Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

SUMÁRIOSUMÁRIO
parte 1parte 1
1 Manifestação telúrica1 Manifestação telúrica
2 A coqueluche do2 A coqueluche do grand mondegrand monde
3 O3 O vernissagevernissage
parte 2parte 2
4 As cores da novidade4 As cores da novidade
5 O teatro da Pauliceia5 O teatro da Pauliceia
6 Da Casa Mappin ao Maine6 Da Casa Mappin ao Maine
7 Na terra do Saci7 Na terra do Saci
8 A fúria do Jeca8 A fúria do Jeca
9 Mário de Maria9 Mário de Maria
10 Oswald da mamãe10 Oswald da mamãe
11 Isadora e o Furacão11 Isadora e o Furacão
12 Juca e Miramar12 Juca e Miramar
13 A realeza da República13 A realeza da República
14 Eduardo e Paulo14 Eduardo e Paulo
15 O Rodin bandeirante15 O Rodin bandeirante
16 O estalo do desvario16 O estalo do desvario
17 Máscaras no Trianon17 Máscaras no Trianon
18 Os bandeirantes vão à praia18 Os bandeirantes vão à praia
19 A visita do jovem senhor19 A visita do jovem senhor
20 Organizando a bagunça20 Organizando a bagunça
parte 3parte 3
21 O leão e 21 O leão e a pianista contristadaa pianista contristada
2222 Happening Happening futuristafuturista
23 A consagração do maestro23 A consagração do maestro
24 Turma animada24 Turma animada
Posfácio desinteressantíssimoPosfácio desinteressantíssimo
 Agradecimentos Agradecimentos
NotasNotas
Bibliografia citadaBibliografia citada
Créditos das imagensCréditos das imagens
4/3754/375
11
MANIFESTAÇÃO TELÚRICA MANIFESTAÇÃO TELÚRICA 
7/3757/375
8/375
9/375
10/375
Na madrugada de 27 de janeiro de 1922, a cidade de São Paulo foi
acordada por um tremor. Janelas trepidaram, frascos de remédio
pularam das prateleiras, ornamentos caíram de fachadas e animais en-
traram em alvoroço. “Terremoto”, estampou a Folha da Noite na man-
chete da edição daquela sexta-feira. O “movimento sísmico”, informava o
 vespertino, havia sacudido quase todo o estado de São Paulo, atingira
parte do sul de Minas e propagara-se até o Rio de Janeiro.
No dia seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo dedicou uma página
aos acontecimentos. Dizia que o fenômeno, “o primeiro na capital de tal
intensidade”, provocara “impressionante rumor”. Muitos saíram às ruas,
e o corre-corre sonâmbulo, em horário tão avançado, teria proporcion-
ado, de acordo com a reportagem, um espetáculo “muito interessante”.
Eugenio Egas, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo,
comentou o “grande susto” de ver tudo “a oscilar” e classificou o episódio
de “desagradável e perigoso”.
Embora as primeiras avaliações indicassem prejuízos superficiais, a
 Folha da Noite voltou ao assunto para dizer que danos mais graves po-
deriam ter ocorrido. Suspeitava-se que o viaduto do Chá, já mal das per-
nas, tivesse sido golpeado pela “manifestação telúrica”. Também parecia
inspirar cuidados, de acordo com o jornal, a situação das edificações da
avenida Angélica, no bairro de Higienópolis. Casas estariam balançando
perigosamente à passagem de veículos carregados, num sinal de que os
alicerces perdiam solidez.
11/375
 A  Folha da Noite cobrava inspeções técnicas dos órgãos competentes e
aproveitava para lamentar que o Observatório Astronômico e Meteoroló-
gico, na avenida Paulista, se encontrasse “à míngua de sismógrafos e out-
ros aparelhos”. Mal equipado, não conseguia prestar esclarecimentos de-
talhados — ao contrário do que era comum nas capitais da Europa.
O tremor, é claro, virou o assunto da cidade. Falava-se da ação de gat-
unos durante o rebuliço, dos estampidos de armas de fogo que ecoaram
nos quatro cantos, do infeliz que sofreu um ataque cardíaco, do princípio
de pânico em Ribeirão Preto e dos telhados tombados no Espírito Santo
do Pinhal.
 Alguns se divertiam e faziam piada; outros dramatizavam. Seria pos-
sível comparar o fenômeno aos que abalavam cidades da Itália ou do
México? Houve quem escrevesse carta à imprensa para considerar ex-
agerado o uso do termo “terremoto”; e também quem garantisse que al-
guns segundos a mais de vibração teriam reduzido tudo a “um montão de
ruínas”.
O jovem artista carioca Emiliano Di Cavalcanti, então com 24 anos,
que voltava a São Paulo depois de uma temporada no Rio, sentiu seu leito
deslizar enquanto dormia. Hospedava-se num hotel no centro da cidade e
havia chegado tarde, acompanhado pelo advogado Vicente Rao, seu
amigo, após uma noite “boemiando”. Di recordou a agitação daquela
madrugada em livro de memórias publicado em 1955: “Assim que me
deitei senti a cama correr para a frente. Logo depois gritos de hóspedes,
correria no corredor. Vesti-me depressa e, quando cheguei no meio da
confusão enorme à porta da rua, um italiano gritava glorioso: — Eu sei o
que é. É terremoto!”.
 Ainda atordoado, o pintor diz ter saído em disparada na direção do el-
egante Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman, que ficava junto ao viaduto
do Chá, no endereço em que depois seria erguida a sede das indústrias
12/375
Matarazzo, hoje sede da Prefeitura da cidade. A Rôtisserie recebia o emin-
ente escritor e diplomata Graça Aranha, que retornava ao Brasil após al-
guns anos na Europa. Segundo o relato do pintor, Graça já tinha pulado
dos lençóis e bradava radiante: “É o Cosmos. O Cosmos!”. A cena deve ter
sido divertida — se realmente aconteceu. Em outra ocasião, Di afirmou
que apenas telefonou para o ilustre visitante. A versão cômica das
memórias parece corresponder à incontível vontade do pintor de fazer pi-
ada com as famosas elucubrações filosóficas do personagem, que pregava
a integração do espírito humano à unidade do cosmos.
Trinta anos mais velho que o desenhista carioca, Graça Aranha estava
em São Paulo naquele 27 de janeiro de 1922 para cuidar dos preparativos
de um festival de artes, música e literatura que se realizaria no Teatro
Municipal, intitulado Semana de Arte Moderna. Ele próprio faria a con-
ferência inaugural do evento, que prometia marcar época.
No domingo, dois dias depois do terremoto, o Correio Paulistano no-
ticiava que “diversos intelectuais de São Paulo e do Rio, devido à inici-
ativa do escritor Graça Aranha”, pretendiam apresentar no Municipal
uma demonstração do que haveria de “rigorosamente atual” no mundo
artístico, da escultura à literatura, passando pela música, pela arquitetura
e pela pintura. O programa transcorreria “de 11 a 18 de fevereiro próx-
imo” — e já se divulgava uma primeira lista de participantes.1
O time paulista seria representado pelos escritores Guilherme de Al-
meida, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade; pelo
escultor Victor Brecheret; e pela pintora Anita Malfatti, entre outros.
Tarsila do Amaral — não é demais lembrar — encontrava-se em Paris, e
não participaria da Semana.
Sinal dos tempos, os dois arquitetos da lista publicada pelo Correio
 Paulistano, Georg Przyrembel e Antônio Garcia Moya, eram,
13/375
respectivamente, polonês e espanhol; o pintor John Graz, suíço; o es-
cultor Wilhelm Haarberg, alemão; e Brecheret, embora “nosso”, um filho
da Itália.
Diante de nomes nem sempre conhecidos, a reportagem destacava a
presença, nas atividades musicais, de Guiomar Novaes, a grande celebrid-
ade paulista e nacional do piano, que nada tinha de modernista mas era
garantia de presença de público. O jornal ressaltava também a oportunid-
ade de São Paulo enfim conhecer o “extraordinário compositor brasileiro
 Villa-Lobos”, que chegaria com a caravana carioca, em companhia de po-
etas e artistas, como Ronald de Carvalho e Oswaldo Goeldi.
14/375
MÁRIO x CÂNDIDO
Um press release distribuído pelos organizadores e divulgado por alguns
órgãos da imprensa afirmava que a notícia da Semana fora recebida “com
um frêmito de curiosidade” nas rodas intelectuais e “altamente
mundanas” de São Paulo, o que seria natural, pois se tratava da primeira
tentativa de realizar no Brasil “um certame dessa natureza”. O texto
anunciava que o presidente do estado, Washington Luís (ainda não se
usava o termo “governador” naquele tempo), compareceria ao vernissage
da exposição, que aconteceria no saguão do teatro. Previam-se agora —
como de fato ocorreu — três apresentações, nos dias 13, 15 e 17 de fever-eiro — respectivamente segunda, quarta e sexta.
 A primeira delas seria dedicada à pintura e à escultura; a segunda, à
literatura, e a terceira à música. O comunicado prometia para breve um
programa mais detalhado e, no final, alertava: “Escusado será dizer que,
desde já, grande é a procura de bilhetes”.
No dia 3 de fevereiro, a Gazeta retornava ao assunto com uma nota in-
titulada “A semana futurista”. Na mesma linha do release, dizia que a
proposta vinha “agitando de tal forma o meio artístico e intelectual” que
ignorá-la seria dar provas de um parti pris incompatível com o progresso
da imprensa. O diário aproveitava a ocasião para apresentar um
15/375
colaborador, o poeta Mário de Andrade, que nas edições seguintes es-
creveria “em defesa da arte moderna”.
O articulista tinha, então, 29 anos incompletos, era autor de artigos
sobre música, literatura e arte e professor do Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo. Depois de uma estreia conservadora, seus primeir-
os versos modernistas já haviam sido divulgados pela imprensa e lidos em
rodas literárias, mas seu livro Pauliceia desvairada ainda estava por sair
— o que aconteceria alguns meses mais tarde.
Na Gazeta, Mário faria contraponto com os artigos de um jornalista
que escrevia sob o nome de Cândido e bombardeava, sem piedade, os pro-
fetas da nova estética. Por trás do pseudônimo voltairiano estava a figura
de Salisbury Galeão Coutinho. Tinha 25 anos e era natural de Curral del
Rey, hoje Belo Horizonte. Seu nome homenageava o primeiro-ministro do
Império Britânico. Começara a trabalhar em jornalismo na cidade de San-
tos, como redator da Tribuna, em 1915, de onde se transferiu para a Gaz-
eta, na capital — e lá fez carreira.
Cândido era um daqueles que, embora lidos e cultos — ou talvez por
isso mesmo —, não engoliam a pregação espalhafatosa do italiano Filippo
Tommaso Marinetti, líder do movimento futurista, que pretendia sub-
stituir a arte do passado por outra, moldada pelo mundo da velocidade e
da máquina. Em 1909, o italiano havia publicado seu manifesto beliger-
ante no jornal francês Le Figaro. “Até hoje a literatura tem exaltado a
imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento
agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto-mortal, a bofetada e o
murro”, dizia o texto, que glorificava a guerra — “única higiene do
mundo”. É da Itália, anunciava Marinetti, “que lançamos ao mundo este
manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos
nosso futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gan-
grena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários”.
16/375
O efeito foi explosivo. A expressão “futurismo” resumia um senti-
mento de época, e incendiou a imaginação de artistas e escritores dentro e
fora da Europa. A primeira exposição da nova corrente aconteceu em
Milão, em abril de 1911. Outra, realizada na galeria Bernheim-Jeune, em
Paris, em fevereiro de 1912, circulou depois pela Inglaterra, França e
Holanda, com impacto nos meios artísticos.
Na literatura, os futuristas lançaram o brado de “liberdade para as pa-
lavras”, sugerindo a exploração do design tipográfico da época, da lin-
guagem publicitária e da escrita fragmentada. Mas com a participação da
Itália na guerra o movimento se dispersou. O escultor Umberto Boccioni
foi morto, e o músico e pintor Luigi Russolo, seriamente ferido. Embora
continuasse a se autodenominar “futurista”, o círculo em torno de Mari-
netti, a partir de 1918, já não tinha o mesmo vigor e se aproximava da ca-
ricatura — e do fascismo.
Os modernistas de São Paulo, em especial Menotti del Picchia e
Oswald de Andrade, usavam habitualmente o termo “futurismo”, mas o
faziam em sentido elástico, para designar as propostas mais ou menos
renovadoras que se opunham às receitas “passadistas” e “acadêmicas”. A 
polarização futurismo × passadismo servia como tática retórica eficaz —
mas também simplificadora. Esse aspecto do discurso modernista, que se
apresentava como ruptura com o “velho”, acabava por atirar na lata de
lixo do “passadismo” manifestações variadas, às quais, diga-se, não raro
os próprios “novos” estavam atados.
O rótulo “futurista” gerava incompreensões e facilitava ataques por
sugerir subordinação à escola e às ideias de Marinetti. Por esse e outros
motivos, Mário de Andrade preferia, “bandeirantemente”, recusar em
público a batuta do vanguardista italiano.
Sendo assim, o novo colaborador da Gazeta, escalado para defender o
“futurismo”, começou por negar a filiação do grupo à corrente europeia.
17/375
Mário não queria que ele e seus colegas fossem associados ao credo “con-
traditório, embora às vezes admirável” de Marinetti. Os “rapazes mod-
ernistas”, como preferia vê-los chamados, desejavam apenas “ser atuais,
livres de cânones gastos, incapazes de objetivar com exatidão o ímpeto fe-
liz da modernidade”.
 A expressão “ímpeto feliz” vinha como um grito de frescor e juventude
em oposição à sisudez “passadista” e ao ambiente soturno dos anos an-
teriores, imposto pela guerra. Era um traço do movimento. Mário gostava
de citar a “mocidade alegre” e Oswald, alguns anos depois, em 1928, sen-
tenciaria no “Manifesto Antropófago”: “A alegria é a prova dos nove”.
O poeta de Pauliceia desvairada reconhecia em Cândido “firme e pro-
funda erudição” para fornecer a seus leitores “notícias exatas sobre a nova
e muitas vezes simpática renascença italiana”. O problema, a seu ver, era
que ele nada dizia sobre “a renascença paulista”, da qual a Semana dever-
ia ser “um divertido e porventura magnífico estalão”.2
Por sua vez, Cândido não economizava tinta com pilhérias. Desen-
 volto, apontava as incongruências que via no movimento italiano e fust-
igava a turma de Mário. Percebendo que as alianças se tornavam mais
amplas para as jornadas do Municipal, Cândido saía para o ataque.
 Alegava que teria partido de alguns dos próprios “rapazes modernistas” o
uso do termo “semana futurista” — que constava, aliás, do recibo de
aluguel do Municipal. Não seria, portanto, culpa sua se agora preferiam
chamar a festa de Semana de Arte Moderna, quem sabe com o propósito
de melhor acomodar, “num largo abraço, românticos, parnasianos, sim-
 bolistas e místicos”. Diante da amplitude da lista anunciada, Cândido
considerava que os “soi-disant futuristas de São Paulo” haviam caído,
“mais depressa do que se supunha, nos braços dos representantes de
ideais estéticos, se é que os têm, totalmente diversos dos seus”. E
sentenciava: “Acabou-se a intransigência dos primeiros tempos”.
18/375
MONUMENTOS DETONADOS
 A intransigência, na verdade, não se manifestara exatamente nos
“primeiros tempos”, ou seja, cinco ou seis anos antes da Semana, quando
um núcleo de jovens artistas, jornalistas e intelectuais, com ideias estétic-
as vagamente modernizantes, começou a se formar em São Paulo.
Naquela ocasião, os mais sectários eram justamente os que se opunham
às “aberrações” da arte moderna — caso do escritor e crítico Monteiro
Lobato, autor do célebre ataque à exposição de Anita Malfatti, em dezem-
 bro de 1917. Foi só a partir de 1920, 1921, que os moços “futuristas”,
sobretudo Oswald, Menotti e Mário, passaram a elevar o tom para insu-
flar na imprensa e em outras frentes a retórica contra o “passadismo” nas
artes.
Menotti, em 1922, tinha trinta anos, era autor de um famoso poema
“regionalista” intitulado Juca Mulato, e preparava o lançamento da nov-
ela O homem e a morte. Ganhava a vida como jornalista prestigiado, re-
sponsável pelas notas e editoriais políticos do Correio Paulistano, órgão
oficial do Partido Republicano Paulista (prp), que mandava e desmandava
na política brasileira. Despachava diretamente com Washington Luís, no
palácio dos Campos Elíseos. No mesmo jornal, com o pseudônimo Hélios,
assinava crônicas e artigos em defesa da renovação artística. Orgulhava-
se de ter convencido o futuro presidente da República, homem educado,
19/375
historiador, com interesses culturais, a permitir que o Correio apoiasse o
movimento modernista.
Oswald,o mais velho, que chegava aos 32 anos, era pai de um garoto
de oito, e figura conhecida nos meios jornalísticos, boêmios e intelectuais
de São Paulo e do Rio. Já havia comandado uma revista político-literária
modernizante e descontraída, chamada O Pirralho, e sua estreia em livro
datava de 1916, com as peças Mon coeur balance e Leur âme — tradicion-
almente escritas em francês, em parceria com o poeta Guilherme de Al-
meida. Filho único de família abastada, Oswald era sobrinho do
acadêmico Herculano Inglês de Sousa, radicado na capital federal, cidade
que ele visitava regularmente — e onde frequentava rodas de escritores
como Olavo Bilac, João do Rio e Emílio de Meneses.
Em 8 de fevereiro de 1922, a cinco dias da inauguração da festa,
Oswald iniciou no Jornal do Comércio uma série de artigos em que det-
onava alguns monumentos da cultura oficial e repisava argumentos que já
 vinha esgrimindo nos últimos anos. Desesperava-se com as defasagens do
meio artístico nacional — “haveremos de andar sempre 50 anos atrás dos
outros povos?” — e escarnecia dos “analfabetos letrados” que só com-
preendiam a pintura como cópia da realidade: “Qualquer imbecilzinho
saído da repartição em que trabalha durante o dia, pega um pincel, tintas,
 borra telas com intenções absolutamente fotográficas, e fica sendo
pintor”.
 Blagueur afiado, inteligência fulgurante, o jornalista e escritor pro-
movia os novos e fulminava medalhões, como o pintor Pedro Alexandrino
e o compositor Carlos Gomes. “Carlos Gomes é horrível, todos nós o sen-
timos desde pequeninos”, escreveu na véspera da Semana, num artigo
que causou indignação entre os muitos entusiastas do autor da ópera O
Guarani . Oswald dizia que, “de êxito em êxito, o nosso homem conseguiu
difamar o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de
20/375
cuia e vistoso espanador na cabeça, a berrar forças indômitas em cenários
terríveis”. Contra as patuscadas e a “cantarolice nefanda” do celebrado
compositor, o polemista apontava para Heitor Villa-Lobos, que em sua
opinião faria estalar, na Semana, o “nosso velho e caduco” ambiente
musical.
 Apesar das ambiguidades da programação da Semana, a linguagem de
Oswald era, como se vê, de provocação e ataque. Considerava impossível
naquele momento — como escreveu num de seus artigos — “refletir atit-
udes de serenidade”. Sentia-se em meio a um combate: “Somos boxeurs
na arena”, avisou.
21/375
2
 A COQUELUCHE DO GRAND MONDE 
 À direita, palacete que abrigava a sede
do elegante Automóvel Clube, do qual eram
sócios playboys e endinheirados de São Paulo,
entre os quais membros do comitê que
patrocinou a Semana de Arte Moderna.
23/375
Enquanto o pugilato estético entre “futuristas” e “passadistas” es-
quentava, a imprensa noticiava que, diante do “grande interesse desper-
tado” pela Semana, todas as frisas do Municipal já se achavam, dois dias
antes da abertura, “tomadas por distintas famílias de nossa melhor so-
ciedade”. Na véspera, um domingo, somente algumas “poucas poltronas”,
de acordo com o Correio Paulistano, poderiam ser adquiridas na sede do
 Automóvel Clube, localizada ao lado do hotel em que se hospedava Graça
 Aranha.
O clube era um ponto de convivência de milionários de São Paulo,
entre eles os integrantes do comitê patrocinador da Semana de Arte
Moderna. O grupo fora reunido sob a autoridade culta e empreendedora
de Paulo Prado, fazendeiro, empresário, escritor, ensaísta e colecionador
de arte. Paulo era neto da matriarca Veridiana Prado e filho do todo-po-
deroso conselheiro Antônio da Silva Prado (1840-1929), político influente
do Segundo Império e da República. Foi o prefeito que deu ares
“europeus” à São Paulo do começo do século e iniciou a construção do
Municipal.
 Ainda jovem, Paulo Prado conheceu Paris, onde se hospedou no
apartamento de seu tio Eduardo, que viveu na capital francesa e foi ín-
timo do escritor Eça de Queirós, a quem serviu de inspiração para o per-
sonagem Jacinto de Thormes, de A cidade e as serras. Paulo pertencia à
mesma geração de Graça Aranha, seu colaborador nos negócios e também
“cunhado informal” — pois o envolvente diplomata e filósofo do cosmos
mantinha longo caso extraconjugal com Nazareth Prado, sua irmã.
24/375
Como ocorria tradicionalmente em grandes espetáculos e exposições
paulistas, o grupo de notáveis patrocinaria o evento e obteria as adesões
necessárias para realizá-lo. A diferença em relação às iniciativas anteri-
ores era que a manifestação modernista não correspondia ao gosto major-
itário da burguesia local. Paulo Prado era, quanto a isso, uma avis rara.
Seus pares grã-finos, em matéria de arte, mantinham-se quase todos
“passadistas” — e só seu prestígio poderia tê-los atraído para a
empreitada.
O comitê, coordenado pelo aristocrático René Thiollier, era formado
por Alberto Penteado, Numa de Oliveira, Alfredo Pujol, Edgard Con-
ceição, Oscar Rodrigues Alves, Armando Penteado, Antônio Prado Júnior,
José Carlos de Macedo Soares e Martinho Prado — além do próprio Paulo
Prado.
Eram nomes conhecidos, ligados a famílias endinheiradas, alguns ho-
mens de letras, com presença no circuito cultural da cidade, como Alfredo
Pujol (1865-1930), que ajudava a bancar a Semana, sendo, não obstante,
um “imortal” da Academia Brasileira de Letras. Estudante da Faculdade
de Direito de São Paulo, Pujol foi colega de Olavo Bilac e do poeta, sen-
ador e mecenas Freitas Valle, com quem fundou o Clube dos xiii, um dos
grêmios estudantis da faculdade, inspirado nos mandamentos liberal-
democráticos da maçonaria.
Depois de formado, Pujol trabalhou em jornais e elegeu-se deputado
pelo Partido Republicano Paulista. Em 1895, foi nomeado secretário do
Interior do Estado, no governo de Bernardino José de Campos. Na década
de 1910, dedicou-se à advocacia, apoiou eventos variados em São Paulo e
realizou entre 1915 e 1917, na Sociedade de Cultura Artística, sete confer-
ências sobre Machado de Assis. Em 1917, logo depois de publicá-las, foi
25/375
eleito para a Academia, passando a ocupar a cadeira 23, que pertencera ao
autor de Dom Casmurro.
Mais descontraído e esportivo, Antônio Prado Júnior (1880-1955),
irmão mais novo de Paulo, liderou a fundação do Automóvel Clube, mas
também presidiu o Athlético Paulistano, onde disputava competições de
ciclismo, jogava futebol e praticava tênis. Amigo, desde jovem, de Santos
Dumont, ia sempre a Paris e adorava automobilismo. Em abril de 1908,
Prado Júnior promoveu com colegas um pioneiro raid de automóveis em
São Paulo. O grupo, que se autodenominava a “caravana de bandeirantes
sobre rodas de borracha”, percorreu o trecho da capital a Santos em 37
horas. Paulo Prado também participou do desafio, mas seu carro quebrou
no caminho.
O feito, que entusiasmou a cidade, serviu de impulso para o surgi-
mento do clube.
 A reunião de nomes tão respeitáveis — e ao mesmo tempo alheios à
movimentação modernista — no patrocínio da Semana não passaria des-
percebida pelo sarcasmo de Cândido, que comparou o grupo de bacanas
aos seguidores de Cristo, a pregar a Verdade Suprema da arte do futuro:
“Homens de boas intenções, os doze apóstolos, armados de bisturi, esvur-
marão as mazelas da literatura e da arte. Diante do brilho do seu estilo e
das verdades que serão ditas, ruirá por terra todo o edifício levantado
pelas gerações anteriores e os representantes da velha arte”…
Os nomes divulgados pela imprensa, entretanto, somavam onze — e
não doze. É possível que Cândido incluísse Graça Aranha na lista — ou o
governador Washington Luís.3 Se os rapazes modernistas aceitavam di-
 vidir o palco com a pianista Guiomar Novaes, o quadro nos bastidores
parecia igualmente dúbio — pois quem bancava o show era a fina flor da
oligarquia cafeeira. Para Cândido, não precisava mais nada. Estava ex-
posto o caráter farsesco da pretensa vanguarda e do espetáculo que se
26/375
prometia apresentar no Municipal: “E depois venham dizer que o futur-
ismo é uma coisa séria, coisa, aliás, que nem os seus próprios apologistas
acreditam”.
27/375
LAÇOS TRADICIONAISEm que pese a alta voltagem retórica, inevitável em momentos de embate,
os laços dos nossos “futuristas” com a tradição eram inegáveis. Vinham
de berço, de extração social, de amizades e de formação.
Quase todos pertenciam a famílias ricas ou influentes e se rela-
cionavam com artistas, escritores e personalidades “passadistas”.
Educaram-se à europeia, aprenderam línguas e frequentaram boas
escolas. Liam revistas estrangeiras, e alguns conheciam a Europa e os
Estados Unidos. Eram pessoas vinculadas aos extratos mais afortunados
e cultos da grande cidade emergente do Brasil daquele momento.
“Éramos os playboys intelectuais de 1922”, resumiria Guilherme de Al-
meida, em 62, ao Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
Em relação às obras até então produzidas, boa parte delas se subor-
dinava a preceitos mais ou menos convencionais. O sugestivo paralelo
entre o tremor de terra que chacoalhou a madrugada dos paulistanos e o
“terremoto estético” da Semana — imagem que foi usada por Oswald de
 Andrade e Menotti del Picchia — deve ser visto com uma dose de cautela.
Se, em algumas versões, tenta-se negar reconhecimento e importância às
apresentações de 1922, em outras tem-se a impressão de que teria ocor-
rido no Municipal uma espécie de insurreição bolchevique contra o status
quo cultural, liderada pela vanguarda revolucionária das artes paulistas.
28/375
 A geologia ensina que abalos sísmicos no Brasil não são provocados
por choques entre placas tectônicas, mas por rachaduras de uma mesma
placa — a Sul-Americana, sobre a qual repousa o país. Assim parece ter
acontecido com o “terremoto” da Semana, uma rumorosa acomodação de
atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo. Se havia neg-
ação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda
ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia com-
 binar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização
histórica e hegemonia intelectual.
 A exaltação da paulistanidade, muitas vezes com constrangedor ufan-
ismo, sempre esteve presente no discurso e na propaganda dos rapazes
modernistas. Num dos artigos da série para o Jornal do Comércio, por
exemplo, Oswald insistia na tecla da vocação transformadora da cidade:
“Como Roma primitiva, criada nos cadinhos aventureiros, com o sangue
despótico de todos os sem-pátria”, a capital do café, “cosmopolita e
 vibrante”, prestava-se, em sua opinião, “como poucas cidades da
 América” a acompanhar a renovação que se anunciava nas letras, nas
artes e na música. A Pauliceia — exultava o poeta — merecia “a glória de
abrigar os portadores da nova luz” do século xx, que exigia “uma maneira
nova de expressão estética”.4
Na mesma linha, no Correio, Menotti saudava, por aqueles dias, o
“neobrasileiro de São Paulo”, caldeado “sob este sol de trópico com o
sangue de cem raças”. Desse tipo humano extraordinário, argumentava
ele, só poderia se esperar uma arte “fatalmente nervosa e dinâmica”. O es-
tado bandeirante, já o “berço de um futurismo racial, industrial e econ-
ômico”, estava pronto para se consagrar como “berço do futurismo
cultural”.
Também na Gazeta, apesar das críticas de Cândido, São Paulo falou
mais alto no dia da inauguração. Um texto na coluna “Notas de Arte”, no
29/375
dia 13 de fevereiro, anunciava que um grupo de moços, “namorados da
sinceridade”, apresentaria naquela noite as novas orientações da arte
numa “manifestação de força coletiva, única na América do Sul”. O
pequeno artigo ponderava que “mesmo aqueles que seguem caminho di-
 verso” poderiam sentir-se satisfeitos de ver que a São Paulo cabia “a
primazia desta manifestação”. E isso era justo, pois “as artes florescem
sempre nas terras que apresentam um apogeu de progresso e civilização”
e não naquelas “inertes e decadentes”. O que parecia uma “indireta” para
o Rio logo se explicitava em todas as letras: “A hegemonia da Corte não
existe mais. No comércio como no futebol, na riqueza como nas artes São
Paulo caminha na frente”. E parecia fácil demonstrar isso:
Quem primeiro manifestou a ideia moderna e brasileira de ar-
quitetura? São Paulo com o estilo colonial. Quem manifestou primeiro
o desejo de construir sobre novas bases a pintura? São Paulo com An-
ita Malfatti. Quem apresenta ao mundo o maior e moderno escultor da
 América do Sul? São Paulo com Brecheret. Onde primeiro a poesia se
tornou o veículo da sensibilidade moderna livre da guizalhada da rima
e das correias da métrica? Em São Paulo.
No final, o Rio merecia uma única concessão. Estaria “mais adi-
antado” na música, com Villa-Lobos.
Se a Semana de Arte Moderna foi o marco inicial da trajetória de in-
stitucionalização do modernismo como escola oficial no país, foi também
um primeiro ponto de chegada para a maioria daqueles escritores e artis-
tas. Eles viam-se, enfim, convidados a brilhar na grande ribalta de São
Paulo, que promovia, não por acaso no simbólico ano do Centenário da
Independência, uma conveniente demonstração pública de arrojo e
cosmopolitismo.
30/375
Tiago Fagundes
Como assinalou Menotti del Picchia, para surpresa de muitos, os “fu-
turistas” se tornavam, naquele início de 1922, “a coqueluche do nosso
grand monde”.5
31/375
3
O VERNISSAGE 
33/375
34/375
35/375
36/375
37/375
Catálogo com as atrações da exposição
de arte realizada no saguão do Teatro
Municipal. O desenho de abertura
é de Di Cavalcanti, também responsável pela
imagem da capa do programa da Semana.
O grand monde paulista respondeu ao chamado dos respeitáveis
sobrenomes do comitê patrocinador e compareceu ao Municipal, que se
iluminou na noite de 13 de fevereiro para a inauguração da Semana de
 Arte Moderna. Depois de um dia abafado, com os termômetros por volta
dos 28 graus, a temperatura recuava a patamares mais amenos quando os
automóveis começaram a chegar com homens em ternos, coletes e
gravatas e mulheres em presumíveis saltos altos, meias claras e vestidos
soltos, com comprimentos que se afastavam cautelosamente dos
tornozelos.
 Alguns jornais do dia refrescaram a memória de seus leitores com not-
as sobre a abertura do evento e ressaltaram a liderança de Graça Aranha,
que, nas palavras do Jornal do Comércio, achava-se “à frente dessa inici-
ativa que pretende fazer uma completa demonstração das nossas mod-
ernas correntes estéticas”.
Graça abriria a noite com uma conferência sobre “A Emoção Estética
na Arte Moderna”, ilustrada por músicas executadas pelo pianista Ernani
Braga e poemas declamados por Ronald de Carvalho e Guilherme de Al-
meida. A seguir seriam apresentadas peças de Villa-Lobos. Na segunda
parte, Ronald voltaria ao palco para falar sobre “A Pintura e a Escultura
Moderna no Brasil”, e uma nova seção musical, também com obras do
compositor carioca, fecharia o programa.
Mas, antes de tudo isso, aconteceria no saguão do teatro, a partir das
“20 e meia horas”,6 o vernissage de uma grande exposição “futurista”.
38/375
Governador, secretários, senhoras e senhores de “distintas famílias”, além
de artistas, intelectuais, profissionais liberais e estudantes, que acorreram
à noite de estreia, poderiam contemplar cerca de cem obras de arte — de
óleos e esculturas a croquis e maquetes de projetos arquitetônicos.
Distribuíam-se em painéis e bases que antecediam e secundavam a es-
cadaria interna.
De frente para a entrada, à direita de quem chegasse, saltava aos olhos
um conjunto de doze pinturas e oito peças — gravuras, desenhos e pastéis
— de autoria de Anita Malfatti.7 A pintora decidira incluir em sua seleção
alguns trabalhos mais recentes, mas eles serviam apenas para ressaltar as
 verdadeiras pièces de résistance reservadas para a ocasião: uma coleção
de telas exibidas em 1917, numa famosa e polêmica mostra que despertou
gargalhadas epifânicas do jovem parnasiano Mário de Andrade e a dura
reprovação do escritor e crítico “naturalista” Monteiro Lobato, num artigo
publicado na edição vespertina do Estado de S. Paulo.
 Ali estavam mais uma vez aos olhos de São Paulo A mulher de cabelos
verdes,A estudante russa, O homem amarelo, A onda, A ventania, O ja-
 ponês e Rochedos — obras que permaneceram como algumas das mel-
hores de Anita e do modernismo brasileiro. Entre os desenhos e as
gravuras, chamava atenção um nu masculino, gênero que a artista re-
lutava em exibir. Intitulado O homem de sete cores, era feito a carvão e
pastel, com colorido fauve, torções anatômicas e folhagens tropicais
estilizadas.
Com todos os recuos e derivas por que passara a artista nos anos an-
teriores, seu nome continuava associado, na cidade, às “aberrações” da
arte moderna. Cinco anos depois de despertar a fúria de Lobato, as pin-
turas de Anita ainda eram observadas por alguns com o misto de fascínio
e aversão que provocam certas atrações circenses. Para desprezá-las ou
não, o fato é que todos no Municipal queriam vê-las.
39/375
 A sra. Renata Crespi, por exemplo. Filha do empresário italiano
Rodolfo Crespi, dono da maior tecelagem do estado, casada com Fábio
Prado, primo de Paulo Prado, estava ali, no saguão, diante daquelas “de-
formações” coloridas, sem saber direito o que pensar. A seu lado,
fazendo-se de guia, um atencioso Menotti del Picchia. “Não estaria torto
aquele retrato?”, perguntou-lhe a amiga. O escritor refletiu alguns in-
stantes e respondeu com bom humor: o quadro — disse ele — fora realiz-
ado sob os efeitos do famigerado terremoto de final de janeiro. Essa a
razão de seu estilo um tanto trepidante, que ressaltava o caráter
“dinâmico” da pintura. “O senhor está brincando”, duvidou a senhora.
“Não”, garantiu ele — e insistiu na história da “dinamização” que o artista
moderno pretendia imprimir em suas criações.8
Se deixassem para trás os quadros de Anita e caminhassem pelo
centro do saguão, na direção da escada, Menotti e sua acompanhante
 veriam, à esquerda, dez desenhos e pastéis de Di Cavalcanti, em compan-
hia de duas telas — Ao pé da cruz e Retrato. O jovem carioca apenas ini-
ciava sua travessia da ilustração e do desenho para os pincéis. Não era
ainda o famoso pintor de mulheres e cenas brasileiras, que só começaria a
se delinear a partir de 1923, quando foi passar uma temporada em Paris.
Como definiu Mário de Andrade, na dedicatória de um exemplar de
 Pauliceia desvairada, Di era, em 1922, o “menestrel de tons velados” —
autor de imagens muitas vezes envoltas em atmosfera fin de siècle. Era o
que se via muito bem no clima penumbrista que cercava os dois barbudos
do pastel Boêmios, uma obra de 1921, comprada pelo senador Freitas
 Valle — hoje no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Dois meses depois da Semana, em 15 de abril de 1922, a revista belga
 Lumière, que existiu entre 1919 e 1923, na Antuérpia, publicaria um
comentário do poeta e crítico Sérgio Milliet acerca da mostra. Sobre Di,
40/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
cujas obras mais recentes seriam “muito pessoais e modernas”, Milliet
considerava que havia errado ao escolher trabalhos que pertenceriam
ainda “à velha pintura”. Na sua visão, eram telas “mais ou menos impres-
sionistas, seja pela fatura seja pela própria interpretação do tema”.
 As hesitações e inquietações do artista carioca eram típicas do mo-
mento por que passava sua geração — uma época em que as obras pare-
ciam farejar novidades, sem no entanto tê-las encontrado. Era flagrante a
defasagem entre o que se mostrava e o que se dizia no inflamado discurso
“futurista” dos principais propagandistas e teóricos do grupo. Quase tudo
que se levava ao Municipal naquela celebração de arte moderna eram ex-
perimentações que, ora mais, ora menos, se apoiavam em estilos do final
do século xix, como o art nouveau, o simbolismo ou o impressionismo.
Di também expôs no saguão do Municipal desenhos concebidos para
um livro. Tratava-se provavelmente de Os fantoches da meia-noite, que
lançava por aquela época, embora em depoimento à pesquisadora e crít-
ica Aracy Amaral o artista tenha manifestado a possibilidade de que
fossem ilustrações para a edição de Dança das horas, de Guilherme de
 Almeida.
Depois de percorrer as obras de Anita e Di Cavalcanti, Menotti, nesse
tour imaginário em companhia da sra. Crespi, estava possivelmente ansi-
oso para chegar às esculturas de Victor Brecheret, o “Rodin brasileiro”,
que tanto o entusiasmava. Estavam dispostas à direita do saguão, mais ao
fundo, próximas à lateral da escada. O artista não se encontrava em São
Paulo. Havia embarcado, em 1921, para Paris, contemplado com uma
 bolsa do Pensionato Artístico do Estado — que Anita Malfatti também
queria receber.
 As peças escolhidas para representá-lo eram possantes e bem realiza-
das. Nas palavras de Milliet, em texto para a revista belga  Lumière,
tratava-se de “um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de
41/375
Tiago Fagundes
suceder a Rodin e a Bourdelle”.9 Suas esculturas fugiam do ramerrão
acadêmico afrancesado, mas, como as obras de Di, não apresentavam
nenhuma solução mais radical. Eram trabalhos “de transição”, a maior
parte concluída até 1920 — caso de Pietà, Ídolo, Vitória, Gênio e da
Cabeça de Cristo, que enlouqueceu Mário de Andrade nesse mesmo ano.
Enquanto Anita, Brecheret e Di formavam a comissão de frente do
grupo de São Paulo, o pernambucano Vicente do Rego Monteiro e a
mineira Zina Aita vinham com a turma do Rio. Ele, que se fixara por al-
guns anos na capital federal, estava, naquele momento, de volta a Paris.
Os trabalhos expostos em São Paulo tinham sido produzidos na tem-
porada carioca — e pertenciam ao poeta e diplomata Ronald de Carvalho.
Eram dez, dos quais três retratos, um deles do próprio colecionador.
Sinal do interesse de Rego Monteiro pelos ismos europeus, duas de
suas telas intitulavam-se Cubismo. Outra, Cabeças negras, unia a técnica
pontilhista à temática brasileira, uma das predileções do artista. Certa-
mente pareceria estranha ou “desfocada” a olhares fotográficos como os
da sra. Crespi. Milliet dividiu a seleção de Rego Monteiro em duas ver-
tentes — uma com características impressionistas e outra com traços cu-
 bistas, que marcavam “a evolução do pintor em direção à pintura
intelectual”.
Zina Aita, nascida em Belo Horizonte, era filha de família italiana e,
depois de estudos em Florença, conheceu, no Rio, Ronald e Manuel
Bandeira — que teriam sugerido seu nome para a Semana. Entre as obras
que exibiu, talvez a única hoje conhecida seja Petrópolis (ou Trabal-
hadores), que Aracy Amaral, pela temática, considera possível tratar-se
de A sombra, título mencionado no catálogo ao lado de outros sete da
artista. O trabalho, na opinião da pesquisadora, seria um dos “mais
avançados” da exposição — embora Zina Aita também produzisse naquele
tempo aquarelas “passadistas”.
42/375
Tiago Fagundes
 Petrópolis — ou A sombra — fez parte de uma individual da pintora
realizada no espaço da livraria O Livro, de Jacinto Silva, em março de
1922, na sequência da Semana. Foi adquirida por Yan de Almeida Prado,
para quem Zina Aita teria sido a “melhor” da mostra de pintura. A opinião
de Milliet difere da de Almeida Prado. Para ele Anita Malfatti mostrou o
que havia de melhor na exposição. Zina Aita pareceu-lhe “mais bizarra
que original”.
Completavam o grupo do Rio o obscuro desenhista Alberto Martins
Ribeiro e o escultor Hildegardo Leão Velloso. Graças a depoimentos de
participantes da Semana colhidos por Aracy Amaral, sabe-se que Martins
Ribeiro teria sido um talento promissor — mas, nas palavras de Renato
 Almeida, “não se desenvolveu”. Segundo Di, “fazia uns retratos, desenhos
de cabeça, de imaginação”. Morreu jovem, ao que parece, na Itália.
