às receitas “passadistas” e “acadêmicas”. A 
polarização futurismo × passadismo servia como tática retórica eficaz —
mas também simplificadora. Esse aspecto do discurso modernista, que se
apresentava como ruptura com o “velho”, acabava por atirar na lata de
lixo do “passadismo” manifestações variadas, às quais, diga-se, não raro
os próprios “novos” estavam atados.
O rótulo “futurista” gerava incompreensões e facilitava ataques por
sugerir subordinação à escola e às ideias de Marinetti. Por esse e outros
motivos, Mário de Andrade preferia, “bandeirantemente”, recusar em
público a batuta do vanguardista italiano.
Sendo assim, o novo colaborador da Gazeta, escalado para defender o
“futurismo”, começou por negar a filiação do grupo à corrente europeia.
17/375
Mário não queria que ele e seus colegas fossem associados ao credo “con-
traditório, embora às vezes admirável” de Marinetti. Os “rapazes mod-
ernistas”, como preferia vê-los chamados, desejavam apenas “ser atuais,
livres de cânones gastos, incapazes de objetivar com exatidão o ímpeto fe-
liz da modernidade”.
 A expressão “ímpeto feliz” vinha como um grito de frescor e juventude
em oposição à sisudez “passadista” e ao ambiente soturno dos anos an-
teriores, imposto pela guerra. Era um traço do movimento. Mário gostava
de citar a “mocidade alegre” e Oswald, alguns anos depois, em 1928, sen-
tenciaria no “Manifesto Antropófago”: “A alegria é a prova dos nove”.
O poeta de Pauliceia desvairada reconhecia em Cândido “firme e pro-
funda erudição” para fornecer a seus leitores “notícias exatas sobre a nova
e muitas vezes simpática renascença italiana”. O problema, a seu ver, era
que ele nada dizia sobre “a renascença paulista”, da qual a Semana dever-
ia ser “um divertido e porventura magnífico estalão”.2
Por sua vez, Cândido não economizava tinta com pilhérias. Desen-
 volto, apontava as incongruências que via no movimento italiano e fust-
igava a turma de Mário. Percebendo que as alianças se tornavam mais
amplas para as jornadas do Municipal, Cândido saía para o ataque.
 Alegava que teria partido de alguns dos próprios “rapazes modernistas” o
uso do termo “semana futurista” — que constava, aliás, do recibo de
aluguel do Municipal. Não seria, portanto, culpa sua se agora preferiam
chamar a festa de Semana de Arte Moderna, quem sabe com o propósito
de melhor acomodar, “num largo abraço, românticos, parnasianos, sim-
 bolistas e místicos”. Diante da amplitude da lista anunciada, Cândido
considerava que os “soi-disant futuristas de São Paulo” haviam caído,
“mais depressa do que se supunha, nos braços dos representantes de
ideais estéticos, se é que os têm, totalmente diversos dos seus”. E
sentenciava: “Acabou-se a intransigência dos primeiros tempos”.
18/375
MONUMENTOS DETONADOS
 A intransigência, na verdade, não se manifestara exatamente nos
“primeiros tempos”, ou seja, cinco ou seis anos antes da Semana, quando
um núcleo de jovens artistas, jornalistas e intelectuais, com ideias estétic-
as vagamente modernizantes, começou a se formar em São Paulo.
Naquela ocasião, os mais sectários eram justamente os que se opunham
às “aberrações” da arte moderna — caso do escritor e crítico Monteiro
Lobato, autor do célebre ataque à exposição de Anita Malfatti, em dezem-
 bro de 1917. Foi só a partir de 1920, 1921, que os moços “futuristas”,
sobretudo Oswald, Menotti e Mário, passaram a elevar o tom para insu-
flar na imprensa e em outras frentes a retórica contra o “passadismo” nas
artes.
Menotti, em 1922, tinha trinta anos, era autor de um famoso poema
“regionalista” intitulado Juca Mulato, e preparava o lançamento da nov-
ela O homem e a morte. Ganhava a vida como jornalista prestigiado, re-
sponsável pelas notas e editoriais políticos do Correio Paulistano, órgão
oficial do Partido Republicano Paulista (prp), que mandava e desmandava
na política brasileira. Despachava diretamente com Washington Luís, no
palácio dos Campos Elíseos. No mesmo jornal, com o pseudônimo Hélios,
assinava crônicas e artigos em defesa da renovação artística. Orgulhava-
se de ter convencido o futuro presidente da República, homem educado,
19/375
historiador, com interesses culturais, a permitir que o Correio apoiasse o
movimento modernista.
Oswald,o mais velho, que chegava aos 32 anos, era pai de um garoto
de oito, e figura conhecida nos meios jornalísticos, boêmios e intelectuais
de São Paulo e do Rio. Já havia comandado uma revista político-literária
modernizante e descontraída, chamada O Pirralho, e sua estreia em livro
datava de 1916, com as peças Mon coeur balance e Leur âme — tradicion-
almente escritas em francês, em parceria com o poeta Guilherme de Al-
meida. Filho único de família abastada, Oswald era sobrinho do
acadêmico Herculano Inglês de Sousa, radicado na capital federal, cidade
que ele visitava regularmente — e onde frequentava rodas de escritores
como Olavo Bilac, João do Rio e Emílio de Meneses.
Em 8 de fevereiro de 1922, a cinco dias da inauguração da festa,
Oswald iniciou no Jornal do Comércio uma série de artigos em que det-
onava alguns monumentos da cultura oficial e repisava argumentos que já
 vinha esgrimindo nos últimos anos. Desesperava-se com as defasagens do
meio artístico nacional — “haveremos de andar sempre 50 anos atrás dos
outros povos?” — e escarnecia dos “analfabetos letrados” que só com-
preendiam a pintura como cópia da realidade: “Qualquer imbecilzinho
saído da repartição em que trabalha durante o dia, pega um pincel, tintas,
 borra telas com intenções absolutamente fotográficas, e fica sendo
pintor”.
 Blagueur afiado, inteligência fulgurante, o jornalista e escritor pro-
movia os novos e fulminava medalhões, como o pintor Pedro Alexandrino
e o compositor Carlos Gomes. “Carlos Gomes é horrível, todos nós o sen-
timos desde pequeninos”, escreveu na véspera da Semana, num artigo
que causou indignação entre os muitos entusiastas do autor da ópera O
Guarani . Oswald dizia que, “de êxito em êxito, o nosso homem conseguiu
difamar o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de
20/375
cuia e vistoso espanador na cabeça, a berrar forças indômitas em cenários
terríveis”. Contra as patuscadas e a “cantarolice nefanda” do celebrado
compositor, o polemista apontava para Heitor Villa-Lobos, que em sua
opinião faria estalar, na Semana, o “nosso velho e caduco” ambiente
musical.
 Apesar das ambiguidades da programação da Semana, a linguagem de
Oswald era, como se vê, de provocação e ataque. Considerava impossível
naquele momento — como escreveu num de seus artigos — “refletir atit-
udes de serenidade”. Sentia-se em meio a um combate: “Somos boxeurs
na arena”, avisou.
21/375
2
 A COQUELUCHE DO GRAND MONDE 
 À direita, palacete que abrigava a sede
do elegante Automóvel Clube, do qual eram
sócios playboys e endinheirados de São Paulo,
entre os quais membros do comitê que
patrocinou a Semana de Arte Moderna.
23/375
Enquanto o pugilato estético entre “futuristas” e “passadistas” es-
quentava, a imprensa noticiava que, diante do “grande interesse desper-
tado” pela Semana, todas as frisas do Municipal já se achavam, dois dias
antes da abertura, “tomadas por distintas famílias de nossa melhor so-
ciedade”. Na véspera, um domingo, somente algumas “poucas poltronas”,
de acordo com o Correio Paulistano, poderiam ser adquiridas na sede do
 Automóvel Clube, localizada ao lado do hotel em que se hospedava Graça
 Aranha.
O clube era um ponto de convivência de milionários de São Paulo,
entre eles os integrantes do comitê patrocinador da Semana de Arte
Moderna. O grupo fora reunido sob a autoridade culta e empreendedora
de Paulo Prado, fazendeiro, empresário, escritor, ensaísta e colecionador
de arte. Paulo era neto da matriarca Veridiana Prado e filho do todo-po-
deroso conselheiro Antônio da Silva Prado (1840-1929), político influente
do Segundo Império e da República. Foi o prefeito que deu ares
“europeus” à São Paulo do começo do século e iniciou a construção do
Municipal.
 Ainda jovem, Paulo Prado conheceu Paris, onde se hospedou no
apartamento de seu tio Eduardo, que viveu na capital francesa e foi ín-
timo do escritor Eça de Queirós, a quem serviu de inspiração para o per-
sonagem Jacinto de Thormes, de A cidade e as serras. Paulo pertencia à
mesma geração de Graça Aranha, seu colaborador nos negócios e também
“cunhado informal” — pois o envolvente diplomata e filósofo do cosmos
mantinha longo caso extraconjugal com Nazareth Prado, sua irmã.