Quanto ao segundo, neto de senador do Império e aluno dos irmãos
Henrique e Rodolfo Bernardelli, foi citado na imprensa como um dos par-
ticipantes, embora seu nome não apareça no catálogo. Leão Velloso
notabilizou-se por obras convencionais — monumentos e bustos em hom-
enagem a vultos como Rui Barbosa, almirante Tamandaré e general
Osório. Assim como Martins Ribeiro, pouco parece ter influído na
evolução do movimento renovador que florescia na época.
Um caso duvidoso — e mais interessante,pela qualidade do artista — é
o de Oswaldo Goeldi (1895-1961), carioca, filho do cientista Emílio
 Augusto Goeldi. Sua primeira exposição foi em 1917, em Berna, capital da
Suíça, país onde viveu dos seis aos 24 anos. Voltou ao Brasil em 1919, tra-
 balhou como ilustrador e, em 21, expôs no saguão do Liceu de Artes e Ofí-
cios do Rio.
Com exceção de menções na imprensa à primeira lista de parti-
cipantes, não há registro sobre a presença do grande gravurista na
43/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Semana. Questionada a respeito, Aracy Amaral, que teve oportunidade de
ouvir o depoimento de veteranos da exposição, considera que o artista
“não participou”.10
44/375
BORRÕES VANGUARDISTAS
Três outros paulistas exibiram trabalhos na assim designada mostra de
“pintura” — os ilustradores Ferrignac, Yan de Almeida Prado e Antonio
Paim Vieira.
Ferrignac, pseudônimo de Ignácio da Costa Ferreira (1892-1958), per-
tencia à turma que se divertia na garçonnière de Oswald de Andrade, na
rua Líbero Badaró, no final da década de 1910. Deixou várias caricaturas
no livro-diário daqueles encontros — O perfeito cozinheiro das almas
deste mundo… — e colaborou em revistas como Vida Moderna e O Pir-
ralho. Seu trabalho na Semana denominava-se Natureza dadaísta.
O título era provocativo, mas a obra se perdeu. Não há como saber se
realmente correspondia ao vanguardismo anunciado ou se a alusão ao
movimento dadá era só para inglês — no caso, paulista — ver. De
qualquer forma, em seu artigo para a Lumière, Milliet situou o desenho
na “extrema esquerda do movimento paulista”. O rótulo pode eventual-
mente corresponder a essa enigmática Natureza dadaísta, mas não se ap-
lica à trajetória do ilustrador — que, aliás, acabou deixando a arte para
trabalhar na polícia.
Já Yan de Almeida Prado e Paim Vieira sempre insistiram na versão
de que nada tinham de modernistas. Teriam se juntado à mostra por pura
gozação. O primeiro, desenhista esporádico, que se tornaria historiador e
45/375
 bibliófilo, chegou a colaborar na revista Klaxon, mas se desentendeu com
o grupo e se transformou num crítico obstinado da Semana, para ele um
acontecimento sem importância, cuja notoriedade se deveu exclusiva-
mente ao esforço promocional — que de fato existiu — de alguns de seus
participantes, em especial Oswald e Mário de Andrade.11
O nome de Yan de Almeida Prado aparecia no catálogo da exposição
como autor de “dois desenhos”. O de Paim Vieira não era citado. Tratava-
se, entretanto, de conhecido desenhista e artista gráfico, que fizera as
ilustrações do poema As máscaras, lançado em 1921 por Menotti del Pic-
chia. No período de 1923 e 1924 seria também responsável pelo visual re-
finado da revista Ariel .
Os depoimentos de ambos não deixam dúvidas sobre a parceria. Al-
meida Prado declarou ter sido convidado por membros do comitê patro-
cinador — como Alfredo Pujol e o próprio Thiollier. Por comodismo teria
pedido ajuda a Paim Vieira, “que já tinha tudo pronto” — tintas, papel,
crayon, verniz e “até caixilhos”.
Em entrevista para o mis-sp em 1971, Paim contou que ele e o amigo
acharam “muita graça” quando souberam da organização da Semana, e
resolveram entrar no evento “de gaiatos”. Teriam apanhado pedaços de
cartolina e esboçado rapidamente algumas figuras, entregues por Almeida
Prado a Thiollier, “que recebia os últimos trabalhos”.
•
Em esquecido — e surpreendente — testemunho, no livro A longa
viagem Menotti afirma que algumas obras teriam sido improvisadas para
reforçar a exposição.12 Como o grupo de artistas era “minguado”, dizia
ele, “tivemos que nós mesmos borrar às pressas mais algumas telas”. O
escritor não menciona a dupla Paim Vieira e Almeida Prado, tampouco
46/375
revela quem seriam as pessoas incluídas nesse genérico “nós mesmos”.
 Apenas diz que “telas ultraístas” foram “besuntadas a esmo”. Além de ser-
 vir para ampliar a mostra, “essa mistificação consciente”, segundo
Menotti, teria o significado de um “protesto contra o meloso e já de-
crépito academismo”.
Embora o catálogo mencione duas, Almeida Prado diz ter pendurado
três obras no “tabique” ao fundo do saguão, do lado esquerdo da entrada.
Os títulos faziam jus ao espírito brincalhão: La faune rassasié, Une
anglaise m’a dit e Galpollinaire.
Entre os estrangeiros adotados pela Semana, sobressaía, na pintura, o
suíço John Graz, artista que depois se dedicaria a projetos de interiores,
mantendo-se ligado à história do modernismo paulista. Em 1922, no ent-
anto, Graz era ainda um pintor estrangeiro casado com uma artista
 brasileira, Regina Gomide. Seus oito quadros a óleo, dispostos à es-
querda, próximos aos de Anita, tinham sido todos trazidos da Europa.
Com trinta anos na época, Graz fora aluno da Escola de Belas-Artes de
Genebra e de um curso de gráfica publicitária em Munique. Conheceu Re-
gina, filha do pintor Antonio Gomide, na Suíça. Em São Paulo, em 1920,
os dois promoveram uma exposição. Oswald de Andrade compareceu,
gostou do que viu e adquiriu uma obra de John Graz. Pagou com um ter-
reno em Pinheiros — onde o casal construiu sua residência.13 Milliet
destacou o “colorido vigoroso” das telas do pintor, “de um simbolismo
místico simples, duro, ingênuo”, que revelaria a influência de seu conter-
râneo Ferdinand Hodler (1895-1918), ligado ao art nouveau.
Mais episódica na história da arte brasileira foi a presença do alemão
 Wilhem Haarberg, autor de esculturas de pequenas dimensões, cuja par-
ticipação na Semana se deve a Mário de Andrade. Ferido na guerra, com
um tiro no maxilar, Haarberg (1891-1986) deixou o serviço militar e,
47/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
terminado o conflito, mudou-se para São Paulo em 1920. Em 1921,
começou a dar aulas de arte na Escola Alemã, quando conheceu o poeta.
Correspondência guardada no acervo do Instituto de Estudos
Brasileiros, na Universidade de São Paulo, atesta a existência de uma re-
lação cordial entre os dois — que durou anos. São bilhetes datados de
fevereiro de 1922 e escritos em alemão, idioma que Mário começara a
estudar em 18. Num deles, o escultor dizia ter tomado conhecimento pelo
 Estado de S. Paulo de sua participação numa “semana de arte brasileira”
e pedia esclarecimentos: “Gostaria de cordialmente perguntar se o senhor
poderia me dar maiores informações a respeito”. Para tanto, Haarberg
convidava o amigo a visitá-lo — e à sua esposa — em sua residência, na
rua Tamandaré, 70.14
O catálogo da Semana registra cinco obras de Haarberg, sendo duas
delas intituladas Mãe e filho — em madeira. Sobre o artista alemão, Mil-
liet foi lacônico, mas positivo — “um escultor bastante jovem e a quem
não falta talento”.
48/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
 ARQUITETURA POSSÍVEL
Em meio às pinturas, pastéis, desenhos e esculturas, coube a Antônio
Garcia Moya e a Georg Przyrembel defender no Municipal o que haveria
de “mais atual” em arquitetura. A peça mais vistosa estava à mostra no
meio do saguão, diante da escadaria: a maquete de um projeto de
Przyrembel para uma casa de veraneio de sua família — a Taperinha —,
na Praia Grande, litoral norte paulista. Era um misto de estilo francês e
elementos inspirados no colonial brasileiro.
O arquiteto, nascido na Polônia em 1885, chegara ao Brasil por volta
de 1912-13, já próximo dos trinta anos. Interessou-se pelo passado do
país, foi a Minas ver o barroco, e adotou, à sua maneira, o chamado “colo-
nial”. Era um estilo híbrido, mas prestigiado pelos modernistas, por ser
uma tentativa de escapar da “cópia” europeia e dos delirantes “aleijões ar-
quitetônicos” que, nas palavras de Manuel Bandeira, enfeavam a avenida
 Atlântica do Rio — e outras vias de cidades brasileiras. O mau gosto, no
entendimento do poeta, atingira tal proporção que o retorno a padrões in-
spirados no passado colonial surgia como louvável opção.
Mário de Andrade também se preocupava com o assunto. Um dos só-
cios fundadores da Sociedade de Cultura Artística, estava ele, em 1914, na
plateia que prestigiou a conferência do arquiteto portuguêsRicardo
Severo, com o tema “A Arte Tradicional Brasileira: a Casa e o Templo”.
49/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Severo, em sintonia com o nacionalismo que pipocava em todas as áreas,
dava início a uma campanha pela busca de raízes “nossas” na arquitetura.
O modernismo arquitetônico, contudo, só apareceria mesmo no Brasil em
1927, quando Gregori Warchavchik construiu sua casa no bairro da Vila
Mariana, em São Paulo. A conferência de Severo incentivou Mário a visit-
ar Minas, em junho de 1919, para preparar conferências e artigos sobre
arquitetura e arte religiosa. Dois anos antes da Semana, o poeta publicou
quatro ensaios sobre o tema na Revista do Brasil .
Diferentes do colonial afrancesado de Przyrembel, os croquis e desen-
hos de Moya demonstravam apreço pelas estruturas geométricas e evoc-
avam construções ibéricas, orientais e pré-colombianas. Eram mais
ficções que projetos propriamente ditos. O mérito residia justamente
nesse exercício imaginoso, cujas formas destoavam dos padrões con-
hecidos. O espanhol, que se mudara ainda criança para São Paulo,
tornou-se amigo de Brecheret, ilustrou Pauliceia desvairada e trabalhou
com Jorge Krug, tio de Anita Malfatti; mais tarde, associou-se a Guilher-
me, irmão da pintora.
 A representação arquitetônica na Semana e o interesse dos modernis-
tas pelo assunto pareciam não dar muita atenção ao que se passava nas
grandes cidades dos Estados Unidos, onde se erguiam os arranha-céus do
novo século. Talvez fosse um sinal da “eurodependência” do ambiente
cultural. Mas, ainda assim, em 1916 Vicente Licínio Cardoso apresentou
no Rio, conforme Aracy Amaral, uma conferência a respeito do tema, sem
repercussão entre os paulistas.15
•
 Anita Malfatti foi, sem dúvida, a celebridade da exposição de arte da
Semana, que lhe reservou, em reconhecimento ao pioneirismo, a maior
50/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
participação individual. Embora não tenha se sentido vítima de “nenhum
insulto direto”, Anita descobriu bilhetinhos ofensivos presos no verso de
suas telas. E houve quem repetisse na imprensa, com sabor de farsa, a
retórica de Lobato. Num artigo publicado ao mesmo tempo na revista Ci-
garra e na Folha da Noite, em 15 de fevereiro, o jornalista Mário Pinto
Serva (1881-1962) repisava a ideia de que a estética futurista deveria “ser
estudada como fenômeno de patologia mental”.
Para o articulista, as manifestações “extravagantes” da arte moderna
seriam fruto de “um verdadeiro estado mórbido” de certos espíritos.
Explicava:
 A pressa de aparecer, o prurido de destaque a todo transe, o desejo in-
contido de chamar a atenção, sem estudo, sem trabalho paciente,
desde logo, de afogadilho, a ingenuidade de certos espíritos de-
sprovidos de qualquer preparo, o desequilíbrio de alguns cérebros, o
 verdor da mocidade, tais são, entre outros, os principais móveis que
determinaram o futurismo e caracterizaram os adeptos dessa escola.
Embora em regra ignorante, todo artista futurista — prosseguia o jor-
nalista — se julgaria mil vezes superior a Dante, Goethe, Shakespeare,
 Victor Hugo e Beethoven, guardando “o mais soberano desdém” por to-
dos eles.
 Anita não deu bola para o ataque. Divertiu-se com os bilhetinhos e as
reações contrárias. A seu ver, daquela vez o saldo era positivo. Sentiu-se
lisonjeada quando o pai de Paulo Prado e sogro da sra. Crespi, o lendário
conselheiro Antônio da Silva Prado, em meio ao burburinho do vernis-
sage, quis comprar O homem amarelo. O problema é que o quadro já es-
tava reservado para Mário de Andrade, desde 1917, quando lhe causou, à
primeira vista, fortíssima impressão. De qualquer forma, o interesse
51/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
demonstrado por figura tão respeitada, verdadeiro monumento paulista,
indicava que as mentalidades mais tradicionais e suas coleções
começavam a se abrir à arte moderna.
Numa conferência realizada em 1951, na Pinacoteca do Estado, Anita
recordou-se, com orgulho, desse episódio. Se o conselheiro se interessou
em adquirir uma obra como aquela, era sinal de que a “plantinha havia
 vingado”.
52/375
Tiago Fagundes
4
 AS CORES DA NOVIDADE
55/375
 Anita Malfatti em novembro de 1914,
pouco antes de completar 25 anos;
a pintora, que nasceu em dezembro de 1889
e morreu em novembro de 1964, passou parte
de sua vida em Berlim, Nova York e Paris.
 Anita Catarina Malfatti nasceu pouco depois da Proclamação da
República, na segunda-feira 2 de dezembro de 1889, em São Paulo. Os
pais, Samuel Malfatti, imigrante italiano, e Eleonora Elizabeth Krug, des-
cendente de alemães e de norte-americanos, já tinham um garoto de dois
anos chamado Alexandre. A família morava na Florêncio de Abreu, uma
 via cruzada por bondes puxados a burro, onde se erguiam estabelecimen-
tos comerciais e residenciais, alguns deles numa mesma construção — o
negócio no térreo, a moradia no piso superior. A rua, que existe até hoje,
ligava o centro de São Paulo à região da Luz. Ali se localizava um dos mais
concorridos pontos de lazer da cidade, o Jardim Público, com lago, cha-
fariz, cisnes e seriemas, próximo à estação ferroviária, ainda sem o
famoso edifício inglês, importado parafuso por parafuso da Europa e in-
augurado em 1901.
 Ao que se sabe, o republicano Samuel abandonou a Itália por im-
posição do pai, depois de ter enfrentado problemas políticos. Expulso da
Universidade de Pisa, tão logo conseguiu se formar, em Bolonha, foi des-
pachado para a Argentina, onde trabalhou na construção de ferrovias. Em
meados da década de 1880, transferiu-se para Campinas, a capital agrí-
cola da então Província de São Paulo, que crescia com os cafezais.
Foi lá que Samuel conheceu sua futura mulher. Bety, como os mais
próximos a chamavam, era filha do alemão Guilherme Krug, também lig-
ado ao ramo da construção civil. Ele mudou-se para o Brasil aos dezessete
56/375
anos, no início da década de 1850, em companhia do pai. Mas logo partiu
para os Estados Unidos.
Na Califórnia do Velho Oeste, conheceu Amélia Catarina Bailey, a avó
de Anita, uma mestiça com sangue de pele-vermelha. Casaram-se e
 viveram em Fresno, onde nasceu Bety. Pouco depois, a família mudou-se
para Campinas e, a seguir, para São Paulo, fugindo de uma epidemia de
febre amarela.
Feliz com a chegada da filha naquele final de 1889, o casal Malfatti foi
colhido por um imprevisto. A menina nascera com a mão direita
defeituosa.
 Aflito com a situação, em maio de 1892 Samuel, que acabara de ser
eleito deputado estadual, pediu licença por tempo indeterminado, alugou
uma villa na região de Lucca, na Itália, e partiu com a mulher e as duas
crianças em busca de ajuda médica. Passado um período penoso de
avaliações, a menina foi submetida a uma cirurgia, em 1893.
O resultado não foi o que esperavam. Anita estava condenada a con-
 viver com uma grave atrofia, que a obrigaria a se adaptar ao uso da mão
esquerda.
De volta da Itália, a Babynha, como era chamada em casa, foi matricu-
lada numa escola católica, o Externato São José, e sua adaptação física
confiada a uma norte-americana, a educadora Marcia Browne, que auxili-
ou Caetano de Campos em reformas do ensino paulista. Com o passar dos
anos, Anita fez progressos e a vida da família seguiu seu curso. Já eram
quatro filhos — Guilherme havia nascido durante a viagem à Itália, e Ge-
orgina após o retorno ao Brasil.
Em 1901, Samuel Malfatti morreu, vítima de um ataque cardíaco. Com
a perda inesperada, Bety mudou-se para a casa dos pais, na rua Bri-
gadeiro Galvão. Anita, então com doze anos, passou a frequentar a Escola
57/375
 Americana, um empreendimento educacional protestante, que oferecia
pela primeira vez na cidade modernas classes mistas. Encobria a mão
direita com um lenço e saía-se cada vez melhor com a esquerda. Animava-
se, com esses progressos, a seguir sua inclinação para o desenho, embora
se sentisse insegura sobre seu talento.
 A família morava agora na Barra Funda, bairro que nasceu da fazenda
do Iguape, pertencente ao barão do Iguape, pai de d. Veridiana Prado.
Dividida,a propriedade deu origem à Chácara do Carvalho, do consel-
heiro Antônio da Silva Prado, que encomendou uma sede (que ainda ex-
iste) em estilo Luís xvi ao arquiteto Luigi Puci, o mesmo que projetou o
Museu do Ipiranga. Loteada em finais do século xix, a área, atravessada
pelos trilhos da São Paulo Railway e da Sorocabana, cresceu rapidamente.
Próxima aos ricos Campos Elíseos e Higienópolis, atraiu famílias endin-
heiradas — e também operários. O bairro estende-se pela várzea sul do
Tietê e seu nome seria uma referência à profundidade daquele pedaço do
rio.
Num depoimento de 1939, quando já tinha cinquenta anos, Anita Mal-
fatti falou sobre seu drama de adolescente “que não sabia que rumo tomar
na vida”. Atormentada, imaginou que uma forte emoção, capaz de
aproximá-la “violentamente do perigo”, pudesse ajudá-la a tomar suas de-
cisões. Resolveu, então, submeter-se a uma experiência radical. Entrou
num vão sob a linha de trem, nas proximidades de sua casa, e aguardou a
passagem da composição:
Deitei-me embaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de
mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a
deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão
de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço,
58/375
cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a
revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.16
O futuro que teria sido descortinado por essa visão lisérgica tinha, na
realidade, raízes familiares. A mãe de Anita pintava desde jovem. Naquela
época praticava com o pintor italiano Carlo de Servi (1871-1947), oriundo
de Lucca. Era um dos inúmeros artistas estrangeiros que vieram ao Brasil
na virada do século xix para o xx. Chegou em 1895 e, quatro anos depois,
participou pela primeira vez do Salão Nacional de Belas-Artes. Em São
Paulo, fez retratos de figurões da cidade, como d. Veridiana Prado,
Prudente de Moraes, Campos Salles e Washington Luís. Também ficou
conhecido por suas decorações em igrejas.
Na descrição da pesquisadora Marta Rossetti Batista, Bety, orientada
por Servi, realizava uma pintura “de colorido terroso e escuro, na qual
pinceladas claras marcavam os efeitos de luz”. Retratava mulheres e vel-
hos, como era comum na chamada “pintura feminina”17 — distinção que
se fazia naquele tempo.
Em 1906, Anita terminou, no Mackenzie College, o ciclo que encerrava
a educação formal das moças na época, e passou a se dedicar com afinco
ao desenho e à pintura, sob orientação da mãe. E ia muito bem. Em 1909,
a pedido do irmão Alexandre, reproduziu a óleo uma ilustração estam-
pada na capa de uma revista espanhola — um burrinho em disparada. A 
pintura, com a assinatura “Babynha”, foi vista em casa como uma demon-
stração definitiva de seu talento.
Em 1910, a aprendiz de artista ia completar vinte anos e já sabia o que
queria da vida: estudar pintura na Europa. Famílias ricas costumavam
mandar os filhos para temporadas educativas e civilizatórias no Velho
Continente, mas, para ela, isso não era tão fácil. A mãe já não levava vida
59/375
folgada. Afora as lições artísticas, dava aulas de línguas (falava cinco idio-
mas, além do português) para ajudar a manter os filhos e a mãe idosa,
acamada pelo reumatismo. Estudar fora do país era um sonho, nessas cir-
cunstâncias, que parecia impossível.
Um dia, ao visitar as amigas Hermantina e Helena, colegas suas do
Mackenzie, Anita surpreendeu-se ao ouvir da mãe das meninas, d.
Estephania, que pretendia levá-las para estudar música na Alemanha.
“Por que você não nos acompanha?”, sugeriu ela.
 Agitada com a perspectiva que inesperadamente se abria, decidiu re-
correr ao lado abastado da família — os Krug. Contou seus planos a uma
de suas tias e não demorou a ser procurada pelo tio Jorge, arquiteto, en-
genheiro, colecionador de arte, que ganhava dinheiro com o boom
imobiliário e urbanístico da capital. Depois de se certificar das intenções
da sobrinha, ele decidiu bancar a viagem.
 Ainda incrédula com o rumo dos acontecimentos, em agosto de 1910
 Anita Malfatti embarcou para a Europa num transatlântico, em compan-
hia das Shalders. No dia da Independência, 7 de setembro, estava na
 Alemanha.
60/375
OUTRO MUNDO
Para quem vivia na periférica São Paulo do início do século, Berlim dever-
ia parecer assombrosa. Na capital do reino da rica e multifacetada Ale-
manha, as engrenagens da modernidade, em 1910, já se moviam em ritmo
industrial. A cidade, com mais de 2 milhões de habitantes, tinha metrô,
luminosos, fervilhante comércio, universidade, instituições científicas e
corre-corre de metrópole. Era um dos palcos culturais do mundo, centro
de vanguarda na música, na dança e no teatro — e de intensa atividade
nas artes visuais.
O descontentamento com a rigidez acadêmica, no final do século xix,
 já havia gerado uma série de dissidências no meio artístico do país, con-
hecidas como Secessões. Essas associações estabeleciam seus próprios
critérios, agrupavam artistas e promoviam suas mostras. As mais import-
antes eram as de Munique, Berlim e Viena — esta última liderada por
Gustav Klimt, autor do célebre Beijo.
Em Berlim, galerias como as de Paul Cassirer e Fritz Gurlitt, além da
própria Secessão local, mostravam com frequência os novos artistas
europeus, entre eles Van Gogh e Munch — que ficaria mundialmente
famoso com seu O grito. O ambiente, antes da escalada nacionalista que
culminaria na Grande Guerra, era bastante cosmopolita. Os alemães
61/375
foram, por exemplo, os primeiros a adquirir uma obra de Cézanne para
uma coleção pública nacional.
Quando Anita chegou ao país, ganhava forma um tipo de pintura
agressiva e espontânea, com tintas fortes, cores e deformações, que mais
tarde ficaria conhecida como expressionista, termo muitas vezes impre-
ciso, assim como outros comumente usados na tentativa de mapear a di-
 versidade da produção artística. Era uma das muitas e variadas vertentes
que pipocavam na nova arte europeia.
Reunidos em Dresden, a partir de 1905, os integrantes do grupo Die
Brücke (A Ponte) — Ernst Kirchner (1880-1938), Erich Heckel
(1883-1970), Emil Nolde (1867-1956) e outros artistas — dividiram seus
ateliês, realizaram exposições, lançaram e publicaram álbuns inspirados
pelas xilogravuras alemãs medievais, pela escultura primitiva e pela
manifestação artística de crianças, numa estética que alinhava sentimento
trágico, melancolia e grandes doses de acidez e humor. Personagem-
chave do movimento, o colecionador, marchand e organizador de ex-
posições Herwarth Walden (1878-1941) fundou a revista Der Sturm, que
chegou a ter uma tiragem de 30 mil exemplares e difusão internacional.
Um segundo núcleo expressionista se formaria em 1911, desta vez em
Munique, articulado por Wassily Kandinsky (1866-1944), Franz Marc
(1880-1916), August Macke (1887-1914) e Paul Klee (1879-1940). Com o
nome de Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), editou um almanaque, promoveu
exposições e reforçou o contato da Alemanha com as vanguardas da Rús-
sia e da França. Líder espiritual do grupo, Kandinsky interessava-se por
filosofia, religião, poesia e música. Suas telas, àquela altura, já aban-
donavam as referências da realidade para ingressar no mundo da
abstração.
62/375
Para Anita, era um carrossel de novidades, ao mesmo tempo fascin-
ante e aflitivo. Impressionava-se com as experiências modernas, mas
sobretudo com a grande pintura que tinha a oportunidade de ver, pela
primeira vez, nos museus. Sentia-se oprimida e “tonta” com tanta inform-
ação. “A emoção não era de deslumbramento, mas de perturbação e in-
finito cansaço diante do desconhecido”, diria ela depois.18
63/375
DOIS MESTRES
Há desencontros quanto aos caminhos percorridos pela jovem artista em
seus estudos, mas é certo que Anita tomou lições com um pintor chamado
Fritz Burger e com Lovis Corinth, que se tornaria seu grande mestre em
Berlim. Procurou-o depois de ter visto alguns de seus quadros, pintados,
segundo ela, com “quilos de tinta” e muitas cores: “A tinta era jogada com
tal impulso,com tais deslizes e paradas repentinas, que parecia a própria
 vida a fugir pela tela afora”, recordou ela na conferência “A Chegada da
 Arte Moderna ao Brasil”, em outubro de 1951, na Pinacoteca do Estado.19
Nome conhecido da pintura alemã, com produção caudalosa e difícil
de ser encaixada nos ismos da época, Corinth tinha predileção por temas
 violentos e sensuais. Foi um dos organizadores da mostra da Primeira Se-
cessão de Munique, em 1892, na qual se viam obras de Claude Monet, Éd-
ouard Manet, Paul Cézanne e Vincent van Gogh. No início do século,
mudou-se para Berlim e criou sua própria academia.
Na mesma conferência de 1951, Anita lembrou-se do inusitado local
em que se reuniam os alunos: “No grande ateliê, onde havia aparelhos de
ginástica, cordas como nos circos, trapézios e uma floresta de cavaletes, o
ambiente me parecia elétrico”. Nas primeiras aulas, ela desenhava sem
parar, mas não se sentia autorizada a pintar. Um belo dia, o professor,
 vendo-a exercitar-se com o carvão, perguntou-lhe o que fazia. “Como não
64/375
posso pintar, estou me divertindo com a forma”, respondeu. “Quem disse
que você não pode pintar?”, retrucou ele. Radiante com a autorização do
mestre, largou o carvão, atravessou a rua e voltou com uma tela, uma
caixa de tintas, pincéis e palheta — pronta para entrar na dança da cor. 20
Corinth era um boêmio. Acordava tarde, nem sempre aparecia na
escola e tinha rompantes de fúria. Certa feita, quando corrigia pela en-
ésima vez um trabalho de uma aluna, irritou-se, pegou uma espátula e
começou a raspar a pintura de alto a baixo. Encontrando resistência na
tinta seca, perdeu a paciência, rasgou a tela, arrebentou o cavalete e — se-
gundo Anita — “pisou tudo com força”.
Na mesma escola, ela teve outro professor — Ernst Bischoff-Culm,
mais voltado para a técnica de pintura. Com ele, dedicou-se a experiên-
cias de separações e misturas de cores, e começou a concluir suas
primeiras telas na Alemanha; uma delas, O poeta adolescente, para seu
êxtase foi escolhida por Corinth para ser exibida numa mostra da
Secessão.
•
Nos meses de junho e julho de 1912, nossa jovem pintora, que havia
deixado de viver com as Shalders para morar com a família Zschöckel na
rua Grünnewald, foi passear com as amigas nas montanhas Harz. A 
seguir viajou para Bruxelas e Colônia, onde visitou a impressionante Son-
derbund — uma das maiores exposições de arte moderna da história, com
cerca de seiscentas obras de um amplo leque de artistas europeus, entre
os quais Cézanne, Van Gogh, Matisse, Gauguin, Braque, Mondrian,
Kokoschka e Kandinsky.
65/375
 A visão dessa mostra acompanhou a nascente pintora paulistana na
 volta ao seu país, no início de 1914, precipitada pelos sinais de guerra no
 Velho Continente.
66/375
5
O TEATRO DA PAULICEIA 
O Teatro Municipal de São Paulo, palco
da Semana de Arte Moderna, deve sua
construção a Antônio da Silva Prado,
pai de Paulo Prado. Inaugurado em 1911,
é um dos símbolos das ambições
da elite cafeeira.
68/375
No período em que Anita estudava na Alemanha, São Paulo foi deixando
para trás o casulo colonial. Na década de 1910, a tradicional sociedade das
fazendas ganhava uma interface urbana mais definida e convincente.
Famílias do interior transferiam-se para a capital, onde a “picareta civiliz-
adora” — como observou o cronista Couto de Magalhães21 — abria novos
espaços e substituía os pesados casarões por prédios elegantes e con-
struções à moda de tudo, de chalés suíços a moradias bretãs ou
“italianadas”.
Simultaneamente, o ritmo da imigração estrangeira amplificava a al-
gazarra polifônica dos dialetos e idiomas. Pela cidade, ouvia-se do hebreu
ao alemão, passando pelo espanhol e pelo árabe. Sobressaía, contudo, o
italiano, que das casas chegava às ruas para cozinhar o macarrônico
dialeto ítalo-paulistano — captado, com muito sabor, aliás, por Alexandre
Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananére, no livro  A divina increnca.
Nessa atmosfera de prosperidade e frisson europeizante, criavam-se
os pré-requisitos para o aparecimento de um circuito cultural.
Diferentemente do Rio, antiga corte e capital da República, onde a
produção artística já havia se organizado em instituições e encontrava
meios mais avançados para circular no mercado, em São Paulo o ambi-
ente ainda invertebrado pedia que a iniciativa privada entrasse em cena
para estruturá-lo.
Foi o que começou a acontecer de forma sistemática na passagem do
século xix para o xx. Em associação com o poder público, ou melhor, em
nome desse poder, com o qual na prática se confundia, o baronato do
69/375
café, como se fundasse um país, dedicou-se à criação de instituições edu-
cacionais, científicas e artísticas no estado — como o Museu Paulista, o
Instituto Histórico e Geográfico, o Liceu de Artes e Ofícios, a Pinacoteca,
o Conservatório Dramático e Musical, o Teatro Municipal e a Sociedade
de Cultura Artística.
Nesse cenário, direta ou indiretamente, por intermédio do mecenato,
do investimento ou das subvenções arrancadas do governo estadual, o
“ouro verde” financiava a realização de concertos, exposições e espetácu-
los cênicos, além de bancar a expansão do circuito de cinema. Também
era importante a atuação de clubes e associações ligados às comunidades
de imigrantes, que promoviam atividades recreativas e culturais.
Nas artes plásticas, ao contrário do que se tornou comum repetir, a
São Paulo que antecedeu o modernismo não era um deserto; tinha
produção, calendário de mostras e mercado ativo de arte. Na década de
1910 foram realizadas pelo menos 244 exposições na cidade, o que corres-
ponde, em média, a duas por mês.22 A ausência de galerias especializadas
e a existência de apenas um museu de arte, a Pinacoteca, levava a maior
parte dessas mostras a ser organizada em lojas comerciais e salões de
palacetes, que recebiam cenografia especial para a ocasião — paredes for-
radas de pano, vasos com plantas, cadeiras etc.
Em 1911, quando Anita Malfatti partiu para a Alemanha, a agenda
artística paulistana foi das mais concorridas. O evento mais espetacular
foi a abertura do Teatro Municipal, que substituía, com as vantagens de
uma opera house europeia, o velho teatro São José, dando à cidade um
palco à altura dos melhores artistas e companhias do mundo.
Na véspera da inauguração, que aconteceu na noite de 12 de setembro,
o jornal O Estado de S. Paulo descreveu para seus leitores o “suntuoso
edifício” situado no quadrilátero das ruas Barão de Itapetininga, Consel-
heiro Crispiniano, do Theatro e Formosa, “sobranceiro ao vale do
70/375
 Anhangabaú, no planalto da margem esquerda”, o que conferia localiza-
ção “excepcional ao monumento”. Somados plateia, frisas, camarotes e
torrinhas, a nova casa era capaz de receber 1816 pessoas. A construção,
com área de 3609 metros quadrados, era maior que a do Municipal do
Rio. Dividia-se em três partes:
O corpo da fachada, abrangendo o vestíbulo, a escada nobre, salão,
portaria, restaurante e dependências da administração; a parte cent-
ral, compreendendo a sala de espetáculos, com seus corredores e ga-
lerias; e o corpo posterior, formando o palco, com suas galerias lat-
erais, camarins e salas de artistas.
No dia 13, um artigo do Paiz classificou de “deslumbrante” a concor-
ridíssima estreia, com a encenação da ópera Hamlet , precedida da proto-
fonia do Guarani . Mas não deixou de observar que o grande afluxo de
público obstruiu o trânsito e dificultou o acesso dos “carros” (como se
chamavam as carruagens puxadas por cavalos) e dos automóveis:
Desde o anoitecer que o teatro estava, interior e exteriormente, feer-
icamente iluminado. Nas vizinhanças viam-se numerosíssimas pess-
oas, havendo também numerosos carros e automóveis com pessoas da
melhor sociedade, que admiravam o belíssimo espetáculo. O viaduto
estava repleto. Pouco depois das oito horas da noite começaram a
chegar os espectadores, todos em traje de rigor; as senhoras vestiam
riquíssimas toilettes. A grande multidão que se formava a essa hora
nas proximidades do teatro dificultoupor tal forma o trânsito de car-
ros e automóveis com os espectadores, que alguns somente às 10 horas
da noite conseguiram chegar à porta do teatro.
71/375
Com a confusão, a ópera de Ambroise Thomas, estrelada pelo barítono
Titta Ruffo, cujo início estava previsto para as oito horas da noite, só
começou por volta das dez — e encerrou-se já na madrugada do dia 13,
sem a apresentação do epílogo da tragédia de Shakespeare. O tumulto e
os danos causados à programação pediam providências das autoridades
para ordenar o trânsito nos dias seguintes.
Em 18 de setembro, o Estado noticiava o êxito do novo esquema
montado:
Depois das medidas adotadas para facilitar o ingresso no Teatro Muni-
cipal, o serviço de trânsito de veículos naquele local melhorou
consideravelmente, tornando-se irrepreensível não obstante o elevado
número de carruagens que ali tem comparecido, como ainda sucedeu
ontem. Cerca de 300 veículos transportaram espectadores para o
teatro, tendo permanecido aguardando a saída 290 veículos, dos quais
140 automóveis e 150 carros. Não houve dificuldades para o desem-
 barque franqueado na escadaria principal e nos torreões laterais. A 
saída não foi demorada, prolongando-se por apenas 17 minutos. Como
nos dias anteriores, o policiamento foi feito por praças de cavalaria,
uma guarnição de infantaria, todos em grande gala, e uma numerosa
turma de ciclistas, da guarda cívica, para a chamada dos veículos.
O Municipal foi erguido pelo escritório de Francisco de Paula Ramos
de Azevedo, responsável por nove entre dez obras importantes da época.
O arquiteto, formado na Bélgica, estabeleceu-se em São Paulo em 1889.
Construiu inúmeros palacetes privados e prédios públicos, como o Cor-
reio e o Palácio das Indústrias. Envolvido num leque de atividades, foi um
dos fundadores do Liceu Pasteur e do Banco Belga. Da mesma forma que
72/375
Tiago Fagundes
a família de Anita Malfatti, Ramos de Azevedo mantinha laços com
Campinas, sua cidade natal. O tio endinheirado da pintora, Jorge Krug,
foi seu sócio e amigo.
Uma espécie de catedral da cultura, a simbolizar as ambições que fer-
mentavam na “metrópole do café”, o Municipal servia também para a or-
ganização de exposições, banquetes e até convenções do prp — o partido
da elite paulista, que era, afinal, “dona” do lugar. Em 1922, quando acol-
heu os modernistas, o teatro já havia recebido atrações internacionais
como Caruso, Ana Pavlova, Isadora Duncan e Nijinski.
73/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
UMA EXPOSIÇÃO AMBICIOSA 
Outro grande evento artístico que agitou a sociedade paulistana em 1911
foi a i Exposição Brasileira de Belas-Artes, inaugurada no dia 24 de
dezembro, no prédio perto da Estação da Luz, onde funcionavam juntos a
Pinacoteca e o Liceu de Artes e Ofícios.
O Liceu surgira em 1873, com o nome de Sociedade Propagadora da
Instrução Popular, e seu objetivo era formar mão de obra para a agricul-
tura, a indústria e o comércio. Em 1882 sofreu uma reforma curricular e, a
partir de 1890, sob a direção de Ramos de Azevedo, suas oficinas pas-
saram a trabalhar sob encomenda para obras públicas e privadas. Com
artesãos, pintores, escultores, serralheiros, fotógrafos etc., a escola
tornou-se uma importante instituição de artes e ofícios, funcionando ao
mesmo tempo como uma espécie de “centro cultural” e “academia de
arte” de São Paulo.
 A i Exposição Brasileira de Artes Plásticas de 1911 era mais um pro-
 jeto da “iniciativa privada” paulista. Duas dezenas de pessoas se empen-
haram para realizar, pela primeira vez na cidade, uma grande mostra de
caráter nacional — a exemplo do que ocorria regularmente no Rio. Entre
seus idealizadores, estavam o senador mecenas Freitas Valle, o pintor
Torquato Bassi e Nestor Rangel Pestana, educador, jornalista, diretor e
crítico de arte do Estado.
74/375
 A mostra atraiu artistas de renome do Rio e de São Paulo, como Eliseu
 Visconti, Benedito Calixto e Henrique Bernadelli, e também reservou es-
paço para os menos conhecidos, com poucas chances de exibir seus tra-
 balhos — caso de Bety, a mãe de Anita, que figurou entre os selecionados.
O regulamento proibia reproduções e autorizava a participação de resid-
entes no Brasil e de brasileiros residentes no exterior. No fim, foram
escolhidos cerca de quatrocentos trabalhos de uma centena de artistas,
entre pintores, escultores e arquitetos. Todas as obras foram postas à
 venda, cabendo 10% da receita à comissão organizadora, que contou,
além disso, com assinaturas de incentivo, arrecadação de bilheteria e
taxas de admissão cobradas aos artistas.
Para abrigar a Exposição Brasileira, as salas do segundo andar do pré-
dio (também construído por Ramos de Azevedo, onde hoje funciona a
Pinacoteca) foram forradas com oitocentos metros de aniagem marrom,
tingida para o evento. O presidente do estado, Albuquerque Lins, com-
pareceu ao vernissage, recheado de personagens da “melhor sociedade”
local. Em um mês, por volta de 4 mil pessoas passaram pela mostra e ses-
senta obras foram vendidas.
Na mesma ocasião, no andar térreo do Liceu, instalou-se, com entrada
franca, uma grande Exposição Espanhola, anteriormente montada no
Rio. Era organizada pelo pintor viajante José Pinelo, de Sevilha. Numa
cidade com atrativos escassos, a ocorrência simultânea das duas mostras,
nas proximidades do Jardim Público, virou programa obrigatório.
75/375
O GOSTO ACADÊMICO E O LITUANO MODERNO
Quando Anita Malfatti chegou da Alemanha, ninguém em sua casa queria
saber de Van Gogh, Cézanne ou Kandinsky. Só perguntavam pela Mona
 Lisa e pelas glórias do Renascimento italiano.23 Compreensível que fosse
assim. No início de 1914, se o canto do galo da “nova escola” já se fizera
ouvir por aqui, não se sabia bem de onde vinha e o que representava.
Mesmo na Europa, a institucionalização da arte moderna em museus,
coleções, críticas e escolas ainda estava longe do grau que alcançaria
décadas depois. Quem seria Picasso perto de um Leonardo ou de um
Tiziano?
Entre nós, prevalecia uma pintura tradicional, com artistas que re-
speitavam as convenções clássicas da representação da realidade, ou as
questionavam superficialmente. Os mais destacados ganhavam bolsas
para estudar em academias europeias, viajavam sobretudo para a França
e para a Itália, participavam de salões e passavam longas temporadas por
lá. Aqui, recebiam encomendas de governantes, colecionadores e famílias
ricas, expunham seus trabalhos, disputavam prêmios e davam aulas.
Encontrava-se ainda no meio artístico considerável presença de es-
trangeiros, em geral paisagistas e retratistas, que chegavam ao país e rapi-
damente se introduziam no circuito.
76/375
Um desses viajantes abriu, em 1913, uma exposição na rua São Bento,
no centro de São Paulo. Era um lituano que pintava de maneira um pouco
diferente. Chamava-se Lasar Segall, era dois anos mais novo que Anita e
também passara um período na Alemanha, onde conhecera o mesmo Lov-
in Corinth.
Segall tinha uma irmã em São Paulo, chamada Luba, e queria
descobrir novos mundos. Unida por casamento à família Klabin, Luba fin-
anciou a viagem do irmão, que chegou no final de 1912, trazendo seus
trabalhos. Hospedou-se na casa de d. Berta Klabin e, no dia 1o de março
de 1913, inaugurou sua mostra, com 52 obras.