24/375
Como ocorria tradicionalmente em grandes espetáculos e exposições
paulistas, o grupo de notáveis patrocinaria o evento e obteria as adesões
necessárias para realizá-lo. A diferença em relação às iniciativas anteri-
ores era que a manifestação modernista não correspondia ao gosto major-
itário da burguesia local. Paulo Prado era, quanto a isso, uma avis rara.
Seus pares grã-finos, em matéria de arte, mantinham-se quase todos
“passadistas” — e só seu prestígio poderia tê-los atraído para a
empreitada.
O comitê, coordenado pelo aristocrático René Thiollier, era formado
por Alberto Penteado, Numa de Oliveira, Alfredo Pujol, Edgard Con-
ceição, Oscar Rodrigues Alves, Armando Penteado, Antônio Prado Júnior,
José Carlos de Macedo Soares e Martinho Prado — além do próprio Paulo
Prado.
Eram nomes conhecidos, ligados a famílias endinheiradas, alguns ho-
mens de letras, com presença no circuito cultural da cidade, como Alfredo
Pujol (1865-1930), que ajudava a bancar a Semana, sendo, não obstante,
um “imortal” da Academia Brasileira de Letras. Estudante da Faculdade
de Direito de São Paulo, Pujol foi colega de Olavo Bilac e do poeta, sen-
ador e mecenas Freitas Valle, com quem fundou o Clube dos xiii, um dos
grêmios estudantis da faculdade, inspirado nos mandamentos liberal-
democráticos da maçonaria.
Depois de formado, Pujol trabalhou em jornais e elegeu-se deputado
pelo Partido Republicano Paulista. Em 1895, foi nomeado secretário do
Interior do Estado, no governo de Bernardino José de Campos. Na década
de 1910, dedicou-se à advocacia, apoiou eventos variados em São Paulo e
realizou entre 1915 e 1917, na Sociedade de Cultura Artística, sete confer-
ências sobre Machado de Assis. Em 1917, logo depois de publicá-las, foi
25/375
eleito para a Academia, passando a ocupar a cadeira 23, que pertencera ao
autor de Dom Casmurro.
Mais descontraído e esportivo, Antônio Prado Júnior (1880-1955),
irmão mais novo de Paulo, liderou a fundação do Automóvel Clube, mas
também presidiu o Athlético Paulistano, onde disputava competições de
ciclismo, jogava futebol e praticava tênis. Amigo, desde jovem, de Santos
Dumont, ia sempre a Paris e adorava automobilismo. Em abril de 1908,
Prado Júnior promoveu com colegas um pioneiro raid de automóveis em
São Paulo. O grupo, que se autodenominava a “caravana de bandeirantes
sobre rodas de borracha”, percorreu o trecho da capital a Santos em 37
horas. Paulo Prado também participou do desafio, mas seu carro quebrou
no caminho.
O feito, que entusiasmou a cidade, serviu de impulso para o surgi-
mento do clube.
 A reunião de nomes tão respeitáveis — e ao mesmo tempo alheios à
movimentação modernista — no patrocínio da Semana não passaria des-
percebida pelo sarcasmo de Cândido, que comparou o grupo de bacanas
aos seguidores de Cristo, a pregar a Verdade Suprema da arte do futuro:
“Homens de boas intenções, os doze apóstolos, armados de bisturi, esvur-
marão as mazelas da literatura e da arte. Diante do brilho do seu estilo e
das verdades que serão ditas, ruirá por terra todo o edifício levantado
pelas gerações anteriores e os representantes da velha arte”…
Os nomes divulgados pela imprensa, entretanto, somavam onze — e
não doze. É possível que Cândido incluísse Graça Aranha na lista — ou o
governador Washington Luís.3 Se os rapazes modernistas aceitavam di-
 vidir o palco com a pianista Guiomar Novaes, o quadro nos bastidores
parecia igualmente dúbio — pois quem bancava o show era a fina flor da
oligarquia cafeeira. Para Cândido, não precisava mais nada. Estava ex-
posto o caráter farsesco da pretensa vanguarda e do espetáculo que se
26/375
prometia apresentar no Municipal: “E depois venham dizer que o futur-
ismo é uma coisa séria, coisa, aliás, que nem os seus próprios apologistas
acreditam”.
27/375
LAÇOS TRADICIONAISEm que pese a alta voltagem retórica, inevitável em momentos de embate,
os laços dos nossos “futuristas” com a tradição eram inegáveis. Vinham
de berço, de extração social, de amizades e de formação.
Quase todos pertenciam a famílias ricas ou influentes e se rela-
cionavam com artistas, escritores e personalidades “passadistas”.
Educaram-se à europeia, aprenderam línguas e frequentaram boas
escolas. Liam revistas estrangeiras, e alguns conheciam a Europa e os
Estados Unidos. Eram pessoas vinculadas aos extratos mais afortunados
e cultos da grande cidade emergente do Brasil daquele momento.
“Éramos os playboys intelectuais de 1922”, resumiria Guilherme de Al-
meida, em 62, ao Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
Em relação às obras até então produzidas, boa parte delas se subor-
dinava a preceitos mais ou menos convencionais. O sugestivo paralelo
entre o tremor de terra que chacoalhou a madrugada dos paulistanos e o
“terremoto estético” da Semana — imagem que foi usada por Oswald de
 Andrade e Menotti del Picchia — deve ser visto com uma dose de cautela.
Se, em algumas versões, tenta-se negar reconhecimento e importância às
apresentações de 1922, em outras tem-se a impressão de que teria ocor-
rido no Municipal uma espécie de insurreição bolchevique contra o status
quo cultural, liderada pela vanguarda revolucionária das artes paulistas.
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 A geologia ensina que abalos sísmicos no Brasil não são provocados
por choques entre placas tectônicas, mas por rachaduras de uma mesma
placa — a Sul-Americana, sobre a qual repousa o país. Assim parece ter
acontecido com o “terremoto” da Semana, uma rumorosa acomodação de
atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo. Se havia neg-
ação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda
ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia com-
 binar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização
histórica e hegemonia intelectual.
 A exaltação da paulistanidade, muitas vezes com constrangedor ufan-
ismo, sempre esteve presente no discurso e na propaganda dos rapazes
modernistas. Num dos artigos da série para o Jornal do Comércio, por
exemplo, Oswald insistia na tecla da vocação transformadora da cidade:
“Como Roma primitiva, criada nos cadinhos aventureiros, com o sangue
despótico de todos os sem-pátria”, a capital do café, “cosmopolita e
 vibrante”, prestava-se, em sua opinião, “como poucas cidades da
 América” a acompanhar a renovação que se anunciava nas letras, nas
artes e na música. A Pauliceia — exultava o poeta — merecia “a glória de
abrigar os portadores da nova luz” do século xx, que exigia “uma maneira
nova de expressão estética”.4
Na mesma linha, no Correio, Menotti saudava, por aqueles dias, o
“neobrasileiro de São Paulo”, caldeado “sob este sol de trópico com o
sangue de cem raças”. Desse tipo humano extraordinário, argumentava
ele, só poderia se esperar uma arte “fatalmente nervosa e dinâmica”. O es-
tado bandeirante, já o “berço de um futurismo racial, industrial e econ-
ômico”, estava pronto para se consagrar como “berço do futurismo
cultural”.
Também na Gazeta, apesar das críticas de Cândido, São Paulo falou
mais alto no dia da inauguração. Um texto na coluna “Notas de Arte”, no
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dia 13 de fevereiro, anunciava que um grupo de moços, “namorados da
sinceridade”, apresentaria naquela noite as novas orientações da arte
numa “manifestação de força coletiva, única na América do Sul”. O
pequeno artigo ponderava que “mesmo aqueles que seguem caminho di-
 verso” poderiam sentir-se satisfeitos de ver que a São Paulo cabia “a
primazia desta manifestação”. E isso era justo, pois “as artes florescem
sempre nas terras que apresentam um apogeu de progresso e civilização”
e não naquelas “inertes e decadentes”. O que parecia uma “indireta” para
o Rio logo se explicitava em todas as letras: “A hegemonia da Corte não
existe mais. No comércio como no futebol, na riqueza como nas artes São
Paulo caminha na frente”. E parecia fácil demonstrar isso:
Quem primeiro manifestou a ideia moderna e brasileira de ar-
quitetura? São Paulo com o estilo colonial. Quem manifestou primeiro
o desejo de construir sobre novas bases a pintura? São Paulo com An-
ita Malfatti. Quem apresenta ao mundo o maior e moderno escultor da
 América do Sul? São Paulo com Brecheret. Onde primeiro a poesia se
tornou o veículo da sensibilidade moderna livre da guizalhada da rima
e das correias da métrica? Em São Paulo.
No final, o Rio merecia uma única concessão. Estaria “mais adi-
antado” na música, com Villa-Lobos.
Se a Semana de Arte Moderna foi o marco inicial da trajetória de in-
stitucionalização do modernismo como escola oficial no país, foi também
um primeiro ponto de chegada para a maioria daqueles escritores e artis-
tas. Eles viam-se, enfim, convidados a brilhar na grande ribalta de São
Paulo, que promovia, não por acaso no simbólico ano do Centenário da
Independência, uma conveniente demonstração pública de arrojo e
cosmopolitismo.