 A influência dos Klabin contribuiu para que a exposição recebesse o
apoio do senador Freitas Valle e as atenções de Nestor Pestana — que a
tratou, no jornal, com ambígua aprovação. Embora bem-comportada em
comparação com o que se via nos círculos vanguardistas europeus, a pin-
tura de Segall expressava um sentimento trágico e possuía alguns traços
da “moderna escola alemã”. Foi considerado um talento promissor,
apesar de certas características que o crítico do Estado chamou de “ousa-
das”, e o do Diário Popular de “bizarras”.24
Em sua revista O Pirralho, Oswald de Andrade, que vinha de sua
primeira viagem à Europa, publicou uma nota sobre a abertura do “tal-
entoso moço russo”.25 Pouco depois, a exposição foi para Campinas, onde
recebeu atenções da imprensa. As críticas,melhores que a do  Estado, as-
sociaram o quadro O violinista ao cubismo e aprovaram seus “efeitos in-
tensos”. Um dos articulistas, que se assinava X, demonstrou compreender
as distorções presentes em algumas obras, afirmando que nem um artista
dotado do gênio de um Van Eyck poderia, nos novos tempos, ser realista a
ponto de competir com as chapas fotográficas.
Embora não tenha passado propriamente em branco, a pintura do
lituano não despertou grandes reações, o que se pode explicar pelos tons
77/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
moderados de seu “expressionismo” — e talvez um pouco por suas lig-
ações sociais e a simpática iniciativa de doar uma tela para fins
 beneficentes.
78/375
Tiago Fagundes
O SENHOR DA VILLA KYRIAL
Como Rangel Pestana e Ramos de Azevedo, o senador Freitas Valle era
figura carimbada na sociedade paulistana. Oriundo do Rio Grande do Sul,
aclimatou-se na Pauliceia, onde participou da criação da Pinacoteca do
Estado e da Sociedade de Cultura Artística. Colecionava obras, apoiava
 jovens artistas e era o principal responsável pelas decisões do Pensionato
 Artístico, instituição estadual criada para financiar temporadas de talen-
tos na Europa.
O grande show de Freitas Valle era encenado regularmente em sua
senhorial residência, batizada com o nome de Villa Kyrial. Ali, o mecenas
promovia concorridos e memoráveis salões, exercitando-se com esmero
nessa forma de sociabilidade típica da belle époque. Marcia Camargos,
autora de um livro sobre Valle e seu salão,26 esclarece que “o sonoro Kyri-
al, com ., tem raiz no vocábulo grego Kyrios, que significa Deus, Senhor.
Em latim, Kyrie, unido a eleison, forma a expressão ‘os eleitos do
senhor’”.
O título era apropriado ao espírito daqueles encontros, nos quais boa
parte das conversas girava em torno das novidades artísticas da França —
a Grécia daqueles anos. O próprio senador escrevia poemas simbolistas
sob um heterônimo francês, Jacques d’Avray. De acordo com Camargos,
“contagiado por Rimbaud, Mallarmé, Verlaine e Laconte de Lisle, D’Avray 
79/375
Tiago Fagundes
criava em verso livre, soneto ou rondel, uma atmosfera penumbrista por
onde desfilavam figuras melancólicas como o cego, o louco, o leproso, o
náufrago ou o Palhaço”.
 A Villa Kyrial era um museu eclético do gosto europeu, forrado de go-
 belins, tapetes persas, mármores, bronzes, cristais, porcelana Limoges e
Saxônia, cristais Baccarat, Saint-Louis e Boêmia, peças Gallé e Lalique,
chinoiseries, espelhos, lustres suntuosos e esculturas art nouveau. O pro-
prietário procurava seguir a tradição inaugurada na cidade por d. Veridi-
ana Prado, que animava salões no palacete de sua chácara, em Higienó-
polis. Os excessos e acúmulos da decoração eram sinal de status, adotado
nas casas de figuras da alta sociedade, como a própria d. Veridiana, seu
filho Antônio da Silva Prado, Ramos de Azevedo e Laurinda Santos Lobo,
dona de badalado salão carioca.
 À Villa Kyrial acorriam políticos, intelectuais e artistas — estes últimos
muitas vezes sem recursos, em busca das benesses que o anfitrião poderia
oferecer.
Para os banquetes, Freitas Valle mandava imprimir convites personal-
izados, que indicavam o programa cultural do dia e o traje exigido. Sua
grande mesa recebia 24 convidados sentados, o que propiciava um rodízio
de diferentes turmas. Segunda-feira era o dia dos pintores; terça, dos es-
cultores; quarta, dos músicos; quinta, dos poetas; sexta, dos escritores; e
sábados, da política.
 Aos domingos, promoviam-se almoços, mais informais, servidos no
terraço. Jogava-se nos gramados e havia uma animada mesa de pingue-
pongue na entrada da adega — que escondia um tesouro de vinhos
franceses. Os convivas, recepcionados com toques de clarins, também
participavam de obrigatórios passeios pela galeria, atulhada de obras de
arte.
80/375
Convites, cardápios e programas eram impressos em francês,
reservando-se o espanhol para as comunicações internas de uma confrar-
ia gastronômica que ali se formara. Era a Hordem dos Gourmets, assim
mesmo, com H, comandada pelo senador — nessas ocasiões convertido
no maître Jean Jean.
Outra atração da casa eram as instalações da sala de banho, importa-
das dos Estados Unidos. Com ducha e hidromassagem, deixavam todos
admirados, mas na realidade serviam mais à exibição esnobe do que ao
uso, pois mal funcionavam, por falta de pressão na tubulação de água.
Para o cronista carioca João do Rio, que frequentava os salões, a Villa
Kyrial poderia ser comparada a uma Academia de Arte de São Paulo,
onde jovens “cheios de timidez e de sonhos” mereciam a desvanecedora
atenção do dono da casa, assim como os “maiores gênios que passam pelo
Brasil”.27
O artificialismo afrancesado e os modos postiços daqueles saraus tam-
 bém despertavam ironias e ataques ferozes de quem, a exemplo de Mon-
teiro Lobato, via na presepada aristocrática da Villa Kyrial um sintoma da
alienação cultural do Brasil. O senador, que passeava pela cidade “encas-
acado à francesa, conversando em argot e comendo foie gras de Nantes”,
era para Lobato um caso estridente e desprezível do complexo de inferior-
idade nacional. Exemplificava a mentalidade dominante, que macaqueava
hábitos estrangeiros e via nas coisas brasileiras inadequação, feiura e
atraso.
Nada disso impediu que os modernistas fossem frequentar aqueles sa-
raus — com o tempo menos fechados às novas tendências. Mário de
 Andrade considerava o salão de Freitas Valle uma rara oportunidade de
se afastar das “falcatruas da vida chã”: “Pode muito bem ser que a ele
afluam, junto conosco, pessoas cujos ideais artísticos discordem dos nos-
sos — e mesmo na Villa Kyrial há de todas as raças de arte; ultraístas
81/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
extremados, com dois pés no futuro, e passadistas múmias — mas é um
salão, um oásis”.28
Oswald de Andrade lembrou-se certa vez daquelas “reuniões avinha-
das”, onde acreditava ter avistado Lasar Segall pela primeira vez: “Ho-
mens do futuro, homens do passado, políticos, intelectuais e pseudoin-
telectuais, estrangeiros, nativos, artistas, bolsistas da Europa, toda uma
fauna sem bússola em torno da gota anfitriã do senador poeta”.29
82/375
Tiago Fagundes
6
DA CASA MAPPIN AO MAINE
84/375
Freitas Valle, principal responsável pelas
 bolsas do Pensionato Artístico do Estado,
em caricatura de Voltolino, publicada
pela revista A Cigarra, em 17 de outubro de
1918, com os dizeres: “o delicioso mecenas
dos ‘rebentos’”.
 Anita Malfatti e sua família concordavam que seria proveitoso dar
prosseguimento aos estudos iniciados na Alemanha e interrompidos pela
ameaça da guerra. Na volta da Europa, os trabalhos da jovem estudante
foram avaliados em casa como “fortes”, embora “crus”. Os traços menos
convencionais do ambiente berlinense, que procurava imprimir em suas
obras, eram percebidos como sinal de técnica pouco desenvolvida. Sendo
assim, um novo período de aprendizado poderia levá-la a uma pintura
mais amadurecida e suave. Eram opiniões em perfeita consonância com o
meio artístico da cidade, que nada diferiam das que Nestor Rangel Pest-
ana havia manifestado a respeito de Lasar Segall.
Em busca de financiamento para o novo ciclo de estudos, os olhos dos
Krug e dos Malfatti voltaram-se para Freitas Valle e o Pensionato
 Artístico. Anita pleiteou a bolsa e, como prova de aptidão, escolheu três
dezenas de obras, entre óleos, gravuras, desenhos e aquarelas, para
montar uma individual.
 A mostra foi inaugurada no dia 23 de maio, na Casa Mappin Stores,
loja de departamentos na rua Quinze de Novembro. Apresentava trabal-
hos feitos na Europa e no Brasil — estes com datas anteriores ou posteri-
ores à viagem. Em se tratando de uma exibição com o propósito de obter
apoio para uma temporada no exterior, o título foi cuidadosamente escol-
hido: “Exposição de estudos de pintura — Anita Malfatti”. Tio Jorge e d.
Bety, que investiam na carreira da iniciante, participaram dos
85/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
preparativose acompanharam tudo de perto. O vernissage reuniu setenta
pessoas, e a visitação, cerca de quarenta por dia — com declínio no final.
No dia 4 de junho, Anita sentou-se para escrever algumas notas sobre
os lances da exposição que considerou mais interessantes. Registrou a
presença de Pedro Alexandrino e Oscar Pereira da Silva, dois pintores
consagrados, bem como a dos prestigiados Alfredo Norfini e Victor Dubu-
gras — o primeiro, aquarelista nascido em Florença; o segundo, arquiteto
de origem francesa. Alexandrino, de acordo com as anotações deixadas
pela pintora, opinou a favor da mostra e achou “esplêndido” o “princípio”
que ela seguia. Queixou-se de morar no Brasil — um “martírio” — e in-
centivou a iniciante a voltar para a Europa.
No dia 28 de maio, foi a vez de Rangel Pestana visitar a Casa Mappin.
O amigo jornalista do tio Jorge disse que tudo faria para ajudá-la a gan-
har a esperada pensão. No dia seguinte, sem assinar, publicou no  Estado
um texto sobre a mostra. “Para os que acompanham o movimento
artístico europeu, não seria preciso dizer que os seus estudos foram feitos
na Alemanha”, dizia o artigo, destacando os traços da “moderna escola”
daquele país presentes na arte da jovem paulistana. Embora não tenha
gostado tanto do que viu, o articulista procurou ser simpático, salient-
ando nas obras a presença de uma capacidade artística a exigir
treinamento:
Os estudos têm uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma
largueza de execução de que só dispõem os temperamentos ver-
dadeiramente artísticos, nos quais o poder de síntese logo se revela
nos menores estudos e esboços. Além disso, o seu senso de colorido é
rico e equilibrado, e os seus meios de expressão, limitados ainda por
uma técnica incipiente, embora notável para o seu tempo de estudo,
são já poderosos pela emoção que conseguem despertar.
86/375
No dia em que saiu o texto, a visitação chegou ao recorde de cinquenta
pessoas, só superado pelo público da abertura. No dia seguinte, apareceu
Freitas Valle. Era a visita mais aguardada. As palavras de incentivo es-
tampadas no Estado alimentavam as expectativas de o todo-poderoso do
Pensionato Artístico simpatizar com a mostra. O sábado já chegava ao
lusco-fusco quando o homem entrou, acompanhado, na descrição da pin-
tora, de “todos os seus satélites, sendo os principais Zadig e Elpons”. Wil-
liam Zadig e George Fischer Elpons eram, respectivamente, um escultor
sueco e um pintor alemão radicados em São Paulo, onde trabalhavam e
davam aulas. Tarsila do Amaral estudou com ambos e Di Cavalcanti foi
aluno de Elpons, com quem Anita também estudaria posteriormente.
 A sala “encheu-se de homens”, ela anotou.30 Ansiosa, a mãe pediu
uma opinião do senador sobre a tela que retratava a filha Georgina. A res-
posta foi dura: “Minha senhora, não se ofenda, se sou franco”, respondeu
o senador, que considerou o quadro “um carnaval de cores”, crivado de
erros, com desenho fraco e nenhum valor artístico. Desconcertada, Bety 
chamou a atenção do visitante para uma paisagem do Guarujá. Freitas
 Valle, mais uma vez, não se comoveu. Classificou a obra de
“insignificante”.
 A bolsa de estudos parecia bater asas, embora não tivesse desagradado
completamente a ilustre comitiva. Zadig e o próprio Valle viram virtudes
num retrato de crianças e gostaram sobretudo do nu feminino — apesar
de supostos erros no torso e no ventre.
 Anita detestou aquele teatro todo. Considerou o visitante um fanfarrão
ridículo, que nada entendia de pintura. Para ela, o nu tinha mesmo defei-
tos, mas não no ventre ou no torso, aspectos que seu professor, Bichoff-
Culm, elogiara. Os problemas estavam, segundo ela, no “jogo de clavícu-
las” — o que nenhum dos arrogantes entendidos fora capaz de perceber.
87/375
“Que pena tenho desses artistas que dependem de Freitas Valle para o seu
pão!”, escreveu. “Adeus, liberdade e franqueza de opiniões.”31
•
Um mês depois de encerrada a mostra, a guerra estourou na Europa.
 A bolsa, como se imaginava, não saiu, mas Jorge Krug resolveu financiar
uma nova viagem da sobrinha, agora aos Estados Unidos — onde os Krug
ainda tinham parentes.
No final de 1914, Anita embarcou num navio inglês, que navegou sob
ameaça de assédio alemão. Em janeiro de 1915, estava em Nova York, a
nova capital da arte moderna.
•
Fixou-se numa pensão no West Side e começou a estudar na Art Stu-
dents League, na rua 57. Era uma escola conhecida, por onde passaram
muitos artistas modernos norte-americanos. No estabelecimento, admin-
istrado por uma liga de estudantes, a atmosfera era de liberdade, mas a
pintura mantinha-se presa a uma representação realista. Anita tentou,
mas não conseguiu se adaptar. Depois de alguns meses desistiu da League
— onde passou a frequentar apenas as oficinas de gravura.
Foi então que uma colega lhe contou sobre um “grande filósofo incom-
preendido” que dava aulas de pintura e oferecia a incrível vantagem de
deixar todo mundo se exercitar à vontade. Chamava-se Homer Boss e,
naquele verão, acompanhava uma turma de discípulos numa ilha na costa
do Maine.
88/375
 A ILHA DA FANTASIA 
Monhegan é uma ilhota rochosa localizada a 22 quilômetros da costa do
estado do Maine, no nordeste dos Estados Unidos, fronteira com o
Canadá. Tem 2,2 quilômetros quadrados de terra firme e, ainda hoje, uma
população de menos de uma centena de pessoas. É um lugar de pes-
cadores, sem asfalto ou automóveis. O isolamento e a paisagem a trans-
formaram, nos finais do século xix, em refúgio procurado por artistas e
pintores.
 Anita e sua amiga chegaram a Monhegan, naquele verão de 1915, para
encontrar Homer Boss, o tal “filósofo incompreendido”, que criara sua
própria escola, a Independent School of Art, em Nova York.
Sete anos mais velho que a pintora brasileira, Boss tinha sido aluno de
Robert Henri (1865-1929), artista importante na configuração da pintura
moderna norte-americana em sua vertente realista. Em 1908, Henri lider-
ou, em Nova York, uma exposição dissidente, que ficou famosa.
Chamava-se The Eight — em referência ao número de artistas que com ele
haviam sido preteridos, em 1907, no Salão da Primavera organizado pela
 Academia Nacional. Professor da New York School of Art, de onde saiu
em 1912 para fundar sua escola, Henri teve numerosos alunos, entre os
quais Rockwell Kent e Edward Hopper. A pintura realista que ele pro-
moveu, com referências nacionais e sociais, acabou encoberta pela onda
89/375
de renovação formal promovida pelos modernismos europeus, mas emer-
giu novamente, com vigor, na década de 1930.
Boss chegou a dar aulas na escola de Henri, com quem compartilhava
o mesmo espírito liberal, o apreço pela independência e o respeito radical
à individualidade do artista.
Era tudo que Anita desejava — mas, para ser aceita pelo novo profess-
or, precisou antes superar um tenso rito de passagem. No primeiro en-
contro, Boss perguntou-lhe se tinha medo da morte. Ela disse que não, e
foi convidada para um passeio de barco pelo mar agitado, em meio aos
perigosos rochedos do litoral da ilha. Aguentou firme e, na volta, Boss,
depois de demonstrar como se esticava a tela sobre o chassi, liberou-a
para pintar. “À vontade?”, espantou-se ela. “Naturalmente”, ele re-
spondeu.32
Em êxtase, aos 25 anos, Anita começou a viver naquele momento o
período mais intenso, livre e transformador de sua vida — que lhe daria as
melhores obras.
Na ilha, sem luz elétrica e sem notícias da civilização, o grupo de
 jovens artistas passava os dias a pintar, fizesse chuva ou sol, vento ou
neblina. À noite, se divertiam, contavam histórias, cantavam e dançavam
no barracão alugado para servir de ateliê. Aos sábados, reuniam-se para
mostrar os trabalhos e conversar sobre arte. Nessas ocasiões, Boss en-
trava em cena para opinar e orientar os discípulos. Tudo era discutido e o
progresso, segundo Anita, “se acentuava de semana para semana”.
 Agora ela não mais insistia no “divisionismo” e no uso separado das
cores, que a haviam seduzido na Alemanha. Sob influência dos fauves e
de Van Gogh, as pinceladas e osvolumes mudavam. Definia-se seu
próprio estilo expressionista de pintar. Fez ali, entre outras,  A ventania,
uma pequena obra-prima que se aproximava da abstração, Monhegan Is-
land, O barco e também O farol — tema, aliás, de outros pintores que
90/375
passaram pela ilha, entre eles Hopper, que o retratou pouco depois da
 brasileira. “Eram telas e telas. Era a tormenta, era o farol, eram as casin-
has dos pescadores escorregando pelos morros, eram paisagens circu-
lares, o sol e a lua e o mar”, recordou-se ela.
No fim do verão, de volta a Nova York, Anita continuou com Boss na
Independent School. Não queria outra vida. Pintava sem constrangimen-
tos entre colegas de espírito livre, com senso coletivo e avessos às con-
 venções. Não se sabia quem era rico, pobre ou remediado. Na escola havia
uma gaveta na qual quem pudesse colocava dinheiro e quem precisasse
retirava. Sem chave e sem controles.
Era comum que os estudantes recorressem a colaborações na impren-
sa como forma de ganhar algum trocado. Faziam ilustrações para revistas
e periódicos. Anita também publicou as suas na Vogue e na Vanity Fair.
O meio artístico de Nova York passava por um período de efervescên-
cia, sob o impacto do Armory Show, a grande exposição de arte moderna
realizada nos Estados Unidos em 1913, pouco antes de Anita chegar. O
 Armory foi a Sonderbund de Nova York.
Depois dessa exposição, com o início da guerra, levas de artistas
perseguidos ou empurrados pelo conflito começaram a chegar da Europa.
Eram de diversas áreas e procedências — e alguns visitavam a escola de
Boss.
Foi assim que Anita conheceu pessoalmente o “bonito Marcel
Duchamp, que pintava sobre enormes placas de vidro” e que certa vez a
divertiu com “uma dissertação engraçadíssima sobre como fazer barba
num dia de tristeza”. Encontrou-se com Leon Bakst, pintor e cenógrafo
dos Bailados Russos de Serguei Diaghilev, e com a dançarina Isadora
Duncan — cujos ensaios, no Century, frequentou ao longo de três meses.
91/375
Mencionou também, em depoimentos, contatos com um “homem russo,
reservado”, chamado Máximo Górki, e com o pintor espanhol Juan Gris.
Ela sentia-se no centro do mundo, e não imaginava que pouco tempo
depois, em meados de 1916, estaria fazendo as malas para reencontrar a
garoa de sua velha São Paulo.
92/375
7
NA TERRA DO SACI
94/375
O escritor e crítico Monteiro Lobato começou
a fazer sucesso nas páginas de O Estado
de S. Paulo. Embora atacasse a arte moderna,
foi amigo de Oswald de Andrade e de outros
rapazes do grupo modernista.
De volta a São Paulo, em agosto de 1916, Anita Malfatti não precisou de
muito tempo para perceber que o meio artístico da cidade pouco havia
mudado. O convencionalismo provinciano e altivo, que ela conhecera na
figura de Freitas Valle, naquela fatídica visita à mostra de 1914,
manifestava-se agora em sua própria casa. Seus trabalhos causaram
péssima impressão em d. Bety e no tio Jorge Krug, que esperavam dela
uma pintura mais “amadurecida e suave”.
Por mais que tenha tentado explicar as mudanças estéticas em curso
na Europa e nos Estados Unidos, obras como O homem amarelo, A boba,
 A ventania e Nu cubista foram vistas como aberrações. Eram “coisas
grotescas”, na sumária definição de Krug, que teria desferido bengaladas
em algumas delas.
De uma hora para outra, a euforia colorida de Monhegan Island e o ju-
 venil liberalismo da Independent School saíam de cena, trocados por um
ambiente cultural acanhado e uma atmosfera hostil à experimentação.
 Anita ia morar com a mãe e os irmãos Guilherme e Georgina em novo en-
dereço, na avenida Angélica. Precisava trabalhar para ajudar no orça-
mento da casa. Começou a dar aulas e retomou sua pintura em padrões
mais cautelosos.
95/375
O CRÍTICO NACIONALISTA 
Naquele final de 1916, o que parecia mais “avançado” em São Paulo para
 Anita Malfatti era o debate sobre a identidade nacional da arte. O
campeão da campanha nacionalista chamava-se Monteiro Lobato. Nas-
cido em Taubaté, em 1882, formado pela Faculdade de Direito, herdeiro
de uma fazenda de café no Vale do Paraíba, o futuro criador do  Sítio do
 Pica-Pau Amarelo tornara-se conhecido em 1914, quando publicou dois
textos no Estado de S. Paulo: “Uma velha praga” e “Urupês”.
No primeiro, enviado como carta, Lobato insurgia-se contra as
queimadas, promovidas por homens do campo, que destruíam florestas e
degradavam o solo; no segundo, atacava a mitologia romântica dos Peris
e Cecis e traçava um retrato impiedoso da idiotia rural cabocla, simboliz-
ada pelo Jeca Tatu.
Os textos agradaram em cheio os leitores e a equipe do jornal. Não
apenas pelo assunto, vinculado à realidade rural do estado e do país, mas
pela vivacidade da pena do articulista. Embora fosse tecnicamente um
fazendeiro, Lobato escrevia com regularidade desde os tempos de
estudante de direito. Tinha também pendores artísticos — gostava de
desenhar e pintar. Mais jovem, quis estudar na Escola de Belas-Artes, no
Rio, mas foi demovido pela família.
96/375
O escritor admirava Machado de Assis, Euclides da Cunha e seu
mestre português Camilo Castelo Branco. Gostava ainda do jovem carioca
Lima Barreto — mas não via bons autores em atividade na nossa
“Zululândia”.
 A outra face de seu nacionalismo, naquele momento, era justamente o
horror e a impaciência com o Brasil selvagem e inculto. Considerava que
os brasileiros, excetuando os “bugres puros”, tinham duas mães — “a
mestiça simplória” e “a mãe de criação”, que era a Europa. Embora se irri-
tasse com a afetação afrancesada da elite, queria mesmo era morar em
Paris, onde pretendia estudar, mais confortavelmente, o Brasil. “Acho
penoso viver toda a vida no regaço da mãe tapuia, ainda de argolas nos
 beiços da alma”, escreveu a Godofredo Rangel em dezembro de 1917.33
Lobato julgava sofrível a linguagem corrente do jornalismo, com os
“adjetivos prepostos aos substantivos” e a “nojenta coisa de agregar o ter
e o haver ao resto da verbalhada”.34 Expressava-se com inteligência de-
molidora em estilo seco e vigoroso, usando metáforas campestres e ex-
pressões cultas e coloquiais.
O enfezado homenzinho, de pouco mais de um metro e sessenta, en-
tendeu rapidamente a fórmula de seu sucesso midiático:
Já compreendi o nosso público. Para interessá-lo é preciso vir com
 bombas na mão e explodi-las nas ventas de alguém, ou meter a riso
qualquer coisa, farpear um grande paredro da política […] — ou então
falar do caboclo. Em havendo caboclo em casa, o público lambe-se to-
do. O caboclo é um Menino Jesus étnico que todos acham en-
graçadíssimo, mas ninguém o estuda como realidade.35
Colaborador do Estado, Lobato também foi convidado a participar da
 Revista do Brasil , lançada em 25 de janeiro de 1916 por iniciativa do
97/375
 jornalista e político Júlio de Mesquita, proprietário do jornal. Nacion-
alista, com raízes em São Paulo, a linha da revista vinha anunciada em
editorial publicado no primeiro número:
O que está por trás do título desta revista e dos homens que a patro-
cinam é uma coisa simples e imensa: o desejo, a deliberação, a vontade
firme de constituir um núcleo de propaganda nacionalista. Ainda não
somos uma nação que se conheça, que se estime, que se baste, ou, com
mais acerto, somos uma nação que ainda não teve o ânimo de romper
sozinha para a frente, numa projeção rigorosa e fulgurante de sua
personalidade.
Eram esses os princípios a partir dos quais o crítico de arte Monteiro
Lobato começaria a revigorar, em perspectiva paulista, uma ideia antiga
no meio cultural — a necessidade de substituir nossa pintura europeizada,
ainda vinculada aos padrões da Academia Imperial de Belas-Artes, por
outra mais condizente com a realidade da jovem República do século xx.
 As bases da Academia foram lançadas pelos artistas franceses ligados
ao neoclassicismo que desembarcaram no Rio em 1816, oito anos depois
de o rei de Portugal, d. João vi, ter se transferido com a corte para a cid-
ade. A chamada Missão Francesa trouxe ao país nomes como os pintores
Joachin Lebreton, Nicolas Antoine Taunaye Jean-Baptiste Debret, os es-
cultores Auguste Marie Taunay e Marc Ferrez, o medalhista Zepherin Fer-
rez e o arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny.
Foram os preparadores da Academia Imperial de Belas-Artes, criada
depois da Independência, em 1826. A exemplo das congêneres europeias,
nossa Academia tropical oferecia formação científica e humanista, além
de educação artística: na pintura, com ênfase na produção histórica, fun-
damentada no método tradicional da Academia francesa, que impunha a
98/375
cópia de gravuras, de moldes e o desenho de modelo-vivo. Exercia a
autoridade artística no Rio de Janeiro, embora seus agentes também se
instalassem em outros estados, ditando temas, normas e critérios de
gosto. Promovia exposições nacionais regulares, lançava concursos e dis-
tribuía prêmios.
Coube à arte “acadêmica” fornecer as representações iconográficas ofi-
ciais que alegorizavam o compromisso nacionalista do Império, como re-
tratos de membros da corte, paisagens e celebrações de fatos históricos.
Os padrões dessa pintura, no entanto, já se tornavam, para alguns
críticos, repetitivos e vazios desde o último quartel do século xix — e mais
ainda no novo século, num país ainda em busca de afirmação e inde-
pendência cultural.
Para uma nova elite intelectual, era tempo de abandonar as inclin-
ações idealizantes do que eles entendiam como “arte acadêmica”. Na real-
idade, alguns artistas, também formados pela Academia, já haviam
descoberto o caminho para uma pintura da realidade mundana do país.
Na opinião de Lobato, tratava-se, especificamente, de retomar o exemplo
deixado pelo pintor paulista José Ferraz de Almeida Júnior.
Morto em 1899, Almeida Jr. introduziu em suas obras, a partir da sua
segunda volta da Europa, em 1887, o mundo rural paulista, desen-
 volvendo um naturalismo com luzes e feições locais, em sintonia com um
projeto de valorização do tipo rural paulista, como já desejavam, aliás, al-
guns críticos oitocentistas do Rio, entre eles Gonzaga Duque (1863-1911).
Retratava o violeiro, o caipira a picar fumo, a brasileira saudosa, a casa e a
cena interiorana.
O artista de Itu, na opinião de Lobato, era o grande inventor da pin-
tura nacional36 e a referência a ser seguida pelos jovens. Também Oswald
99/375
de Andrade considerava Almeida Jr. um artista a ser valorizado — e já es-
crevera sobre isso, em 1915, na sua revista semanal O Pirralho.
Na defesa dessa tese, o crítico tratava, estrategicamente, de empurrar
do trono o incensado pintor histórico Pedro Américo (1843-1905), autor
do Grito do Ipiranga, que ele chamaria de “o maior dos pintores
 brasileiros e o menos brasileiro de nossos pintores”.37
Não era mais plausível, àquela altura, como fizera Américo, dar o
título A carioca a uma figura feminina se a alva moçoila em nada diferia
das ninfas de pinacotecas europeias. Era um dever das novas gerações, na
opinião de Oswald, extrair “dos imensos recursos da nação”, de seus te-
souros de luz e de cor, uma “arte nossa”, capaz de se apresentar como
“manifestação superior da nacionalidade”.
Monteiro Lobato já fazia anos via no naturalismo uma tendência que
rompia com a tradição idealizante — era uma novidade, dizia ele, como o
art nouveau na artes decorativas, o futebol no esporte, o automóvel na lo-
comoção e o “neopaganismo nas ideias”.
O autor de Urupês lia revistas e autores estrangeiros — e comungava
com as concepções de Émile Zola, que defendia a pintura naturalista e o
impressionismo mas nunca aceitou a ruptura com a representação “nat-
uralista” da realidade. Na mesma linha do escritor e crítico francês,
Lobato considerava que figuras distorcidas podiam ser usadas na carica-
tura e nas artes gráficas, porém nunca na pintura, arte elevada, que pedia
respeito às proporções e ao equilíbrio. O grande artista, em sua opinião,
seguia as regras veristas mas imprimia, na fatura, o seu “temperamento”
— termo, aliás, muito comum nas críticas da época.
 Ao eleger Almeida Jr. como parâmetro, o fazendeiro intelectual de
Taubaté passava a fomentar na imprensa um tipo de nacionalismo em
que o imaginário rural, com raízes em São Paulo, sobrepujava as repres-
entações litorâneas. O Brasil, frisava ele, “está no interior”, nas serras e
100/375
nos sertões “onde moureja o homem abaçanado pelo sol” — e não na
costa “praguejada de europeísmo”.
•
No início de 1917, já em plena militância no Estado e na Revista do
 Brasil , Lobato lançava uma campanha em prol da “mitologia brasílica” —
ele que defendia a expulsão dos gnomos e anões germânicos dos jardins e
sua substituição por estátuas de caiporas e sacis-pererês.
Era justamente o diabinho de uma perna o seu assunto do momento.
 A agitação acontecia nas páginas do Estadinho, a edição vespertina do
 jornal — criada em 1915, com o objetivo de oferecer à colônia ítalo-
paulista uma cobertura mais caprichada da participação italiana na
guerra.
Lobato convocava os leitores a opinar sobre a lenda do Saci e a relatar
como ela era contada nas várias regiões do país. O “inquérito”, como a
coisa foi chamada, obteve ampla repercussão e ofereceu a seu idealizador
a oportunidade de promover um concurso artístico baseado na figura do
Pererê. Ele próprio começou a entrar em contato com pintores e es-
cultores, em busca de apoio para a ideia.
101/375
DEGRINGOLISMO
 Ao tomar conhecimento do certame, Anita Malfatti interessou-se e re-
solveu participar. Já na sua Primeira tela (o homem do campo com uma
enxada sobre o ombro), a simpatia por temas brasileiros se manifestara.
 Agora, de volta ao país, seus pincéis procuravam novamente as cores
locais.
Seu Saci era sacudido e intrigante. Anita escolheu como narrativa uma
inesperada aparição da entidade, que assustava um cavaleiro solitário, e
mandou para o Estadinho.
O concurso não foi tão bem-sucedido quanto seu mentor gostaria.
Poucos nomes conhecidos participaram — e os brasileiros, dos quais se
esperava larga adesão, quase todos se abstiveram. No mês de outubro, fi-
nalmente, as pinturas, desenhos e esculturas selecionados por Lobato vi-
eram à luz. Malfatti não ganhou nenhum prêmio, mas mereceu a irônica
atenção do crítico, que associou sua obra aos ismos europeus:
Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada
 vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes
pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo.
Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, tentando arrancar-
se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do
Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo,
102/375
cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está hors-
concours.
O vencedor do certame foi O Saci e a cavalhada, de Ricardo Cipichia,
italiano que chegou jovem ao Brasil — e criou, entre outras, a escultura O
índio e o tamanduá, hoje na praça Marechal Deodoro, na região central
de São Paulo. Bem que o vitorioso quadro de Cipichia poderia ter brilhado
num salão de belas-artes, não fosse a figurinha perneta, de capuz e pito, a
se equilibrar no lombo de um vigoroso corcel.
103/375
8
 A FÚRIA DO JECA 
105/375
O jovem Di Cavalcanti, em uniforme
do Colégio Militar do Rio de Janeiro, sete
anos antes de mudar-se para São Paulo
(com carta de recomendação de Olavo
Bilac), onde fez parte do grupo modernista.
O carioca Emiliano Di Cavalcanti chegou a São Paulo com vinte anos, oito
a menos do que Anita Malfatti. Em suas memórias disse não saber ao
certo por que resolveu deixar sua cidade natal naquele 1917. “São Paulo
me seduzia”, resumiu.38
Desceu do trem numa manhã fria, trazendo no bolso cartas de ap-
resentação do poeta Olavo Bilac endereçadas a nomes influentes, ligados
ao Estado e à elite intelectual da cidade, como Amadeu Amaral, Rangel
Pestana e Roberto Moreira. Sua mãe, d. Rosália, também o recomendava
ao amigo Alfredo Pujol — que se preparava para ingressar na Academia
Brasileira de Letras. Na primeira mocidade, ela teve um namoro com
Bilac, que viria a ser o mais famoso dos poetas brasileiros, um mestredo
estilo parnasiano, tão combatido pelos modernistas.
 A irmã de d. Rosália era casada com o abolicionista José do
Patrocínio, um dos primeiros brasileiros a adquirir um automóvel no
Brasil. Foi na residência dele, na rua do Riachuelo, que Di Cavalcanti nas-
ceu. A casa era frequentada por políticos, artistas e intelectuais que
amavam Victor Hugo, Castro Alves e a Marselhesa.
Meu pai — pobre tenente do Exército, minha mãe a caçula linda de
uma família desmantelada… Criei-me num mundo estranho, mijando
nas pernas de poetas e militares, ou entre os braços de não sei quantas
mulheres: minhas amas, minhas tias, amigas de minha mãe e de min-
has tias, minhas avós e tias-avós; distribuído como um mimo para to-
do mundo, e aos três anos (coisa prodigiosa para a família) soletrava.
106/375
 Aos cinco, lia, escrevia e rabiscava. Aos seis fui para o colégio de dona
 Adélia Noronha e nesta época fixou-se minha personalidade — fiquei
sendo o menino fujão. Fugir é tudo para mim e sempre há de ser tudo
na minha vida. Não fugir medroso, temendo algo grave. Fugir para não
assistir a um fim banal ou para continuar sendo o mesmo.
Di Cavalcanti teve aulas de piano, estudou no Colégio Militar e pub-
licou uma caricatura na revista Fon-Fon antes de fugir pela primeira vez,
rumo à próspera Ribeirão Preto, onde trabalhou com um tio na ferrovia
Mogiana — e aproveitou para se iniciar nos cabarés.
 Voltou ao Rio decidido a ser um “profissional das artes e, se possível,
das letras”. Foi estudar direito e passou a frequentar uma turma de
estudantes com ideias literárias avançadas — talvez os primeiros, segundo
ele, a abandonar a idolatria por Bilac ou Lecomte de Lisle na poesia
francesa. Em busca de “libertações simbolistas para mundos incandes-
centes e nebulosos”, os rapazes liam Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e
Mallarmé, os poetas simbolistas franceses que “davam a certeza de que a
arte deveria ser diferente dos sonetos das revistas mundanas”.
 Antes de partir para São Paulo, participou pela primeira vez de uma
exposição, no Salão dos Humoristas. Recebeu elogios públicos de João do
Rio e uma encomenda para ilustrar a edição de Balada do enforcado, de
Oscar Wilde, na tradução do poeta Elísio de Carvalho.
107/375
PORTAS ABERTAS
Na Pauliceia, onde se alojou na rua das Flores, as cartas de Bilac e as re-
comendações de d. Rosália abriram as portas. Di foi trabalhar nos arqui-
 vos do Estado, onde organizava livros, e logo encontrou os primeiros ami-
gos paulistas. Além de Oswald, foi apresentado a Arnaldo Simões Pinto,
da revista Vida Moderna, e Gelásio Pimenta, da Cigarra. Também se
aproximou de Júlio de Mesquita Filho, com sua “afabilidade de grão-sen-
hor”, e de Monteiro Lobato. Di acompanhou o rumoroso “inquérito do
Saci” e quis conhecer Anita Malfatti. Soube das temporadas dela em Ber-
lim e Nova York — e que guardava em casa um lote de pinturas modernas.
Com Simões Pinto e Gelásio Pimenta, marcou um encontro para conferir
os trabalhos.
Numa tarde de novembro, ele e seus amigos foram recebidos em casa
por Malfatti. Não se sabe exatamente quais as reações provocadas por
aquelas obras tão diferentes para os padrões brasileiros, mas é certo que
os visitantes incentivaram a pintora a exibi-las. Provavelmente era isso
mesmo que ela desejava fazer, apesar dos constrangimentos familiares e
das restrições do meio artístico paulistano — o qual, no entanto, com
aquela visita, parecia dar um sinal de arejamento. Se fora procurada por
um grupo de jornalistas e se eles consideravam que os trabalhos deveriam
ser mostrados, por que não fazer, afinal, uma exposição? (Na verdade, de
108/375
acordo com uma breve notícia publicada pelo Estado de S. Paulo,
descoberta pelo historiador da arte e crítico Tadeu Chiarelli, Anita já teria
feito em junho uma silenciosa individual, cujos detalhes não se
conhecem.)
Pouco depois do encontro com os jornalistas, uma nota na Vida
 Moderna preparava o público para o que vinha:
Inaugurar-se-á brevemente nesta capital uma exposição de telas da
lavra da talentosa pintora paulista srta. Anita Malfatti, cujas aptidões
os nossos amadores já conhecem. A srta. Malfatti é um dos mais
curiosos temperamentos artísticos do nosso meio. Tendo estudado
primeiramente na Alemanha e depois nos Estados Unidos, a nossa dis-
tinta patrícia tem da arte uma concepção tão bizarra que a põe num
lugar absolutamente à parte entre os artistas nacionais.
 A Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti, nome que ela decidiu
dar à mostra, foi marcada para a quarta-feira 12 de dezembro de 1917, na
rua Líbero Badaró, 111, endereço do mesmo salão onde se realizara a
mostra do Saci. O espaço pertencia a Antonio de Toledo Lara, o conde de
Lara. Era um homem rico, conhecido como “o dono do Triângulo” — re-
gião formada pelas ruas Quinze de Novembro, Direita e São Bento, o
tradicional centro de São Paulo.
109/375
UM ACONTECIMENTO
O vernissage da srta. Malfatti foi um sucesso. O salão do conde de Lara
encheu. Compareceram artistas da nova e da velha guarda, como Elpons,
Zadig e Wasth Rodrigues, o arquiteto Victor Dubugras, as amigas
Shalders e Jorge Krug — um ano depois do chilique provocado pelas
“coisas dantescas” pintadas pela sobrinha.
O amigo da família, Rangel Pestana, que havia escrito para o  Estado
sobre a mostra de 1914, apareceu no dia seguinte. Freitas Valle também
foi depois da abertura, assim como o escultor Alfredo Norfini, o pintor
Clodomiro Amazonas e Wasth Rodrigues, artista da mesma geração de
 Anita, considerado por Monteiro Lobato uma esperança da pintura
nacional.
No dia 17, a autoridade máxima do estado de São Paulo, o presidente
 Altino Arantes, assinou o livro de visitas, que recebeu de setenta a oitenta
registros ao longo do mês de dezembro — uma frequência acima do nor-
mal. Mantida essa média, em dez dias teriam ido à mostra setecentos a
oitocentos visitantes, o que não é pouco.
 A imprensa foi receptiva com a exposição, que mostrava 53 trabalhos
da artista, acrescidos de algumas obras de autoria de colegas norte-amer-
icanos — entre elas o Nu cubista, de A. S. Baylinson. Retratado por Anita,
ele era o secretário da Independent School — o responsável por colher
110/375
contribuições e cuidar da providencial gaveta de dinheiro, salvação dos
alunos necessitados.
 A seleção da pintora contemplou trabalhos mais recentes e outros da
fase nova-iorquina, como Ventania, O barco, O homem amarelo e A mul-
her de cabelo verde. O catálogo dividia as obras em cinco blocos: Figuras,
Paisagens, Gravuras, Aquarelas e Caricaturas e desenhos.
No dia 14, o Correio Paulistano informou que o salão, na abertura, es-
teve “constantemente cheio de amadores e curiosos”. O jornal notou nos
quadros “um aspecto original e bizarro”, e explicou que a arte ali exposta
era “essencialmente moderna”, distanciada dos “métodos clássicos”.