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Tiago Fagundes
Como assinalou Menotti del Picchia, para surpresa de muitos, os “fu-
turistas” se tornavam, naquele início de 1922, “a coqueluche do nosso
grand monde”.5
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3
O VERNISSAGE 
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Catálogo com as atrações da exposição
de arte realizada no saguão do Teatro
Municipal. O desenho de abertura
é de Di Cavalcanti, também responsável pela
imagem da capa do programa da Semana.
O grand monde paulista respondeu ao chamado dos respeitáveis
sobrenomes do comitê patrocinador e compareceu ao Municipal, que se
iluminou na noite de 13 de fevereiro para a inauguração da Semana de
 Arte Moderna. Depois de um dia abafado, com os termômetros por volta
dos 28 graus, a temperatura recuava a patamares mais amenos quando os
automóveis começaram a chegar com homens em ternos, coletes e
gravatas e mulheres em presumíveis saltos altos, meias claras e vestidos
soltos, com comprimentos que se afastavam cautelosamente dos
tornozelos.
 Alguns jornais do dia refrescaram a memória de seus leitores com not-
as sobre a abertura do evento e ressaltaram a liderança de Graça Aranha,
que, nas palavras do Jornal do Comércio, achava-se “à frente dessa inici-
ativa que pretende fazer uma completa demonstração das nossas mod-
ernas correntes estéticas”.
Graça abriria a noite com uma conferência sobre “A Emoção Estética
na Arte Moderna”, ilustrada por músicas executadas pelo pianista Ernani
Braga e poemas declamados por Ronald de Carvalho e Guilherme de Al-
meida. A seguir seriam apresentadas peças de Villa-Lobos. Na segunda
parte, Ronald voltaria ao palco para falar sobre “A Pintura e a Escultura
Moderna no Brasil”, e uma nova seção musical, também com obras do
compositor carioca, fecharia o programa.
Mas, antes de tudo isso, aconteceria no saguão do teatro, a partir das
“20 e meia horas”,6 o vernissage de uma grande exposição “futurista”.
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Governador, secretários, senhoras e senhores de “distintas famílias”, além
de artistas, intelectuais, profissionais liberais e estudantes, que acorreram
à noite de estreia, poderiam contemplar cerca de cem obras de arte — de
óleos e esculturas a croquis e maquetes de projetos arquitetônicos.
Distribuíam-se em painéis e bases que antecediam e secundavam a es-
cadaria interna.
De frente para a entrada, à direita de quem chegasse, saltava aos olhos
um conjunto de doze pinturas e oito peças — gravuras, desenhos e pastéis
— de autoria de Anita Malfatti.7 A pintora decidira incluir em sua seleção
alguns trabalhos mais recentes, mas eles serviam apenas para ressaltar as
 verdadeiras pièces de résistance reservadas para a ocasião: uma coleção
de telas exibidas em 1917, numa famosa e polêmica mostra que despertou
gargalhadas epifânicas do jovem parnasiano Mário de Andrade e a dura
reprovação do escritor e crítico “naturalista” Monteiro Lobato, num artigo
publicado na edição vespertina do Estado de S. Paulo.
 Ali estavam mais uma vez aos olhos de São Paulo A mulher de cabelos
verdes,A estudante russa, O homem amarelo, A onda, A ventania, O ja-
 ponês e Rochedos — obras que permaneceram como algumas das mel-
hores de Anita e do modernismo brasileiro. Entre os desenhos e as
gravuras, chamava atenção um nu masculino, gênero que a artista re-
lutava em exibir. Intitulado O homem de sete cores, era feito a carvão e
pastel, com colorido fauve, torções anatômicas e folhagens tropicais
estilizadas.
Com todos os recuos e derivas por que passara a artista nos anos an-
teriores, seu nome continuava associado, na cidade, às “aberrações” da
arte moderna. Cinco anos depois de despertar a fúria de Lobato, as pin-
turas de Anita ainda eram observadas por alguns com o misto de fascínio
e aversão que provocam certas atrações circenses. Para desprezá-las ou
não, o fato é que todos no Municipal queriam vê-las.
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 A sra. Renata Crespi, por exemplo. Filha do empresário italiano
Rodolfo Crespi, dono da maior tecelagem do estado, casada com Fábio
Prado, primo de Paulo Prado, estava ali, no saguão, diante daquelas “de-
formações” coloridas, sem saber direito o que pensar. A seu lado,
fazendo-se de guia, um atencioso Menotti del Picchia. “Não estaria torto
aquele retrato?”, perguntou-lhe a amiga. O escritor refletiu alguns in-
stantes e respondeu com bom humor: o quadro — disse ele — fora realiz-
ado sob os efeitos do famigerado terremoto de final de janeiro. Essa a
razão de seu estilo um tanto trepidante, que ressaltava o caráter
“dinâmico” da pintura. “O senhor está brincando”, duvidou a senhora.
“Não”, garantiu ele — e insistiu na história da “dinamização” que o artista
moderno pretendia imprimir em suas criações.8
Se deixassem para trás os quadros de Anita e caminhassem pelo
centro do saguão, na direção da escada, Menotti e sua acompanhante
 veriam, à esquerda, dez desenhos e pastéis de Di Cavalcanti, em compan-
hia de duas telas — Ao pé da cruz e Retrato. O jovem carioca apenas ini-
ciava sua travessia da ilustração e do desenho para os pincéis. Não era
ainda o famoso pintor de mulheres e cenas brasileiras, que só começaria a
se delinear a partir de 1923, quando foi passar uma temporada em Paris.
Como definiu Mário de Andrade, na dedicatória de um exemplar de
 Pauliceia desvairada, Di era, em 1922, o “menestrel de tons velados” —
autor de imagens muitas vezes envoltas em atmosfera fin de siècle. Era o
que se via muito bem no clima penumbrista que cercava os dois barbudos
do pastel Boêmios, uma obra de 1921, comprada pelo senador Freitas
 Valle — hoje no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Dois meses depois da Semana, em 15 de abril de 1922, a revista belga
 Lumière, que existiu entre 1919 e 1923, na Antuérpia, publicaria um
comentário do poeta e crítico Sérgio Milliet acerca da mostra. Sobre Di,
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
cujas obras mais recentes seriam “muito pessoais e modernas”, Milliet
considerava que havia errado ao escolher trabalhos que pertenceriam
ainda “à velha pintura”. Na sua visão, eram telas “mais ou menos impres-
sionistas, seja pela fatura seja pela própria interpretação do tema”.
 As hesitações e inquietações do artista carioca eram típicas do mo-
mento por que passava sua geração — uma época em que as obras pare-
ciam farejar novidades, sem no entanto tê-las encontrado. Era flagrante a
defasagem entre o que se mostrava e o que se dizia no inflamado discurso
“futurista” dos principais propagandistas e teóricos do grupo. Quase tudo
que se levava ao Municipal naquela celebração de arte moderna eram ex-
perimentações que, ora mais, ora menos, se apoiavam em estilos do final
do século xix, como o art nouveau, o simbolismo ou o impressionismo.
Di também expôs no saguão do Municipal desenhos concebidos para
um livro. Tratava-se provavelmente de Os fantoches da meia-noite, que
lançava por aquela época, embora em depoimento à pesquisadora e crít-
ica Aracy Amaral o artista tenha manifestado a possibilidade de que
fossem ilustrações para a edição de Dança das horas, de Guilherme de
 Almeida.
Depois de percorrer as obras de Anita e Di Cavalcanti, Menotti, nesse
tour imaginário em companhia da sra. Crespi, estava possivelmente ansi-
oso para chegar às esculturas de Victor Brecheret, o “Rodin brasileiro”,
que tanto o entusiasmava. Estavam dispostas à direita do saguão, mais ao
fundo, próximas à lateral da escada. O artista não se encontrava em São
Paulo. Havia embarcado, em 1921, para Paris, contemplado com uma
 bolsa do Pensionato Artístico do Estado — que Anita Malfatti também
queria receber.
 As peças escolhidas para representá-lo eram possantes e bem realiza-
das. Nas palavras de Milliet, em texto para a revista belga  Lumière,
tratava-se de “um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de
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Tiago Fagundes
suceder a Rodin e a Bourdelle”.9 Suas esculturas fugiam do ramerrão
acadêmico afrancesado, mas, como as obras de Di, não apresentavam
nenhuma solução mais radical. Eram trabalhos “de transição”, a maior
parte concluída até 1920 — caso de Pietà, Ídolo, Vitória, Gênio e da
Cabeça de Cristo, que enlouqueceu Mário de Andrade nesse mesmo ano.
Enquanto Anita, Brecheret e Di formavam a comissão de frente do
grupo de São Paulo, o pernambucano Vicente do Rego Monteiro e a
mineira Zina Aita vinham com a turma do Rio. Ele, que se fixara por al-
guns anos na capital federal, estava, naquele momento, de volta a Paris.
Os trabalhos expostos em São Paulo tinham sido produzidos na tem-
porada carioca — e pertenciam ao poeta e diplomata Ronald de Carvalho.
Eram dez, dos quais três retratos, um deles do próprio colecionador.
Sinal do interesse de Rego Monteiro pelos ismos europeus, duas de
suas telas intitulavam-se Cubismo. Outra, Cabeças negras, unia a técnica
pontilhista à temática brasileira, uma das predileções do artista. Certa-
mente pareceria estranha ou “desfocada” a olhares fotográficos como os
da sra. Crespi. Milliet dividiu a seleção de Rego Monteiro em duas ver-
tentes — uma com características impressionistas e outra com traços cu-
 bistas, que marcavam “a evolução do pintor em direção à pintura
intelectual”.
Zina Aita, nascida em Belo Horizonte, era filha de família italiana e,
depois de estudos em Florença, conheceu, no Rio, Ronald e Manuel
Bandeira — que teriam sugerido seu nome para a Semana. Entre as obras
que exibiu, talvez a única hoje conhecida seja Petrópolis (ou Trabal-
hadores), que Aracy Amaral, pela temática, considera possível tratar-se
de A sombra, título mencionado no catálogo ao lado de outros sete da
artista. O trabalho, na opinião da pesquisadora, seria um dos “mais
avançados” da exposição — embora Zina Aita também produzisse naquele
tempo aquarelas “passadistas”.
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Tiago Fagundes
 Petrópolis — ou A sombra — fez parte de uma individual da pintora
realizada no espaço da livraria O Livro, de Jacinto Silva, em março de
1922, na sequência da Semana. Foi adquirida por Yan de Almeida Prado,
para quem Zina Aita teria sido a “melhor” da mostra de pintura. A opinião
de Milliet difere da de Almeida Prado. Para ele Anita Malfatti mostrou o
que havia de melhor na exposição. Zina Aita pareceu-lhe “mais bizarra
que original”.
Completavam o grupo do Rio o obscuro desenhista Alberto Martins
Ribeiro e o escultor Hildegardo Leão Velloso. Graças a depoimentos de
participantes da Semana colhidos por Aracy Amaral, sabe-se que Martins
Ribeiro teria sido um talento promissor — mas, nas palavras de Renato
 Almeida, “não se desenvolveu”. Segundo Di, “fazia uns retratos, desenhos
de cabeça, de imaginação”. Morreu jovem, ao que parece, na Itália.
Quanto ao segundo, neto de senador do Império e aluno dos irmãos
Henrique e Rodolfo Bernardelli, foi citado na imprensa como um dos par-
ticipantes, embora seu nome não apareça no catálogo. Leão Velloso
notabilizou-se por obras convencionais — monumentos e bustos em hom-
enagem a vultos como Rui Barbosa, almirante Tamandaré e general
Osório. Assim como Martins Ribeiro, pouco parece ter influído na
evolução do movimento renovador que florescia na época.
Um caso duvidoso — e mais interessante,pela qualidade do artista — é
o de Oswaldo Goeldi (1895-1961), carioca, filho do cientista Emílio
 Augusto Goeldi. Sua primeira exposição foi em 1917, em Berna, capital da
Suíça, país onde viveu dos seis aos 24 anos. Voltou ao Brasil em 1919, tra-
 balhou como ilustrador e, em 21, expôs no saguão do Liceu de Artes e Ofí-
cios do Rio.
Com exceção de menções na imprensa à primeira lista de parti-
cipantes, não há registro sobre a presença do grande gravurista na
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Semana. Questionada a respeito, Aracy Amaral, que teve oportunidade de
ouvir o depoimento de veteranos da exposição, considera que o artista
“não participou”.10
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BORRÕES VANGUARDISTAS
Três outros paulistas exibiram trabalhos na assim designada mostra de
“pintura” — os ilustradores Ferrignac, Yan de Almeida Prado e Antonio
Paim Vieira.
Ferrignac, pseudônimo de Ignácio da Costa Ferreira (1892-1958), per-
tencia à turma que se divertia na garçonnière de Oswald de Andrade, na
rua Líbero Badaró, no final da década de 1910. Deixou várias caricaturas
no livro-diário daqueles encontros — O perfeito cozinheiro das almas
deste mundo… — e colaborou em revistas como Vida Moderna e O Pir-
ralho. Seu trabalho na Semana denominava-se Natureza dadaísta.
O título era provocativo, mas a obra se perdeu. Não há como saber se
realmente correspondia ao vanguardismo anunciado ou se a alusão ao
movimento dadá era só para inglês — no caso, paulista — ver. De
qualquer forma, em seu artigo para a Lumière, Milliet situou o desenho
na “extrema esquerda do movimento paulista”. O rótulo pode eventual-
mente corresponder a essa enigmática Natureza dadaísta, mas não se ap-
lica à trajetória do ilustrador — que, aliás, acabou deixando a arte para
trabalhar na polícia.
Já Yan de Almeida Prado e Paim Vieira sempre insistiram na versão
de que nada tinham de modernistas. Teriam se juntado à mostra por pura
gozação. O primeiro, desenhista esporádico, que se tornaria historiador e
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 bibliófilo, chegou a colaborar na revista Klaxon, mas se desentendeu com
o grupo e se transformou num crítico obstinado da Semana, para ele um
acontecimento sem importância, cuja notoriedade se deveu exclusiva-
mente ao esforço promocional — que de fato existiu — de alguns de seus
participantes, em especial Oswald e Mário de Andrade.11
O nome de Yan de Almeida Prado aparecia no catálogo da exposição
como autor de “dois desenhos”. O de Paim Vieira não era citado. Tratava-
se, entretanto, de conhecido desenhista e artista gráfico, que fizera as
ilustrações do poema As máscaras, lançado em 1921 por Menotti del Pic-
chia. No período de 1923 e 1924 seria também responsável pelo visual re-
finado da revista Ariel .
Os depoimentos de ambos não deixam dúvidas sobre a parceria. Al-
meida Prado declarou ter sido convidado por membros do comitê patro-
cinador — como Alfredo Pujol e o próprio Thiollier. Por comodismo teria
pedido ajuda a Paim Vieira, “que já tinha tudo pronto” — tintas, papel,
crayon, verniz e “até caixilhos”.
Em entrevista para o mis-sp em 1971, Paim contou que ele e o amigo
acharam “muita graça” quando souberam da organização da Semana, e
resolveram entrar no evento “de gaiatos”. Teriam apanhado pedaços de
cartolina e esboçado rapidamente algumas figuras, entregues por Almeida
Prado a Thiollier, “que recebia os últimos trabalhos”.
•
Em esquecido — e surpreendente — testemunho, no livro A longa
viagem Menotti afirma que algumas obras teriam sido improvisadas para
reforçar a exposição.12 Como o grupo de artistas era “minguado”, dizia
ele, “tivemos que nós mesmos borrar às pressas mais algumas telas”. O
escritor não menciona a dupla Paim Vieira e Almeida Prado, tampouco
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revela quem seriam as pessoas incluídas nesse genérico “nós mesmos”.
 Apenas diz que “telas ultraístas” foram “besuntadas a esmo”. Além de ser-
 vir para ampliar a mostra, “essa mistificação consciente”, segundo
Menotti, teria o significado de um “protesto contra o meloso e já de-
crépito academismo”.
Embora o catálogo mencione duas, Almeida Prado diz ter pendurado
três obras no “tabique” ao fundo do saguão, do lado esquerdo da entrada.
Os títulos faziam jus ao espírito brincalhão: La faune rassasié, Une
anglaise m’a dit e Galpollinaire.
Entre os estrangeiros adotados pela Semana, sobressaía, na pintura, o
suíço John Graz, artista que depois se dedicaria a projetos de interiores,
mantendo-se ligado à história do modernismo paulista. Em 1922, no ent-
anto, Graz era ainda um pintor estrangeiro casado com uma artista
 brasileira, Regina Gomide. Seus oito quadros a óleo, dispostos à es-
querda, próximos aos de Anita, tinham sido todos trazidos da Europa.
Com trinta anos na época, Graz fora aluno da Escola de Belas-Artes de
Genebra e de um curso de gráfica publicitária em Munique. Conheceu Re-
gina, filha do pintor Antonio Gomide, na Suíça. Em São Paulo, em 1920,
os dois promoveram uma exposição. Oswald de Andrade compareceu,
gostou do que viu e adquiriu uma obra de John Graz. Pagou com um ter-
reno em Pinheiros — onde o casal construiu sua residência.13 Milliet
destacou o “colorido vigoroso” das telas do pintor, “de um simbolismo
místico simples, duro, ingênuo”, que revelaria a influência de seu conter-
râneo Ferdinand Hodler (1895-1918), ligado ao art nouveau.
Mais episódica na história da arte brasileira foi a presença do alemão
 Wilhem Haarberg, autor de esculturas de pequenas dimensões, cuja par-
ticipação na Semana se deve a Mário de Andrade. Ferido na guerra, com
um tiro no maxilar, Haarberg (1891-1986) deixou o serviço militar e,
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
terminado o conflito, mudou-se para São Paulo em 1920. Em 1921,
começou a dar aulas de arte na Escola Alemã, quando conheceu o poeta.