 A artista, de acordo com o texto, tinha traço “quase violento”, e sua
paisagem era “larga e iluminada”. Em algumas telas, os detalhes cediam
lugar “para a mais forte impressão do conjunto”. Em 16 de dezembro,
quatro dias depois do vernissage, o mesmo Correio afirmava que a ex-
posição da srta. Malfatti era “o acontecimento artístico de maior im-
portância desses últimos dias”.
Passada a primeira semana, tudo corria bem. Malfatti recebia nu-
merosas visitas, despertava o interesse dos jornalistas pela “arte que se
faz atualmente nos mais adiantados meios de cultura” e, last, but not 
least , vendia quadros — oito deles já nos primeiros dias.39
Foi então que, na quinta-feira 20 de dezembro, o Estadinho publicou
um intempestivo arrazoado de Monteiro Lobato contra o tipo de arte à
qual aderira a expositora. O texto, “A propósito da exposição Malfatti”,
ficaria famoso com o título “Paranoia ou mistificação” — como o autor
decidiu chamá-lo na coletânea de artigos  As ideias de Jeca Tatu, lançada
dois anos mais tarde.
 A estratégia retórica de Lobato era valorizar o talento da artista — “in-
dependente, original, inventiva” — e mostrar-se, por isso mesmo, sincero,
alertando-a parao grave erro de ter se deixado seduzir pelo mal da arte
111/375
moderna, seu grande alvo. Malfatti não apenas se influenciara pelas cor-
rentes europeias: ela fazia questão de explicitar a adesão já no título pro-
 vocador que escolhera para a mostra, ao que se saiba a primeira no país a
se autodeclarar de “arte moderna” — termo que só cinco anos depois seria
usado na Semana.
Lobato não analisou as obras; usou-as como pretexto para atacar as
“extravagâncias de Picasso e companhia”. Ele não precisaria ter ido à ex-
posição para escrever o que escreveu — e há quem acredite que de fato
não foi. Sua assinatura não consta do livro, o texto erra na grafia do nome
Baylinson e o Nu cubista do norte-americano é referido como “carvão”,
embora fosse um óleo — erro crasso, em se tratando de um conhecedor
com veleidades de pintor, que estudava desenho com Elpons e Wasth
Rodrigues.
O artigo começa por distinguir duas espécies de artistas: os que “veem
normalmente as coisas” e os que “veem anormalmente a natureza e a in-
terpretam à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas
rebeldes”. Estes últimos seriam típicos dos períodos de decadência,
“frutos de fim de estação, bichados ao nascedoiro”.
Sob a alegação de modernas, as deformações criadas pelos rebeldes
europeus não revelariam nada de novo, senão a velha arte “anormal ou te-
ratológica” que nasce com a paranoia e a mistificação.
Tais obras seriam comparáveis aos desenhos que ornam as paredes
dos manicômios, produtos “de cérebros transtornados pelas mais estran-
has psicoses”. Com a diferença de que nos manicômios a expressão é sin-
cera, enquanto fora deles, “nas exposições públicas zabumbadas pela im-
prensa”, não há “sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mis-
tificação pura”. A recorrente aproximação entre arte moderna e perturb-
ação mental, usada por Lobato, já havia aparecido antes em críticas na
França e nos Estados Unidos.
112/375
No intuito de ridicularizar a arte moderna aos olhos do grande
público, Lobato aproveita o longo artigo para contar uma história anedót-
ica — que mais parece um daqueles “causos” do interior:
Em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha à cauda
de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os
movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando a tela. A coisa
fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da
escola cubista e proclamada pelos mistificadores como verdadeira
obra-prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia
compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados
rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi
desmascarado.
 Apesar de uma ou outra manifestação mais bem informada, jornalis-
tas e críticos da época ainda não se acertavam com o recente vocabulário
da arte moderna — que inexistia no circuito brasileiro. Muitos já tinham
ouvido falar em cubismo e futurismo, mas a maioria parecia conhecer su-
perficialmente os movimentos europeus.
Era comum, por exemplo, usar o termo “impressionista” em referência
a obras inspiradas na “nova escola” — como fez Lobato ao mencionar,
numa passagem, o “impressionismo discutibilíssimo” de Anita Malfatti.
Para ele, no final das contas, pouco importava, pois “futurismo, cubismo,
impressionismo e tutti quanti ” não passavam de “ramos da arte
caricatural”.
Repetindo o repúdio de Zola às deformações, o crítico reitera que o
procedimento é inaceitável na grande arte, regida “por princípios imutá-
 veis” e por “leis fundamentais que não dependem do tempo nem da
113/375
latitude”. A verdadeira pintura há que seguir as “medidas de proporção” e
 buscar o equilíbrio na forma e na cor.
No seu libelo, Lobato chega a defender princípios acadêmicos que an-
teriormente relativizara, por parecerem inadequados ao desenvolvimento
de uma nova pintura brasileira. Ao aliar-se à velha escola, reunia forças
na tentativa de afugentar o fantasma moderno que rondava a arte nacion-
al e já era até “zabumbado” pela imprensa.
Não por acaso, em meio aos comentários, o crítico faz uma pequena
pausa para lembrar que também na literatura começavam a aparecer
“furúnculos dessa ordem”, graças à “cegueira nata de certos poetas eleg-
antes, apesar de gordos”.
Era uma referência a Oswald de Andrade, 1,68 m, fino nos modos e re-
dondo na cintura, que vinha ensaiando seus modernismos, como os
primeiros escritos de Memórias sentimentais de João Miramar. Na épo-
ca da publicação da crítica, Oswald alugara uma concorrida garçonnière
na mesma rua Líbero Badaró onde se realizava a exposição Malfatti. O
apartamento era frequentado por animada roda de moços da qual Lobato
fazia parte.
Coube ao “poeta elegante, apesar de gordo” responder ao ataque do
Jeca Tatu à arte moderna, num breve texto publicado pelo Jornal do
Comércio em 11 de janeiro de 1918:
Encerra-se hoje a exposição da pintora paulista Srta. Anita Malfatti,
que, durante um mês, levou ao salão da rua Líbero Badaró, 111, uma
constante romaria de curiosos. Exigiria longos artigos discutir-se a sua
complicada personalidade artística e o seu precioso valor de tempera-
mento. Numa pequena nota cabe o aplauso a quem se arroja a expor,
no nosso pequeno mundo da arte, pintura tão pessoal e tão moderna.
114/375
Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um
notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e da sua
maneira, a vibrante artista não temeu levantar com os seus cinquenta
trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilid-
ades. Era natural que elas surgissem no acanhamento de nossa vida
artística. A impressão inicial que produzem seus quadros é de original-
idade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito foto-
gráfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de
pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.
Oswald, embora também fosse simpático ao naturalismo caipira de Al-
meida Jr., não se prendia ao “preconceito fotográfico” reinante — pelo
contrário, saía em defesa de uma pintura que ele considerava a “negação
da cópia”.
•
Muita gente ainda foi visitar a exposição de Anita depois da publicação
do texto de Lobato — como Wasth Rodrigues e o jornalista Simões Pinto,
de todos o mais assíduo.
 Apareceu por lá também, pelo final do mês de dezembro, um rapaz in-
teressantíssimo, que se pôs a rir sem parar ao ver nas paredes um homem
amarelo e uma mulher de cabelos verdes. Voltou mais de uma vez. Numa
delas, debaixo de uma chuvarada de verão, apresentou-se à pintora. “Sou
o poeta Mário Sobral”, disse, antes de oferecer de presente um soneto
parnasiano inspirado em O homem amarelo. Entusiasmado, já se consid-
erava dono do quadro — “Um dia virei buscá-lo”, avisou.
Mário Sobral era o pseudônimo que Mário de Andrade, aos 24 anos de
idade, usava em seu primeiro livro de poemas, lançado naquele ano.
115/375
Posteriormente, ele ressaltaria a importância da exposição de Malfatti
para o despertar de sua consciência modernista. Aquelas pinturas provo-
caram em seu espírito uma “intuição divinatória”.
•
 Além de Mário, deixaram suas assinaturas no livro de visitas outros
nomes que fariam parte do núcleo modernista de São Paulo e da Semana
de Arte Moderna, como Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme de
 Almeida, Ribeiro Couto e os arquitetos Przyrembel e Moya. Tarsila do
 Amaral também registrou presença — possivelmente incentivada por
comentários de Elpons, com quem estudava na época.40
Os laços entre a turma eram tênues ou inexistentes naquele momento.
Oswald já era amigo e parceiro de Guilherme de Almeida, mas só encon-
trara Mário e Di havia pouco tempo. Tarsila ainda não se relacionava com
nenhum deles, e Anita, que conhecia Di, fora apenas apresentada por ele
a Oswald.
Quanto a Menotti del Picchia, que mais tarde faria parte do chamado
Grupo dos Cinco, com Oswald, Mário, Tarsila e Anita, vivia por aquele
tempo em Itapira, no interior do estado.
116/375
RETORNO À ORDEM TROPICAL
Muitas hipóteses, versõese mitos se criaram em torno da crítica de Mon-
teiro Lobato e de suas consequências para a obra de Anita Malfatti. Os
modernistas, tendo à frente Mário de Andrade, estimularam uma nar-
rativa sobre o caso que, com o passar do tempo, tornou-se dominante. Por
essa visão, Lobato, além de uma besta em matéria de arte, seria um pintor
frustrado que, de maneira rancorosa, violenta e reacionária, investiu con-
tra uma frágil e promissora artista moderna. O trauma originado por esse
ataque explicaria a subsequente regressão de Malfatti a um tipo mais
aguado e aceitável de pintura.
Tadeu Chiarelli, autor de Um jeca nos vernissages, considera que essa
 versão da história é fruto de uma historiografia propensa a apresentar
uma trajetória ascendente e triunfal do movimento modernista. Nesse
contexto, um recuo de Malfatti, que não fosse causado por feroz reação
externa, poderia ser uma hipótese incômoda.
Chiarelli lembra que a artista, já antes da exposição de 1917, retornava
a padrões mais contidos. Acredita que ela se unia, naquele momento, ao
movimento europeu de “retorno à ordem”, que começou a se adensar no
período da guerra — quando muitos artistas foram deixando de lado as
experiências radicais para revalorizar o equilíbrio e a figura. Foi, aliás, o
117/375
que também fizeram os colegas da Independent School, que passaram a
se dedicar à pintura da cena americana.
Como o início do conflito, em 1914, um ciclo chegava ao fim. O ambi-
ente cosmopolita e farrista em que o cubismo e a poesia experimental
desabrocharam tornava-se mais moralizante e circunspecto. As priorid-
ades eram outras. Raros foram os membros das vanguardas a permanecer
em Paris. Muitos se alistaram e estrangeiros voltaram a seus países de
origem. Paris transformou-se num grande acampamento militar. Qu-
alquer civil do sexo masculino em boa saúde gerava olhares desconfiados,
numa cidade cada vez mais povoada só por mulheres e crianças.
Nesse quadro, alguns setores da opinião pública francesa começaram
a ver traços de inspiração germânica na arte moderna, no cubismo em es-
pecial. Contra uma cultura que teria se perdido em seus próprios
devaneios, o patriotismo ascendente insistia na necessidade de recuperar
uma arte enraizada e comedida.
 A aproximação entre a França e a Antiguidade Clássica era um lugar-
comum da propaganda oficial. Os franceses viam-se como herdeiros da
civilização e dos valores fundamentais do passado, em oposição aos
 bárbaros alemães. Natural que se retornasse à própria tradição neoclás-
sica do país. Essa guinada conservadora na França durou aproximada-
mente até 1925 — embora ali ao lado, na cidade de Zurique, na neutra
Suíça, a vanguarda prosseguisse em sua aventura radical, com o niilismo
dadaísta.
•
É certo que Anita Malfatti seguiu por essa trilha conservadora, mesmo
que não se possa avaliar quanto pesou nesse redirecionamento a reação
tacanha da cidade onde ela precisava viver e construir sua carreira de
118/375
artista. O fato é que a fase norte-americana foi para Anita uma viagem à
extrema liberdade, mas não um caminho sem volta. Como Lovis Corinth,
seu mestre alemão, também ela transitaria por diferentes experi-
mentações, sem se estabelecer em nenhuma.
Embora parte das pinturas que fez logo que voltou para o Brasil tenha
se perdido, os títulos, sugestivos, indicam a adesão a temas da terra:  A
 palmeira, Rancho de sapé, Capanga e Caboclinha. Dessa safra, sobre-
 viveu a tela Negra baiana — que estava entre as obras da exposição de
1917.
Rebatizado de Tropical , nome mais amplo e alegórico, o quadro traz a
figura de uma mulher negra que segura um cesto de frutas tropicais, com
 vegetação ao fundo. Lobato, curiosamente, não mencionou essa obra em
sua crítica — o que reforça as suspeitas dos que consideram a possibilid-
ade de ele ter escrito o texto sem ter visto a mostra. Mas Rangel Pestana
não a deixou passar em branco. Num comentário publicado pela Revista
do Brasil , o jornalista, com argúcia, notava um certo hibridismo formal
na tela. Via na convivência da “anatomia teratológica” da negra com os
“abacaxis tão bem desenhados” um sinal de incoerência. Ou bem Anita
enveredava pela deformação modernista ou bem se moldava ao natural-
ismo. “Onde está a escola, o método, o sistema?”, perguntava.
Rangel Pestana tinha razão. Tropical realmente mostrava esse caráter
híbrido, que de certa forma antecipava a faceta “modernismo de com-
promisso” da Semana de 1922. Quando apresentou a tela ao público, jun-
tamente com outros trabalhos da mesma série, Anita, na visão de
Chiarelli, talvez não estivesse interessada em atenuar o ímpeto de suas
obras anteriores apenas com o intuito de agradar esse ou aquele grupo
local:
119/375
Quem sabe estivesse querendo chamar a atenção para a possibilidade
de uma produção conectada com a constituição ou valorização de uma
cultura visual típica do país, a partir de procedimentos estéticos vincu-
lados nem ao naturalismo, que até então caracterizara a melhor pin-
tura nacionalista brasileira (os paisagistas e a fase “caipira” de Al-
meida Jr.), e nem às experimentações vanguardistas, que caracteriz-
aram sua produção nova-iorquina.
E, de fato, a artista consegue esse feito, constituindo uma figura que
fica num lugar próprio, entre o naturalismo mais minucioso das frutas e
as nervosas sínteses das figuras pintadas nos Estados Unidos.41
Nesse sentido, Tropical poderia ser vista como obra inaugural e típica
de nosso modernismo pictórico, uma solução para o problema da repres-
entação nacional num registro que rechaça o “passadismo fotográfico”
mas permite a identificação de um lugar, de uma pátria tropical e mestiça.
Em 1921, quando escreveu pela primeira vez um longo texto sobre An-
ita, Mário de Andrade, que se atualizava pelas revistas estrangeiras, como
a .’ Esprit Nouveau, mencionou elogiosamente “o retorno à construção
equilibrada”, que seria “um dos anseios da arte contemporânea” — numa
referência explícita ao chamado “retorno à ordem”.
Embora criticasse as concessões da pintora ao gosto atrasado e pro-
 vinciano, exibidas numa nova individual, em 1920, o crítico mostrava-se
cauteloso — e assim continuaria a ser — quanto às deformações exagera-
das, que apontavam para a abstração. Sintomaticamente, elegeu  A
estudante russa como o melhor trabalho de Anita, mas não deixou de
citar Tropical (que chamou de Mulata vendedora de frutas) como um ex-
emplo a ser seguido, ao lado de O homem amarelo, Cabeça de negro e o
 Retrato de Lalive. Eram trabalhos que, na opinião do jovem e aplicado
crítico, denotariam uma “ciência abalizada e um conhecimento profundo
120/375
da serena arquitetura de um Ingres ou dos artistas do Renascimento”.
Para Mário, justamente o “equilíbrio” seria a maior qualidade de Anita,
“como a cor é sua maior força expressiva”.42
•
Numa carta endereçada a Mário, Anita abordava de maneira explícita,
em fevereiro de 1924, seu retorno à ordem. “Agora coragem”, escreveu ao
amigo, em seu simplificado domínio da escrita em português. “Vou dar
uma notícia ‘bouleversante’ — Estou clássica! Como futurista morri e fui
enterrada.” A pintora afirmava nunca ter pertencido “a uma escola defin-
ida” e comentava as movimentações no mesmo sentido que observava em
artistas europeus:
Não posso forçar-me para agradar a ninguém. Nisto sou, fico e serei
sempre livre. Aliás todos ou quase todos os grandes artistas daqui es-
tão enfrentando este tremendo problema. Matisse, Derain, Picasso.
Todos passam atualmente esta reação. Andava apreensiva com isto,
mas estive hoje com diversos artistas que me afiançaram ser esta fase
atual em Paris. Voltamos à mãe Natureza.43
121/375
9
MÁRIO DE MARIA 
Mário de Andrade (o sexto em pé da direita
para a esquerda) com colegas da Congregação
Mariana. O jovem poeta, autor de  Pauliceia
desvairada, estreou em 1917 com Há uma gota
123/375
de sangue em cada poema, livro marcado
pelo pacifismo católico.
124/375
Um ano antes de conhecer Anita Malfatti, em 1916, Mário de Andrade,
então com 23 anos, escreveu um pedido deautorização ao vigário-geral do
 Arcebispado de São Paulo para ler livros interditados pelo Índex do Santo
Ofício, como Madame Bovary e Salambô, de Gustave Flaubert (1821-80).
Na correspondência, datada de 21 de fevereiro, incluíam-se também
obras de Honoré de Balzac (1799-1850), Johann Heinrich Heine
(1797-1856) e Maurice Maeterlinck (1862-1949) — além do Grand dic-
tionnaire, de Larousse. A solicitação repetiu-se em 1920, dessa vez para a
leitura de autores italianos, entre os quais Antonio Fogazzaro (1842-1911)
e Gabriele d’Annunzio (1863-1938).
Os documentos encontram-se no vasto legado deixado pelo poeta, sob
a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo. Não é certo que o primeiro pedido tenha sido de fato enviado à
autoridade eclesiástica. Quanto ao segundo, ao que tudo indica não foi
além do vigário de Santa Efigênia, que considerou o requerente “tanto
pela sua formação intelectual quanto pela parte moral” merecedor de des-
pacho favorável. As duas requisições são, de qualquer maneira, atestados
da preocupação do moço cristão em observar as regras de Roma. Criado
para combater a divulgação de ideias protestantes, o Índex, que chegou a
reunir cerca de 4 mil títulos, só foi abolido em 1966, pelo papa Paulo vi.
Mário fez seus estudos em instituições católicas. Formou-se no
Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos Irmãos Maristas, e, a exemplo de
seu irmão mais velho, Carlos, tornou-se congregado mariano — aderindo
125/375
à Congregação da Imaculada Conceição, da igreja Santa Efigênia —, com-
promisso que impunha uma série de regras e exercícios espirituais.
O pai, Carlos Augusto de Andrade, fundou com amigos e um irmão o
primeiro vespertino de São Paulo, a Folha da Tarde. Depois de lançar um
segundo título, o Diário do Povo, foi parar no Constituinte, jornal de
Basílio Machado e Joaquim de Almeida Leite Moraes. Quando Leite de
Moraes, homem rico e educado, lente da Faculdade de Direito, foi desig-
nado presidente da província de Goiás, em 1881, Carlos Augusto, que se
destacara como jornalista, foi convidado a acompanhá-lo na função de
secretário particular. De volta a São Paulo, em 1882, deixou o jornalismo
de lado e abriu uma tipografia e papelaria, a Casa Andrade, Irmão & Cia.
Passados cinco anos, em 1887, casou-se com Maria Luísa, segunda filha
de Leite Moraes, que convidou o casal a morar com sua família, na rua
 Aurora, 320.
Em 1891, já pais de um menino, também chamado Carlos, os dois
mudaram-se para Santos, onde ele trabalharia como contador do irmão
de seu sogro, um rico exportador de café. A vida no litoral foi atribulada
— Maria Luísa perdeu uma filha e adoeceu. Após longo restabelecimento,
o casal voltou a viver em São Paulo, onde nasceu, no dia 9 de outubro de
1893, Mário Raul de Moraes Andrade.
Com a morte de Leite de Moraes, em 1895, a família mudou-se para
uma casa ampla e nova, no largo do Paissandu. Foram juntos a mãe de
Maria Luísa e sua irmã Ana Francisca, madrinha de Mário. Ao lado, na
rua Visconde do Rio Branco, moravam a cunhada mais velha de Carlos
 Augusto, Isabel Maria do Carmo de Moraes Rocha, viúva, e seus filhos.
Em 1899 Mário ganhou um novo irmão, Renato, e, dois anos depois, a
caçula Maria de Lourdes.
126/375
 A infância rodeada de parentes deixou marcas na obra do escritor,
cheia de referências autobiográficas. A tia Ana Francisca, por exemplo, in-
spirou a tricoteira que faz os sapatinhos do filho de Macunaíma; e Isabel,
mais durona, é a Tia Velha do conto “Vestida de preto”.44
Terminado o ginásio, em 1909, depois de repetir o ano em grego,
Mário iniciou sua errática formação técnica e universitária. Tentou obter
um diploma de contador na Escola de Comércio Álvares Penteado, mas
em dois meses abandonou o curso, ao que se sabe por um grave desen-
tendimento com o professor português Gervásio de Araújo, em torno de
normas gramaticais. A seguir, influenciado pelo irmão mais velho, que se
formava em direito e estudava filosofia, matriculou-se na Faculdade de
Filosofia e Letras, no Mosteiro de São Bento, vinculada à Universidade de
Louvain, da Bélgica.
O curso logo lhe pareceu “muito forte”. Não ficou nem um ano. “Só
frequentava as aulas de literatura”, contou depois, numa carta à pianista e
pesquisadora Oneyda Alvarenga.45 Dizia na correspondência que os sis-
temas filosóficos, em especial os modernos, o “fatigavam pa-
 vorosamente”. Apesar das dificuldades, suas leituras teriam passado por
“quase tudo” de Platão e “bastante Aristóteles”. Para seu uso, no entanto,
preferia Epicuro, o filósofo da felicidade, cuja doutrina — contava à amiga
— já conhecia sem precisar ter lido.46
Se a metafísica e a contabilidade não eram seu forte, restavam os in-
teresses artísticos, que foram se impondo. O pai, amante do teatro, escre-
 via peças; a mãe e a tia tocavam piano; e Renato, grande promessa de
concertista, frequentava o Conservatório Dramático e Musical de São
Paulo. Também pianista diletante, Mário decidiu prestar exames para a
instituição — que fora criada em 1906, na onda do aparelhamento cultural
de São Paulo, incentivada pelo baronato do café. Entrou no terceiro ano e
127/375
não tardou a assumir funções de monitor. Posteriormente seria professor
de piano e de história da música.
Embora não tenha se tornado um concertista, como chegou a imagin-
ar, Mário apresentou-se em situações públicas — tocou Schubert, por ex-
emplo, na cerimônia do quarto aniversário da Congregação Mariana da
Imaculada Conceição. Paralelamente à música, seus interesses pela liter-
atura e pela arte só aumentavam. Se não perdia concerto e vivia mergul-
hado em livros sobre a vida dos grandes compositores, também fre-
quentava exposições, cada vez mais numerosas em São Paulo, e estudava
história da arte.
 Aos dezesseis anos, antes de entrar para o Conservatório, Mário já
havia adquirido um quadro de Torquato Bassi — pintor que teve parti-
cipação ativa no projeto da i Exposição Brasileira de Belas-Artes, no Liceu
de Artes e Ofícios, em 1911. Ao rememorar a aquisição, anos depois, o po-
eta pintou um quadro de sacrifícios financeiros na juventude, uma vez
que dependia de “mesada miserável” fornecida pelos pais. Menções dessa
ordem aparecem algumas vezes em relatos sobre a vida do autor de  Ma-
cunaíma, levando alguns a imaginar um intelectual abnegado, às voltas
com apertos materiais. Na realidade, Mário não se cercava de confortos
de milionário, mas, com todos os malabarismos econômicos que fazia
para comprar livros e obras de arte, viveu de maneira confortável, com re-
cursos próprios e da família.
128/375
SONETOS DO DESTINO
Uma tragédia abateu-se sobre os Andrade no ano de 1913: Renato morreu
em decorrência de um acidente numa brincadeira de futebol. Surpreen-
dido pela perda, para ele incompreensível, do irmão de catorze anos,
Mário foi tomado por forte depressão — “uma neurastenia que quase me
matou”, como escreveu a Carlos Drummond de Andrade em 1925.
Na tentativa de reanimá-lo, o tio Pio Lourenço Corrêa, afilhado do avô
Leite Moraes, levou-o para passar alguns meses em sua fazenda, na cid-
ade de Araraquara. Era um sujeito culto, poliglota, dono de vasta bibli-
oteca, ligado em zoologia e estudos linguísticos. Foram dias de isolamento
e angústia, que contribuíram para intensificar o interesse pela literatura.
Na volta a São Paulo, ainda se recuperando do baque, Mário começou
a levar mais a sério suas ambições poéticas. Foi provavelmente em 1914
— ano em que Anita Malfatti viajava para Nova York — que ele tomou
coragem e decidiu submeter seus sonetos a Vicente de Carvalho, poeta a
quem muito admirava. Embora se enquadrasse na lírica dominante, in-
spirada no parnasianismo, com métrica, rimas e algumas fumaças
românticas e simbolistas, Carvalho era tido por Mário como um “genuíno
artista”. Numa série de artigos intitulada “Mestres do Passado”, publicada
em 1921, retirou-o do grupo dos “legítimos parnasianos”, considerando-o
“mais poeta do que todos os metrificadores da sua geração”.
129/375
Remeteu os sonetos num envelope registrado,acompanhados por
carta “assombrada de idolatria e servidão”.47 Esperava de Carvalho um
parecer — “que me dissesse qualquer coisa, um ‘não’ que fosse, para es-
clarecer as minhas dúvidas sobre mim”.
É de imaginar a ansiedade do aprendiz na expectativa do juízo do
mestre — que, todavia, jamais chegou. O poeta ignorou o pedido, num
episódio difícil e humilhante, nunca esquecido pelo autor de  Macunaíma,
que em 1935, em entrevista a O Jornal , do Rio, ainda o mencionava:
Quando me iniciei fazendo versos, reuni meus melhores sonetos, o que
eu supunha fosse o melhor, e mandei-os em carta a Vicente de
Carvalho, pedindo-lhe opinião. Ainda não publicara coisa nenhuma, a
não ser alguns sonetos em revistecos sem importância. Vicente nunca
me respondeu. Cheguei a ir à casa dele para retirar a limpo se morava
mesmo lá, ou se estava em São Paulo. Estava. Deve ter recebido a carta
registrada e… sei que não respondeu. Como gosto muito da poesia
dele, até agora sofro disso.
No ano seguinte à frustrada tentativa de ser aprovado por Vicente de
Carvalho, Mário formou-se em canto pelo Conservatório e publicou pela
primeira vez um artigo na imprensa, no Jornal do Comércio. Era um
comentário musical — mas seu autor continuava a escrever contos e
poemas.
•
Em fevereiro de 1917, Carlos Augusto de Andrade sofreu um ataque
cardíaco no barbeiro, foi levado para casa, pareceu recuperar-se, mas
poucos dias depois não resistiu. Morreu no dia 15 do mesmo mês, uma
130/375
quarta-feira, na semana anterior ao Carnaval. Numa carta que diz
 bastante sobre sua relação com a figura paterna, Mário rememorou a
morte do pai ao amigo Sérgio Milliet em 1939:
Sofri horrivelmente. Hoje imagino que havia bastante egoísmo
naquele sofrimento, porque embora já trabalhasse e ganhasse regular-
mente, ainda vivia na sombra de meu pai, covardemente ou
preguiçosamente (é o mesmo…) aceitando mesada. Tive a perfeita
sensação do desamparo, de me perder infantilmente na bruta mul-
tidão. Se, de fato, pelo que me lembro, era o corpo dele que eu chorava
 vendo morto, não sei até que ponto era a inatividade, a improdutivid-
ade não mais protetora desse corpo morto que me fazia chorar e ficar,
como fiquei, meio abobalhado. Me lembro muito bem que desde a
madrugada da vigília ao morto me entreguei completamente, já sem
sequer chorar, incapaz de um gesto qualquer. Pegaram em mim, me
 vestiram, me puseram no automóvel, me conduziram pelo braço, in-
quietei a todos, tomando um papel principal quase tão importante na
cerimônia como o do morto.
Tudo isso me fez pensar num egoísmo qualquer, recôndito, porque
sempre soube estimar meu pai muito lucidamente sem muitos amores.
Ele mesmo aliás soubera criar entre nós e ele um sentimento muito
profundo, sempre nobre, mas sem demonstrações físicas de amor.
Resto, decerto, do operário que ele foi no início da vida, pois que não
era coisa raciocinada nem comentada, mas espontânea. Havia entre
nós uma enorme estima. De mim para ele, isto é. Ele não podia me es-
timar muito não, pois eu não era nada, e na família era considerado,
mais ou menos com razão, como um perdido. Isso entre três manos
exemplares, imagine o contraste que fazia.
131/375
Logo me ergui de novo. Não é Logo me ergui de novo. Não é como o meu irmão que morreu ecomo o meu irmão que morreu e
cuja morte até hoje me faz sofrer. Meu cuja morte até hoje me faz sofrer. Meu pai, menos de uma semana de-pai, menos de uma semana de-
pois da morte, fui a uma conferência do pois da morte, fui a uma conferência do Pujol sobre Machado de Assis,Pujol sobre Machado de Assis,
não quis perder a série não quis perder a série que estava seguindo. O escândalo foi enormeque estava seguindo. O escândalo foi enorme
na família, só mamãe creio me compreendeu porque aceitou tudo si-na família, só mamãe creio me compreendeu porque aceitou tudo si-
lenciosa, sem dar mostra de sofrer lenciosa, sem dar mostra de sofrer o que eu fiz. Fui. Raciocinei forteo que eu fiz. Fui. Raciocinei forte
que não era festa — fque não era festa — festa de fato não teria ainda gosto para ir — esta de fato não teria ainda gosto para ir — eraera
continuação de estudos e fui. Meu pai já escontinuação de estudos e fui. Meu pai já estava arquivado numatava arquivado numa
memória clara, sem ressentimentos, cheia de imensa gratidão, não,memória clara, sem ressentimentos, cheia de imensa gratidão, não,
imensa estima pelo homem verdadeiro que ele foi. Mas imensa estima pelo homem verdadeiro que ele foi. Mas era precisoera preciso
guardar o pierrô. Quer dizer: quando meu pai ficou doente, eu estavaguardar o pierrô. Quer dizer: quando meu pai ficou doente, eu estava
me preparando pra ir num grande baile de me preparando pra ir num grande baile de carnaval. Minha tia mecarnaval. Minha tia me
dera um cetim verde-alface sublime e caríssimo. Eu mesmo desenheidera um cetim verde-alface sublime e caríssimo. Eu mesmo desenhei
um pierrô miraculoso. Estava já passadinho, num um pierrô miraculoso. Estava já passadinho, num manequim, no meumanequim, no meu
quarto. Com o doente não fui ao baile nem pensei quarto. Com o doente não fui ao baile nem pensei nisso, está claro.nisso, está claro.4848
132/375132/375
PERSONALIDADE “ESTRAGOSA”PERSONALIDADE “ESTRAGOSA”
EmEm 19171917, a guerra na Europa chegava ao terceiro ano e insuflava o, a guerra na Europa chegava ao terceiro ano e insuflava o
nacionalismo no Brasil. Emnacionalismo no Brasil. Em 19161916, criara-se no Rio de Janeiro a Liga de, criara-se no Rio de Janeiro a Liga de
Defesa Nacional, que reunia nomes como Rui Barbosa e Olavo Bilac. ODefesa Nacional, que reunia nomes como Rui Barbosa e Olavo Bilac. O
“príncipe dos poetas” percorria o país a discursar com fervor patriótico“príncipe dos poetas” percorria o país a discursar com fervor patriótico
em defesa do serviço militar e da participação do Brasil no conflito. A em defesa do serviço militar e da participação do Brasil no conflito. A LigaLiga
propunha-se a “estimular o patriotismo consciente e coesivo; propagar apropunha-se a “estimular o patriotismo consciente e coesivo; propagar a
instrução primária, profissional-militar e cívica; e defender: com a discip-instrução primária, profissional-militar e cívica; e defender: com a discip-
lina — o trabalho; com a força — a paz; com a consciência — a liberdade; elina — o trabalho; com a força — a paz; com a consciência — a liberdade; e
com o culto do heroísmo a dignificação da nossa história e a preparaçãocom o culto do heroísmo a dignificação da nossa história e a preparação
do nosso porvir”.do nosso porvir”.
Os combates mexiam com o Os combates mexiam com o ânimo da juventude. “Queríamos com-ânimo da juventude. “Queríamos com-
 bater mas não sabíamos como”, record bater mas não sabíamos como”, recordou-se Di Cavalcanti, em suasou-se Di Cavalcanti, em suas
memórias. “Só se nos apresentássemos no Consulado da França.” E lá fo-memórias. “Só se nos apresentássemos no Consulado da França.” E lá fo-
ram ao consulado. “O cônsul nos recebeu ram ao consulado. “O cônsul nos recebeu carinhoso mas nada podia fazercarinhoso mas nada podia fazer
por nossa fúria guerreira.”por nossa fúria guerreira.”4949
 A agressão alemã a um n A agressão alemã a um navio brasileiro, oavio brasileiro, o Paraná Paraná, no canal da Man-, no canal da Man-
cha, foi o início de uma escalada que levaria o governo de Venceslau Bráscha, foi o início de uma escalada que levaria o governo de Venceslau Brás
a declarar guerra à Alemanha ema declarar guerra à Alemanha em 2727 de outubro.de outubro.
 Antes disso, em março, logo d Antes disso, em março, logo depois da perda do pai, Mário tornou-seepois da perda do pai, Mário tornou-se
noviço da Venerável Ordem Terceira do Carmo. No mês seguinte,noviço da Venerável Ordem Terceira do Carmo. No mês seguinte,
133/375133/375
estimulado por seu juvenil pacifismo católico, encerrou os versos deestimulado por seu juvenil pacifismo católico, encerrou os versos de  Há Há
uma gota de sangue em cada poemauma gota de sangue em cada poema e decidiu bancar a ediçãodo livro,e decidiu bancar a edição do livro,
que seria assinado por Mário Sobral.que seria assinado por Mário Sobral.
O volume, editado em junho, trazia O volume, editado em junho, trazia uma “Explicação”, de quatro pará-uma “Explicação”, de quatro pará-
grafos, e uma brevíssima “Biografia”, em forma de verso livre.grafos, e uma brevíssima “Biografia”, em forma de verso livre.
Na nota explicativa, o autor ressaltava o fato de os poemas terem sidoNa nota explicativa, o autor ressaltava o fato de os poemas terem sido
realizados “antes de ter o desvairo dos idólatras atingido o nosso Brasil”realizados “antes de ter o desvairo dos idólatras atingido o nosso Brasil”
— ou seja, antes do ataque alemão ao navio— ou seja, antes do ataque alemão ao navio Paraná Paraná. Se fossem posteri-. Se fossem posteri-
ores à agressão, dizia, os versos teriam sido “muito outros”. Ficasse claroores à agressão, dizia, os versos teriam sido “muito outros”. Ficasse claro
que naquele livro o autor “chorava pela França, que o educara, e pela Bél-que naquele livro o autor “chorava pela França, que o educara, e pela Bél-
gica que se impusera à admiração do Universo”.gica que se impusera à admiração do Universo”.
Quanto à curiosa “Biografia”, que expunha a humildade e o medo doQuanto à curiosa “Biografia”, que expunha a humildade e o medo do
poeta diante da estreia, chamava a atenção sobretudo por um comentáriopoeta diante da estreia, chamava a atenção sobretudo por um comentário
acerca de uma sensibilidade “estragosa” que nascera com acerca de uma sensibilidade “estragosa” que nascera com o autor:o autor:
 São Paulo o viu primeiro. São Paulo o viu primeiro.
 Foi em 93. Foi em 93.
 Nasceu, acompanhado daque Nasceu, acompanhado daquelala
estragosa sensibilidade queestragosa sensibilidade que
deprime os seres e prejudicadeprime os seres e prejudica
as existências, medroso e humilde.as existências, medroso e humilde.
 E, para a publicação destes E, para a publicação destes
 poemas, sentiu-se mais medroso e m poemas, sentiu-se mais medroso e mais humilde, que ao nascer.ais humilde, que ao nascer.
Os textos deOs textos de Há uma gota de sangue em cada poema Há uma gota de sangue em cada poema eram ambienta-eram ambienta-
dos na França; evocavam os dramas do conflito e a esperança de triunfodos na França; evocavam os dramas do conflito e a esperança de triunfo
da paz:da paz:
Ó paz, divina geratriz do riso,Ó paz, divina geratriz do riso,
134/375134/375
Chegai! Ó doce paz, ó meiga paz,Chegai! Ó doce paz, ó meiga paz,
 Sócia eterna de todos os progressos, Sócia eterna de todos os progressos,
 Estendei vosso manto puro e liso Estendei vosso manto puro e liso
 Por sobre a Terra, que se esfaz  Por sobre a Terra, que se esfaz 
E por aí seguia.E por aí seguia.
Na tentativa de descobrir na obra de estreia algum traço precursor doNa tentativa de descobrir na obra de estreia algum traço precursor do
modernismo, o próprio Mário, já maduro, sublinhou um comentário domodernismo, o próprio Mário, já maduro, sublinhou um comentário do
crítico Nuto Santana, nocrítico Nuto Santana, no Correio PaulistanoCorreio Paulistano. O articulista teria ficado “ir-. O articulista teria ficado “ir-
ritadíssimo” na época com a rima da palavra “voou” com umritadíssimo” na época com a rima da palavra “voou” com um oouoou feitofeito
pelo vento. Tal opção, segundo Mário, teria sido “positivamente um ex-pelo vento. Tal opção, segundo Mário, teria sido “positivamente um ex-
agero” emagero” em 19171917..
Na opinião de Manuel Bandeira, no entanto, a quem o poeta paulistaNa opinião de Manuel Bandeira, no entanto, a quem o poeta paulista
enviara seus escritos “passadistas” emenviara seus escritos “passadistas” em 19251925, os versos do livro eram de, os versos do livro eram de
um “ruim esquisito” e pareciam nascidos do espírito “de um rapaz de seusum “ruim esquisito” e pareciam nascidos do espírito “de um rapaz de seus
quinze dezesseis anos que não trepou” por ser feio e acreditar que asquinze dezesseis anos que não trepou” por ser feio e acreditar que as
meninas não davam bola para ele. meninas não davam bola para ele. Bandeira chegara a cogitar um artigoBandeira chegara a cogitar um artigo
sobre a juventude literária do amigo, mas viu naquela lírica imatura apen-sobre a juventude literária do amigo, mas viu naquela lírica imatura apen-
as um “fermentozinho” do futuro poeta.as um “fermentozinho” do futuro poeta.
Na conversa por cartas, Mário, então Na conversa por cartas, Mário, então comcom 3232 anos, traçou um breveanos, traçou um breve
retrato de si mesmo quando jovem — sem mencionar o jocoso comentárioretrato de si mesmo quando jovem — sem mencionar o jocoso comentário
sexual feito pelo sexual feito pelo interlocutor pernambucano:interlocutor pernambucano:
Quando releio coisas passadistas minhas tenho a impressão do MárioQuando releio coisas passadistas minhas tenho a impressão do Mário
de Andrade que fui na de Andrade que fui na casa dos vinte. Um sujeito grandão, feio como ocasa dos vinte. Um sujeito grandão, feio como o
diabo, almofadinha usando com exagero as modas do dia, desen-diabo, almofadinha usando com exagero as modas do dia, desen-
graçado de corpo, com graçado de corpo, com olhar apagado, no princípio uma cabelamaolhar apagado, no princípio uma cabelama
enorme que não havia meios de ficar quieta, um tipo antipático porémenorme que não havia meios de ficar quieta, um tipo antipático porém
135/375135/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
que tinha um certo sal, dava vontade da gente que tinha um certo sal, dava vontade da gente saber mesmo o que elesaber mesmo o que ele
é.é.
EmEm 2121 de novembro dede novembro de 19171917, realizava-se um ato no Conservatório, realizava-se um ato no Conservatório
Dramático, em apoio à entrada do Brasil na guerra. Discursaria no eventoDramático, em apoio à entrada do Brasil na guerra. Discursaria no evento
o secretário de Justiça do Estado de São Paulo, o cafeicultor e industrialo secretário de Justiça do Estado de São Paulo, o cafeicultor e industrial
Elói Chaves, filiado aoElói Chaves, filiado ao prpprp..
 Ao entregar ao palestrante uma Ao entregar ao palestrante uma corbeillecorbeille de flores, em nome da casade flores, em nome da casa
de ensino, o professor Mário de Andrade leu um breve discurso, no qualde ensino, o professor Mário de Andrade leu um breve discurso, no qual
declarava seu amor à pátria e reafirmava o compromisso das novas ger-declarava seu amor à pátria e reafirmava o compromisso das novas ger-
ações com o engrandecimento do país:ações com o engrandecimento do país:
Pátria é a saíra que singra o Pátria é a saíra que singra o azul de São Paulo; é a onda esbatendo-seazul de São Paulo; é a onda esbatendo-se
contra os rochedos da contra os rochedos da Guanabara; é a carnaúba flamulando ao ventoGuanabara; é a carnaúba flamulando ao vento
nas restingas adustas do Ceará! Pátria é a nas restingas adustas do Ceará! Pátria é a gurara para o Norte,gurara para o Norte,
Curupaiti no Sul! São essas grandes matas — movimentos verdes —Curupaiti no Sul! São essas grandes matas — movimentos verdes —
onde os Pais Leme deixaram as suas onde os Pais Leme deixaram as suas ossadas junto às pedras de luzossadas junto às pedras de luz
 viva! É a conjuga viva! É a conjugação de três raças tristes doção de três raças tristes donde saiu esta nacionalinde saiu esta nacionalidadedade
inda em botão — forte e inda em botão — forte e dura — vencedora de tantas intempériesdura — vencedora de tantas intempéries
diversas!diversas!
O jornalista Oswald de Andrade, que na época O jornalista Oswald de Andrade, que na época trabalhava para otrabalhava para o  Jor- Jor-
nal do Comércional do Comércio, encantou-se com o que ouviu, e disputou a íntegra do, encantou-se com o que ouviu, e disputou a íntegra do
texto com concorrentes, levando-a para publicar no texto com concorrentes, levando-a para publicar no dia seguinte.dia seguinte.5050
Oswald já tinha conhecido Carlos, o irmão mais velho de Mário, nos tem-Oswald já tinha conhecidoCarlos, o irmão mais velho de Mário, nos tem-
pos de estudante, e sabia da existência do jovem poeta — de quem se pos de estudante, e sabia da existência do jovem poeta — de quem se tor-tor-
naria, a partir daquele dia, amigo naria, a partir daquele dia, amigo e companheiro de agitação cultural.e companheiro de agitação cultural.
136/375136/375
••
Foi pouco mais de um mês depois de ver suas palavras patrióticasFoi pouco mais de um mês depois de ver suas palavras patrióticas
publicadas pelopublicadas pelo Jornal do Comércio Jornal do Comércio que aquele moço feioso e enigmáticoque aquele moço feioso e enigmático
— autor, sob pseudônimo, de — autor, sob pseudônimo, de versos pacifistas afrancesados, marcado porversos pacifistas afrancesados, marcado por
sensibilidade “estragosa” e considerado “perdido” pela família — visitou asensibilidade “estragosa” e considerado “perdido” pela família — visitou a
exposição de Anita Malfatti, riu às gargalhadas e deixou com a artista umexposição de Anita Malfatti, riu às gargalhadas e deixou com a artista um
cartão de visita tarjado de preto, em sinal de luto pela morte do cartão de visita tarjado de preto, em sinal de luto pela morte do pai.pai.
137/375137/375
1010
OSWALD DA MAMÃEOSWALD DA MAMÃE
139/375
Oswald de Andrade pintado por Tarsila
do Amaral em 1922. Filho único de família
abastada, o escritor começou a trabalhar
como jornalista no Diário Popular.
Como Mário de Andrade, José Oswald de Sousa Andrade também foi um
 jovem católico praticante, estudou no Ginásio Nossa Senhora do Carmo e
desfilou — vestido de anjinho — em procissões. Três anos mais velho,
nasceu em 11 de janeiro de 1890, na avenida Ipiranga, de onde a família
passou para uma casa na Barão de Itapetininga, esquina com a atual rua
Dom José de Barros, no centro de São Paulo.
 A mãe, Inês Henriqueta de Sousa Andrade, e o pai, José Oswald
Nogueira de Andrade, descendiam de famílias tradicionais; ela, com
raízes na Amazônia, vinha dos Souza Marzagão, fundadores do Pará; ele,
de Minas Gerais, tinha sangue do bandeirante Thomé Rodrigues
Nogueira do Ó, que morou em Baependi no início do século xviii e é ante-
passado de outros brasileiros conhecidos, como o escritor Raul Pompeia e
o senador Eduardo Suplicy.
 A avó paterna, Antônia Nogueira Cobra, era leitora de romances
franceses — e possivelmente deu o nome Oswald ao filho inspirada pelo
personagem do livro Corinne, de Madame de Stäel. Pronuncia-se, port-
anto, “Oswáld”, embora ele mesmo assinasse, com frequência, Oswaldo —
como era chamado por seus amigos e parentes.51
Seu Andrade, o pai, foi um negociante imobiliário rico, que multi-
plicou a herança deixada pelo sogro, para quem trabalhou como corretor
antes de se casar. Possuiu e loteou áreas inteiras de bairros paulistanos —
Brás, Cambuci, Glória, Cerqueira Cesar — e atuou um período na vida
pública, como vereador.52
140/375
D. Inês, católica dedicada, tinha em casa oratório e imagens de santos,
que eram evocados para tudo. Santa Bárbara e são Jerônimo para as
noites de trovoadas, santa Luzia para resolver problemas nos olhos, santa
Clara para interromper a chuva e são Bento para proteger contra os
 bichos perigosos. “Todo esse dicionário do totemismo órfico presidiu e
explicou o mundo ante meus olhos infantes”, escreveu Oswald em suas
memórias.53 Além das procissões e das missas na igreja da Consolação, o
garoto participou, com pais, amigos e parentes, de romarias a Aparecida e
ao santuário de Bom Jesus do Pirapora — festa religiosa que aparece no
romance A estrela de Absinto, numa das incontáveis referências autobio-
gráficas de sua obra.
Em 1900, aos dez anos de idade, Oswald testemunhou o que parecia
um milagre na antiga São Paulo — operado não pelos céus, mas pela téc-
nica, que anunciava um novo século urbano e agitado: no dia 7 de maio
inaugurou-se a primeira linha de bondes elétricos da cidade. A novidade,
que já chegara ao Rio, desembarcava na Pauliceia por iniciativa dos
canadenses Alexander Mackenzie e Frederick Pearson, que se associaram
a uma empresa de Nova York e fundaram a The São Paulo Tramway,
Light & Power Company — a famosa e controversa Light.
No dia da estreia da “maravilha mecânica” uma multidão foi às ruas
do centro — e a ela se uniu o menino Oswald, posicionado na ladeira de
São João, na esquina da Líbero Badaró, com os olhos fixos no largo de
São Bento, de onde viria a coisa:
Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O
 veículo amarelo e grande ocupou os trilhos no centro da via pública.
Um homem de farda azul e boné o conduzia, tendo ao lado um fiscal.
Uma alavanca de ferro prendia-o ao fio esticado, no alto. Uma
141/375
campainha forte tilintava abrindo as alas convergentes do povo. Desce
devagar. Gritavam:
— Cuidado! Vem a nove pontos!
Um italiano dialetal exclamava para o filhinho que puxava pelo
 braço:
— Lá vem o bonde! Toma cuidado!
O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pess-
oas, sentadas, de pé.
Uma mulher exclamou:
— Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça!
Passou. Passou adiante, perto do local onde se abre hoje a avenida
 Anhangabaú. Houve um tumulto. Acidente?
Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos
saltavam.
— Rebentaram a trave do lado! Não é nada!
Tiraram a trave quebrada. O veículo encheu-se de novo, continuou
mais devagar ainda, precavido.
E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas,
a atmosfera dos grandes acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de
lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os acetilenos
da iluminação pública.
Em breve os lampiões também dariam lugar à iluminação elétrica
numa cidade que começava a se encher de fios e postes.
Por essa época, depois de ter estudado no Caetano de Campos e no
Ginásio Nossa Senhora do Carmo, Oswald transferiu-se para o São Bento,
onde conheceu Guilherme de Almeida e foi aluno do professor Gervásio
de Araújo — o mesmo mestre lusitano com quem Mário de Andrade se
desentendeu, por divergências gramaticais, na Escola de Comércio
142/375
 Álvares Penteado. Aquele hom Álvares Penteado. Aquele homem “grosso e baixote, sob uma desgren-em “grosso e baixote, sob uma desgren-
hada cabeleira grisalha” foi o primeiro a ver talento nas suas composiçõeshada cabeleira grisalha” foi o primeiro a ver talento nas suas composições
escolares.escolares.
Desejoso de tornar-se escritor, como o tio acadêmico Herculano InglêsDesejoso de tornar-se escritor, como o tio acadêmico Herculano Inglês
de Sousa, irmão de sua mãe, o meninão de quinze anos começou preco-de Sousa, irmão de sua mãe, o meninão de quinze anos começou preco-
cemente a se aproximar de gente ligada ao meio literário. Por intermédiocemente a se aproximar de gente ligada ao meio literário. Por intermédio
de um colega, Indalécio de Aguiar, conheceu Ricardo Mendes Gonçalves,de um colega, Indalécio de Aguiar, conheceu Ricardo Mendes Gonçalves,
intelectual com ideias anarquistas — que Monteiro Lobato consideraria “ointelectual com ideias anarquistas — que Monteiro Lobato consideraria “o
mais genuíno poeta” de sua geração.mais genuíno poeta” de sua geração.
Poucos anos antes, Lobato, Gonçalves e outros Poucos anos antes, Lobato, Gonçalves e outros amigos da Faculdadeamigos da Faculdade
de Direito, como de Direito, como Godofredo Rangel, haviam formado um grupo intelectu-Godofredo Rangel, haviam formado um grupo intelectu-
al, o Cenáculo, que chamavam também de Cainçalha, termo usado al, o Cenáculo, que chamavam também de Cainçalha, termo usado parapara
designar um ajuntamento de cães ou, em sentido figurado, de caipiras. Osdesignar um ajuntamento de cães ou, em sentido figurado, de caipiras. Os
moços reuniam-se no Café Guarany e escreviam para um jornalzinho cri-moços reuniam-se no Café Guarany e escreviam para um jornalzinho cri-
ado em Pindamonhangaba —ado em Pindamonhangaba — O MinareteO Minarete, que existiu de, que existiu de 19031903 aa 19081908..
Minarete também era o apelido da “república” onde moravam.Minarete também era o apelidoda “república” onde moravam.
Indalécio foi responsável pela primeira crise religiosa de Oswald, aoIndalécio foi responsável pela primeira crise religiosa de Oswald, ao
dar-lhe de presente o livrodar-lhe de presente o livro A relíquia A relíquia, de Eça de Queirós. Na realidade, a, de Eça de Queirós. Na realidade, a
crise — como o escritor diria mais tarde — foi de catolicismo, pois elecrise — como o escritor diria mais tarde — foi de catolicismo, pois ele
nunca deixaria de manter um profundo sentimento religioso, que preferianunca deixaria de manter um profundo sentimento religioso, que preferia
chamar de “sentimento órfico”. Como testemunhou o crítico e amigo An-chamar de “sentimento órfico”. Como testemunhou o crítico e amigo An-
tonio Candido, Oswald, depois de longo sofrimento, iria morrer, emtonio Candido, Oswald, depois de longo sofrimento, iria morrer, em 19541954,,
“com a Nossa Senhora da “com a Nossa Senhora da Aparecida na mão”.Aparecida na mão”.
No início deNo início de 19091909, com ajuda do pai, , com ajuda do pai, começou a trabalhar comocomeçou a trabalhar como
repórter e crítico de teatro dorepórter e crítico de teatro do Diário Popular Diário Popular, jornal fundado por José, jornal fundado por José
Maria Lisboa e Américo de Campos. Foi noMaria Lisboa e Américo de Campos. Foi no Diário Diário que Aristides Lobo, aoque Aristides Lobo, ao
escrever sobre a Proclamação da República, cunhou uma conhecidaescrever sobre a Proclamação da República, cunhou uma conhecida
descrição do pasmo popular diante da descrição do pasmo popular diante da quartelada: “O povo assistiu àquiloquartelada: “O povo assistiu àquilo
143/375143/375
 bestializado, atônito, surpreso, sem conhec bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitoser o que significava. Muitos
acreditaram seriamente estar vendo uma parada”.acreditaram seriamente estar vendo uma parada”.
Em março, o foca doEm março, o foca do Diário Diário matriculou-se na Faculdade de Direito ematriculou-se na Faculdade de Direito e
se revoltou com o trote aplicado pelos veteranos. “A valentona imbecilid-se revoltou com o trote aplicado pelos veteranos. “A valentona imbecilid-
ade daquele grupo do trote criou em mim uma verdadeira alergia porade daquele grupo do trote criou em mim uma verdadeira alergia por
tudo que se processe debaixo das Arcadas”, escreveu depois.tudo que se processe debaixo das Arcadas”, escreveu depois.
••
EmEm 19101910, com vinte anos, o jornalista, crítico de teatro e estudante de, com vinte anos, o jornalista, crítico de teatro e estudante de
direito Oswald de Andrade foi pela primeira vez ao Rio de Janeiro.direito Oswald de Andrade foi pela primeira vez ao Rio de Janeiro.
Hospedou-se no palacete do tio Inglês de Sousa, na rua São Clemente,Hospedou-se no palacete do tio Inglês de Sousa, na rua São Clemente,
271271, perto da casa de Rui Barbosa. Sentiu-se um paulista meio “pança”, perto da casa de Rui Barbosa. Sentiu-se um paulista meio “pança”
(ridículo) com aquelas “primas desembaraçadas e bonitas e (ridículo) com aquelas “primas desembaraçadas e bonitas e primos bem-primos bem-
postos”.postos”.
Um dos motivos que o levaram à capital foi a estreia doUm dos motivos que o levaram à capital foi a estreia do OteloOtelo, no Mu-, no Mu-
nicipal, com o ator siciliano Giovanni Grasso. Os comentários para onicipal, com o ator siciliano Giovanni Grasso. Os comentários para o
 Diário Diário o aproximavam do mundo que começava a o aproximavam do mundo que começava a frequentar, o dasfrequentar, o das
celebridades do palco.celebridades do palco.
Uma noite, saindo tarde pelas ruas do centro, depois de ter se demor-Uma noite, saindo tarde pelas ruas do centro, depois de ter se demor-
ado na pensão dos atores italianos, Oswald foi surpreendido por militaresado na pensão dos atores italianos, Oswald foi surpreendido por militares
a cavalo, numa movimentação inusual para a hora. Alguma coisa a cavalo, numa movimentação inusual para a hora. Alguma coisa aconte-aconte-
cia. Era uma “revolução”, avisou alguém, apontando para o cia. Era uma “revolução”, avisou alguém, apontando para o mar. Curioso,mar. Curioso,
o jornalista desceu a avenida o jornalista desceu a avenida Central, atual Rio Branco, até a altura daCentral, atual Rio Branco, até a altura da
praça Paris, aproximou-se do cais e seguiu, no escuro, na direção dapraça Paris, aproximou-se do cais e seguiu, no escuro, na direção da
Glória.Glória.
Nada viu — apenas homens montados que passavam de tempo emNada viu — apenas homens montados que passavam de tempo em
tempo. Decidiu recostar-se num banco à tempo. Decidiu recostar-se num banco à espera do amanhecer, paraespera do amanhecer, para
tentar descobrir o que estava ocorrendo. Pegou no sono e acordou numatentar descobrir o que estava ocorrendo. Pegou no sono e acordou numa
144/375144/375
daquelas insuperáveis auroras de verões cariocas. Ao olhar para o mar,daquelas insuperáveis auroras de verões cariocas. Ao olhar para o mar,
avistou diante de si navios de guerra que singravam em fila, lideradosavistou diante de si navios de guerra que singravam em fila, liderados
pelo encouraçadopelo encouraçado Minas Gerais Minas Gerais. Em todos tremulava, numa verga do. Em todos tremulava, numa verga do
mastro dianteiro, uma pequena bandeira triangular vermelha.mastro dianteiro, uma pequena bandeira triangular vermelha.
De repente, acendeu-se um fogo no flanco doDe repente, acendeu-se um fogo no flanco do Minas Gerais Minas Gerais e um es-e um es-
trondo se seguiu. O bombardeio trondo se seguiu. O bombardeio começou a alcançar a avenida Beira-Mar,começou a alcançar a avenida Beira-Mar,
forçando a testemunha, a essa altura já forçando a testemunha, a essa altura já acompanhada de outros curiosos,acompanhada de outros curiosos,
a se agachar atrás das estátuas dos jardins da Glória: “Era terrível o se-a se agachar atrás das estátuas dos jardins da Glória: “Era terrível o se-
gundo que mediava entre o ponto aceso no canhão e o estrondo do dis-gundo que mediava entre o ponto aceso no canhão e o estrondo do dis-
paro. Meus olhos faziam linha reta com a boca de fogo que atirava.paro. Meus olhos faziam linha reta com a boca de fogo que atirava.
Naquele minuto-século esperava me ver soterrado, pois parecia ser eu aNaquele minuto-século esperava me ver soterrado, pois parecia ser eu a
própria mira do bombardeio”.própria mira do bombardeio”.
Oswald presenciava a Revolta da Chibata, nome do Oswald presenciava a Revolta da Chibata, nome do movimento lid-movimento lid-
erado por João Cândido, o erado por João Cândido, o Almirante Negro, para mudar os regulamentosAlmirante Negro, para mudar os regulamentos
da Armada, que preservava práticas dos tempos do Império e da es-da Armada, que preservava práticas dos tempos do Império e da es-
cravidão — como punir marinheiros, quase sempre pobres e pretos, comcravidão — como punir marinheiros, quase sempre pobres e pretos, com
chibatadas.chibatadas.
••
 A “revolução” que Oswald,  A “revolução” que Oswald, até então alheio à vida pública, presenciouaté então alheio à vida pública, presenciou
no Rio acendeu nele o interesse pela política nacional. No ano seguinte,no Rio acendeu nele o interesse pela política nacional. No ano seguinte,
com apoio financeiro do pai, abriu o semanáriocom apoio financeiro do pai, abriu o semanário O PirralhoO Pirralho, revista que se, revista que se
engajaria na Campanha Civilista liderada por Rui engajaria na Campanha Civilista liderada por Rui Barbosa, em oposiçãoBarbosa, em oposição
ao presidente recém-eleito, o ao presidente recém-eleito, o marechal Hermes da Fonseca, sobrinho demarechal Hermes da Fonseca, sobrinho de
Deodoro.Deodoro.
Obra de um golpe militar, a República trouxera para o primeiro planoObra de um golpe militar, a República trouxera para o primeiro plano
da política brasileira a lei da espada, que se impôs no início do novo re-da política brasileira a lei da espada, que se impôs no início do novo re-
gime, autoritário e repressor. Hermesda Fonseca, apoiado pelo caudilhogime, autoritário e repressor. Hermes da Fonseca, apoiado pelo caudilho
145/375145/375
gaúcho Pinheiro Machado, parecia representar, emgaúcho Pinheiro Machado, parecia representar, em 19101910, um retorno ao, um retorno ao
poder fardado, contra o qual se poder fardado, contra o qual se opunha o candidato Rui Barbosa, com aopunha o candidato Rui Barbosa, com a
adesão da elite paulista. Numa eleição considerada pela primeira vezadesão da elite paulista. Numa eleição considerada pela primeira vez
“competitiva” na curta história republicana, o candidato civil foi“competitiva” na curta história republicana, o candidato civil foi
derrotado pelo militar, em meio às tradicionais denúncias de fraude.derrotado pelo militar, em meio às tradicionais denúncias de fraude.
O PirralhoO Pirralho não foi apenas uma revista “civilista”, que recebeu apoio denão foi apenas uma revista “civilista”, que recebeu apoio de
políticos dopolíticos do prpprp, como Washington Luís. Foi também uma , como Washington Luís. Foi também uma publicação cul-publicação cul-
tural e social influente, com tural e social influente, com edições interessantes e brincalhonas.edições interessantes e brincalhonas.5454 A  A 
redação ocupava uma sala de sobrado na redação ocupava uma sala de sobrado na rua Quinze de Novembro, pararua Quinze de Novembro, para
onde d. Inês transferiu escrivaninha, sofá e onde d. Inês transferiu escrivaninha, sofá e cadeiras de sua casa.cadeiras de sua casa.
 A revista, editada ao longo de sete an A revista, editada ao longo de sete anos, projetou o desenhistaos, projetou o desenhista
 Voltolino e o escritor Juó Bananére. Colabora Voltolino e o escritor Juó Bananére. Colaboravam nomes como Paulovam nomes como Paulo
Setúbal e Guilherme de Almeida, além de escritores em atividade no Rio,Setúbal e Guilherme de Almeida, além de escritores em atividade no Rio,
com os quais o jornalista proprietário mantinha boas relações — Olavocom os quais o jornalista proprietário mantinha boas relações — Olavo
Bilac, Emílio de Meneses, Goulart de Andrade etc.Bilac, Emílio de Meneses, Goulart de Andrade etc.
146/375146/375
 A DESCOBERTA DA EUROPA  A DESCOBERTA DA EUROPA 
 Apesar do sucesso do Apesar do sucesso do Pirralho Pirralho e de ainda não ter terminado o curso dee de ainda não ter terminado o curso de
direito, Oswald convenceu os pais de que deveria interromper tudo paradireito, Oswald convenceu os pais de que deveria interromper tudo para
fazer sua primeira viagem à Europa. Era uma experiência que, naquelafazer sua primeira viagem à Europa. Era uma experiência que, naquela
época, nas palavras de Paulo Prado, “marcava uma data” época, nas palavras de Paulo Prado, “marcava uma data” no espírito deno espírito de
quem a vivesse.quem a vivesse.5555 Numa fase em que a vida financeira da família ia muitoNuma fase em que a vida financeira da família ia muito
 bem, o bem, o Pirralho Pirralho foi arrendado por Paulo Setúbal e Babi de Andrade. Emfoi arrendado por Paulo Setúbal e Babi de Andrade. Em
fevereiro defevereiro de 19121912, Oswald já estava pronto para embarcar no navio, Oswald já estava pronto para embarcar no navio
 Martha Washington Martha Washington rumo à Itália.rumo à Itália.
 As despedidas foram calorosas. Cob As despedidas foram calorosas. Cobertos de “lágrimas ardentes”, ele eertos de “lágrimas ardentes”, ele e
d. Inês se abraçaram longamente antes da partida. Tinham d. Inês se abraçaram longamente antes da partida. Tinham muitas afinid-muitas afinid-
ades, e ela o ades, e ela o envolvia em cuidados e carinhos, naturalmente, correspon-envolvia em cuidados e carinhos, naturalmente, correspon-
didos. Para seu Andrade, que não se animava com a ideia de o filho seguirdidos. Para seu Andrade, que não se animava com a ideia de o filho seguir
carreira literária, preferindo que o ajudasse nos negócios, a temporada nocarreira literária, preferindo que o ajudasse nos negócios, a temporada no
exterior era uma esperança de que as coisas mudassem.exterior era uma esperança de que as coisas mudassem.
Tudo acertado, o jovem viajante embarcou em companhia de “doisTudo acertado, o jovem viajante embarcou em companhia de “dois
clandestinos”, um primo de Minas e clandestinos”, um primo de Minas e um colega jornalista, Renato Lopes,um colega jornalista, Renato Lopes,
cujas passagens ele mesmo bancou. Foi novamente cujas passagens ele mesmo bancou. Foi novamente às lágrimas no convés,às lágrimas no convés,
quando o navio se soltou do cais e iniciou a viagem em direção ao Rio,quando o navio se soltou do cais e iniciou a viagem em direção ao Rio,
onde faria uma escala — que coincidiu com a data da morte do barão doonde faria uma escala — que coincidiu com a data da morte do barão do
Rio Branco, homenageado com salvas de canhão.Rio Branco, homenageado com salvas de canhão.
147/375147/375
Em direção à Europa, nos primeiros dias em alto-mar, uma garota at-Em direção à Europa, nos primeiros dias em alto-mar, uma garota at-
raiu a atenção do jraiu a atenção do jovem jornalista. Chamava-se Landa Kosbach e viajavaovem jornalista. Chamava-se Landa Kosbach e viajava
com uma senhora que dizia ser sua mãe. Era bailarina e ia estudar nocom uma senhora que dizia ser sua mãe. Era bailarina e ia estudar no
Scala, em Milão. Oswald ficou fascinado com Scala, em Milão. Oswald ficou fascinado com a dança de gente grandea dança de gente grande
daquela “criança loira e linda que não teriadaquela “criança loira e linda que não teria 1111 anos”. Ao saber que nãoanos”. Ao saber que não
fora batizada, ofereceu-se para padrinho e sugeriu que a cerimônia sefora batizada, ofereceu-se para padrinho e sugeriu que a cerimônia se
realizasse no Duomo.realizasse no Duomo.
OO Martha Washington Martha Washington atracou em Nápolis. Oswald pegou um trem eatracou em Nápolis. Oswald pegou um trem e
foi a Roma ao encontro de um amigo. Depois, passou por Milão, onde ofoi a Roma ao encontro de um amigo. Depois, passou por Milão, onde o
improvável batismo da menina Landa aconteceu, e improvável batismo da menina Landa aconteceu, e seguiu para Paris.seguiu para Paris.
 Alugou um apartamento perto do J Alugou um apartamento perto do Jardim de Luxemburgo, que serviria deardim de Luxemburgo, que serviria de
 base para suas andança base para suas andanças. Não demorou para descobrir os. Não demorou para descobrir o éclairéclair, o, o camem-camem-
bert bert e as garotas parisienses.e as garotas parisienses.
Começou a namorar uma estudante chamada Henriette DeniseComeçou a namorar uma estudante chamada Henriette Denise
Boufflers, que apelidou de Kamiá. Mas Boufflers, que apelidou de Kamiá. Mas não conseguia se livrar das fnão conseguia se livrar das fantas-antas-
ias que o enlaçavam à ias que o enlaçavam à menina dançarina, agora sua afilhada. Perver-menina dançarina, agora sua afilhada. Perver-
samente obcecado por Landa, foi samente obcecado por Landa, foi novamente encontrá-la em Milão, numanovamente encontrá-la em Milão, numa
 viagem complicada, em compan viagem complicada, em companhia de Kamiá, que, segunhia de Kamiá, que, segundo ele, se encheudo ele, se encheu
de ciúme, antevendo uma rival.de ciúme, antevendo uma rival.
O tempo passava e, de São Paulo, a mãe saudosa enviava pelo correioO tempo passava e, de São Paulo, a mãe saudosa enviava pelo correio
a clássica goiabada e cartas aconselhando cuidados com a saúde. Casoa clássica goiabada e cartas aconselhando cuidados com a saúde. Caso
tivesse algum problema, que não fosse se tratar com qualquer um — pro-tivesse algum problema, que não fosse se tratar com qualquer um — pro-
curasse médico “de rei ou de presidente da República”. Seu Andrade con-curasse médico “de rei ou de presidente da República”. Seu Andrade con-
tava que otava que o Pirralho Pirralho já não tinha a mesma graç já não tinha a mesma graça. E os dois recomendavama. E os dois recomendavam
as obrigações religiosas — que fosse à missa e rezasse antes de dormir eas obrigações religiosas — que fosse à missa e rezasse antesde dormir e
ao acordar.ao acordar.
 Amparado pelos pais, Oswald v Amparado pelos pais, Oswald viveu um período de despreocupação eiveu um período de despreocupação e
liberdade. Divertia-se pulando de país em país, de cidade em cidade.liberdade. Divertia-se pulando de país em país, de cidade em cidade.
 Alugou apartamento em Londres,  Alugou apartamento em Londres, visitou Espanha e Bélgica, voltvisitou Espanha e Bélgica, voltou àou à
148/375148/375
Itália e foi à Alemanha — onde na época estudava Anita Malfatti, sem queItália e foi à Alemanha — onde na época estudava Anita Malfatti, sem que
ainda se conhecessem.ainda se conhecessem.
149/375149/375
CAPITAL DAS VANGUARDAS
Oswald chegou a Paris poucos anos depois do lançamento do “Manifesto
Futurista”, em 1909. A capital francesa ainda se vestia de art nouveau, o
estilo novo, ornamental e cosmopolita que marcou a belle époque. Suas
formas sinuosas, flores e trepadeiras haviam se espalhado por todos os la-
dos — no urbanismo, na arquitetura, na arte decorativa, no vestuário, na
publicidade e nos espetáculos. Mas, enquanto o art nouveau enfeitava a
cidade e os objetos do cotidiano, novos grupos de artistas se organizavam
com o intuito de questionar o sistema artístico dominante e as con-
 venções sociais que o cercavam.
Eram as vanguardas que entravam em cena, em agrupamentos mul-
tidisciplinares, os quais acreditavam na correspondência entre as artes, a
música, a literatura, a arquitetura, a pintura. Atuavam coletivamente,
criavam suas próprias estruturas de divulgação e compartilhavam com-
 bativos programas estéticos. Valorizavam a experimentação e o “novo”,
desejavam ampliar o espectro do que se considerava artístico e propun-
ham novas maneiras de a arte se inscrever na sociedade e com ela inter-
agir. Usavam artifícios para atrair a atenção e provocar reações — como o
humor ácido, o primitivismo e o absurdo.
Foi na Paris art nouveau do início do século que Pablo Picasso desem-
 barcou, aos dezenove anos, com a intenção de pouco se demorar. Uma
150/375
obra sua, Les derniers monuments, fora escolhida para representar a
Espanha na Exposição Universal de 1900. Picasso acabou encontrando-se
com amigos espanhóis que viviam no bairro boêmio de Montmartre e por
lá ficou.
Pouco tempo depois dividia um quarto no boulevard Voltaire com o
poeta Max Jacob, naquela época tão sem recursos quanto ele. Pintava à
noite, enquanto Jacob dormia. E dormia durante o dia, quando Jacob tra-
 balhava. Nasceu ali uma forte amizade. Algumas vezes, bem-vestido e
usando o pseudônimo Maxime Febur, Jacob passava pelas galerias de
arte fingindo ser um rico colecionador. E logo perguntava se havia pintur-
as de Pablo Picasso. Diante da negativa, indignava-se com a ausência de
obras daquele “gênio” da arte.
 A roda artística do pintor espanhol reunia nomes como os poetas Guil-
laume Apollinaire e André Salmon, o dramaturgo Alfred Jarry e os
pintores Vlaminck e Derain. Frequentavam o Bateau Lavoir, uma casa em
Montmartre, misto de ateliê, residência e ponto de encontro, onde se di-
 vertiam em noites regadas a álcool, haxixe e ópio.
 A fase “Montmartre” de Picasso seria uma entre tantas outras, mas
naquele ambiente, em torno de 1907, ele começou seus experimentos com
um novo tipo de composição, que logo ganharia o nome de cubismo. Con-
siderada o marco inicial do movimento, a tela Les demoiselles d ’ Avignon
(hoje no moma-ny) reunia cinco prostitutas com os rostos fragmentados,
reduzidos a traços elementares e representados sob vários ângulos
simultaneamente.
Desenvolvido nos anos subsequentes por Picasso, mas também por
Braque e outros pintores, o cubismo queria ir “além” do realismo, na
 busca da estrutura interior e dos volumes “essenciais”. Em oposição à
sensualidade da linha ondulada, surgia uma pintura analítica, preocupada
com a construção e o “corpo” dos objetos.
151/375
O crítico Louis Vauxcelles escreveu num artigo, em 14 de novembro de
1908: “Braque maltrata as formas, reduz tudo, lugares, figuras, casas, a
esquemas geométricos, a cubos”. E assim o movimento ganhou seu nome.
Importante na inspiração formal para o cubismo, a arte africana, que
se via nos museus de etnografia surgidos no século xix, pouco a pouco
conquistava projeção e começava a ser comercializada em alguns recantos
de Paris. Reza a lenda que Vlaminck, por volta de 1907, encontrou uma
escultura negra que o impressionou. Encantado, levou-a ao estúdio de
Derain, para mostrá-la ao amigo. “É quase tão linda como a Vênus de
Milo!”, disse. “É tão linda quanto”, respondeu Derain, sem conseguir
chegar a um acordo, os dois questionaram Picasso, que por sua vez sen-
tenciou: “Vocês estão enganados: é muito mais bonita!”.56
•
Em 1912, o modernismo em Paris era um fato não apenas cultural,
mas também comercial. Em paralelo à vida dos salões oficiais e alternat-
ivos, novos marchands assumiam papel relevante no desenvolvimento e
no financiamento de novos artistas. Um dos pioneiros foi Paul Durant
Ruel (1831-1922), marchand dos impressionistas. Ruel, que inovou com a
organização de exposições individuais, firmava contratos de exclusividade
com pintores e atendia o mercado internacional, por meio de filiais de sua
galeria em diferentes cidades.
Mas foi na galeria de Ambroise Vollard (1867-1939), na rue Lafitte,
que Paris viu as primeiras individuais de Cézanne (1895), Picasso (1901) e
Matisse (1904). Vollard comprava em quantidade, diretamente no estú-
dio. Não raro adquiria a produção inteira de um talento ainda por ser
reconhecido.
152/375
Daniel Kahnweiler foi, entretanto, o grande marchand dos cubistas.
 Abriu sua galeria em 1907, na rue Vignon, e desde o início comprou obras
de Derain, Braque, Picasso, Vlaminck e Léger — que seria mais tarde im-
portante referência para Tarsila do Amaral, futura mulher de Oswald.
•
Em setembro de 1912, Oswald levou um susto. D. Inês, muito doente,
pedia-lhe que voltasse o quanto antes da Europa. Depois de sete meses de
 vinhos, champanhes, lagostas, exposições, livrarias e aventuras sexuais,
ele pegou o vapor Oceania, em Trieste. Levava a seu lado Kamiá — a
quem prometera companhia mas não casamento. Ao parar na Bahia, en-
 viou telegrama aos pais anunciando a breve chegada. Desembarcou no
porto do Rio e tomou o primeiro trem para São Paulo. Soube então que
sua mãe já estava morta.
•
Oswald, Kamiá e seu Andrade foram morar na rua Oscar Freire, es-
quina com Teodoro Sampaio. O pai, desolado, passou a ocupar um quarto
na casa da chácara de seus compadres Marta e Antenor. Oswald alugou
um chalé, que dava para os fundos da propriedade — por onde foi aberta
uma ligação. Em 1913, Kamiá ficou grávida e, em 14, nasceu José Oswald
 Antonio de Andrade, chamado de Nonê, o mesmo apelido de infância do
pai.
•
Um ano depois, quando seu Andrade claudicava nos negócios e Kamiá
 via minguar as atenções de seu companheiro, eis que reapareceu em São
153/375
Paulo a menina dançarina. Ao saber do retorno, Oswald convidou-a, com
a mãe, para que ficassem em sua casa. Ele, Kamiá e seu Andrade haviam
se mudado para o sobrado de número 64 na rua Augusta — onde na
década de 1980 funcionou o restaurante Spazio Pirandello.
 A partir daí, os acontecimentos se precipitaram de forma
rocambolesca.
 A acompanhante de Landa era na verdade sua avó, Rosa Schindelar.
 As duas tinham viajado para a Itália com papéis forjados. A mãe da men-
ina vivia na Alemanha, em situação difícil. Oswald conseguiu entrar em
contato com ela e confirmou a história.
Estabelecida a verdade, ele decidiu assumir o comando da carreira de
Landa, que era agenciada pela avó. Criou o nome artístico Carmen Lídia57
e usou seus contatos para levá-la às páginas de revistas, como a Cigarra
— que saiu com foto e página inteira de entrevista.
 Algumas apresentações de Carmen Lídia em São Paulo foram elogia-
das. Uma delas aconteceu no Conservatório Dramático, quando Olavo
Bilac lançava sua campanha a favor do alistamento militar obrigatório.
Oswald participara da organização da visita, mas ainda desconheciaTarsila do Amaral, que estava na plateia e gostou da dançarina. Entre
1924 e 1929, os dois viveriam como uma espécie de casal 20 do modern-
ismo brasileiro.58
•
Para surpresa de Oswald, Landa e sua avó foram para o Rio, onde se
hospedaram numa pensão. Rosa escreveu-lhe uma carta contando que a
neta estudava dança e se apresentava com sucesso na cidade. Certo de
que ela queria afastá-lo de Landa, Oswald tentou encontrá-las. Revirou a
154/375
cidade em vão. Chegou a ter um entrevero com o escritor Coelho Neto,
que, segundo soube, ajudava a ocultá-las.
Transtornado com a situação, sentindo-se traído e humilhado, passou
a viver, entre porres de uísque, na ponte ferroviária São Paulo-Rio, mas
sem conseguir tirar a avó de cena e ficar com Landa, como queria.
Planejou, então, simular um rapto. Montaria uma cena de filmagem
na praia do Flamengo, frequentada pela garota, que se hospedava no Cat-
ete. Quando ela viesse para o banho, seria apanhada.
 A trama exigia um elenco de farsantes, que seria preenchido pelos
amigos Guilherme de Almeida, Vicente Rao e Ignácio da Costa Ferreira, o
ilustrador Ferrignac. Mas eles não toparam. Tampouco Landa, consultada
por telefone pelo próprio Oswald. Fracassada a trama, os amigos ad-
 vogados sugeriram que Landa recorresse à Justiça para se libertar da avó
— que a explorava sexualmente, obrigando-a a se prostituir.
Dessa vez, ela topou. Foi tudo planejado para que depois de uma ap-
resentação em São Paulo, com Sousa Lima ao piano, a garota fosse direta-
mente ao fórum. O processo correu e Landa foi posta sob tutela do juiz
 Amadeu Amaral, que determinou seu internamento num colégio de freir-
as, no bairro de Santana, em São Paulo. Livre da avó “caftina”, o amante
obcecado viu uma oportunidade para pedir ao tutor a mão da moça em
casamento — o que lhe foi negado.
Rumores sobre uma suposta gravidez de Landa esquentaram o caso,
que explodiu na imprensa. Em São Paulo, o jornal O Parafuso, de Babi de
 Andrade, com quem Oswald tivera uma desavença quase sangrenta ao se
reapropriar de O Pirralho, fez sensacionalismo, com manchetes em série.
No Rio, A Gazeta de Notícias também entrou na história e deu foto do
apaixonado na capa.59
O gossip sobre a gravidez traduziu-se em pressões para que a dançar-
ina fosse retirada da guarda das religiosas e transferida para um asilo no
155/375
Ipiranga, chamado Bom Pastor, onde se recolhiam prostitutas. Revoltado,
Oswald fez uma visita intempestiva ao arcebispo de São Paulo, amigo de
seu pai, para avisar que, se a transferência se consumasse, ele buscaria a
moça no asilo e se casaria com ela.
 A situação o torturava. Tomado pelo ciúme, um dia pegou um re-
 vólver, que comprara na Bélgica, e foi ao colégio de Santana para tirar a
limpo a história da gravidez. A intenção, caso as suspeitas se con-
firmassem, era matar Carmen Lídia e se suicidar. Parou nas redondezas e,
com a ajuda de uma freira, conseguiu um encontro. Soube, aliviado, que
era tudo mentira.
O alívio, porém, não bastava para resolver o imbróglio. A paixão de
Oswald permanecia encalacrada e a ideia do suicídio continuou a rondá-
lo: “Cheguei a ir ver no caixão o corpo de um suicida. Filho do político Al-
 buquerque Lins. Para olhar como eu ficaria”. Mas depois, no dia a dia,
“tudo se dissolveu”.
156/375
11
ISADORA E O FURACÃO
158/375
Maria de Lourdes Castro, a Miss Cyclone,
em caricatura assinada por Jeroly 
no erfeito cozinheiro das almas deste mundo,
diário mantido pelos frequentadores
da garçonnière de Oswald de Andrade.
Em 1916, Oswald reiniciou o curso de direito e aceitou um convite para
trabalhar na edição paulista do Jornal do Comércio. O secretário de
redação do jornal era Mário Guastini — que tempos depois seria um dos
críticos do “futurismo” paulista. Nesse mesmo ano, conheceu Isadora
Duncan, no Rio, onde estava com Guilherme de Almeida para divulgar as
peças que tinham acabado de publicar.
 A diva proto-hippie, que revolucionou a dança com pés descalços e
gestualidade espontânea, estava no mesmo hotel em que ele e o amigo se
hospedavam. Conheceram-se casualmente e Oswald prometeu visitá-la
em São Paulo. Um detalhe: a extensão da turnê à capital paulista contou
com a ajuda de Anita Malfatti. Ao saber da passagem da dançarina pelo
Rio, ela entrou em contato com René Thiollier e sugeriu que se oferecesse
o Municipal à estrela americana, que conhecera em Nova York.
 Ao que se sabe, Oswald não foi ver Isadora Duncan no Rio. Mas Di
Cavalcanti foi. Em companhia de amigos estudantes, visitou, depois do
espetáculo, o camarim da dançarina, que recebia seus admiradores com a
túnica de gaze usada no palco. Em suas memórias, Di descreveu com ca-
racterístico machismo a aparência de Duncan. Aos 39 anos, ela seria uma
mulher de “carnes flácidas”,60 que deixava entrever sob a roupa vaporosa
uma nudez “feia e espetacular”. O artista beijou a mão da diva e se dis-
solveu no burburinho do camarim repleto — onde num canto se via, sen-
tado, o cronista João do Rio, com ar displicente, a citar Oscar Wilde.
159/375
O encontro de Oswald com Isadora Duncan — episódio que virou
filme do cineasta Júlio Bressane — foi rememorado no Homem sem
 profissão.
Diz o escritor que, sem avisar, chegou engravatado ao hotel da Rôtis-
serie Sportsman às cinco da tarde para uma visita: “Hora elegante, hora
do chá inglês que o mundo adotou, hora clara em que estão presos todos
os demônios e atadas as mãos das feiticeiras e dos elfos”.
O porteiro ligou para o apartamento e o anunciou. Pouco depois, saiu
do elevador um moço alto e loiro. Era o pianista Dumesnil, que acompan-
hava Duncan em suas turnês. Avisou ao visitante, em francês, que ma-
dame não poderia recebê-lo naquele momento, mas o esperava em seus
aposentos após o espetáculo.