Correspondência guardada no acervo do Instituto de Estudos
Brasileiros, na Universidade de São Paulo, atesta a existência de uma re-
lação cordial entre os dois — que durou anos. São bilhetes datados de
fevereiro de 1922 e escritos em alemão, idioma que Mário começara a
estudar em 18. Num deles, o escultor dizia ter tomado conhecimento pelo
 Estado de S. Paulo de sua participação numa “semana de arte brasileira”
e pedia esclarecimentos: “Gostaria de cordialmente perguntar se o senhor
poderia me dar maiores informações a respeito”. Para tanto, Haarberg
convidava o amigo a visitá-lo — e à sua esposa — em sua residência, na
rua Tamandaré, 70.14
O catálogo da Semana registra cinco obras de Haarberg, sendo duas
delas intituladas Mãe e filho — em madeira. Sobre o artista alemão, Mil-
liet foi lacônico, mas positivo — “um escultor bastante jovem e a quem
não falta talento”.
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
 ARQUITETURA POSSÍVEL
Em meio às pinturas, pastéis, desenhos e esculturas, coube a Antônio
Garcia Moya e a Georg Przyrembel defender no Municipal o que haveria
de “mais atual” em arquitetura. A peça mais vistosa estava à mostra no
meio do saguão, diante da escadaria: a maquete de um projeto de
Przyrembel para uma casa de veraneio de sua família — a Taperinha —,
na Praia Grande, litoral norte paulista. Era um misto de estilo francês e
elementos inspirados no colonial brasileiro.
O arquiteto, nascido na Polônia em 1885, chegara ao Brasil por volta
de 1912-13, já próximo dos trinta anos. Interessou-se pelo passado do
país, foi a Minas ver o barroco, e adotou, à sua maneira, o chamado “colo-
nial”. Era um estilo híbrido, mas prestigiado pelos modernistas, por ser
uma tentativa de escapar da “cópia” europeia e dos delirantes “aleijões ar-
quitetônicos” que, nas palavras de Manuel Bandeira, enfeavam a avenida
 Atlântica do Rio — e outras vias de cidades brasileiras. O mau gosto, no
entendimento do poeta, atingira tal proporção que o retorno a padrões in-
spirados no passado colonial surgia como louvável opção.
Mário de Andrade também se preocupava com o assunto. Um dos só-
cios fundadores da Sociedade de Cultura Artística, estava ele, em 1914, na
plateia que prestigiou a conferência do arquiteto portuguêsRicardo
Severo, com o tema “A Arte Tradicional Brasileira: a Casa e o Templo”.
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Severo, em sintonia com o nacionalismo que pipocava em todas as áreas,
dava início a uma campanha pela busca de raízes “nossas” na arquitetura.
O modernismo arquitetônico, contudo, só apareceria mesmo no Brasil em
1927, quando Gregori Warchavchik construiu sua casa no bairro da Vila
Mariana, em São Paulo. A conferência de Severo incentivou Mário a visit-
ar Minas, em junho de 1919, para preparar conferências e artigos sobre
arquitetura e arte religiosa. Dois anos antes da Semana, o poeta publicou
quatro ensaios sobre o tema na Revista do Brasil .
Diferentes do colonial afrancesado de Przyrembel, os croquis e desen-
hos de Moya demonstravam apreço pelas estruturas geométricas e evoc-
avam construções ibéricas, orientais e pré-colombianas. Eram mais
ficções que projetos propriamente ditos. O mérito residia justamente
nesse exercício imaginoso, cujas formas destoavam dos padrões con-
hecidos. O espanhol, que se mudara ainda criança para São Paulo,
tornou-se amigo de Brecheret, ilustrou Pauliceia desvairada e trabalhou
com Jorge Krug, tio de Anita Malfatti; mais tarde, associou-se a Guilher-
me, irmão da pintora.
 A representação arquitetônica na Semana e o interesse dos modernis-
tas pelo assunto pareciam não dar muita atenção ao que se passava nas
grandes cidades dos Estados Unidos, onde se erguiam os arranha-céus do
novo século. Talvez fosse um sinal da “eurodependência” do ambiente
cultural. Mas, ainda assim, em 1916 Vicente Licínio Cardoso apresentou
no Rio, conforme Aracy Amaral, uma conferência a respeito do tema, sem
repercussão entre os paulistas.15
•
 Anita Malfatti foi, sem dúvida, a celebridade da exposição de arte da
Semana, que lhe reservou, em reconhecimento ao pioneirismo, a maior
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
participação individual. Embora não tenha se sentido vítima de “nenhum
insulto direto”, Anita descobriu bilhetinhos ofensivos presos no verso de
suas telas. E houve quem repetisse na imprensa, com sabor de farsa, a
retórica de Lobato. Num artigo publicado ao mesmo tempo na revista Ci-
garra e na Folha da Noite, em 15 de fevereiro, o jornalista Mário Pinto
Serva (1881-1962) repisava a ideia de que a estética futurista deveria “ser
estudada como fenômeno de patologia mental”.
Para o articulista, as manifestações “extravagantes” da arte moderna
seriam fruto de “um verdadeiro estado mórbido” de certos espíritos.
Explicava:
 A pressa de aparecer, o prurido de destaque a todo transe, o desejo in-
contido de chamar a atenção, sem estudo, sem trabalho paciente,
desde logo, de afogadilho, a ingenuidade de certos espíritos de-
sprovidos de qualquer preparo, o desequilíbrio de alguns cérebros, o
 verdor da mocidade, tais são, entre outros, os principais móveis que
determinaram o futurismo e caracterizaram os adeptos dessa escola.
Embora em regra ignorante, todo artista futurista — prosseguia o jor-
nalista — se julgaria mil vezes superior a Dante, Goethe, Shakespeare,
 Victor Hugo e Beethoven, guardando “o mais soberano desdém” por to-
dos eles.
 Anita não deu bola para o ataque. Divertiu-se com os bilhetinhos e as
reações contrárias. A seu ver, daquela vez o saldo era positivo. Sentiu-se
lisonjeada quando o pai de Paulo Prado e sogro da sra. Crespi, o lendário
conselheiro Antônio da Silva Prado, em meio ao burburinho do vernis-
sage, quis comprar O homem amarelo. O problema é que o quadro já es-
tava reservado para Mário de Andrade, desde 1917, quando lhe causou, à
primeira vista, fortíssima impressão. De qualquer forma, o interesse
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
demonstrado por figura tão respeitada, verdadeiro monumento paulista,
indicava que as mentalidades mais tradicionais e suas coleções
começavam a se abrir à arte moderna.
Numa conferência realizada em 1951, na Pinacoteca do Estado, Anita
recordou-se, com orgulho, desse episódio. Se o conselheiro se interessou
em adquirir uma obra como aquela, era sinal de que a “plantinha havia
 vingado”.
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Tiago Fagundes
4
 AS CORES DA NOVIDADE
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 Anita Malfatti em novembro de 1914,
pouco antes de completar 25 anos;
a pintora, que nasceu em dezembro de 1889
e morreu em novembro de 1964, passou parte
de sua vida em Berlim, Nova York e Paris.
 Anita Catarina Malfatti nasceu pouco depois da Proclamação da
República, na segunda-feira 2 de dezembro de 1889, em São Paulo. Os
pais, Samuel Malfatti, imigrante italiano, e Eleonora Elizabeth Krug, des-
cendente de alemães e de norte-americanos, já tinham um garoto de dois
anos chamado Alexandre. A família morava na Florêncio de Abreu, uma
 via cruzada por bondes puxados a burro, onde se erguiam estabelecimen-
tos comerciais e residenciais, alguns deles numa mesma construção — o
negócio no térreo, a moradia no piso superior. A rua, que existe até hoje,
ligava o centro de São Paulo à região da Luz. Ali se localizava um dos mais
concorridos pontos de lazer da cidade, o Jardim Público, com lago, cha-
fariz, cisnes e seriemas, próximo à estação ferroviária, ainda sem o
famoso edifício inglês, importado parafuso por parafuso da Europa e in-
augurado em 1901.
 Ao que se sabe, o republicano Samuel abandonou a Itália por im-
posição do pai, depois de ter enfrentado problemas políticos. Expulso da
Universidade de Pisa, tão logo conseguiu se formar, em Bolonha, foi des-
pachado para a Argentina, onde trabalhou na construção de ferrovias. Em
meados da década de 1880, transferiu-se para Campinas, a capital agrí-
cola da então Província de São Paulo, que crescia com os cafezais.
Foi lá que Samuel conheceu sua futura mulher. Bety, como os mais
próximos a chamavam, era filha do alemão Guilherme Krug, também lig-
ado ao ramo da construção civil. Ele mudou-se para o Brasil aos dezessete
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anos, no início da década de 1850, em companhia do pai. Mas logo partiu
para os Estados Unidos.
Na Califórnia do Velho Oeste, conheceu Amélia Catarina Bailey, a avó
de Anita, uma mestiça com sangue de pele-vermelha. Casaram-se e
 viveram em Fresno, onde nasceu Bety. Pouco depois, a família mudou-se
para Campinas e, a seguir, para São Paulo, fugindo de uma epidemia de
febre amarela.