Na divertida reconstituição do encontro, feita quarenta anos mais
tarde, quando tudo já ganhava ares de mito, Oswald diz que o inesperado
convite o colocou “dentro de um problema terrível”:
Como? Visitar uma mulher extraordinária a horas mortas num hotel,
depois do espetáculo. Isso é o cúmulo da falta de educação, da falta de
linha, da ausência de escrúpulos. […] Eu, aquele menino gordinho que
saiu virgem das saias maternas aos vinte anos, sobrinho do tio Hercu-
lano e ex-redator do Diário Popular? […] O próprio porteiro, tão
amável agora na sua sobrecasaca de botões dourados vai me agarrar
pela nuca, levando-me à porta aos pontapés.61
Surpreso e um pouco assustado com as implicações do convite, foi ao
Municipal assistir ao espetáculo:
O pano se levantou e eu vi a Grécia, não a Grécia livresca dos sonetões
de Bilac, que toda uma subliteratura ocidental vazava para a colônia
160/375
inerme. Eu vi de fato a Grécia. E a Grécia era uma criança seminua que
colhia pedrinhas nos atalhos, conchas nas praias e com elas dançava.
O cenário único duma só cor abria-se para vinte e cinco séculos de
mar, de montanhas e de céu.
Encerrada a apresentação, cerrada a cortina, era hora de decidir. O
convite teria sido pra valer? Se fosse, o que faria na companhia daquela
mulher? “Quem era eu diante da deidade boêmia e esvoaçante?”,
perguntava-se. Quem era ele, “o filho bem-educado de dona Inês, o rapaz
que tinha família em Caxambu, matriculado na Lógica do padre Sentroul
e no Direito Romano do professor Porchat, para suportar aquele sopro de
tempestade shakespeariana”?
 Angustiado, zanzou pela cidade até tomar coragem de se apresentar
na portaria da Rôtisserie Sportsman. Madame pedia que subisse, disse-
lhe o porteiro. Medo. Torcia para que a dançarina já estivesse dormindo,
assim poderia escapar discretamente. Mas o quarto estava aceso.
Dumesnil abriu-lhe a porta. Isadora Duncan estava acordada. Oswald
cumprimentou-os e sentou-se. Viu então a mesa posta com dois lugares e
uma garrafa de champanhe enfiada num balde de gelo. Perguntou-se
quem seria o feliz conviva. “Com certeza o próprio pianista”, imaginou.
Quando estava pronto para se despedir e fugir do desconforto, Dumesnil
levantou-se, deu adeus e saiu. Ele e ela ficaram a sós. Sentaram-se à mesae ela chamou o garçom para servi-los. Depois, levantou-se, ligou um
gramofone e pôs-se a dançar, com um xale, na penumbra do quarto.
Fascinado e embaraçado, Oswald tirou do bolso uma fotografia de sua
querida Landa e a mostrou à anfitriã, imaginando que Isadora pudesse
ajudá-la a livrar-se da avó e se realizar como grande bailarina. Duncan
não gostou da conversa, disse que como Landa havia dez mil pelo mundo.
 A gafe, conveniente ou não, estragou tudo. Só havia uma coisa a fazer —
161/375
sair depressa. Foi o que fez, acompanhado pelas “taras da negatividade e
do fracasso”.
 Apesar da rata, tornaram-se amigos naqueles dias: “Andávamos de
carro por São Paulo inteiro. Ela me fazia descer para pedir flores estran-
has nos jardins das casas. Fomos a Osasco e, num pôr de sol entre
árvores, ela dançou para mim, quase nua”.
•
 Anos se passaram e, na década de 1940, casado com Maria Antonieta
d’Alkmin, Oswald contratou uma professora de balé para dar aulas à filha
Marília. A professora, madame Carmen Brandão, era Carmen Lídia — sua
inesquecível Landa.
•
De 1912 a 1916, quando perdeu a mãe, tornou-se pai, rompeu com
Kamiá, quase enlouqueceu com a bailarina adolescente e tremeu diante
de Isadora Duncan, Oswald reassumiu O Pirralho, trabalhou para outras
publicações, participou dos salões de Freitas Valle e conseguiu que  Leur
âme tivesse um ato encenado, no Municipal, pelos atores franceses Suz-
ane Deprès e Aurélien Lugné-Poe, que visitavam a cidade.
Na viagem à Europa, ele havia lido o “Manifesto Futurista”, de Mari-
netti, presenciado o cubismo e se entusiasmado com a eleição do francês
Paul Fort para príncipe dos poetas. A boa notícia, no caso, era que o eleito
praticava o verso livre — o que aumentava a chance de Oswald mostrar
que sua assumida dificuldade de rimar e metrificar poderia provar-se atu-
al e poética. Pouco depois de voltar a São Paulo, com a barba aloirada que
deixara crescer, escreveu, sem rima e sem métrica, o que teria sido seu
162/375
primeiro poema “modernista”. Intitulava-se “O último passeio de um
tuberculoso, pela cidade, de bonde”. Para sua decepção, os amigos detest-
aram — e o texto foi parar no lixo.
163/375
MUSA DA GARÇONNIÈRE
Em 1917, num almoço na casa da rua Augusta, apareceu uma estudante,
prima da professora de piano de Kamiá — com quem Oswald, naquele
momento, mantinha relações não mais que amigáveis. Com dezesseis ou
dezessete anos, a moça tinha aparência “esquálida e dramática, com uma
mecha de cabelo na testa”.
Chamava-se Maria de Lourdes Castro. Era órfã de pai, a mãe morava
em Cravinhos e ela vivia em São Paulo com a prima. Estudava na Escola
Normal Caetano de Campos, gostava de escrever, tinha ideias liberais e
comportamentos rebeldes, num tempo em que eram escassas as per-
spectivas femininas fora da vida certinha, matrimonial e doméstica.
Maria de Lourdes era o tipo da garota por quem Oswald se interessar-
ia no ato. Ao aproximar-se dela, no primeiro encontro, já sugeriu, com
cinismo, que fizessem sexo. Recebeu um inesperado sim — “mas sem pre-
meditação, quando nos encontrarmos um dia”, disse ela. Ele perguntou o
que ela pensava dos homens. “Uns canalhas”, respondeu. E as mulheres?
“Também!”
Em favor de sua liberdade, o escritor alugou naquela época um aparta-
mento na rua Líbero Badaró, 67, terceiro andar, para servir de garçon-
nière — um lugar de encontros amorosos e reuniões entre amigos. Ele e a
normalista, que passou a chamar de Deisi, iniciaram um romance, e ela
164/375
logo foi eleita a musa da turma que se encontrava no local, formada por
Guilherme de Almeida, Leo Vaz, Ferrignac, Vicente Rao, Edmundo
 Amaral, Sarti Prado, Pedro Rodrigues de Almeida e Monteiro Lobato.
Oswald já tinha, portanto, sua garçonnière quando, em finais de 1917,
conheceu Mário de Andrade no Conservatório e foi visitar, na mesma rua
Líbero Badaró, a exposição de Anita Malfatti.
Lobato, que frequentava as noitadas no apartamento, continuou a
fazê-lo durante o ano seguinte — na sequência, portanto, da desavença
pública com o amigo “elegante, apesar de gordo” sobre a pintura moderna
de Anita Malfatti. Embora nunca tenha reconsiderado sua crítica, num
artigo que publicaria em 1926, no Diário da Noite, ele diria que o movi-
mento modernista, uma “brincadeira de crianças inteligentes”, valeria, ao
longo do tempo, por um Sete de Setembro.62
•
Em 1918, Oswald começou a compor com os amigos da garçonnière
uma espécie de diário coletivo, que se chamava — por sugestão de Rodrig-
ues de Almeida — O perfeito cozinheiro das almas deste mundo… Era um
cadernão de duzentas páginas, escrito com tinta lilás, verde e vermelha,
no qual se adicionavam tiradas líricas, pastiches, poemas sintéticos, tro-
cadilhos, carimbos, xingamentos, gozações, caricaturas etc.
 Ainda que tivesse nascido apenas para consumo interno, O perfeito
cozinheiro constituiu-se, de fato, numa obra experimental, publicada e
estudada. Nela, vida e arte se espelham e se comentam numa narrativa
fragmentária, paródica, metalinguística, que prefigura livros da fase mais
radical de Oswald de Andrade.
Como assinalou Mário da Silva Brito na introdução da edição fac-sim-
ilar do livro,63 O perfeito cozinheiro, mais que um diário, seria um
165/375
“desordenado romance” por onde flui uma história de amor. “Um ro-
mance de nova estrutura, de técnica inusitada, de um surrealismo natural
e espontâneo, em que estão o clima e as personagens que vão gerar e po-
 voar Os condenados (1922), Memórias sentimentais de João Miramar
(1924) e Serafim Ponte Grande (1933).” Espécie de “livro-caixa-de-sur-
presas”, nas palavras de Haroldo de Campos, costurado pela “pré-Pagu da
Idade Boêmia de Oswald de Andrade”, O perfeito cozinheiro marcaria
aquela época em que o escritor ainda “acreditava que o contrário do bur-
guês seria o boêmio”.64
 A rainha desse caleidoscópio, que misturava ousadias já quase dadaís-
tas com coqueteria belle époque,65 não seria outra senão Deisi, a jovem
escritora enigmática, inteligente e transgressiva que hipnotizava os moços
 boêmios e sabichões. Todos no Perfeito cozinheiro tinham seus pseudôni-
mos. Se Deisi também era Tufão, Tufãozinho e Miss Cyclone66 (com a
tônica na primeira sílaba), Oswald era Garoa e Miramar.
Tufão passava, destroçava corações e desaparecia. Onde teria se
metido? Estava de volta a Cravinhos. Uma vez soube-se que se encontrava
com um tipo estranho no Brás. Numa outra, Miramar seguiu-a pelas ruas
do centro até vê-la entrar numa “pensão de rapazes”.
•
O caso com Deisi foi mais um turbilhão na vida afetiva — e criativa —
de Oswald. Acabou de maneira trágica, em 1919.
Depois de ter sido vítima da pandemia de gripe espanhola que chegou
ao país em finais de 1918, ela ficou grávida. Em dúvida sobre a paternid-
ade, os dois decidiram pelo aborto. Ele providenciou a parteira — a
mesma que cuidara de Kamiá no nascimento de Nonê. Atendida em con-
dições precárias, Deisi sofreu uma hemorragia e, a seguir, contraiu
166/375
tuberculose. Aflito e culpado, vendo-a definhar, Miramar casou-se com
Miss Cyclone in extremis. Monteiro Lobato, Ferrignac e Guilherme de Al-
meida foram as testemunhas da cerimônia. Em 24 de agosto de 1919,
Maria de Lourdes morreu. Foi sepultada no Cemitério da Consolação, no
 jazigo da família de d. Inês.
Meses antes, em fevereiro, Oswald tinha perdido seu pai.
167/375
12
JUCA E MIRAMAR 
 As sedes do jornal O Estado de S. Paulo e do Correio
 Paulistano, no centro de São Paulo. Menotti
del Picchia era editor político do Correio, o órgão
oficial do Partido Republicano Paulista.
169/375
Menotti del Picchia lembra-se de ter conhecido Oswald de Andrade no
Hotel Migliori, nos tempos em que vivia entre interior, Santos e São
Paulo. Depois de formado pela Faculdade de Direito, ele mudou-se para
Itapira, sua cidade natal, onde advogou e fundou o jornal O Grito.67
Em 1918, convidado pelo secretário de redação do Correio Paulistano
a assumir o posto de redator político, deixou mulher e filhos no interior e
transferiu-se para a capital. A proposta,contudo, não se concretizou e,
para minimizar o desastre, Fonseca intercedeu para que Menotti chefi-
asse a Tribuna de Santos. O escritor não conhecia a cidade e ignorava a
existência da Tribuna, mas precisava do emprego e aceitou o cargo.
Gostou do jornal e fez amizades nas rodas literárias. Era a Santos de
 Vicente de Carvalho — que havia ignorado os sonetos enviados por Mário
de Andrade pelo correio. Também Menotti era fã do “poeta do mar”, e
remeteu-lhe duas obras lançadas em 1917, mesmo ano em que Mário
publicou Há uma gota de sangue em cada poema. A primeira foi o
poema Moisés, que Vicente de Carvalho agradeceu de maneira protocolar.
 A segunda, Juca Mulato, mereceu um cartão em que agradecia os “versos
 borbulhantes de inspiração”.
 Ainda em 1918, Menotti deixou Santos, mais uma vez a convite de
Fonseca, para comandar a redação da Gazeta, que fora comprada por
Cásper Líbero. Ao mesmo tempo começou a escrever crônicas sobre tem-
as sociais e culturais para o Correio Paulistano, com o pseudônimo
Hélios.
170/375
 A Gazeta, espécie de linha auxiliar do Correio na defesa dos interesses
do prp, cresceu com a nova direção. Cásper Líbero percebeu a maré as-
cendente dos esportes e o jornal passou a cobrir essa área como nenhum
outro. As vendas aumentaram e Menotti logo se viu convocado a ocupar o
posto para o qual fora anteriormente convidado. Exercia, enfim, a função
de redator político do órgão oficial do partido da burguesia paulista. Dis-
cutiria as estratégias diretamente com o governador, no Palácio dos Cam-
pos Elíseos, e redigiria as notas e editoriais políticos do jornal.
No xadrez da grande imprensa paulista daquele período, o Correio,
com ajuda da Gazeta, defendia o governo e combatia o republicanismo
oposicionista representado pelo Estado, cuja independência contava com
a simpatia do Diário Popular, de José Maria Lisboa. Usando a imagem de
uma batalha naval, Menotti descreveu assim as relações entre os diários
da época:
Dois jornais polarizavam então a opinião: o Correio Paulistano e O
 Estado de S. Paulo. Eram como duas capitânias de duas esquadras em
combate, tremendos couraçados, tendo cada um seus ágeis navios-
auxiliares. O Correio Paulistano, órgão oficial do prp, mantinha
ciosamente nas suas colunas uma quase majestática dignidade, mas
delegava a obra de provocação e reconhecimento à Gazeta e à Plateia,
enquanto, sem uma vinculação política, mas por suas afinidades de in-
dependência à influência do governo, movia-se nas águas do Estado o
corajoso e prestigioso Diário Popular — o “jornal das cozinheiras” —
como o apelidavam, mas de forte repercussão na opinião pública, re-
speitado e temido pelo governo.68
 A criação do Estado, antiga Província de S. Paulo, datava de 1875.
Fora iniciativa de um grupo de dezesseis pessoas, reunidas por Manoel
171/375
Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, com o propósito de de-
fender ideias republicanas e abolicionistas. Em 1902, Julio Mesquita,
genro de José Alves de Cerqueira César, um dos dezesseis fundadores, as-
sumiu o controle do jornal. Como nove entre dez personagens da elite, era
formado pela Faculdade de Direito e, republicano histórico, participava
ativamente da vida política paulista. Em julho de 1901, pouco antes de
Mesquita tornar-se dono do jornal, Cerqueira César, Prudente de Moraes
e ele romperam com o presidente Campos Salles e o governador Rodrig-
ues Alves, gerando uma dissidência republicana.
 As sedes dos principais diários paulistas concentravam-se no Triân-
gulo, onde se acotovelava a São Paulo “europeia” dos cafés, confeitarias,
livrarias, prostíbulos e comércio variado. Em finais da década de 1910, o
 Estado fizera uma série de investimentos, com a aquisição de máquinas e
de novas áreas para redação e gráfica — unidas por um moderno tubo
pneumático, que passava sob a rua do Rosário e a ladeira Geral, para en-
 viar originais e provas às oficinas, situadas a 250 metros de distância. Em
1916, o jornal imprimia 45 mil exemplares por dia, número que chegou a
52 mil em 17 e caiu a 25 mil em 18, em razão de restrições à importação
de papel agravadas pela entrada do Brasil na guerra. O conflito na
Europa, se aguçava a curiosidade dos leitores, aumentava os custos e
trazia incertezas.
•
 A sede do Correio Paulistano ficava quase defronte à de seu maior
rival, num edifício onde se via, no térreo, um toldo anunciando a
Charutaria Mimi. Fumava-se sem culpa no início do século xx.
172/375
•
O hotel em que se hospedava Menotti del Picchia dava de frente para a
redação da Gazeta, na Líbero Badaró — a mesma rua da garçonnière e do
palacete do conde de Lara, onde Anita Malfatti montou a exposição de
dezembro de 1917. Menotti conhecia Oswald pelo Pirralho e o via com
desconfiança, depois de um comentário negativo que fizera sobre seu
poema Moisés. Ele o teria procurado no hotel para manifestar sua
aprovação e a de Deise ao Juca Mulato. O poema ganhara uma segunda
edição, em 1919, sob aplausos de críticos e leitores.
Na versão de Menotti, o contato com aquele sujeito “gordo, aloirado e
extrovertido”, dotado de capacidade “quase mágica de fascinar qualquer
pessoa”,69 aconteceu em 1920 e marcou o início da “conjuração ren-
ovadora”, que culminaria no “brado” de 22.
De todos os modernistas, o escritor itapirense foi possivelmente o que
mais se aferrou à versão insurrecional e revolucionária da Semana, à qual
sempre se referiu com transbordante triunfalismo. Ao mesmo tempo, de
forma ambígua e “política”, tratou muitas vezes de mostrar que o bicho
futurista não seria tão brabo assim — como fez na própria conferência
proferida na segunda noite do evento, ao dizer à plateia que sob a aparên-
cia de “um bando de bolchevistas das estéticas” se encontrava ali reunido
um “ordeiro e pacífico bando de vanguarda”.
Menotti, no segundo volume de A longa viagem, pinta-se como pi-
oneiro inconteste do modernismo literário paulista — e pinça uma frase
de Tristão de Athayde para apresentar-se à posteridade como “o homem
que mudou o rumo da literatura brasileira no século xx”.
Sobre o primeiro papo com Oswald, “decisivo para nossa vida liter-
ária”, afirma ter sido ele a alertar o colega para a necessidade de “fazer
173/375
nas letras uma verdadeira revolução”. “Precisamos ser brasileiros e não
europeus”, teria dito ao interlocutor, que “exultava” ao ouvi-lo, pois
Oswald, embora fosse “admirador excitado de Bilac e Emílio de Meneses”,
possuía “explosiva essência revolucionária”.
 A amizade que se iniciava no Hotel Migliori foi, sem dúvida, decisiva
para o primeiro impulso do movimento modernista. A dupla destacou-se
no agitprop futurista, marchando unida nas páginas dos jornais até a “in-
surreição intelectual” de 1922.
É difícil, no entanto, imaginar que o esperto Miramar do  Perfeito co-
 zinheiro dependesse daquela conversa para abraçar ideias sobre o ab-
rasileiramento da temática artística e perceber o desgaste da fórmula
parnasiana de Meneses e Bilac — com quem, não obstante, mantinha re-
lações amigáveis.
Quando se encontraram, Oswald já havia publicado artigo em prol da
arte brasileira e em defesa da pintura moderna de Anita Malfatti. Além do
mais, exercitava-se naquele tempo em textos que antecipavam algumas
de suas mais bem-sucedidas experiências modernistas.
Em suas memórias, inéditas até 2011, o bibliófilo Rubens Borba de
Moraes, que participou do grupo modernista e ajudou a organizar a Sem-
ana, afirma justamente o contrário — que Menotti foi “conquistado por
Oswald de Andrade às ideias de renovação da arte e da literatura”.70
Na visão de Borba, Menotti teria sido um “propagandista notável” e
um “vendedor habilíssimo dos novos produtos da arte e da literatura
moderna” — mas seus artigos nem sempre interpretavam corretamente as
ideias do grupo. Citava nas suas crônicas “autores contraditórios que hur-
laient d ’être ensemble” e exprimia “conceitos errados”. “Toda essa prosa
flamejante afligia os verdadeiros modernistas, desesperava Mário de
 Andrade, fazia rir Guilherme de Almeida, assustava Sérgio Milliet.”174/375
Convém, de qualquer forma, considerar que as escolhas políticas de
Menotti — que foi com Plínio Salgado para o integralismo, a opereta fas-
cista tupiniquim — levaram posteriormente alguns dos “verdadeiros”
modernistas a empurrá-lo, o quanto possível, para as áreas de sombra da
história do movimento, que, ao longo do tempo, foi fixando seus gênios e
seus degenerados.
Ponderando-se os perigos desse campo minado de versões que mal
dissimulam estratégias ególatras, lapsos e preconceitos ideológicos, é
razoável imaginar que no encontro da dupla se instaurou uma sintonia
entre moços da mesma geração com ideias e propósitos comuns.
Semanas depois do encontro, Oswald levou o novo amigo à revista O
 Eco, editada pela Casa Edison, que distribuía pelo Brasil os primeiros dis-
cos de gramofone. Queria apresentá-lo a um conhecido a quem admirava
muito. Subiram uma escada íngreme, num prédio malconservado, tam-
 bém na Líbero Badaró, e se depararam, na pequena redação, com um
homem atirado numa poltrona.
Na descrição de Menotti, era “um grande moço magro, de longas per-
nas de gafanhoto, testa larga, queixo prognata, nariz longo e curvo, já com
um início de calvície na fronte aberta na cabeça oblonga, tal qual uma
praça cheia de sol”. Foi assim que o autor de Juca Mulato viu pela
primeira vez Mário de Andrade.
Menotti del Picchia chegou a participar de reuniões na garçonnière de
Oswald e foi visitar Deisi no leito, consumida pela tuberculose. Em suas
memórias, ao falar das paixões conturbadas e avassaladoras de Oswald,
ele faz uma rápida comparação do perfil afetivo dos dois Andrades.
Em sua opinião, era preciso rever “o fenômeno literário e humano
Oswald de Andrade, com sua tão falada vida marcada por um dom-
175/375
Tiago Fagundes
 juanismo que muitos imaginam à Casanova”. Com a autoridade de “amigo
fraterno” e de “companheiro confidencial de horas decisivas”, rechaçava a
imagem de um courrer à femmes devasso e incorrigível. Oswald seria,
antes de tudo, um “desajustado”, pois “órfão ainda muito jovem, rico, an-
siava por uma base doméstica que ele, no fundo, invejava nos demais
amigos”. Teria inveja até mesmo da vida de Mário de Andrade, “irre-
dutível celibatário”, que encontrava na mãe e na família “aquele calor de
lar” que lhe faltava. Para Menotti, se a “égide materna tornou Mário uma
eterna e grande criança genial”, Oswald “procurava um lar nas amantes
que colecionava”.
•
O poemão sertanejo Juca Mulato apresentava uma trama universal —
o amor proibido — enraizada no mundo rural paulista: é o rapaz
empregado da fazenda que se apaixona pela filha do patrão. Pobre e
mestiço, sabe que a relação está condenada a fracassar. Melhor calar-se e
fugir. A natureza, porém, como que enciumada, pede que fique, pois ele é
parte dela:
 E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
“Queres tu nos deixar, filho desnaturado? ”
 E um cedro o escarneceu: “Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço? 
 E a torrente que ia rolar no abismo:
“ Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo”.
176/375
Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:
“ Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
 E teu pai te abraçou chorando de contente…
— Será doutor! — a mãe disse, e teu pai, sensato:
— Nosso filho será um caboclo do mato,
 forte como a peroba e livre como o vento! —
 Desde então foste nosso e, desde esse momento,
nós te amamos seguindo o teu incerto trilho
com carinhos de mãe que defende seu filho!”
 Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
 pareciam querer apertá-lo entre os braços!
[…]
 E Mulato parou.
 Do alto daquela serra,
cismando, o seu olhar era vago e tristonho:
“ Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
o meu braço nasceu para a faina da terra.”
 Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heroico labor que se agita na empreita,
 palpitou na esperança imensa das floradas,
 pressentiu a fartura enorme da colheita…
Consolou-se depois: “O Senhor jamais erra…
Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
177/375
 Juca Mulato volta outra vez para a terra,
 procura o teu amor numa alma irmã da tua.” 
 Juca Mulato foi concebido em Itapira, quando o autor vivia entre a
advocacia, as letras e sua complicada fazenda — de onde divisava ao longe
as montanhas de Minas Gerais. Em linguagem direta, fácil e expressiva,
essa idealização telúrica do homem do campo, tão ao gosto do momento,
fez grande sucesso. A fama do poema chegou a Portugal, onde recebeu
elogios. Depois da primeira tiragem, de quinhentos exemplares, finan-
ciada por Menotti, Juca Mulato ganhou inúmeras reedições — inclusive
pelas mãos de Monteiro Lobato, nosso Jeca culto e operoso.
•
Manuel Bandeira, ao pé de uma carta endereçada a Mário de Andrade
em fevereiro de 1923, escreveu o seguinte ps: “Diga ao Oswald de Andrade
que ele é um ingrato: não me mandou Os Condenados. Diga ao Menotti
que eu só o conheço pelo Juca Mulato que abomino com todas as forças
da minha alma”.71
178/375
13
 A REALEZA DA REPÚBLICA 
180/375
O bandeirante Domingos Jorge Velho, pintura
de Benedito Calixto, de 1903, investe no
mito do desbravador paulista, que também
aparece na obra de Victor Brecheret e nas
teses históricas de Paulo Prado.
Em maio de 1919, o Teatro Municipal apresentou ao público paulistano
uma montagem sui generis da peça O contratador de diamantes, de
autoria de Affonso Arinos — que morrera prematuramente em 16. Era
uma espécie de drama histórico baseado na vida do rico mineiro Felis-
 berto Caldeira Brant, descendente de nobres, que no século xviii firmou
contrato com a Coroa portuguesa para explorar diamantes em Minas
Gerais. Por uma série de circunstâncias, Brant, que se tornara popular e
era encarado com apreensão por Lisboa, vê-se acusado de simular um im-
provável roubo contra si próprio, numa trama que culmina com o con-
fisco de seus bens e sua prisão.
 Alguns ingredientes prometiam dar a essa encenação do mito do patri-
ota injustiçado um sabor pitoresco. O mais exótico seria a presença no
palco de figuras da alta sociedade paulista no lugar de atores
profissionais.
 A patrocinadora da montagem, Antonieta Penteado Prado Arinos,
 viúva do escritor, participava do coro, e Eglantina Penteado Prado en-
carnava o principal personagem feminino. As duas eram irmãs de Paulo
Prado. Também subiu à ribalta René Thiollier, que alguns anos depois,
como vimos, seria o “empresário” da Semana de Arte Moderna. O cenário
foi concebido pelo pintor Wasth Rodrigues e as famílias forneceram
luxuosos objetos de cena, como peças dos tempos da mineração, móveis
antigos e pratarias.
181/375
 A galeria de sobrenomes e tradições paulistas compartilhou o palco,
para surpresa de alguns, com um grupo de negros provindos de Atibaia,
Bragança e Juqueri, que apresentou uma congada.
O contratador foi a sensação teatral do ano, mas o regionalismo e o
nativismo já não eram novidade no Municipal (menos ainda em São
Paulo). Em 1915, por exemplo, a montagem de Reisadas, também de Af-
fonso Arinos, levara ao teatro o bumba meu boi e, em pessoa, o composit-
or Catulo da Paixão Cearense, para apresentar, pela primeira vez em São
Paulo, “Luar do sertão” — que se tornaria um clássico da canção ser-
taneja. O próprio cinema brasileiro, em seus primeiros esforços para se
estabelecer, recorreu naquela época, sobretudo a partir de 1915, a obras
com forte “cor local” — levando às telas títulos como O Caçador de Es-
meraldas, A Moreninha, O garimpeiro, Ubirajara, O Grito do Ipiranga
etc.
O caso do Contratador, entretanto, trazia algo mais, que era a fina flor
da classe dirigente paulista exibindo-se na ribalta numa história em que
se associava à tradição brasileira e às raízes culturais e étnicas do povo.
“O que teria motivado as escolhidas famílias paulistas para que se em-
penhassem na montagem dessa peça?”, pergunta Carlos Eduardo Ornelas
Berriel.72 Além de fatores circunstanciais, como a homenagem ao autor,
parece evidente a tentativa de autovalorização da elite cafeeira, quedramatizava suas origens de “fundadora da pátria” e procurava legitimar
suas ambições de liderança intelectual do país. Para Berriel, o que se
anunciava no Municipal era a substituição de uma mitologia nacional por
outra: “Basta de indianismo romântico! Matemos Peri! O Brasil é obra
dos bandeirantes. Proclame-se o novo mito”.
182/375
O esforço intelectual de enaltecer o passado de São Paulo, fazendo-o
coincidir, em suas grandes epopeias, com os momentos decisivos da
história do país, foi visível nas páginas da Revista do Brasil , editada
mensalmente de 1916 a 1925. Embora lançada pelo grupo ligado ao jornal
O Estado de S. Paulo, a publicação, voltada para a discussão de temas
 brasileiros, ficou a cargo de uma sociedade por cotas. Dividiam-se, dessa
maneira, os riscos financeiros da empreitada, quando a guerra redobrava
a cautela financeira. A proposta foi apresentada por Júlio de Mesquita em
1915, e consumiu um ano em contatos com possíveis colaboradores e in-
 vestidores antes de se tornar realidade.
 A diretoria reunia, além de Mesquita, Luís Pereira Barreto e Alfredo
Pujol — este último advogado, escritor, político do prp, amigo da mãe de
Di Cavalcanti e um dos membros do futuro comitê organizador da Sem-
ana de Arte Moderna. Também participava da sociedade, como
secretário, Mário Pinto Serva, que anos depois seria um dos ardorosos
críticos das estripulias modernistas.
 A revista, com perfil cultural, dedicava-se a questões que naquele mo-
mento, como ocorrera no século xix, continuavam a apaixonar intelec-
tuais, políticos e artistas: o que seria preciso para fazer do Brasil um país
com identidade própria, capaz de superar suas deficiências e caminhar na
direção das nações mais produtivas e civilizadas do mundo. Nessa linha,
conseguiu atrair para suas páginas a elite pensante do país e tornar-se o
principal fórum do debate de ideias.
Em maio de 1918, enfrentando dificuldades financeiras, a Revista do
 Brasil foi adquirida por Monteiro Lobato. Depois de se desfazer de sua
fazenda, o escritor dava seu primeiro passo como empresário da área ed-
itorial, no mesmo ano em que lançava Urupês. Até 1925, quando faliu,
Lobato seria responsável por uma verdadeira revolução na indústria do
183/375
livro do país, com a importação de máquinas modernas, o uso de técnicas
agressivas de venda, a expansão da rede distribuidora e a elevação da
qualidade gráfica dos seus produtos.
 A historiadora Tânia Regina de Luca, que se embrenhou nos debates
promovidos pelas 113 edições da primeira fase da revista, observou que
com o passar dos anos a perspectiva paulista foi se impondo. O estado,
que dava exemplo de dinamismo econômico, credenciava-se, como escre-
 veu o carioca Alceu Amoroso Lima em 1917, a assumir “a realeza na
República”:
 Até nossos dias continuou a capital do Império, e depois da República,
a ser o centro econômico e literário do Brasil. Hoje, a mesma lei
histórica nos autoriza a prever que o futuro movimento intelectual no
Brasil vai irradiar de São Paulo. Vivendo em pleno germinar da ideia
regionalista, desfrutando a metade da fortuna nacional, possuindo
uma aristocracia da terra, tendo herdado os seus filhos a altivez e o
 bom senso dos “paulistas” de Piratininga, prepara-se São Paulo para a
realeza na República. Não é caso de invejas pequeninas, esforcemo-
nos somente, porque o regionalismo, em vez de abafar o nacionalismo,
lhe insufle novo vigor. O século xvi pertenceu a Pernambuco, o xvii à
Bahia, o xviii a Minas Gerais, o xix ao Rio de Janeiro, o século xx é o
século de São Paulo.73
Os representantes ilustrados da oligarquia cafeeira tratavam de revig-
orar e embelezar o passado paulista, associando-o ao nascimento da
nação. São Paulo nos dera os bandeirantes e a vastidão do território, era a
terra dos Andrada e o palco do grito da Independência, seus filhos foram
republicanos de primeira hora e seus empreendedores anteciparam-se ao
fim da escravidão, buscando mão de obra assalariada na Europa.
184/375
 As avaliações sobre o Brasil naq As avaliações sobre o Brasil naquela época podiam divergir, mas seuela época podiam divergir, mas se
encontravam no diagnóstico de que o país era jovem e imaturo. Era pre-encontravam no diagnóstico de que o país era jovem e imaturo. Era pre-
ciso que crescesse e amadurecesse, contudo havia dúvidas se isso seriaciso que crescesse e amadurecesse, contudo havia dúvidas se isso seria
possível. Se alguns eram benevolentes e acreditavam que o tempo sanariapossível. Se alguns eram benevolentes e acreditavam que o tempo sanaria
todos os males, outros proftodos os males, outros professavam nossa histórica “fracassomania”.essavam nossa histórica “fracassomania”.
Um artigo de Mário Pinto Serva, naUm artigo de Mário Pinto Serva, na Revista do Brasil  Revista do Brasil , exemplificava, exemplificava
 bem o tom de desalento dos pessimistas: “Um enorme torpor n bem o tom de desalento dos pessimistas: “Um enorme torpor nos pesaos pesa
sobre as pálpebras, nos paralisa o cérebro, nos imobiliza os membros, nossobre as pálpebras, nos paralisa o cérebro, nos imobiliza os membros, nos
detém todos os passos”.detém todos os passos”.7474 O Brasil parecia condenado “a andar naO Brasil parecia condenado “a andar na
rabeira” da humanidade. O país fora o último da América a conquistar arabeira” da humanidade. O país fora o último da América a conquistar a
Independência, o último a abrir os portos ao comércio estrangeiro e o úl-Independência, o último a abrir os portos ao comércio estrangeiro e o úl-
timo a abolir o tráfico de escravos — assim mesmo graças às pressõestimo a abolir o tráfico de escravos — assim mesmo graças às pressões
inglesas. “A grande lei da inércia”, diziinglesas. “A grande lei da inércia”, dizia Serva, “domina o organismoa Serva, “domina o organismo
nacional, boçaliza a nossa mente, degrada o nosso nacional, boçaliza a nossa mente, degrada o nosso caráter.”caráter.”
Entre as radiografias que sondavam as profundas mazelas Entre as radiografias que sondavam as profundas mazelas nacionais,nacionais,
uma delas sugeria a existência de uma fratura entre nossa história e nossauma delas sugeria a existência de uma fratura entre nossa história e nossa
geografia. Enquanto a segunda impressionava pelas vastas dimensões egeografia. Enquanto a segunda impressionava pelas vastas dimensões e
promessas de riquezas, a segunda era promessas de riquezas, a segunda era rala, desprovida de vultos e rala, desprovida de vultos e escassaescassa
de glórias.de glórias.
Nesse quadro, articulistas da revista convidavam os historiadores Nesse quadro, articulistas da revista convidavam os historiadores aa
um esforço de “ciência e arte” para produzir representações mais altivasum esforço de “ciência e arte” para produzir representações mais altivas
do passado, capazes de despertar orgulho entre os jovens e transmitirdo passado, capazes de despertar orgulho entre os jovens e transmitir
confiança no amanhã. Tratava-se de reconfigurar nossa brancaleônicaconfiança no amanhã. Tratava-se de reconfigurar nossa brancaleônica
narrativa histórica, dotando-a de mais ordem, vigor narrativa histórica, dotando-a de mais ordem, vigor e positividade.e positividade.
Mas o que ressaltar na versão otimista da história? A resposta eramMas o que ressaltar na versão otimista da história? A resposta eram
episódios como a “epopeia pernambucana” da expulsão dos holandeses, aepisódios como a “epopeia pernambucana” da expulsão dos holandeses, a
 vitória do espírito nacional sobre movimentos separatistas e — por fim, vitória do espírito nacional sobre movimentos separatistas e — por fim,
mas não menos importante — mas não menos importante — as bandeiras paulistas.as bandeiras paulistas.
185/375185/375
 A promoção do mito dos bandeirantes,  A promoção do mito dos bandeirantes, transformados em homenstransformados em homens
idealistas e empreendedores, a desbravar sertões, escavar riquezas e ex-idealistas e empreendedores, a desbravar sertões, escavar riquezas e ex-
pandir fronteiras, foi o caminho queSão Paulo encontrou para religarpandir fronteiras, foi o caminho que São Paulo encontrou para religar
geografia e história. À generosidade do território passava a correspondergeografia e história. À generosidade do território passava a corresponder
uma grandiosidade histórica, materializada nos feitos memoráveisuma grandiosidade histórica, materializada nos feitos memoráveis
daqueles homens que se lançaram do planalto paulista para daqueles homens que se lançaram do planalto paulista para dar ao Brasildar ao Brasil
contornos continentais.contornos continentais.
Não tardaria que historiadores de São Paulo, debruçados sobre a res-Não tardaria que historiadores de São Paulo, debruçados sobre a res-
tauração do heroísmo bandeirante, trouxessem à luz estudos sobre o as-tauração do heroísmo bandeirante, trouxessem à luz estudos sobre o as-
sunto, como fizeram Alfredo Ellis sunto, como fizeram Alfredo Ellis Jr., Alcântara Machado, Affonso deJr., Alcântara Machado, Affonso de
Taunay e Paulo Prado.Taunay e Paulo Prado.
Taunay, a propósito, em significativa decisão do governo do Estado,Taunay, a propósito, em significativa decisão do governo do Estado,
assumiu emassumiu em 19171917 a direção do Museu Paulista (o nome oficial do Museua direção do Museu Paulista (o nome oficial do Museu
do Ipiranga) com a missão de preparar a instituição para o Centenário dado Ipiranga) com a missão de preparar a instituição para o Centenário da
Independência. O que havia sido até Independência. O que havia sido até então, na prática, um museu naturalentão, na prática, um museu natural
e “enciclopédico”, passaria a ganhar características de e “enciclopédico”, passaria a ganhar características de museu histórico.museu histórico.
EmEm 19131913, Taunay — que fora professor de Oswald de Andrade no Ginásio, Taunay — que fora professor de Oswald de Andrade no Ginásio
São Bento — já escrevia, na revista do Instituto Geográfico e Histórico deSão Bento — já escrevia, na revista do Instituto Geográfico e Histórico de
São Paulo, que a história paulista era “a própria história do Brasil”.São Paulo, que a história paulista era “a própria história do Brasil”.7575
 Além do descompasso entre geogra Além do descompasso entre geografia e história, que suscitou a en-fia e história, que suscitou a en-
trada em cena dos bandeirantes, duas outras questões trada em cena dos bandeirantes, duas outras questões nacionais an-nacionais an-
imavam as polêmicas — o perfil étnico do povo brasileiro e a língua. Noimavam as polêmicas — o perfil étnico do povo brasileiro e a língua. No
primeiro caso, numa época em que Gilberto Freyre ainda não tinha ap-primeiro caso, numa época em que Gilberto Freyre ainda não tinha ap-
resentado sua versão otimista da resentado sua versão otimista da civilização lusotropical, a miscigenaçãocivilização lusotropical, a miscigenação
era um problema quase que era um problema quase que insolúvel. Havia dificuldades para acreditarinsolúvel. Havia dificuldades para acreditar
no futuro de um país povoado por mestiços. O Jeca Tatu de Lobato no futuro de um país povoado por mestiços. O Jeca Tatu de Lobato surgiasurgia
 justamente como trágica caricatu justamente como trágica caricatura dessa condição fracassada.ra dessa condição fracassada.
Era preciso achar uma “saída honrosa” para o caboclo — e São Paulo,Era preciso achar uma “saída honrosa” para o caboclo — e São Paulo,
mais uma vez, tentava apresentar uma resposta: a incorporação demais uma vez, tentava apresentar uma resposta: a incorporação de
186/375186/375
Tiago Fagundes
elementos europeus “mais evoluídos” à elementos europeus “mais evoluídos” à base étnica miscigenada, comobase étnica miscigenada, como
ocorria no estado, indicava uma auspiciosa possibilidade de síntese.ocorria no estado, indicava uma auspiciosa possibilidade de síntese.
 Ao mesmo tempo, a biologia, as teorias de Cha Ao mesmo tempo, a biologia, as teorias de Charles Darwin e os conhe-rles Darwin e os conhe-
cimentos da medicina moderna incentivavam novas abordagens, per-cimentos da medicina moderna incentivavam novas abordagens, per-
mitindo que a fatalidade étnica fosse se transformando, nos debates, emmitindo que a fatalidade étnica fosse se transformando, nos debates, em
descaso social. O torpor que descaso social. O torpor que nos paralisava de cócoras, consumidos pornos paralisava de cócoras, consumidos por
 vermes, passava a ser resultado d vermes, passava a ser resultado de péssimas condições de saúde. O prestí-e péssimas condições de saúde. O prestí-
gio ascendente da higiene e gio ascendente da higiene e da eugenia dava ao Jeca Tatu da eugenia dava ao Jeca Tatu uma chance deuma chance de
se regenerar.se regenerar.
Monteiro Lobato logo viu a porta de saída e se engajou em campanhasMonteiro Lobato logo viu a porta de saída e se engajou em campanhas
em prol do saneamento básico. O autor deem prol do saneamento básico. O autor de A menina do narizinho arre- A menina do narizinho arre-
bitadobitado investiu no personagem Jeca Tatuzinho e, associado ao far-investiu no personagem Jeca Tatuzinho e, associado ao far-
macêutico Cândido Fontoura, fabricante do milagroso Biotônico,macêutico Cândido Fontoura, fabricante do milagroso Biotônico,
começou a entrar nos lares com a mensagem da boa saúde infantil.começou a entrar nos lares com a mensagem da boa saúde infantil.
Por fim, São Paulo marcava presença no debate nacionalista com pro-Por fim, São Paulo marcava presença no debate nacionalista com pro-
postas para desatar o nó da língua, que se debatia entre as regras gramati-postas para desatar o nó da língua, que se debatia entre as regras gramati-
cais lusas e a doce prosódia tropical. Nessa polêmica que, na realidade,cais lusas e a doce prosódia tropical. Nessa polêmica que, na realidade,
não era nova, os puristas defendiam as normas do português culto, e seusnão era nova, os puristas defendiam as normas do português culto, e seus
adversários as julgavam incompatíveis com a língua fadversários as julgavam incompatíveis com a língua falada no Brasil.alada no Brasil.
O fato é que predominava a subordinação aos padrões portugueses. AsO fato é que predominava a subordinação aos padrões portugueses. As
peças de teatro, por exemplo, respeitavam a pronúncia lisboeta, mesmopeças de teatro, por exemplo, respeitavam a pronúncia lisboeta, mesmo
quando encenadas por atores brasileiros. Um artigo quando encenadas por atores brasileiros. Um artigo publicado empublicado em 19191919
considerava lastimável essa “submissão incompreensível” e propunha queconsiderava lastimável essa “submissão incompreensível” e propunha que
se implantasse “de vez nos nossos palcos a nossa prosódia, banindo parase implantasse “de vez nos nossos palcos a nossa prosódia, banindo para
sempre o arremedo simiesco do acento lusitano”.sempre o arremedo simiesco do acento lusitano”.
Monteiro Lobato também apareceu noMonteiro Lobato também apareceu no front  front do abrasileiramento dado abrasileiramento da
língua. Apoiou iniciativas como a plíngua. Apoiou iniciativas como a publicação de dicionários de portuguêsublicação de dicionários de português
do Brasil e elogiou do Brasil e elogiou montagens teatrais que dispensavam a entonação lus-montagens teatrais que dispensavam a entonação lus-
itana. Mais do que tudo, foi ele próprio um dos artífices dessa mudança.itana. Mais do que tudo, foi ele próprio um dos artífices dessa mudança.
187/375187/375
Tiago Fagundes
O estouro deO estouro de UrupêsUrupês e do Jeca, citado em discurso por Rui Barbosa,e do Jeca, citado em discurso por Rui Barbosa,7676
deu-lhe a fama de “o mais brasileiro dos escritores brasileiros”, com umdeu-lhe a fama de “o mais brasileiro dos escritores brasileiros”, com um
estilo pessoal que não se submetia aos ditames da antiga Metrópole.estilo pessoal que não se submetia aos ditames da antiga Metrópole.
Embora se cite, com frequência, o regionalismo como um precedenteEmbora se cite, com frequência, o regionalismo como um precedente
menor do modernismo, não há dúvidade que Lobato e outros autoresmenor do modernismo, não há dúvida de que Lobato e outros autores
avançaram na reformulação do português brasileiro. Para a avançaram na reformulação do português brasileiro. Para a professoraprofessora
Tânia Regina de Luca, “a produção regionalista, com sua sintaxe e seuTânia Regina de Luca, “a produção regionalista, com sua sintaxe e seu
léxico peculiar, marcados pela oralidade, estava a léxico peculiar, marcados pela oralidade, estava a meio caminho das for-meio caminho das for-
mulações modernistas”, que seriam expressas, depois, por Mário demulações modernistas”, que seriam expressas, depois, por Mário de
 Andrade, o grande defensor d Andrade, o grande defensor da “estilização culta” do falar brasileiro. Pro-a “estilização culta” do falar brasileiro. Pro-
 vocativamente, seria possível dizer que, desse ân vocativamente, seria possível dizer que, desse ângulo, o modernismo foigulo, o modernismo foi
um pós-regionalismo.um pós-regionalismo.7777
••
Em meio à onda de Em meio à onda de “paulistanidade”, que já havia estimulado“paulistanidade”, que já havia estimulado
tentações separatistas no final do séculotentações separatistas no final do século xixxix, o então prefeito Washington, o então prefeito Washington
Luís lançou um concurso, emLuís lançou um concurso, em 19161916, para que se criasse um brasão da cid-, para que se criasse um brasão da cid-
ade. Os vencedores foram o poeta Guilherme de Almeida juntamente comade. Os vencedores foram o poeta Guilherme de Almeida juntamente com
o pintor Wasth Rodrigues, com o escudo em que se vê um braço destroo pintor Wasth Rodrigues, com o escudo em que se vê um braço destro
armado empunhando uma bandeira da Ordem de Cristo, armado empunhando uma bandeira da Ordem de Cristo, secundado porsecundado por
ramos de café, como no Império, e encimado por uma coroa. O lema, emramos de café, como no Império, e encimado por uma coroa. O lema, em
latim,latim, non ducor, duconon ducor, duco significa “não sou conduzido, conduzo”. O significa “não sou conduzido, conduzo”. O brasão,brasão,
que parecia concebido para consagrar uma nova realeza em tempos re-que parecia concebido para consagrar uma nova realeza em tempos re-
publicanos, sofreu algumas alterações ao longo do tempo, publicanos, sofreu algumas alterações ao longo do tempo, mas é essen-mas é essen-
cialmente o mesmo que foi oficializado emcialmente o mesmo que foi oficializado em 19171917..
188/375188/375
1414
EDUARDO E PAULOEDUARDO E PAULO
190/375190/375
Blaise Cendrars, Paulo Prado e sua mulher,Blaise Cendrars, Paulo Prado e sua mulher,
Marinette, no hotel Marinette, no hotel Copacabana Palace,Copacabana Palace,
quatro anos depois da realização daquatro anos depois da realização da
Semana de Arte Moderna, quando o poetaSemana de Arte Moderna, quando o poeta
 vanguardista fran vanguardista franco-suíço visitou o Brasil.co-suíço visitou o Brasil.
No diaNo dia 3131 de dezembro dede dezembro de 18991899, à espera das primeiras luzes do século, à espera das primeiras luzes do século xxxx,,
Eduardo Prado ofereceu um jantar em Eduardo Prado ofereceu um jantar em sua residência, no númerosua residência, no número 194194 dada
Rue de Rivoli, em Paris. O apartamento era um concorrido ponto de en-Rue de Rivoli, em Paris. O apartamento era um concorrido ponto de en-
contro de intelectuais, políticos, artistas e homens de negócios, brasileiroscontro de intelectuais, políticos, artistas e homens de negócios, brasileiros
e europeus, que viviam na cidade ou por lá passavam. Recebia nomese europeus, que viviam na cidade ou por lá passavam. Recebia nomes
como Rui Barbosa, Rio Branco, Joaquim Nabuco e como Rui Barbosa, Rio Branco, Joaquim Nabuco e notáveis da Geraçãonotáveis da Geração
dede 7070 portuguesa, como o historiador Oliveira Martins e o escritorportuguesa, como o historiador Oliveira Martins e o escritor
Ramalho Ortigão.Ramalho Ortigão.
Nas noites festivas, o salão, a sala de jantar e a biblioteca fervilhavam.Nas noites festivas, o salão, a sala de jantar e a biblioteca fervilhavam.
 As conversas tratavam de atu As conversas tratavam de atualidades, passeavam por temas literários ealidades, passeavam por temas literários e
se acaloravam em debates sobre os destinos do Brasil, da Europa e dose acaloravam em debates sobre os destinos do Brasil, da Europa e do
mundo. Havia uma “sala de fumar”, mas segundo depoimundo. Havia uma “sala de fumar”, mas segundo depoimento de Olavomento de Olavo
Bilac, que frequentou o local, o título era “honorário”, pois se fumava emBilac, que frequentou o local, o título era “honorário”, pois se fumava em
todos os aposentos. Nas reuniões em tempo de inverno, o tabaco, otodos os aposentos. Nas reuniões em tempo de inverno, o tabaco, o
acúmulo de gente e o falatório elevavam a temperatura a graus quaseacúmulo de gente e o falatório elevavam a temperatura a graus quase
tropicais — até que alguém resolvesse abrir as janelas para deixar entrar otropicais — até que alguém resolvesse abrir as janelas para deixar entrar o
ar frio da cidade.ar frio da cidade.
Na última ceia dosNa última ceia dos 18001800, Eduardo Prado cercou-se de gente da , Eduardo Prado cercou-se de gente da suasua
“raça e língua”, conforme anotou num diário, pouco depois de encerrada“raça e língua”, conforme anotou num diário, pouco depois de encerrada
a festa. Estavam presentes amigos queridos e ilustres, como Nabuco e Eçaa festa. Estavam presentes amigos queridos e ilustres, como Nabuco e Eça
de Queirós.de Queirós.
Cônsul de Portugal na França naquele momento, o Cônsul de Portugal na França naquele momento, o escritor era íntimoescritor era íntimo
do “bom Prado”, como chamava o anfitrião. Dele ganhara certa vez umado “bom Prado”, como chamava o anfitrião. Dele ganhara certa vez uma
191/375191/375
 verdadeira fauna para habitar os jardins de sua casa em Neuilly, nas re-
dondezas de Paris. Entre galos, galinhas, pombos, peixes, tartarugas e
serpentes reinava um papagaio, que sabia repetir “oui, oui ”. O autor de
 Primo Basílio inspirou-se no amigo brasileiro para criar o personagem
Jacinto de Thormes, de A cidade e as serras.
Eduardo Prado era o filho caçula de d. Veridiana Prado, mulher
lendária, que animou memorável salão político e cultural no palacete er-
guido na rua que hoje tem seu nome, no bairro de Higienópolis. A aven-
tura dos Prado coincidia com a história da prosperidade paulista e do
esplendor da cultura cafeeira. O clã não era apenas um dos maiores
produtores de café do mundo. Suas atividades se estendiam ao comércio,
às finanças, à indústria, às ferrovias e, como não poderia deixar de ser, à
 vida política.
•
O primeiro membro da família Prado a desembarcar no Brasil partiu
de Portugal, no início do século xviii, movido pelo sonho de descobrir
ouro. Chamava-se Antônio, e, depois de se estabelecer como comerciante
e pequeno proprietário de terra no interior de São Paulo, foi garimpar
pelo sertão de Goiás. Não se sabe se a mineração deu os frutos esperados,
mas é certo que ele reuniu recursos, casou-se duas vezes e teve seis filhos.
Um deles, Martinho, que viveu de 1722 a 1770, morou em Jundiaí, onde
se tornou juiz, vereador e capitão-mor. Era um monarquista conservador,
empenhado em expandir suas atividades econômicas. Martinho foi o pai
do segundo Antônio da Silva Prado, homem que fornecia animais,
produtos agrícolas e empréstimos para a sociedade paulista. Casou-se
com uma mulher chamada Ana Vicência Rodrigues de Almeida, filha de
um tenente português que havia enriquecido no Brasil. Educada pelo pai
192/375
para cuidar dos negócios, ficou viúva depois de sete anos de casada e re-
solveu a situação de maneira prática: uniu-se em matrimônio ao cunhado
Eleutério Prado, dono de uma fazenda de cana-de-açúcar.
 Ana Vicência foi a mãe do terceiro Antônio da Silva Prado, que levou o
sobrenome da família ao baronato do Império, em 1848, ao receber de d.
Pedro ii o título de barão de Iguape. Comerciante, fazendeiro e negociante
de gado, já tinha hospedado d. Pedroi em sua casa por ocasião do episó-
dio que cercara o “Grito do Ipiranga”.
O quarto Antônio da Silva Prado, filho do barão, irmão de Eduardo e
pai de Paulo Prado, foi empresário e homem público de grande influência
sobre os destinos de São Paulo e do país. Formado em direito, com aper-
feiçoamento na França, foi deputado pela então província paulista e con-
selheiro do Império, presente nos debates e articulações que levaram à
abolição da escravatura.
Na República, o conselheiro Prado ligou-se ao prp e foi prefeito de São
Paulo de 1899 a 1911, período em que a cidade se modernizou e sofreu
importantes transformações urbanísticas. Várzeas foram aterradas, sur-
giram novas vias, jardins e edificações — entre elas o Teatro Municipal.
Longevo, o conselheiro Prado viveu de 1840 a 1929.
193/375
NABUCO E O JOVEM GRAÇA 
Joaquim Nabuco chegou ao apartamento de Eduardo Prado na compan-
hia de um afável jovem de olhos claros, com quem mantinha relações de
amizade temperadas por sentimentos paternais. Chamava-se Graça
 Aranha, era quase vinte anos mais novo que Nabuco, professava ideias
anarquistas e humanistas, e trabalhava como seu secretário numa missão
diplomática do governo brasileiro.
Em maio de 1899, os dois haviam deixado o Rio de Janeiro com a es-
pinhosa tarefa de representar o Brasil numa disputa territorial com a
Inglaterra, que envolvia uma área de fronteira com o Suriname, na
Floresta Amazônica. Para Nabuco, monarquista ferrenho, a tarefa tinha
sabor especial, pois era a primeira vez que aceitava um convite — no caso,
do chanceler Rio Branco — para servir oficialmente ao regime
republicano.
Graça, bacharel em direito pelas escolas do Recife e de São Paulo, real-
izava o sonho de conhecer a Europa, onde planejava terminar seu
primeiro romance, Canaã. Embora ainda não tivesse publicado nenhum
livro, era membro fundador da Academia Brasileira de Letras — assim
como Nabuco e Eduardo.
Inaugurada em 1897, a abl nasceu de uma roda de intelectuais e es-
critores que se reunia em torno da Revista Brasileira, no Rio, liderada
194/375
por José Veríssimo. Graça era naquela época um moço animado, com
ideais reformistas, discípulo de Tobias Barreto, que frequentava o grupo
da revista. Já tinha conquistado seu lugar na capital federal — advogava,
publicava artigos e casara-se com a filha do conselheiro do Império José
Bento de Araujo, político que comandou as províncias do Maranhão, de
Santa Catarina e do Rio de Janeiro.
Não foi muito fácil para os fundadores da Academia encontrar os
quarenta nomes necessários para imitar o modelo francês. Apoiado por
Nabuco e convidado por Machado de Assis a ser um dos nossos primeiros
“imortais”, registre-se que de pronto Graça Aranha recusou. Só veio a
ceder depois, numa carta em que creditava a mudança de atitude à amiz-
ade que o unia ao autor de Dom Casmurro — cujas provas, aliás, con-
seguiria ler em primeira mão, ali mesmo em Paris, onde o livro estava
sendo impresso naquele ano de 1899.
•
O dia 31 de dezembro caiu num domingo, o que levava o novo século a
ser inaugurado numa segunda-feira. Mas seria mesmo o novo século que
chegava? Em Paris, discutia-se o problema. Alguns insistiam, não sem
razão, que o século xx só nasceria na passagem de 1900 para 1901. Mas
como ignorar a magia do número? Era a aproximação de 1900 que a todos
fascinava.
Para comemorar a data, restaurantes, bares e casas de espetáculo pre-
pararam atrações especiais em Paris, como o cabaré Folies Bergère, que
anunciou três noites com Carolina Otero, dançarina espanhola, espécie de
mulher-mito da época, cortejada por príncipes e reis. Entre os espetáculos
apresentados na noite do dia 31 — era hábito ir ao teatro antes da ceia —,
a Dama das Camélias, com Sarah Bernhardt, prometia ser dos mais
195/375
Tiago Fagundes
concorridos. O que não se imaginava é que, ao deixar sua casa, a diva
fosse sentir uma indisposição e cancelar a apresentação em cima da hora.
No raiar de 1900, a França era um país mais populoso que o Brasil,
com 38 milhões de habitantes — dos quais 2,5 milhões viviam na movi-
mentada capital do século xix, iluminada por 350 mil lâmpadas elétricas.
O grande tema político do país naqueles dias era a trama em que fora
envolvido o capitão Alfred Dreyfus, judeu francês de origem alsaciana,
acusado, em 1894, de ter fornecido documentos secretos aos alemães. O
caso despertava paixões e atraía a atenção da opinião pública internacion-
al. Condenado à prisão perpétua por traição, Dreyfus fora deportado para
a ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Convicta do equívoco, a família con-
tinuou tentando, por todos os meios, provar sua inocência. Em 1896, o
chefe da contraespionagem, Georges Picquart, constatou que o verdadeiro
traidor era o comandante Ferdinand Walsin Esterhazy — mas mesmo as-
sim o estado-maior se recusou a voltar atrás.
Em 1898, o escritor Émile Zola publicou seu célebre “J’accuse” e, no
ano seguinte, o primeiro julgamento de Dreyfus foi, enfim, anulado. No
entanto, para desespero de seus defensores, o segundo júri o condenou a
trabalhos forçados. Só em 1906 sua inocência seria oficialmente
reconhecida.
Graça Aranha foi um fervoroso partidário de Dreyfus. Logo depois de
sua chegada a Paris, escreveu uma carta ao amigo José Veríssimo para
contar que havia participado de uma manifestação socialista de “for-
midável entusiasmo”. Dizia que tinha tentado, em vão, ir a Rennes para
assistir ao segundo julgamento do capitão. De acordo com seu relato, to-
dos os membros da missão diplomática brasileira ficaram chocados com a
segunda condenação. “A nossa comoção é imensa.” O caso também
196/375
repercutiu no Brasil — e Rui Barbosa, na época exilado, foi um dos
primeiros homens públicos estrangeiros a se manifestar a favor de
Dreyfus.
•
Fez frio e choveu em Paris no último dia do século. O jantar transcor-
reu sem incidentes, e Nabuco e Graça partiram mais cedo para comemor-
ar a data com suas famílias. Encerradas as despedidas, o dono da casa
soube por um criado que um pesado aguaceiro havia caído pelo lado oeste
da cidade, em meio a uma tempestade elétrica. “Foi portanto entre raios e
trovões que apontou para Paris o século xx. Funesto agouro”, anotou em
seu diário.
•
Homem muito bem informado, Eduardo Prado usava suas relações,
amplas e influentes, em favor dos empreendimentos da família e dos in-
teresses do Brasil. Era sócio e colaborador de jornais no Rio e em São
Paulo. Escrevia artigos e mandava notícias da Europa — onde também
colaborava em títulos importantes, como os britânicos Financial Times e
The Economist .
Colecionador de arte, apoiava artistas e manifestações culturais
 brasileiras. Foi um dos patrocinadores da representação do país na Ex-
posição Universal, inaugurada em Paris, em 1889 — quando os franceses
apresentaram ao mundo a torre Eiffel.
O pavilhão nacional, com uma chamativa cúpula envidraçada a quar-
enta metros de altura, abrigava enormes telas de Estevão da Silva, com
frutas tropicais, e seis estátuas gigantescas que representavam nossos
197/375
rios. Servia-se café ao lado e “numa enorme bacia flutuava, romantica-
mente, uma típica vitória-régia”.78
 À diferença de outros membros de sua família, Eduardo, como
Nabuco, era partidário da monarquia parlamentarista à moda inglesa e
adversário da República.
Tão logo Deodoro ergueu sua espada, voltou a São Paulo para com-
 bater o regime. Atacou ferozmente a nova ordem e escreveu um livro, A
ilusão americana, que teve todos os exemplares recolhidos. Perseguido,
com prisão decretada pelo governo federal, refugiou-se pelos sertões,
antes de conseguir retornar a Paris.
Já cansado do combate político, dedicava-se, naquela virada do
século, à sua paixão pela história do Brasil. Uma síntese de suas teses
sobre a formação brasileira e paulista foi apresentada no dia 20 de agosto
de 1896, na Faculdade de Direito, quando ele proferiu a segunda das Con-
ferências Preparatórias do Tricentenário do Padre José de Anchieta.79
 Ao diferenciar a colonização lusitana da inglesa, o conferencistasub-
linhou o fato de os portugueses serem os europeus que “mais e melhor se
aliam a diferentes raças”. Contra os que viam na miscigenação um fator
negativo, Eduardo preferia exaltar as qualidades de um tipo específico de
mestiço — o filho do português e do índio “chamado desprezivelmente
mameluco, que descobriu este grande país”. Nessa fusão inter-racial, o
 branco entrava com “o cérebro mais desenvolvido, que se reproduz no seu
descendente”, e o nativo, com a “agudeza da sensibilidade dos seus sen-
tidos e a agilidade elástica dos seus músculos”.
O mameluco — que era, afinal, a pujante “raça” do bandeirante — não
teria evoluído sem a principal obra dos missionários jesuítas, a seu ver, a
fundação da cidade de São Paulo na região do planalto, de clima mais
ameno e isolada do mar. Na praia, em Santos ou São Vicente, os forasteir-
os e aventureiros exerceriam um papel “corruptor e fatal” — e a
198/375
Tiago Fagundes
temperatura tórrida não permitiria que a “raça europeia” medrasse na
mistura.
O esquema apresentado refletia ideias de Oliveira Martins, que con-
clamava seus patrícios a estabelecer colônias nos planaltos africanos com
o intuito de repetir a experiência paulista: “Tivéssemos tido outro São
Paulo e criaríamos em África outro Brasil”. Martins foi um dos responsá-
 veis pela ideia de que as populações brasileiras do Norte e do Sul são
diferentes — com vantagem para a sulina. Uma de suas máximas — “o es-
pírito aventureiro do paulista foi a primeira alma da nação brasileira” —
foi adotada como uma espécie de bordão da elite cafeicultora ilustrada.
Em seus esforços historiográficos, Eduardo, com o auxílio de Cap-
istrano de Abreu, aprofundou-se em estudos sobre a Inquisição e duas de
suas vítimas, os padres Antônio Vieira e Manuel de Moraes. Segundo re-
latou ao mestre cearense, faltava pouco para terminar o trabalho acerca
de Vieira. Mas, depois da agourenta e tempestuosa passagem de século
em Paris, o “bom Prado” perdeu o amigo Eça, em agosto de 1900.
Deprimido, mudou-se para o Brasil — onde acabou morrendo, em 1901,
com 41 anos de idade. Seus escritos sobre Vieira nunca foram
encontrados.
199/375
Tiago Fagundes
HERDEIRO INTELECTUAL
Paulo Prado, o “verdadeiro fautor” da Semana, nas palavras de Mário de
 Andrade, foi o herdeiro intelectual do tio, cujas ideias desenvolveu, tam-
 bém em diálogo com Capistrano de Abreu — figura que os modernistas
conheceram em seu palacete, em Higienópolis. Nascido em maio de 1869,
Paulo concluiu parte de seus estudos no Rio, onde seu pai exercia as fun-
ções de deputado e membro do Ministério imperial. Iniciou a Faculdade
de Direito em 1887, na mesma turma de Affonso Arinos, e formou-se em
1889. No ano seguinte viajou para a Europa, onde viveu por uma tem-
porada. Em Paris, hospedou-se no apartamento do tio, com quem viajou,
em companhia do diplomata Domício da Gama e de Olavo Bilac, até
Rouen, para participar das homenagens aos dez anos da morte de
Gustave Flaubert. Também conheceu Eça de Queirós, que com ele se en-
cantou. Circulou por diversas capitais e países — com direito a um périplo
de veleiro pela Grécia, que repetia o roteiro percorrido por Lord Byron.80
 Após a morte do tio Eduardo, sua vida voltou-se para as atividades de
cafeicultor, numa época em que cerca de 80% do café consumido no
mundo era do Brasil — e 90% da produção nacional provinha de São
Paulo. Durante o período da guerra, Paulo Prado desdobrou-se na tent-
ativa de superar os obstáculos à exportação do produto para a Europa.
Em 1917, com apoio do poeta Paul Claudel, que trabalhava na embaixada
200/375
francesa, no Rio, promoveu o Convênio Comercial Franco-Brasileiro, pelo
qual o país vendeu à França 2 milhões de sacas de café numa transação
que envolvia o arrendamento de navios alemães apreendidos na costa
 brasileira. Os pagamentos eram feitos sem a necessidade de dinheiro son-
ante, por meio de mecanismos como a compensação da dívida brasileira
na França. A operação, que precipitou a entrada do Brasil na guerra, ger-
ou desconfianças e polêmicas. Foi votada pela Câmara Federal em fever-
eiro de 1918, em meio a acusações dirigidas a seu negociador e a um de
seus conhecidos colaboradores — Graça Aranha.
Um ano depois, em 1918, Paulo Prado deu início à sua correspondên-
cia com Capistrano de Abreu e retornou com mais afinco às suas ativid-
ades intelectuais. Começou a trabalhar nos seus ensaios históricos, que só
sairiam em livro em 1925, pela editora de Monteiro Lobato, de quem se
tornara sócio nos últimos anos da Revista do Brasil . Um dos textos mais
conhecidos, “O Caminho do Mar”, foi elaborado no período imediata-
mente anterior à Semana, tendo aparecido pela primeira vez em setembro
de 1922, numa versão publicada pelo Estado de S. Paulo. Retomava temas
de Eduardo Prado e Oliveira Martins.
 A ideia central era que a primitiva e íngreme ligação entre São Paulo e
o litoral teria funcionado mais como barreira do que como facilitador de
contatos com o litoral, o restante do país e o mundo. Essa estufa se-
gregada pelas escarpas da Serra do Mar teria servido como canteiro para
o florescimento e desenvolvimento do tipo paulista, com seu espírito de
liderança, insubordinado às determinações da Metrópole, seu senso prag-
mático e suas “predestinações heroicas e étnicas”.
Num outro ensaio, em que trata dos bandeirantes, Paulo Prado expôs
a mesma tese com delirante ufanismo:
201/375
Do cruzamento do forte sangue português quinhentista, dos franceses,
castelhanos e flamengos com cunhãs, o mameluco surgiu perfeita-
mente aparelhado para o seu destino histórico. A montanha isoladora
dos contágios decadentes do litoral; a atitude sempre sobressaltada de
quem vivia na orla das imensas matas virgens, sombrias e espessas; a
convivência diária e íntima com o gentio da terra de quem falava cor-
rentemente a língua; a feliz situação geográfica e topográfica, que o
locava à margem e nas proximidades de grandes rios descendo para o
interior das terras; a aspereza fortificante de um clima de bruscas vari-
ações, que às geadas das manhãs claríssimas sucedem sóis abrasad-
ores do meio-dia — todos esses fatores conjugados criaram um ad-
mirável exemplar humano, belo como um animal castiço, e que só
puderam realizar nesta perfeição física os homens da Renascença itali-
ana, quando César Bórgia seduzia o gênio de Maquiavel.81
Em seu esquema histórico, essa São Paulo original, tenaz e apolínea,
temperada também pelo sangue judeu, precisou experimentar longa
decadência até se regenerar no ciclo do café, sob o comando de famílias
tradicionais, como a sua, que descendiam daquele primitivo e belo “anim-
al castiço” bandeirante.
Em 1919, além da montagem de O contratador de diamantes, ban-
cada por sua família, Paulo Prado promoveu, com Freitas Valle, Numa de
Oliveira, Ramos de Azevedo e Paul Claudel, uma importante exposição de
arte francesa no hall do Municipal — mesmo local onde se instalaria, três
anos depois, a mostra modernista. Ao lado de pinturas impressionistas,
foram exibidas esculturas de Auguste Rodin, Émile-Antoine Bourdelle e
Henri Laurens — com direito a um concerto com obras de César Franck e
Debussy no dia do vernissage.
202/375
•
 A importância de Paulo Prado para o movimento modernista tran-
scenderia a realização da Semana de Arte Moderna. O ilustrado
fazendeiro foi uma espécie de elo entre gerações, um orientador e um pro-
ponente de questões para os rapazes, que frequentavam os concorridos
almoços dominicais em sua casa. Nas palavras de Mário, “com o seu pess-
imismo profundo e o seu realismo, convertia sempre o assunto das livres
elucubrações artísticas ao problema da realidade brasileira”. A ele o poeta
e escritor dedicou seu grande Macunaíma. E Oswald de Andrade
convidou-o para escrever o prefácio — notável — de Pau-Brasil , o “ovo de
Colombo” da poética modernista, lançado em 1924.
Para Berriel, Paulo Prado não deve ser visto como alguém que se
movia simplesmente pelo interesse mundano ou excêntrico de se divertir
com jovens artistas. Se ele se envolveuna realização da Semana, foi
porque buscava “a identidade entre a elite tradicional paulista e a ex-
pressão de uma particular modernidade nas artes”.
 A oligarquia do café, em sua expressão mais esclarecida, imaginava-se,
segundo Berriel, como uma “burguesia clássica”; considerava-se porta-
dora de um projeto nacional que abarcava, além do poder econômico e
político, o poder cultural. Paulo Prado seria a expressão mais cosmopolita
e moderna — e também aristocrática — dessa ilusão, que desmoronaria,
afinal, no fim da década de 1920, com o crack das bolsas e a Revolução de
30.
Berriel aponta uma diferença crucial entre o processo de instauração
da arte moderna na Europa, sobretudo na França, e no Brasil. Enquanto
por lá a nova estética precisou conquistar terreno à margem dos salões
oficiais, no Brasil essa mesma arte ingressou “pela via oficial e conduzida
203/375
pela mão do poder”. A inversão revelaria o esforço de modernização de
um poder já assentado — no caso, o do café —, que desejava ir além. Por
seu caráter renovador e sua vocação “insurrecional”, a arte moderna teria
uma contribuição a dar nessa tentativa de ascendência intelectual da elite
paulista.
204/375
15
O RODIN BANDEIRANTE
206/375
 Victor Brecheret aos dezenove anos. O artista,
nascido na Itália, mudou-se aos dez anos para
São Paulo e retornou a seu país de origem
para estudar escultura. Em 1920, novamente
no Brasil, foi “descoberto” pelos modernistas.
Em 1920, quando “fremia todo o Estado de júbilo cívico e euforia patriót-
ica”,82 o governador Washington Luís anunciou que a cidade de São Paulo
ergueria um monumento em memória dos bandeirantes com o intuito de
amplificar sua presença nos festejos do Centenário da Independência.
Para implementar a ideia, nomeou uma comissão, presidida por Monteiro
Lobato, e formada, entre outros, por seus amigos Menotti del Picchia e
Oswald de Andrade.
Os três, daquela vez, com o apoio de Mário de Andrade, estavam jun-
tos numa ofensiva para promover o que consideravam a grande revelação
artística de São Paulo, o escultor Victor Brecheret, que seria o autor do
monumento.
Tímido e arredio, Brecheret tinha sido “descoberto” em janeiro
daquele ano por Oswald, Menotti, Di Cavalcanti e pelo escultor Hélio
Seelinger, durante uma visita ao Palácio das Indústrias, onde se expun-
ham os projetos que participavam do concurso do Monumento da
Independência — a ser instalado nos jardins do Museu do Ipiranga.
Souberam por um funcionário que um escultor trabalhava em peças de
grandes dimensões numa das salas do edifício, onde improvisara seu
ateliê. Foram conferir e, nas palavras de Oswald, viram um “deslumbra-
mento”, a revelação de um artista “original e poderoso”.83
Encantados com o jovem talento, que se destacava do padrão “passad-
ista” da estatuária brasileira, trataram de divulgá-lo pelos jornais e de or-
ganizar os “lobbies” possíveis para promovê-lo. Não há dúvida de que a
207/375
decisão de Washington Luís, a par de sua sensibilidade de historiador, foi
influenciada pelos descobridores do escultor.
Já em fevereiro de 1920, a Revista do Brasil , de Lobato, estampava em
suas páginas fotografias de O despertar e Eva, duas esculturas do artista,
que completava 26 anos naquele mês — embora o texto anunciasse “22
anos apenas”.84
“Admiremos sem reservas, que isso é arte de verdade, da boa, da
grande, da que põe o espectador sério e, se é sensível, comovido”, dizia a
apresentação das obras, escrita por Lobato mas sem assinatura. O entusi-
asmo era pleno: “Honesto, fisicamente sólido, moralmente emperrado na
ideia de que o artista moderno não pode ser um mero ‘ecletizador’ de
formas revelhas e há de criar arrancando-se à tirania do autoritarismo
clássico, Brecheret apresenta-se-nos como a mais séria manifestação de
gênio escultural surgida entre nós”.
O crítico que investira ferozmente contra a arte moderna falava agora
na necessidade de o artista atual escapar da “tirania clássica”. Parecia
uma autocrítica sobre o caso Anita Malfatti, mas não chegava a tanto. Na
realidade, as obras de Brecheret, se testemunhavam a força do artista e
fugiam ao padrão neoclássico, não se comparavam, em arrojo, às telas ex-
pressionistas trazidas de Nova York pela pintora. Não tinham nenhuma
“esquisitice”. Preservavam, de certa forma, as convenções “naturalistas”
tão estimadas por Lobato.
Menotti del Picchia, nos artigos que assinava como Hélios, no Correio
 Paulistano, foi um dos mais efusivos propagandistas de Brecheret, o
“Rodin brasileiro”. Sua estratégia era reivindicar a “descoberta” para os
modernistas e fixar o escultor, nascido na Itália, como legítimo artista
nacional. Nessa linha, acentuava em seus argumentos algumas caracter-
ísticas “autóctones” que via nas figuras criadas pelo escultor — como as
208/375
frontes proeminentes, a estilização do cabelo e “a audácia dos lábios
carnosos e sensuais”.
No seu característico estilo exaltativo, Menotti definia Brecheret como
“brasileiro e paulista”, fruto de um “amálgama de raças caldeadas no
nosso clima”, cuja obra, mesmo no “profundo misticismo em que se ene-
 voa”, preservava algo de “visceralmente nosso”.85
No segundo número da revista Papel e Tinta, que tinha sido lançada
em maio por Menotti e Oswald, um certo Ivan assinou elogioso artigo, no
qual destacava a inteligência e a força criativa do escultor, raras nesse
país “de lenta evolução”. Para o autor, no período de estudos em Roma,
Brecheret não teria se limitado a aprender o catecismo da escultura clás-
sica, mas observado “as ideias modernas” em circulação na Europa e com
elas comungado — o que faria dele um caso “quase único em nosso meio”.
Ivan encerrava o artigo fazendo um “veemente apelo” ao governo do
Estado para que patrocinasse uma nova temporada de aprendizado do
artista no “Parnaso Europeu”, em centros, como Paris, que ele ainda
desconhecia.
Segundo o historiador Mário da Silva Brito, era Oswald quem estava
por trás do pseudônimo Ivan. A pesquisadora Telê Ancona Lopez, no ent-
anto, sustenta com argumentos sólidos que na realidade Ivan era Mário
de Andrade.86
•
 Victor Brecheret era descendente de italianos e franceses. Nasceu em
Farnese, na Toscana, em 1894, e foi batizado Vittorio. Depois de uma
série de mortes em sua família, entre as quais a de sua mãe, foi levado
para São Paulo em 1904, aos dez anos de idade, por uma tia materna,
209/375
chamada Antonia, que já morava na cidade. O pai, Augusto Brecheret,
casado novamente, com uma mulher mais jovem, ficou na Itália.
 Vittorio e a irmã foram morar com a tia na rua Jaguaribe, perto do
largo do Arouche. O garoto, que gostava de moldar barro no quintal de
casa, começou a trabalhar como vendedor e entregador de uma loja de
calçados na Florêncio de Abreu — a mesma rua onde morou Anita
Malfatti. Conta-se que certa vez, numa entrega, viu no chão uma revista
com reproduções de obras de Rodin. Encantado, levou a reportagem para
casa e mostrou aos tios — era aquilo que queria fazer.87
Continuou a trabalhar durante o dia, mas passou a frequentar cursos
noturnos do Liceu de Artes e Ofícios, onde estudava, entre outras discipli-
nas, desenho, modelagem e entalhe em madeira. Foi aluno de Domiziano
Rossi e Affonso Adinolfi, que participaram do projeto de construção do
Municipal.
 A escultura mais antiga de Brecheret de que se tem notícia data dessa
época — é uma Pietà em madeira, de 1911-12. Animado com os estudos e
incentivado pelos professores italianos, Vittorio começou a alimentar o
desejo de estudar em Roma, o que acabou conseguindo, graças aos tios.
Chegou à capital italiana em 1913, antes do início da guerra, levando
uma apresentação do então deputado Washington Luís para um amigo.
Por falta de estudos formais, não foi aceito na Escola de Belas-Artes.
 Valeu-se então do contato do político, que o ajudou a ingressar como dis-
cípulo no ateliê de Arturo Dazzi (1882-1971), escultor famoso, um dos
preferidos do rei Vittorio Emanuele ii. Admirador de Michelangelo, influ-
enciado por Rodin e Bourdelle, Dazzi ajudou o jovemartista a formar sua
 base clássica e naturalista.
Depois dos primeiros estudos com Dazzi, Brecheret decidiu se es-
tabelecer como escultor independente. Transferiu-se para um ateliê que
havia sido ocupado pelo escultor croata Ivan Mestrovic. Ligado à Secessão
210/375
 Vienense, Mestrovic se tornaria uma das principais influências do
 brasileiro, na monumentalidade, nas alegorias e na absorção de elemen-
tos do art nouveau.
Em 1916, o nu O despertar, apresentado na Exposição Internacional
de Belas-Artes de Roma, ganhou elogios da imprensa italiana, que foram
reproduzidos pelo Estado de S. Paulo. Em 1919, a escultura Eva, exposta
na Itália, foi citada pelo Il Messagero, pouco antes de o artista retornar a
São Paulo, no mês de março.
De volta à “pequena Itália” paulistana, sem lugar para instalar seu
ateliê, Brecheret pediu auxílio a Ramos de Azevedo, que o conhecia dos
tempos do Liceu. O arquiteto cedeu-lhe então um espaço no Palácio das
Indústrias.
•
Instruído por Menotti e possivelmente por outros amigos modernistas
sobre o significado histórico dos bandeirantes, Brecheret apresentou, em
 julho, uma maquete do monumento, acompanhada de uma detalhada ex-
planação. Era assinada por ele mesmo, que, no entanto, mal sabia escre-
 ver em português, como atestam os cartões enviados de Roma para os
tios. O estilo do texto era de Menotti — o qual declarou depois ter sido o
 verdadeiro mentor do monumento.
O texto citava Affonso de Taunay e esclarecia como a obra exprimiria,
“na harmonia de seu conjunto”, toda “a audácia, o heroísmo, a abnegação
e a força” despendidos por aqueles “seres titânicos” para “desvendar e in-
tegralizar o arcabouço geográfico da pátria”.
 A reação da imprensa foi favorável. A maquete, embora não fosse em
nada revolucionária, fugia dos clichês das esculturas oficiais
211/375
comemorativas, revelando-se, segundo O Estado de S. Paulo, uma “bela e
audaciosa obra de arte”, digna da epopeia que se pretendia comemorar.
Para decepção da animada claque de Brecheret, a proposta, apesar das
simpatias que despertou, acabou não se realizando. Um dos motivos do
fracasso teria sido a decisão da comunidade portuguesa de competir com
o escultor ítalo-brasileiro, oferecendo a São Paulo um monumento relat-
ivo ao mesmo episódio histórico esculpido pelo patrício Teixeira Lopes. A 
disputa acirrou rivalidades e criou situações delicadas, o que levou Wash-
ington Luís a “adiar” a decisão. Menotti, inconformado, responsabilizou
os portugueses por terem “matado” a proposta e eliminado a oportunid-
ade de São Paulo ganhar uma obra de arte “moderna, pujante,
revolucionária”.
Para amenizar a frustração, Brecheret doou a maquete ao governo do
Estado — que agradeceu o presente e a integrou ao acervo da Pinacoteca.
•
Em 1953, às vésperas das comemorações do iv Centenário de São
Paulo, uma nova versão de Brecheret para o Monumento às bandeiras foi
inaugurada no parque do Ibirapuera. O ressurgimento do projeto, mais
uma vez, contou com o apoio de Menotti del Picchia, que na década de
1930, sob o governo de Getúlio Vargas, persuadiu o interventor Armando
Salles de Oliveira, de quem era assessor, a retomar a proposta.
Um contrato foi assinado com o escultor em 1936, já prevendo a sim-
plificação da maquete original. Paralisado diversas vezes por falta de
 verbas, o monumento, em granito, ficou pronto dezessete anos depois,
como uma espécie de síntese da obra de Brecheret.
Do ponto de vista do conteúdo histórico, tornou-se menos regional. As
 bandeiras, antes investidas de patriotismo paulista, ficaram mais
212/375
Tiago Fagundes
associadas ao Brasil e às três raças constitutivas do povo — a branca, a
negra e a indígena. Como declarou Brecheret por ocasião da inauguração,
tratava-se, naquele novo momento, de criar uma espécie de “altar da
pátria”.
213/375
Tiago Fagundes
16
O ESTALO DO DESVARIO
215/375
 A escultura Cristo, de Brecheret, causou forte
impressão em Mário de Andrade, que a
adquiriu. Discussões provocadas pela obra
na família do poeta serviram de impulso para
que ele escrevesse Pauliceia desvairada.
 A euforia em torno do descobrimento de Brecheret era compreensível.
Para muitos, a potência criativa do artista aumentava em contraste com o
atraso da arte da escultura no Brasil. “Acostumados ao barrinho machu-
cado dos escultores do nosso Salon, ante a obra à parte do escultor
paulista surpreendemo-nos, não só por ele se destacar entre medíocres,
mas pela distância que ele guarda dos seus contemporâneos”, escreveu Di
Cavalcanti.88 Nas encomendas públicas, o cenário não era mais animador,
como testemunhavam os monumentos da capital federal, moldados pela
forma neoclássica que Marc Ferrez trouxera com a Missão Francesa.89 De
modo geral, tínhamos ou uma estatuária de artistas brasileiros com perfil
acadêmico ou peças importadas de autores estrangeiros.
Na opinião de Mário de Andrade, nem mesmo importar sabíamos
muito bem, pois, ao contrário dos argentinos, que embelezavam Buenos
 Aires com esculturas de artistas mais atualizados, como Bourdelle, nos
limitávamos a comprar velharias.