Feliz com a chegada da filha naquele final de 1889, o casal Malfatti foi
colhido por um imprevisto. A menina nascera com a mão direita
defeituosa.
 Aflito com a situação, em maio de 1892 Samuel, que acabara de ser
eleito deputado estadual, pediu licença por tempo indeterminado, alugou
uma villa na região de Lucca, na Itália, e partiu com a mulher e as duas
crianças em busca de ajuda médica. Passado um período penoso de
avaliações, a menina foi submetida a uma cirurgia, em 1893.
O resultado não foi o que esperavam. Anita estava condenada a con-
 viver com uma grave atrofia, que a obrigaria a se adaptar ao uso da mão
esquerda.
De volta da Itália, a Babynha, como era chamada em casa, foi matricu-
lada numa escola católica, o Externato São José, e sua adaptação física
confiada a uma norte-americana, a educadora Marcia Browne, que auxili-
ou Caetano de Campos em reformas do ensino paulista. Com o passar dos
anos, Anita fez progressos e a vida da família seguiu seu curso. Já eram
quatro filhos — Guilherme havia nascido durante a viagem à Itália, e Ge-
orgina após o retorno ao Brasil.
Em 1901, Samuel Malfatti morreu, vítima de um ataque cardíaco. Com
a perda inesperada, Bety mudou-se para a casa dos pais, na rua Bri-
gadeiro Galvão. Anita, então com doze anos, passou a frequentar a Escola
57/375
 Americana, um empreendimento educacional protestante, que oferecia
pela primeira vez na cidade modernas classes mistas. Encobria a mão
direita com um lenço e saía-se cada vez melhor com a esquerda. Animava-
se, com esses progressos, a seguir sua inclinação para o desenho, embora
se sentisse insegura sobre seu talento.
 A família morava agora na Barra Funda, bairro que nasceu da fazenda
do Iguape, pertencente ao barão do Iguape, pai de d. Veridiana Prado.
Dividida,a propriedade deu origem à Chácara do Carvalho, do consel-
heiro Antônio da Silva Prado, que encomendou uma sede (que ainda ex-
iste) em estilo Luís xvi ao arquiteto Luigi Puci, o mesmo que projetou o
Museu do Ipiranga. Loteada em finais do século xix, a área, atravessada
pelos trilhos da São Paulo Railway e da Sorocabana, cresceu rapidamente.
Próxima aos ricos Campos Elíseos e Higienópolis, atraiu famílias endin-
heiradas — e também operários. O bairro estende-se pela várzea sul do
Tietê e seu nome seria uma referência à profundidade daquele pedaço do
rio.
Num depoimento de 1939, quando já tinha cinquenta anos, Anita Mal-
fatti falou sobre seu drama de adolescente “que não sabia que rumo tomar
na vida”. Atormentada, imaginou que uma forte emoção, capaz de
aproximá-la “violentamente do perigo”, pudesse ajudá-la a tomar suas de-
cisões. Resolveu, então, submeter-se a uma experiência radical. Entrou
num vão sob a linha de trem, nas proximidades de sua casa, e aguardou a
passagem da composição:
Deitei-me embaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de
mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a
deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão
de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço,
58/375
cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a
revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.16
O futuro que teria sido descortinado por essa visão lisérgica tinha, na
realidade, raízes familiares. A mãe de Anita pintava desde jovem. Naquela
época praticava com o pintor italiano Carlo de Servi (1871-1947), oriundo
de Lucca. Era um dos inúmeros artistas estrangeiros que vieram ao Brasil
na virada do século xix para o xx. Chegou em 1895 e, quatro anos depois,
participou pela primeira vez do Salão Nacional de Belas-Artes. Em São
Paulo, fez retratos de figurões da cidade, como d. Veridiana Prado,
Prudente de Moraes, Campos Salles e Washington Luís. Também ficou
conhecido por suas decorações em igrejas.
Na descrição da pesquisadora Marta Rossetti Batista, Bety, orientada
por Servi, realizava uma pintura “de colorido terroso e escuro, na qual
pinceladas claras marcavam os efeitos de luz”. Retratava mulheres e vel-
hos, como era comum na chamada “pintura feminina”17 — distinção que
se fazia naquele tempo.
Em 1906, Anita terminou, no Mackenzie College, o ciclo que encerrava
a educação formal das moças na época, e passou a se dedicar com afinco
ao desenho e à pintura, sob orientação da mãe. E ia muito bem. Em 1909,
a pedido do irmão Alexandre, reproduziu a óleo uma ilustração estam-
pada na capa de uma revista espanhola — um burrinho em disparada. A 
pintura, com a assinatura “Babynha”, foi vista em casa como uma demon-
stração definitiva de seu talento.
Em 1910, a aprendiz de artista ia completar vinte anos e já sabia o que
queria da vida: estudar pintura na Europa. Famílias ricas costumavam
mandar os filhos para temporadas educativas e civilizatórias no Velho
Continente, mas, para ela, isso não era tão fácil. A mãe já não levava vida
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folgada. Afora as lições artísticas, dava aulas de línguas (falava cinco idio-
mas, além do português) para ajudar a manter os filhos e a mãe idosa,
acamada pelo reumatismo. Estudar fora do país era um sonho, nessas cir-
cunstâncias, que parecia impossível.
Um dia, ao visitar as amigas Hermantina e Helena, colegas suas do
Mackenzie, Anita surpreendeu-se ao ouvir da mãe das meninas, d.
Estephania, que pretendia levá-las para estudar música na Alemanha.
“Por que você não nos acompanha?”, sugeriu ela.
 Agitada com a perspectiva que inesperadamente se abria, decidiu re-
correr ao lado abastado da família — os Krug. Contou seus planos a uma
de suas tias e não demorou a ser procurada pelo tio Jorge, arquiteto, en-
genheiro, colecionador de arte, que ganhava dinheiro com o boom
imobiliário e urbanístico da capital. Depois de se certificar das intenções
da sobrinha, ele decidiu bancar a viagem.
 Ainda incrédula com o rumo dos acontecimentos, em agosto de 1910
 Anita Malfatti embarcou para a Europa num transatlântico, em compan-
hia das Shalders. No dia da Independência, 7 de setembro, estava na
 Alemanha.
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OUTRO MUNDO
Para quem vivia na periférica São Paulo do início do século, Berlim dever-
ia parecer assombrosa. Na capital do reino da rica e multifacetada Ale-
manha, as engrenagens da modernidade, em 1910, já se moviam em ritmo
industrial. A cidade, com mais de 2 milhões de habitantes, tinha metrô,
luminosos, fervilhante comércio, universidade, instituições científicas e
corre-corre de metrópole. Era um dos palcos culturais do mundo, centro
de vanguarda na música, na dança e no teatro — e de intensa atividade
nas artes visuais.
O descontentamento com a rigidez acadêmica, no final do século xix,
 já havia gerado uma série de dissidências no meio artístico do país, con-
hecidas como Secessões. Essas associações estabeleciam seus próprios
critérios, agrupavam artistas e promoviam suas mostras. As mais import-
antes eram as de Munique, Berlim e Viena — esta última liderada por
Gustav Klimt, autor do célebre Beijo.
Em Berlim, galerias como as de Paul Cassirer e Fritz Gurlitt, além da
própria Secessão local, mostravam com frequência os novos artistas
europeus, entre eles Van Gogh e Munch — que ficaria mundialmente
famoso com seu O grito. O ambiente, antes da escalada nacionalista que
culminaria na Grande Guerra, era bastante cosmopolita. Os alemães
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foram, por exemplo, os primeiros a adquirir uma obra de Cézanne para
uma coleção pública nacional.
Quando Anita chegou ao país, ganhava forma um tipo de pintura
agressiva e espontânea, com tintas fortes, cores e deformações, que mais
tarde ficaria conhecida como expressionista, termo muitas vezes impre-
ciso, assim como outros comumente usados na tentativa de mapear a di-
 versidade da produção artística. Era uma das muitas e variadas vertentes
que pipocavam na nova arte europeia.
Reunidos em Dresden, a partir de 1905, os integrantes do grupo Die
Brücke (A Ponte) — Ernst Kirchner (1880-1938), Erich Heckel
(1883-1970), Emil Nolde (1867-1956) e outros artistas — dividiram seus
ateliês, realizaram exposições, lançaram e publicaram álbuns inspirados
pelas xilogravuras alemãs medievais, pela escultura primitiva e pela
manifestação artística de crianças, numa estética que alinhava sentimento
trágico, melancolia e grandes doses de acidez e humor. Personagem-
chave do movimento, o colecionador, marchand e organizador de ex-
posições Herwarth Walden (1878-1941) fundou a revista Der Sturm, que
chegou a ter uma tiragem de 30 mil exemplares e difusão internacional.
Um segundo núcleo expressionista se formaria em 1911, desta vez em
Munique, articulado por Wassily Kandinsky (1866-1944), Franz Marc
(1880-1916), August Macke (1887-1914) e Paul Klee (1879-1940). Com o
nome de Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), editou um almanaque, promoveu
exposições e reforçou o contato da Alemanha com as vanguardas da Rús-
sia e da França. Líder espiritual do grupo, Kandinsky interessava-se por
filosofia, religião, poesia e música. Suas telas, àquela altura, já aban-
donavam as referências da realidade para ingressar no mundo da
abstração.
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Para Anita, era um carrossel de novidades, ao mesmo tempo fascin-
ante e aflitivo. Impressionava-se com as experiências modernas, mas
sobretudo com a grande pintura que tinha a oportunidade de ver, pela
primeira vez, nos museus. Sentia-se oprimida e “tonta” com tanta inform-
ação. “A emoção não era de deslumbramento, mas de perturbação e in-
finito cansaço diante do desconhecido”, diria ela depois.18
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DOIS MESTRES
Há desencontros quanto aos caminhos percorridos pela jovem artista em
seus estudos, mas é certo que Anita tomou lições com um pintor chamado
Fritz Burger e com Lovis Corinth, que se tornaria seu grande mestre em
Berlim. Procurou-o depois de ter visto alguns de seus quadros, pintados,
segundo ela, com “quilos de tinta” e muitas cores: “A tinta era jogada com
tal impulso,com tais deslizes e paradas repentinas, que parecia a própria
 vida a fugir pela tela afora”, recordou ela na conferência “A Chegada da
 Arte Moderna ao Brasil”, em outubro de 1951, na Pinacoteca do Estado.19
Nome conhecido da pintura alemã, com produção caudalosa e difícil
de ser encaixada nos ismos da época, Corinth tinha predileção por temas
 violentos e sensuais. Foi um dos organizadores da mostra da Primeira Se-
cessão de Munique, em 1892, na qual se viam obras de Claude Monet, Éd-
ouard Manet, Paul Cézanne e Vincent van Gogh. No início do século,
mudou-se para Berlim e criou sua própria academia.
Na mesma conferência de 1951, Anita lembrou-se do inusitado local
em que se reuniam os alunos: “No grande ateliê, onde havia aparelhos de
ginástica, cordas como nos circos, trapézios e uma floresta de cavaletes, o
ambiente me parecia elétrico”. Nas primeiras aulas, ela desenhava sem
parar, mas não se sentia autorizada a pintar. Um belo dia, o professor,
 vendo-a exercitar-se com o carvão, perguntou-lhe o que fazia. “Como não
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posso pintar, estou me divertindo com a forma”, respondeu. “Quem disse
que você não pode pintar?”, retrucou ele. Radiante com a autorização do
mestre, largou o carvão, atravessou a rua e voltou com uma tela, uma
caixa de tintas, pincéis e palheta — pronta para entrar na dança da cor. 20
Corinth era um boêmio. Acordava tarde, nem sempre aparecia na
escola e tinha rompantes de fúria. Certa feita, quando corrigia pela en-
ésima vez um trabalho de uma aluna, irritou-se, pegou uma espátula e
começou a raspar a pintura de alto a baixo. Encontrando resistência na
tinta seca, perdeu a paciência, rasgou a tela, arrebentou o cavalete e — se-
gundo Anita — “pisou tudo com força”.
Na mesma escola, ela teve outro professor — Ernst Bischoff-Culm,
mais voltado para a técnica de pintura. Com ele, dedicou-se a experiên-
cias de separações e misturas de cores, e começou a concluir suas
primeiras telas na Alemanha; uma delas, O poeta adolescente, para seu
êxtase foi escolhida por Corinth para ser exibida numa mostra da
Secessão.
•
Nos meses de junho e julho de 1912, nossa jovem pintora, que havia
deixado de viver com as Shalders para morar com a família Zschöckel na
rua Grünnewald, foi passear com as amigas nas montanhas Harz. A 
seguir viajou para Bruxelas e Colônia, onde visitou a impressionante Son-
derbund — uma das maiores exposições de arte moderna da história, com
cerca de seiscentas obras de um amplo leque de artistas europeus, entre
os quais Cézanne, Van Gogh, Matisse, Gauguin, Braque, Mondrian,
Kokoschka e Kandinsky.
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 A visão dessa mostra acompanhou a nascente pintora paulistana na
 volta ao seu país, no início de 1914, precipitada pelos sinais de guerra no
 Velho Continente.
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5
O TEATRO DA PAULICEIA 
O Teatro Municipal de São Paulo, palco
da Semana de Arte Moderna, deve sua
construção a Antônio da Silva Prado,
pai de Paulo Prado. Inaugurado em 1911,
é um dos símbolos das ambições
da elite cafeeira.
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No período em que Anita estudava na Alemanha, São Paulo foi deixando
para trás o casulo colonial. Na década de 1910, a tradicional sociedade das
fazendas ganhava uma interface urbana mais definida e convincente.
Famílias do interior transferiam-se para a capital, onde a “picareta civiliz-
adora” — como observou o cronista Couto de Magalhães21 — abria novos
espaços e substituía os pesados casarões por prédios elegantes e con-
struções à moda de tudo, de chalés suíços a moradias bretãs ou
“italianadas”.
Simultaneamente, o ritmo da imigração estrangeira amplificava a al-
gazarra polifônica dos dialetos e idiomas. Pela cidade, ouvia-se do hebreu
ao alemão, passando pelo espanhol e pelo árabe. Sobressaía, contudo, o
italiano, que das casas chegava às ruas para cozinhar o macarrônico
dialeto ítalo-paulistano — captado, com muito sabor, aliás, por Alexandre
Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananére, no livro  A divina increnca.
Nessa atmosfera de prosperidade e frisson europeizante, criavam-se
os pré-requisitos para o aparecimento de um circuito cultural.
Diferentemente do Rio, antiga corte e capital da República, onde a
produção artística já havia se organizado em instituições e encontrava
meios mais avançados para circular no mercado, em São Paulo o ambi-
ente ainda invertebrado pedia que a iniciativa privada entrasse em cena
para estruturá-lo.
Foi o que começou a acontecer de forma sistemática na passagem do
século xix para o xx. Em associação com o poder público, ou melhor, em
nome desse poder, com o qual na prática se confundia, o baronato do
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café, como se fundasse um país, dedicou-se à criação de instituições edu-
cacionais, científicas e artísticas no estado — como o Museu Paulista, o
Instituto Histórico e Geográfico, o Liceu de Artes e Ofícios, a Pinacoteca,
o Conservatório Dramático e Musical, o Teatro Municipal e a Sociedade
de Cultura Artística.
Nesse cenário, direta ou indiretamente, por intermédio do mecenato,
do investimento ou das subvenções arrancadas do governo estadual, o
“ouro verde” financiava a realização de concertos, exposições e espetácu-
los cênicos, além de bancar a expansão do circuito de cinema. Também
era importante a atuação de clubes e associações ligados às comunidades
de imigrantes, que promoviam atividades recreativas e culturais.
Nas artes plásticas, ao contrário do que se tornou comum repetir, a
São Paulo que antecedeu o modernismo não era um deserto; tinha
produção, calendário de mostras e mercado ativo de arte. Na década de
1910 foram realizadas pelo menos 244 exposições na cidade, o que corres-
ponde, em média, a duas por mês.22 A ausência de galerias especializadas
e a existência de apenas um museu de arte, a Pinacoteca, levava a maior
parte dessas mostras a ser organizada em lojas comerciais e salões de
palacetes, que recebiam cenografia especial para a ocasião — paredes for-
radas de pano, vasos com plantas, cadeiras etc.
Em 1911, quando Anita Malfatti partiu para a Alemanha, a agenda
artística paulistana foi das mais concorridas. O evento mais espetacular
foi a abertura do Teatro Municipal, que substituía, com as vantagens de
uma opera house europeia, o velho teatro São José, dando à cidade um
palco à altura dos melhores artistas e companhias do mundo.
Na véspera da inauguração, que aconteceu na noite de 12 de setembro,
o jornal O Estado de S. Paulo descreveu para seus leitores o “suntuoso
edifício” situado no quadrilátero das ruas Barão de Itapetininga, Consel-
heiro Crispiniano, do Theatro e Formosa, “sobranceiro ao vale do
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 Anhangabaú, no planalto da margem esquerda”, o que conferia localiza-
ção “excepcional ao monumento”. Somados plateia, frisas, camarotes e
torrinhas, a nova casa era capaz de receber 1816 pessoas. A construção,
com área de 3609 metros quadrados, era maior que a do Municipal do
Rio. Dividia-se em três partes:
O corpo da fachada, abrangendo o vestíbulo, a escada nobre, salão,
portaria, restaurante e dependências da administração; a parte cent-
ral, compreendendo a sala de espetáculos, com seus corredores e ga-
lerias; e o corpo posterior, formando o palco, com suas galerias lat-
erais, camarins e salas de artistas.
No dia 13, um artigo do Paiz classificou de “deslumbrante” a concor-
ridíssima estreia, com a encenação da ópera Hamlet , precedida da proto-
fonia do Guarani . Mas não deixou de observar que o grande afluxo de
público obstruiu o trânsito e dificultou o acesso dos “carros” (como se
chamavam as carruagens puxadas por cavalos) e dos automóveis:
Desde o anoitecer que o teatro estava, interior e exteriormente, feer-
icamente iluminado. Nas vizinhanças viam-se numerosíssimas pess-
oas, havendo também numerosos carros e automóveis com pessoas da
melhor sociedade, que admiravam o belíssimo espetáculo. O viaduto
estava repleto. Pouco depois das oito horas da noite começaram a
chegar os espectadores, todos em traje de rigor; as senhoras vestiam
riquíssimas toilettes. A grande multidão que se formava a essa hora
nas proximidades do teatro dificultoupor tal forma o trânsito de car-
ros e automóveis com os espectadores, que alguns somente às 10 horas
da noite conseguiram chegar à porta do teatro.
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Com a confusão, a ópera de Ambroise Thomas, estrelada pelo barítono
Titta Ruffo, cujo início estava previsto para as oito horas da noite, só
começou por volta das dez — e encerrou-se já na madrugada do dia 13,
sem a apresentação do epílogo da tragédia de Shakespeare. O tumulto e
os danos causados à programação pediam providências das autoridades
para ordenar o trânsito nos dias seguintes.
Em 18 de setembro, o Estado noticiava o êxito do novo esquema
montado:
Depois das medidas adotadas para facilitar o ingresso no Teatro Muni-
cipal, o serviço de trânsito de veículos naquele local melhorou
consideravelmente, tornando-se irrepreensível não obstante o elevado
número de carruagens que ali tem comparecido, como ainda sucedeu
ontem. Cerca de 300 veículos transportaram espectadores para o
teatro, tendo permanecido aguardando a saída 290 veículos, dos quais
140 automóveis e 150 carros. Não houve dificuldades para o desem-
 barque franqueado na escadaria principal e nos torreões laterais. A 
saída não foi demorada, prolongando-se por apenas 17 minutos. Como
nos dias anteriores, o policiamento foi feito por praças de cavalaria,
uma guarnição de infantaria, todos em grande gala, e uma numerosa
turma de ciclistas, da guarda cívica, para a chamada dos veículos.
O Municipal foi erguido pelo escritório de Francisco de Paula Ramos
de Azevedo, responsável por nove entre dez obras importantes da época.
O arquiteto, formado na Bélgica, estabeleceu-se em São Paulo em 1889.
Construiu inúmeros palacetes privados e prédios públicos, como o Cor-
reio e o Palácio das Indústrias. Envolvido num leque de atividades, foi um
dos fundadores do Liceu Pasteur e do Banco Belga. Da mesma forma que
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Tiago Fagundes
a família de Anita Malfatti, Ramos de Azevedo mantinha laços com
Campinas, sua cidade natal. O tio endinheirado da pintora, Jorge Krug,
foi seu sócio e amigo.
Uma espécie de catedral da cultura, a simbolizar as ambições que fer-
mentavam na “metrópole do café”, o Municipal servia também para a or-
ganização de exposições, banquetes e até convenções do prp — o partido
da elite paulista, que era, afinal, “dona” do lugar. Em 1922, quando acol-
heu os modernistas, o teatro já havia recebido atrações internacionais
como Caruso, Ana Pavlova, Isadora Duncan e Nijinski.
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Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
UMA EXPOSIÇÃO AMBICIOSA 
Outro grande evento artístico que agitou a sociedade paulistana em 1911
foi a i Exposição Brasileira de Belas-Artes, inaugurada no dia 24 de
dezembro, no prédio perto da Estação da Luz, onde funcionavam juntos a
Pinacoteca e o Liceu de Artes e Ofícios.
O Liceu surgira em 1873, com o nome de Sociedade Propagadora da
Instrução Popular, e seu objetivo era formar mão de obra para a agricul-
tura, a indústria e o comércio. Em 1882 sofreu uma reforma curricular e, a
partir de 1890, sob a direção de Ramos de Azevedo, suas oficinas pas-
saram a trabalhar sob encomenda para obras públicas e privadas. Com
artesãos, pintores, escultores, serralheiros, fotógrafos etc., a escola
tornou-se uma importante instituição de artes e ofícios, funcionando ao
mesmo tempo como uma espécie de “centro cultural” e “academia de
arte” de São Paulo.
 A i Exposição Brasileira de Artes Plásticas de 1911 era mais um pro-
 jeto da “iniciativa privada” paulista. Duas dezenas de pessoas se empen-
haram para realizar, pela primeira vez na cidade, uma grande mostra de
caráter nacional — a exemplo do que ocorria regularmente no Rio. Entre
seus idealizadores, estavam o senador mecenas Freitas Valle, o pintor
Torquato Bassi e Nestor Rangel Pestana, educador, jornalista, diretor e
crítico de arte do Estado.
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 A mostra atraiu artistas de renome do Rio e de São Paulo, como Eliseu
 Visconti, Benedito Calixto e Henrique Bernadelli, e também reservou es-
paço para os menos conhecidos, com poucas chances de exibir seus tra-
 balhos — caso de Bety, a mãe de Anita, que figurou entre os selecionados.
O regulamento proibia reproduções e autorizava a participação de resid-
entes no Brasil e de brasileiros residentes no exterior. No fim, foram
escolhidos cerca de quatrocentos trabalhos de uma centena de artistas,
entre pintores, escultores e arquitetos. Todas as obras foram postas à
 venda, cabendo 10% da receita à comissão organizadora, que contou,
além disso, com assinaturas de incentivo, arrecadação de bilheteria e
taxas de admissão cobradas aos artistas.
Para abrigar a Exposição Brasileira, as salas do segundo andar do pré-
dio (também construído por Ramos de Azevedo, onde hoje funciona a
Pinacoteca) foram forradas com oitocentos metros de aniagem marrom,
tingida para o evento. O presidente do estado, Albuquerque Lins, com-
pareceu ao vernissage, recheado de personagens da “melhor sociedade”
local. Em um mês, por volta de 4 mil pessoas passaram pela mostra e ses-
senta obras foram vendidas.
Na mesma ocasião, no andar térreo do Liceu, instalou-se, com entrada
franca, uma grande Exposição Espanhola, anteriormente montada no
Rio. Era organizada pelo pintor viajante José Pinelo, de Sevilha. Numa
cidade com atrativos escassos, a ocorrência simultânea das duas mostras,
nas proximidades do Jardim Público, virou programa obrigatório.
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O GOSTO ACADÊMICO E O LITUANO MODERNO
Quando Anita Malfatti chegou da Alemanha, ninguém em sua casa queria
saber de Van Gogh, Cézanne ou Kandinsky. Só perguntavam pela Mona
 Lisa e pelas glórias do Renascimento italiano.23 Compreensível que fosse
assim. No início de 1914, se o canto do galo da “nova escola” já se fizera
ouvir por aqui, não se sabia bem de onde vinha e o que representava.
Mesmo na Europa, a institucionalização da arte moderna em museus,
coleções, críticas e escolas ainda estava longe do grau que alcançaria
décadas depois. Quem seria Picasso perto de um Leonardo ou de um
Tiziano?
Entre nós, prevalecia uma pintura tradicional, com artistas que re-
speitavam as convenções clássicas da representação da realidade, ou as
questionavam superficialmente. Os mais destacados ganhavam bolsas
para estudar em academias europeias, viajavam sobretudo para a França
e para a Itália, participavam de salões e passavam longas temporadas por
lá. Aqui, recebiam encomendas de governantes, colecionadores e famílias
ricas, expunham seus trabalhos, disputavam prêmios e davam aulas.
Encontrava-se ainda no meio artístico considerável presença de es-
trangeiros, em geral paisagistas e retratistas, que chegavam ao país e rapi-
damente se introduziam no circuito.
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Um desses viajantes abriu, em 1913, uma exposição na rua São Bento,
no centro de São Paulo. Era um lituano que pintava de maneira um pouco
diferente. Chamava-se Lasar Segall, era dois anos mais novo que Anita e
também passara um período na Alemanha, onde conhecera o mesmo Lov-
in Corinth.
Segall tinha uma irmã em São Paulo, chamada Luba, e queria
descobrir novos mundos. Unida por casamento à família Klabin, Luba fin-
anciou a viagem do irmão, que chegou no final de 1912, trazendo seus
trabalhos. Hospedou-se na casa de d. Berta Klabin e, no dia 1o de março
de 1913, inaugurou sua mostra, com 52 obras.
 A influência dos Klabin contribuiu para que a exposição recebesse o
apoio do senador Freitas Valle e as atenções de Nestor Pestana — que a
tratou, no jornal, com ambígua aprovação. Embora bem-comportada em
comparação com o que se via nos círculos vanguardistas europeus, a pin-
tura de Segall expressava um sentimento trágico e possuía alguns traços
da “moderna escola alemã”. Foi considerado um talento promissor,
apesar de certas características que o crítico do Estado chamou de “ousa-
das”, e o do Diário Popular de “bizarras”.24
Em sua revista O Pirralho, Oswald de Andrade, que vinha de sua
primeira viagem à Europa, publicou uma nota sobre a abertura do “tal-
entoso moço russo”.25 Pouco depois, a exposição foi para Campinas, onde
recebeu atenções da imprensa. As críticas,

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