Era o caso da obra de Ettore Ximenes (1855-1926), que, em meados de
1920, venceu o concurso para o Monumento da Independência. Com sar-
casmo Mário atacou a escolha nas páginas da Ilustração Brasileira,90 ed-
itada no Rio: “O Ilustre Sr. Ximenes, que de longe veio, infelicitará a co-
lina do Ipiranga com seu colossal centro de mesa de porcelana de Sévres”.
O artigo, publicado em novembro, era o primeiro de uma série de
quatro sobre São Paulo, que se estenderia até maio de 1921. Começava
com um empolgado retrato da cidade naquele início de década:
216/375
São Paulo toda se agita com a aproximação do Centenário. Germinam
monumentos numa floração de gestos heroicos; as alamedas riscam o
solo em largas toalhas verdes e os jardins se congregam em formosos
 jogos florais de poesia e perfume. São Paulo se arreia de graças. São
Paulo quer tornar-se bela e apreciada. Finalmente, a cidade despertou
num desejo de agradar. E era preciso que assim fosse…91
O texto prosseguia numa declaração de amor à cidade:
 A urbe de Amador Bueno é agressiva e misteriosa como seus heróis;
suas belezas recônditas; raro o estrangeiro que alcança levantar um
pouco o pesado manto de segredo em que se embuça. Num orgulho
tradicional ela sempre se guardou rudemente, medievalmente, como
certas igrejas da Itália, que sob uma feição esquipática e bisonha
ocultam a severa doçura dum Cimabue, dum Piero della Francesca ou
os arco-íris dos mosaicos bizantinos. E no entanto ela é curiosa, viva,
singular; e para o paulistano inveterado, que a ama e contempla, tem
sugestões tão inéditas como os versos de Mallarmé. Dizem-na Fria…
Dizem-na tristonha, escura… Mas no momento em que escrevo,
novembro anda lá fora, desvairado de odores e colorações. Eu sei de
parques esquecidos em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda
por que pesadamente bailam os rosais… Eu sei de coisas lindas, singu-
lares, que Pauliceia mostra só a mim, que sou o amoroso incorrigível e
lhe admiro o temperamento hermafrodita…
Frustrado com a perda da ocasião de se comemorar a Independência
com uma obra mais brasileira e menos passadista, Mário insistia na tecla
do Monumento às bandeiras, de Brecheret. Como Menotti, sustentava
217/375
que o escultor, apesar do sotaque “italianado”, “de que os cariocas tanto
se riem”, era um legítimo artista brasileiro. Esperava que os paulistanos
conseguissem reunir recursos e erguer a escultura, pois Brecheret estava
pronto para reatar os laços com um passado artístico nacional ainda “sem
continuador”: a arte sacra de Aleijadinho e de outros mestres do Rio e da
Bahia. O escultor paulista representava, a seu ver, a preciosa oportunid-
ade de dar prosseguimento a uma tradição “nossa”, ligando as glórias do
 barroco ao “ideal moderno de escultura”.
•
Mário de Andrade passou 1920 sem publicar poesia. Ao comentar
aquela época de “modernistas das cavernas”, numa famosa conferência,
realizada no Rio em 1942, ele lembrou queguardava cadernos e cadernos
de “coisas parnasianas e algumas timidamente simbolistas” — mas nada
que o agradasse.
Foi um ano de leituras. Informava-se sobre o expressionismo e as
novas tendências estéticas europeias por meio de livros e revistas — como
a .’ Esprit Nouveau, projeto do pintor francês Amédée Ozenfant, do ar-
quiteto suíço Le Corbusier e do poeta belga Paul Dermée, lançada em out-
ubro de 1920. Já conhecia “futuristas de última hora”, mas só então veio a
conhecer o que considerou uma grande descoberta, o livro Les villes
tentaculaires de Émile Verhaeren, autor que lera nas aulas da Faculdade
de Filosofia do mosteiro de São Bento. Se a lírica católica e pacifista do
poeta belga o encorajara a escrever o “passadista” Há uma gota de
sangue em cada poema, o contato com o simbolismo de Cidades tentacu-
lares, voltado para o tema moderno da vida urbana, o estimulou a pensar
num livro em versos livres sobre São Paulo.
218/375
Fez várias tentativas, mas nada que entusiasmasse: “Os meses pas-
savam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha
se acabado em mim?”.92
Naquela época, o professor do Conservatório e colaborador da im-
prensa já ganhava o suficiente para viver “folgado”, mas torrava o din-
heiro em livros e se “estrepava em cambalachos financeiros terríveis”. A 
família o importunava por suas preferências e atitudes pouco convencion-
ais. As discussões muitas vezes terminavam em explosões de ódio.
Fascinado, como todos, por Brecheret, que tinha na temática religiosa
uma de suas fixações, Mário conseguiu, com ajuda do irmão, comprar do
escultor a peça Cabeça de Cristo. Ao chegar em casa, “sensualissima-
mente feliz”, abriu o pacote diante do olhar pasmo dos parentes, que con-
sideraram a obra medonha e herética. Onde já se vira Cristo de
trancinha? A reação da família criou no poeta um estado de ânimo que
acabaria se refletindo na própria história da literatura brasileira:
Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei
por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o
meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer
um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que
cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, falas
abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente
calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a es-
crivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara,
 Pauliceia Desvairada.
Depois de quase um ano de tentativas frustradas, em pouco mais de
uma semana Mário já tinha em sua escrivaninha, se não uma obra pronta,
ao menos o jorro de um “canto bárbaro” a ser revisto, modificado,
219/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
acrescido. Editado em 1922, o primeiro livro modernista da poesia
 brasileira foi escrito entre dezembro de 1920 e dezembro de 1921.
220/375
Tiago Fagundes
 ANITA DE NOVO
Se a escultura, por intermédio de Brecheret, atraiu e influenciou, em
1920, os “modernistas das cavernas”, a pintura de Anita Malfatti, como vi-
mos, já era “avanguardista” quando Mário Sobral escrevia sonetos
parnasianos, Menotti del Picchia fazia regionalismo fácil, e Oswald de
 Andrade e Guilherme de Almeida assinavam peças em francês sobre
paixões perdidas.
Depois dos escândalos que cercaram a exposição de 1917, contudo,
 Anita, mais do que um “retorno à ordem”, voltou-se para convenções
passadistas, dedicando-se ao que Mário de Andrade chamou mais tarde
de “impressionismo colorido para contentar os silvícolas”. O novo mestre
da artista, em 1919, era Pedro Alexandrino. O pintor, então com 63 anos
de idade, fora discípulo de Almeida Jr., bolsista da Academia Imperial de
Belas-Artes e professor de desenho do Liceu de Artes e Ofícios. Com apoio
do Pensionato do Estado havia passado quase dez anos em Paris, onde
participou de mostras e estudou com René-Louis Chrétien (1867-1942) e
 Antoine Vollon (1833-1900). De volta a São Paulo, Alexandrino retomou
suas atividades, participando de exposições e dando aulas de pintura.
Suas famosas naturezas-mortas se destacavam pela hábil representação
 verista de apetrechos metálicos.
221/375
O artista caiu nas graças de Monteiro Lobato. Depois de ter metral-
hado a arte moderna em 1917, o temível Jeca da crítica nacionalista ded-
icou ao pintor longo e elogioso artigo na Revista do Brasil . Para Anita, Al-
exandrino era um nome bem-sucedido, que a incentivara a voltar para a
Europa e elogiara seus trabalhos, na mostra de 1914. Estudar com o rei da
natureza-morta não deixava de fazer sentido se os principais interesses da
pintora naquele momento eram se adaptar ao convencionalismo dos col-
ecionadores e mecenas de São Paulo e investir numa nova exposição, na
tentativa de ganhar, enfim, as simpatias de Freitas Valle e do Pensionato
 Artístico.
•
Durante as aulas com Alexandrino, Anita conheceu, enfim, Tarsila do
 Amaral, que tinha visitado sua exposição de 1917. Filha e neta de ricos
fazendeiros paulistas, era três anos mais velha, mas começara a se dedicar
às artes mais tarde. Por sugestão dela, Anita também se tornou aluna de
Elpons. No início de 1920, as duas frequentavam juntas as sessões de
modelo-vivo do pintor alemão, no ateliê da rua Vitória, que Tarsila deix-
aria para o mestre, em aluguel, antes de embarcar para a França em
 junho.
De Paris, em 26 de outubro, ela remeteu uma carta a Anita, presum-
indo que a nova exposição tivesse ocorrido em setembro: “Pedi in-
tensamente a Deus por ti e estou certa de que foste feliz ou estás sendo
agora”. Contava de suas atividades na Academia Julian e dizia que tinha
 visitado o Salão de Outono. Pelo que observava, “tudo tendia” para o cu-
 bismo e o futurismo. Havia também muita natureza-morta, mas
“daquelas ousadas, em cores gritantes e forma descuidada”. Tarsila men-
cionava, ainda, a permanência do impressionismo e a vanguarda
222/375
dadaísta: “Conheces, certamente, o dadaísmo. Eu, porém, vim a conhecer
agora”.
•
 A exposição da srta. Malfatti foi inaugurada em novembro, no Clube
Comercial, na rua São Bento. Como em 1917, selecionou 53 trabalhos. A 
lista completa perdeu-se, mas, pelo que saiu na imprensa, sabe-se que a
maior parte das obras eram recentes e que havia algumas telas da safra
expressionista.
Muitos dos visitantes de 1917 voltaram — como Wasth Rodrigues,
Clodomiro Amazonas e Nestor Rangel Pestana. As reações foram, de
modo geral, moderadas, algumas favoráveis, outras ambíguas ou vaga-
mente críticas.
Os que esperavam ver, enfim, uma artista mais “amadurecida”,
domada pelo gosto convencional, encontraram motivos para comemorar.
Diversos trabalhos exibiam, como se comentou na imprensa, um “espírito
mais equilibrado” e uma “melhor compreensão artística da natureza”.
No Estado, Rangel Pestana insistiu no mesmo raciocínio de 1914,
quando comentou a tela Tropical na Revista do Brasil : Anita era tal-
entosa, mas contraditória. Suas obras evidenciavam “várias tendências
em conflito”. Muitas pinturas mereciam aplauso, pois nelas prevalecia o
“bom senso”; outras, porém, revelavam-se sensíveis às influências de
“pseudoescolas que caem no domínio da patologia”.
Quanto aos modernistas das cavernas, não se entusiasmaram muito.
Um artigo na Cigarra, sem assinatura mas atribuído a Mário de Andrade,
que se iniciava na crítica de arte,93 destacou a diferença em relação a
1917, quando Anita se mostrara partidária “das novas escolas revolu-
cionárias”. Sem citar Lobato, o texto atribuía a mudança de rumos aos
223/375
ataques da crítica, que teriam “influído no ânimo e, o que é pior, no
próprio senso estético” da pintora. O autor, apesar de tudo, reconhecia na
mostra “trabalhos de grande valor” e um “tom de modernismo que a
enobrece”.
Quem saiu em defesa de Anita foi Menotti del Picchia, que não tinha
 visto a exposição anterior e formara um juízo negativo da pintora ao ler o
arrazoado de Lobato. Num artigo de Hélios, no Correio Paulistano, o
autor de Juca Mulato penitenciava-se por ter se deixado levar pelo “di-
abólicoprestígio” e pelo “mágico poder de sedução” da pena do crítico.94
“Caí, a respeito de Anita Malfatti, no visgo do seu estilo e, preso por ele,
 julguei com o critério de Lobato.” Na sua dúbia avaliação, as telas expos-
tas pela pintora não apresentavam, como chegou a imaginar, “delírios dos
cubistas e dos futuristas de vanguarda”. Exibidas em qualquer cidade do
mundo “consagrariam o nome de um pintor moderno”.
Diante disso, Menotti sugeriu que Lobato revisse suas posições e
fizesse uma autocrítica pública — o que jamais aconteceu.
224/375
PRONTOS PARA O COMBATE
No final de 1920, os modernistas estavam prontos para sair das cavernas,
empunhar suas armas e partir para o combate. Mário debruçava-se sobre
 Pauliceia desvairada, Oswald retocava Os condenados e A estrela de Ab-
sinto, e Menotti preparava-se para lançar novos poemas e romances,
como Máscaras e Laís, ao mesmo tempo que trombeteava a nova “estét-
ica original e nossa” em artigos no Correio Paulistano.
Nas artes plásticas, Anita era uma realidade, Brecheret parecia ter
caído do céu, e Di Cavalcanti, conhecido por exposições e colaborações na
imprensa, ensaiava mudanças em seus desenhos, influenciados, como os
de Ferrignac, pelo art nouveau do artista gráfico inglês Vincent Beardsley 
(1872-98).
Em junho, o segundo número da revista  Papel e Tinta (que durou seis
edições) já havia noticiado a presença na cidade do “notável” artista suíço
John Graz, “reputado na Europa pelos seus admiráveis vitrais e pela mod-
erníssima composição de seus quadros”.
O texto que saudava Graz, assinado por um certo Claro Mendes, lam-
entava o “atraso de meio século” do meio artístico paulistano, onde se
continuava a encher paredes com “baboseiras feitas na Europa”. Entre os
“verdadeiros artistas” da cidade citava-se o velho mestre Pedro Alexan-
drino, que seria posteriormente demolido por Oswald de Andrade, e os
225/375
novos — como o “menino-prodígio” Di Cavalcanti, Anita, Ferrignac, e a
pintora e decoradora Regina Gomide, que se casara com Graz, em
Genebra, naquele mesmo ano. A revista mencionava ainda Mick Carni-
celli, paulista de origem italiana, filho de famoso alfaiate, que estudou na
Europa e, em seu retorno, juntou-se ao grupo renovador.
Também marcava presença na cena artística da cidade o pernambu-
cano Vicente do Rego Monteiro, estabelecido no Rio desde 1915. Rego
Monteiro passara longa temporada em Paris, onde estudou, participou do
Salão dos Independentes e conheceu artistas como Fernand Léger
(1881-1955), Georges Braque (1882-1963) e Joán Miró (1893-1983). Suas
obras expostas em São Paulo foram bem recebidas por Monteiro Lobato e
elogiadas na Revista do Brasil .
De Genebra, além de Graz, chegavam por aquela época dois rapazes
 brasileiros — Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) e Rubens Borba
de Moraes (1899-1986). O primeiro, escritor e crítico de arte, fora para a
Suíça em 1912, onde cursou ciências econômicas e sociais, colaborou na
revista Le Carmel e publicou dois livros de poemas, Par le sentir, em 17, e
 Le départ sur la pluie, em 19.
O segundo, amigo de infância de Mário de Andrade, nascido em
 Araraquara, filho da oligarquia cafeeira, graduou-se em letras pela
Universidade de Genebra, em 1919. Na volta à Pauliceia, com notícias
frescas sobre a arte e a literatura europeias, os dois se uniram ao círculo
modernista. Foi Borba de Moraes quem apresentou aos moços paulistas a
revista .’ Esprit Nouveau.
•
Mário de Andrade, em seus artigos para a Ilustração Brasileira, via a
Pauliceia palpitar “num esto incessante de progresso e civilização”. Na
226/375
 vida artística da metrópole emergente, os conservadores a “corvejar
agouros” passavam a se deparar com os “futuristas em fúria”. Em dezem-
 bro de 1920, o poeta anunciava na revista que “os palácios de mármore
dos parnasianos” começavam a ruir “sob o alaúde vertiginoso da mocid-
ade alegre e triunfal”.
227/375
17
MÁSCARAS NO TRIANON
O Trianon, na avenida Paulista, ponto
de encontro da sociedade paulistana, foi
palco de homenagem a Menotti del Picchia,
229/375
em 1921, na qual Oswald de Andrade
discursou a favor da renovação estética.
230/375
No dia 9 de janeiro de 1921, um sortido grupo de engravatados reuniu-se
no salão de festas do badalado restaurante Trianon, no alto da larga e
aprazível avenida Paulista, para um banquete em homenagem a Menotti
del Picchia, que lançava uma edição do poema Máscaras.
Situado na área hoje ocupada pelo masp, em frente ao então parque
 Villon, o Trianon era uma espécie de restaurante-pavilhão, com
 belvedere, prédio de dois andares, salão de chá e de festas. Inaugurado
em 1916, tornara-se um dos centros da vida social paulistana, com seus
 bailes, concertos, aniversários, casamentos e banquetes.
Naquele domingo de verão, ilustres integrantes do mundo cultural e
político foram prestigiar o escritor e redator político do Correio
 Paulistano, homem de amplo arco de amizades — de mandatários do prp
aos moços modernistas.
O jornal anunciava, na edição do dia, a adesão de cerca de oitenta
nomes, entre os quais figuravam os “novos” Oswald de Andrade, Guilher-
me de Almeida e Victor Brecheret, o poeta “passadista” Martins Fontes, o
arquiteto Victor Dubugras, o diretor do Museu Paulista, Affonso de
Taunay, e René Thiollier.
Mário de Andrade, que estava presente, escreveu sobre a festa na
edição de março da Ilustração Brasileira. Impressionou-se com a diver-
sidade dos convidados, um séquito de homens das finanças, jornalistas,
poetas e escritores da velha e da jovem guarda: “Mirras de todas as
crenças, padrões de todos os estilos, focinhos de todos os bairros
 baralhavam-se num hugoano [de Victor Hugo] amor pelas antíteses”.
231/375
Figurões revezaram-se na tribuna até chegar a vez de Oswald de
 Andrade, que faria soar, nas palavras de Mário, “o clarim dos futuristas”
— aquela gente “do domínio da patologia”, como gostavam de escrever
“certos críticos passadistas, num afanoso rancor pelas auroras”.
O tribuno foi logo avisando que não gostaria de confundir sua voz com
o cantochão dos conservadores. Juntava-se à louvação a Menotti, mas
“numa tecla de sonoridade diferente”, em nome “de um grupo de orgul-
hosos cultores da extremada arte de nosso tempo”. Representantes desse
“restrito bando de formalistas negados e negadores” apresentavam-se ali
como “guarda de honra” do homenageado. Vinham sagrá-lo para os
“combates mais vivos” que se anunciavam. Para selar o pertencimento de
Menotti ao clã dos modernos, a máscara de seu rosto, esculpida por
Brecheret, lhe era ofertada.
Disse Oswald:
Examina a máscara que te trazemos em bronze. Ela é a sintética mar-
cação das tuas forças mentais. Produziu-a de ti a mão poderosa e elu-
cidadora de Victor Brecheret que, com Di Cavalcanti, Anita Malfatti e
esse maravilhoso John Graz, ultimamente revelado, afirmou que a
nossa terra contém no seu ignorado cadinho uma das mais fortes, ex-
pressivas e orgulhosas gerações de supremos criadores.95
Não poderia faltar ao discurso a exaltação do dinamismo paulista,
pano de fundo da inquietação dos novos artistas e escritores, que preten-
diam seguir pelos “espantosos caminhos da arte atual”. Num mundo —
dizia o orador futurista — em que o pensamento e a ação se deslocavam,
“num milagre lento e seguro”, da Europa para “os países descobertos pela
súplica das velas europeias”, São Paulo surgia como uma espécie de
Canaã, terra prometida da modernidade. Com suas chaminés e
232/375
Tiago Fagundes
“gargantas confusas”, seus conjuntos de “palácios americanos” e seus
 bairros em veloz expansão, a cidade agitava, num “tumulto egoísta e in-
teligente”, as “profundas revoluções criadoras de imortalidades”.
E, se a capital bandeirante podia promover aquela festa e nela ofertar
uma “obra-prima” de Brecheret ao homenageado, isso significava que
uma etapa do processo de arejamento das mentalidades já estava vencida.
Era preciso, então, dar novos passos: “Daqui para diante!”, bradou
Oswald, pouco antes de encerrar o discurso.
Na avaliação de Mário da SilvaBrito, o que se viu no Trianon foi o
lançamento oficial do movimento modernista em território hostil — um
“ataque de surpresa no campo do adversário distraído”. Ao que parece,
entretanto, a distração do respeitável público foi mais funda — a ponto de
poucos terem notado que as palavras ali proferidas representavam um
“ataque”. Oswald foi aplaudido por passadistas, futuristas e demais
presentes. “Todos estavam muito satisfeitos porque se julgavam incorpor-
ados à ‘meia dúzia’ de que falara o audaz”, ironizou Mário de Andrade.96
•
Talvez tenha contribuído para a distração dos convivas o tom conven-
cional do discursar de Oswald, que entoava suas sentenças à moda antiga.
Segundo Mário, o amigo falava no diapasão do “místico psalmodiar bene-
ditino”.97
Menotti foi diplomático ao agradecer as manifestações. Mas não ne-
gou fogo. Citou poetas modernos e colocou-se ao lado dos “apóstolos do
 verbo novo”.
•
233/375
 Ao opinar sobre o homenageado em seu artigo para a Ilustração
 Brasileira, Mário de Andrade considerou-se suspeito para tecer elogios.
“Somos paroquianos. Quase irmãos. Elogios, notoriedade, glorificações
por ele recebidos recaem um pouco sobre mim”, ponderou. Talvez as crít-
icas também recaíssem — e quem sabe, por isso mesmo, tenha preferido
declarar-se partidário da tese de que o autor de Máscaras manejava “com
maior perfeição a prosa do que o verso”. Em seu juízo, Menotti seria uma
espécie de Euclides da Cunha “menos retumbante e erudito”, o que, ainda
assim, era um elogio e tanto, considerando-se que Os sertões era o grande
livro brasileiro do início do século xx e um dos maiores de todos os
tempos.
Para Oswald, aliás, Euclides e Machado de Assis, no final das contas,
seriam as duas principais matrizes da narrativa moderna brasileira —
como declarou em entrevista publicada pelo  Jornal de Notícias em 1950:
“Coloco um e outro no pórtico de toda a literatura moderna nacional, pois
deles partiram duas linhas mestras de nossas letras: o campo e a cid-
ade”.98
Mário da Silva Brito também entendeu o discurso do Trianon como
um chamamento aos aliados — um “agressivo toque de reunir” lançado
pela vanguarda cultural paulistana. Talvez tenha exagerado no
“agressivo”, mas ressaltou um aspecto importante — o caráter minoritário
e disperso do grupo renovador nos primórdios do modernismo. Tratava-
se ainda, como disse Oswald, de “meia dúzia de artistas moços”, situação
que pedia esforços para identificar novos valores e alistá-los à “causa” —
algo que ele, aliás, fazia muito bem. Fora Oswald, afinal, o “descobridor”
de Mário, o pioneiro defensor de Anita e um dos responsáveis pela rev-
elação do fenômeno Brecheret. E, sintomaticamente, em seu discurso
procurava atrair “esse maravilhoso John Graz, ultimamente revelado”,
234/375
para as hostes modernistas. Ficou famoso, a respeito dessa habilidade de
Oswald, um trecho do poema “A caçada”, de Pauliceia desvairada:
na Cadillac mansa e glauca da ilusão
 Passa o Oswald de Andrade
 Mariscando gênios entre a multidão
235/375
O PROGRAMA DAS REFORMAS
Quinze dias depois do banquete do Trianon, Menotti del Picchia publicou
no Correio Paulistano um resumo da plataforma que parecia unir o grupo
modernista no início de 1921. O artigo, intitulado “Na maré das re-
formas”, começava por lembrar que, em determinadas fases da história,
“o stock de ideias, de doutrinas, de processos técnicos velhos e vistos en-
tra em liquidação”. Nessas circunstâncias, “uma nova série de mercadori-
as espirituais, de criação fresca, é exposta à avidez dos consumidores”.
Era o caso do momento em que viviam. A vida “multiforme e absor-
 vente” do mundo das “fábricas e do bolchevismo”, com o “sangue ainda
quente derramado no holocausto da grande guerra”, exigia da arte “outra
técnica” para ser representada. “Casimiro de Abreu não pôde com seu lir-
ismo romântico, cantar a agitação das greves” — e tampouco poderia fazê-
lo o “cindianizado” José de Alencar. Era tempo de acabar com os mitos
românticos e o predomínio defasado de estilos “achochados”. A musa
poética “que tem mãozinhas para teclados, olheiras de monja, vestidinhos
outonais, lábios assim, gestos assado” já estava revogada “por um decreto
da estética nova”.
O problema, no Brasil, segundo ele, apresentava-se com feições ainda
mais exasperantes, pois aqui pouco se salvaria do passado. A liquidação
literária entre nós teria de assumir “proporções de queima”: “Raramente
236/375
tivemos personalidade. Euclides, Machado, dois ou três cumes da
cordilheira de picos escassos, salvam-se nesse amontoado incolor de pas-
tiches ecianos, camilianos, franceses, sobretudo franceses”.
Se a independência política do país estava por completar um século
em 1922, ainda nos faltava conquistar a “independência mental”, pois
continuávamos a ser “uma colônia das letras”. O artigo chegava ao fim
conclamando os modernistas à ação. Era preciso esfacelar os velhos
moldes literários, reformar a técnica, arejar o pensamento. “Mostremos
que no Brasil não somos uns misoneístas faquirizados, nem um montão
inerte e inútil de cadáveres.”
Em sua vibrante retórica de editorialista político, Menotti elevava o
tom e sintetizava o programa de reformas que Mário e Oswald também
divulgavam em seus artigos. Se as artes plásticas haviam pulado na lider-
ança e provocado os primeiros embates, era tempo de a literatura ap-
resentar suas armas e contribuir para uma reforma mais ampla da cultura
nacional.
O artigo sugeria um movimento que alguns logo apontariam como
uma contradição dos modernistas, mas que exprimia, na realidade, a
complexidade da questão a ser colocada — que coincidia com o próprio
problema da formação da identidade nacional: se por um lado se pedia a
independência da colônia das letras em relação aos velhos padrões da
Europa, adotava-se, por outro, como referência de modernização, uma es-
tética igualmente europeia.
 A melhor resposta para essa equação viria alguns anos depois, em
1928, com o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade — do qual
Menotti, afinal, se afastaria, preferindo se alinhar com o verde-amarel-
ismo que desaguaria em nosso fascismo curupira.
O discurso de Oswald e o artigo do Correio complementaram-se no
que Silva Brito chamou de “Manifesto do Trianon” — o anúncio
237/375
orquestrado de uma proposta de rompimento com a sobrevivência extem-
porânea de formas estéticas do passado e a adoção de um repertório com-
patível com a nova realidade do país e do mundo.
Em 1921, as distâncias entre o Brasil e as “nações civilizadas” já não
eram as mesmas dos tempos do rei. Se o Jeca Tatu parecia nos condenar a
um passado remoto, à margem da história, o ritmo da vida em cidades
como Rio e São Paulo ecoava a experiência urbana moderna dos grandes
centros internacionais.
238/375
MEU POETA FUTURISTA 
Um mês depois de apresentar uma conferência na Villa Kyrial, de Freitas
 Valle, sobre “Debussy e o Impressionismo”, Mário de Andrade, que até
então só se aventurara publicamente na poesia com os versos bem-com-
portados de Mário Sobral, viu seu nome aparecer na imprensa associado
à poética futurista.
No dia 27 de maio de 1921, um artigo de Oswald para o Jornal do
Comércio, intitulado “O meu poeta futurista”, revelava as novas incursões
líricas do autor de Pauliceia desvairada — e publicava um poema inédito,
“Tu”.
Para Oswald, “esse lívido e longo Parsifal bem-educado”, que le-
cionava “com rara honestidade de erudição no nosso Conservatório”, era
autor de “um supremo livro” ainda desconhecido, que reunia “cinquenta
páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina”.
Os versos de Mário eram mais uma evidência de que São Paulo, “a metró-
pole incontida”, que reivindicava uma expressão artística em “compasso
com o senso profundo de sua responsabilidade americana”, fervia “de arte
 boa e nova”.
“Acharam estranho o ritmo, nova a forma, arrojada a frase?”, pergun-
tava o artigo. E respondia: “Graças a Deus!”. “Bendito futurismo paulista,
239/375
que surge companheiro de jornada dos que gastamos nervos e o coração
na luta brutal, na luta americana, bandeirantemente.”
O poema escolhido, dedicado à cidade-musa, atestava o grau avançado
do diálogo que Mário, em suas sistemáticas e aplicadas leituras, mantinha
com o modernismo europeu, sobretudo por intermédio da revista .’ Esprit 
 Nouveau. Anotações feitas à margem de artigos da publicação francesa
não comprovam que os debates acerca do nascente surrealismo na França
deixaram suas marcas na concepção de “Tu” — em versos como “mulher
mais longa/ que os pasmos alucinados/ das torres de São Bento”.
 As repercussões de “Meu poeta futurista” não foram boas para Mário.
“O casto, o bom, o tímido” congregado mariano e mestre do
Conservatório viu-se envolvido em fama inesperada e alvo de críticas e
chacotas. O problema não era só o rótulo “futurista”, já conhecido e asso-
ciado por críticos, como Lobato e Rangel Pestana, a deformações mentais.
Chocavam também a construção inusual e os versos inusitados do poema,
sem métrica, sem rima, sem temas elevados, que escapavam às con-
 venções dominantes. Diante de coisas como “Mulher feita de asfalto e de
lamas de várzea/ toda insulto nos olhos/ toda convites nessa boca louca
de rubores!” ou “Gosto dos teus desejos de crime turco/ e das tuas am-
 bições, retorcidas como roubos!”, alguns pais zelosos preferiram retirar
suas filhas das aulas ministradas pelo erudito professor.
Não apenas por isso, Mário resolveu responder ao amigo e refutar a
pecha de futurista. Embora ele próprio usasse o termo e dois meses antes
tivesse classificado de “clarim dos futuristas” a intervenção de Oswald no
Trianon, preferia não associar sua poesia à escola de Marinetti.
Numa réplica publicada pelo mesmo Jornal do Comércio em 6 de
 junho, o autor de Pauliceia desvairada rechaçou a tentativa do amigo de
enquadrá-lo no futurismo ou na “estrebaria malcheirosa de qualquer
escola”. O texto apresentava argumentos teóricos respeitáveis, mas
240/375
também evidenciava a preocupação de minimizar o impacto negativo cau-
sado pelo artigo. Mário reafirmava aos leitores seu catolicismo praticante,
amainava as supostas ousadias poéticas do livro e declarava que não tinha
“nenhuma intenção” de publicá-lo…
Oswald, numa tréplica, confirmou os elogios aos poemas, que continu-
ou a chamar de futuristas, e disse que Mário, na resposta, exagerava em
seu passadismo. Aproveitou a chance para ampliar a propaganda dos nov-
os, divulgando versos de Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa e
Menotti del Picchia, que correspondiam ao que ele considerava ser o fu-
turismo paulista.
•
 A polêmica no Jornal do Comércio foi a primeira divergência pública
entre os dois. A amizade duraria até finais da década de 1920, quando
Mário decidiu cortar relações, depois de uma série de gracinhas de
Oswald sobre sua sexualidade. Nas páginas da  Revista de Antropofagia,
entre outras “indiretas”, foi chamado pelo colega de “o nosso Miss São
Paulo traduzido no masculino”. Embora o ex-amigo tenha em algumas
ocasiões sugerido uma reconciliação, Mário jamais cedeu.
•
Em julho de 1921, a visita do poeta Paul Fort ao Brasil foi uma nova
oportunidade para Oswald atacar a ideia, que ainda muitos cultivavam no
país, de que boa poesia era sinônimo de soneto, métrica e rima. O francês,
de quem ele tomara conhecimento na viagem à Europa em 1912,
consagrara-se como referência da poesia em versos livres. Na mesma épo-
ca, Oswald e o mineiro Agenor Barbosa pagaram tributo à face
241/375
modernizadora da poesia simbolista, por ocasião da morte de Alfonsus de
Guimarães. O poeta mineiro foi considerado um “lutador da arte nova”,
que iniciara a reação “contra a incultura e o atraso dos nossos principais
poetas”. Mário de Andrade também compartilhava a admiração ao sim-
 bolista de Mariana.
•
Em meados do ano, depois do debate sobre ser ou não ser futurista, da
 visita de Paul Fort e da morte de Alfonsus de Guimarães, Oswald ap-
resentava no Jornal do Comércio uma série de artigos de Mário sobre a
geração de poetas parnasianos, que seria publicada de 2 de agosto a 1o de
setembro. Constava de um texto introdutório, com o título “Glorificação”,
e de cinco pequenos ensaios críticos sobre Raimundo Correia, Francisca
Júlia, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho — este úl-
timo, um dos preferidos do autor em sua juventude, a quem, como vimos,
submeteu seus primeiros sonetos, sem obter resposta. Na série, Mário
demonstrava conhecimento da poética de cada um deles e expunha, de
forma corajosa e sarcástica, as razões que o levavam a considerá-los su-
perados. Das cinco glórias da poesia nacional analisadas, duas, Alberto de
Oliveira e Vicente de Carvalho, estavam vivas naquele momento. Bilac, o
mais consagrado, subira aos céus dois anos antes, em 1919. Dizia o
crítico:
Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo. Venho depor a minha coroa de
gratidões votivas e do entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis
o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais
mortos! E, se infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantas-
mal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites
242/375
foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência
e bizarria todo o calvário do seu dever!
[…]
 Vivos alguns, embora! Despejo sobre vós, ó Mestres do Passado, os
aludes instrumentais do meu réquiem; e acendo junto à cruz dos vos-
sos monumentos, sobre os vossos crânios vazios, a fogueira da con-
sagração contemporânea.
Fostes grandes, guardando a Língua ou cantando a Pátria, embora
fôsseis mesquinhos na macaqueação do almofadismo francês,
monótono e gelado!
 A investida contra os respeitáveis poetas do passado, em parte mo-
tivada pelos ataques e galhofas em torno da publicação do poema “Tu”,
acirrou os ânimos, causou celeuma e consagrou Mário, já autor de
 Pauliceia desvairada, como a nova liderança dos rapazes modernistas
que incendiavam o debate cultural, numa escalada de radicalização.
Como anunciara Oswald em maio de 1920,99 a nova geração subia ao
ringue para enfrentar a “avalanche de obrinhas nacionais e estrangeiras
que entopem o mercado” e lutar pelo triunfo de uma arte que represen-
tasse a independência mental do país no ano do Centenário.100
243/375
18
OS BANDEIRANTES VÃO À PRAIA 
Palacetes erguidos no centro do Rio para a
Exposição do Centenário da Independência,
em 1922. Um ano antes, Mário e Oswald de
 Andrade foram visitar escritores na capital,
entre os quais Manuel Bandeira.
245/375
Em 22 de outubro de 1921, um artigo de Hélios, no Correio Paulistano,
anunciava a partida, em direção ao Rio de Janeiro, do que seria uma
“bandeira futurista”. Formavam a inusitada expedição “o papa do novo
Credo”, Mário de Andrade, que levava na bagagem um “chuço de ouro”
chamado Pauliceia desvairada, e o “bispo” Oswald de Andrade — ambos
escoltados por um “apóstolo”, Armando Pamplona.101 Em seu caracter-
ístico ufanismo paulista, Hélios — ou Menotti del Picchia — fazia em seu
texto um caricato esforço para transformar a visita dos paulistas ao Rio
numa espécie de incursão desbravadora aos sertões primitivos das artes e
da literatura nacional. Na velha corte, os destemidos bandeirantes en-
frentariam “todas as lanças, morriões e guantes” do parnasianismo “ainda
triunfante na terra do defunto sr. Estácio de Sá”.
Hélios advertia:
 A façanha é ousada! Em lugar de onças, das tribos selvagens, das ser-
pentes que se atravessavam no caminho das “entradas”, como o grito
de revolta da terra virgem contra a audácia dos conquistadores, a
 bandeira futurista terá que afrontar os megatérios, os bisontes, as ren-
as da literatura pátria.
Mas nem tudo, felizmente, como reconhecia o próprio cronista mais
adiante, seria combate contra godzillas passadistas: “Os bandeirantes fu-
turistas, estou certo, vão maravilhados descobrir, na formosíssima urbe
máxima do país, acampamentos de novos, de brilhantes espíritos moços e
246/375
renovadores, que já iniciaram sua guerra às múmias, recebendo a falange
dessa terra com abraços fraternaise amigos”.
Hélios exagera na formulação da ideia de que cabia a São Paulo a
primazia de palco e polo difusor da renovação modernista, que precisaria
ser levada a cidades e regiões mais “atrasadas” da nação. Apesar das de-
fasagens temporais da sociedade brasileira, centros como Recife e Rio não
 viviam aprisionados no passado, sem conexões com o mundo moderno,
como sugere a crônica. Se o pioneirismo paulista se impunha de fato em
muitos aspectos, é impossível ignorar que o “papa” e o “bispo” do novo
credo pegaram o trem noturno rumo à formosíssima capital interessados
sobretudo em conhecer um poeta ali radicado, cujos versos se anun-
ciavam modernizantes — o pernambucano Manuel Bandeira. Ele havia
lançado em 1919, no volume Carnaval , ilustrado por Di Cavalcanti, o
famoso poema “Os sapos”. Não representava propriamente uma ruptura
poética, mas era provocativo o bastante para tornar-se o hino antiparnasi-
ano da Semana de Arte Moderna.
Não é demais lembrar que o Rio, no início da década de 1920, con-
tinuava a ser o principal centro urbano do país, não apenas por reunir o
dobro da população de São Paulo, mas pela diversidade de suas ativid-
ades, pela estrutura institucional de capital da República, pelo desenvol-
 vimento do mercado cultural e por suas articulações internacionais.
Havia, além da poesia de Bandeira, outras manifestações moderniz-
antes sugestivas na capital federal naquele momento. Mário e Oswald po-
deriam, por exemplo, ter aproveitado a viagem para conhecer Heitor
 Villa-Lobos, já “descoberto” pelo compositor francês Darius Milhaud,
companheiro de Erik Satie no vanguardista Grupo dos Seis, e por Arthur
Rubinstein, que incluíra peças do brasileiro em seu repertório. Em 1921,
 Villa-Lobos tinha escrito todas as obras que levaria ao Municipal no ano
seguinte — a maioria delas já apresentada a plateias cariocas.
247/375
Em linhas gerais, a cena da música erudita no Brasil mantinha-se
presa ao romantismo, fruto do florescimento promovido pelo Império,
que distribuiu bolsas, impulsionou a formação de compositores e, com
isso, ajudou a consolidar o gosto dominante. O advento da República in-
terrompeu esse processo de patrocínio e contribuiu para que se criasse
uma espécie de gap geracional. Na grande música na época da Semana
prevaleciam nomes maduros, na faixa dos sessenta anos. Entre os mais
novos, de promissores havia, além de Villa-Lobos, Luciano Gallet — mar-
cado por um compositor enigmático e influente102 naquele período,
Glauco Velásquez (1884-1913).
O ambiente musical do Rio não era apenas mais encorpado e “oficial”
que o de São Paulo — também era, em algumas faixas, mais enfronhado
nas novas tendências, em especial as francesas. Milhaud, que morou na
capital brasileira em 1917-18, trabalhando como adido de Paul Claudel na
embaixada da França, foi surpreendido ao descobrir na cidade uma elite
 viajada e bem informada103 que lhe permitia viver num ambiente sinton-
izado com a cultura de seu país. E com a grande vantagem, para um
músico como ele, de encontrar uma rica e interessante música popular
local.
O par formado pelo compositor Oswaldo Guerra e sua mulher, Nin-
inha, representava bem esse meio atualizado, que conhecia as tendências
mais recentes da música francesa — e ao qual Villa-Lobos e Gallet tinham
acesso. A ideia de que coube a Milhaud difundir no Brasil informações
sobre essa nova música deve ser relativizada. Basta dizer que — ao con-
trário — se deveu ao casal Guerra o primeiro contato do compositor com
as obras de Satie. Também não foi Milhaud, como às vezes se pensa, o re-
sponsável por revelar Debussy a Villa-Lobos — que já havia composto,
entre 1914 e 1916, as Danças africanas, influenciadas pelo notável
impressionista.
248/375
Na realidade, em sentido inverso, foi a cultura musical carioca que ad-
quiriu importância na carreira de Milhaud, tornando mais encantadoras
suas experiências de “politonia”. Como se sabe, ele escreveu uma série de
peças marcadas pela experiência no Rio. O título da mais conhecida delas,
 Le boeuf sur le toit , espécie de “colagem” de canções brasileiras, é uma
 versão para o francês de “Boi no telhado”, de José Monteiro, o Zé Boi-
adeiro. Além de ritmos populares como o maxixe, o samba, o cateretê, o
 visitante foi tocado por um tipo mais elaborado de manifestação musical,
cujo principal representante era o pianista Ernesto Nazareth, com seu
“tango brasileiro”. A tudo, entretanto, Milhaud chamava de “folclore
 brasileiro” — e talvez por isso não tenha dado nome aos bois musicais que
aqui capturou.
Fluía na sociedade carioca daquele tempo, com mais desenvoltura do
que em São Paulo, a interação entre pessoas de estratos mais cultos e
artistas do povo. Foi esse, aliás, o cenário da formação de Villa-Lobos,
filho de um instrumentista amador e funcionário da Biblioteca Municipal,
que o levou a estudar violoncelo e admirar Johann Sebastian Bach. Na
década de 1910, o jovem músico costumava escapar para encontros com
chorões e sambistas da noite do Rio, que o chamavam pelo apelido de Vi-
olão Clássico.104 Em 1917, Donga, amigo de Villa, gravara “o primeiro
samba”, “Pelo telefone”, e em 21 fazia sucesso na sala de espera do
cinema Palais, com Os Oito Batutas — o conjunto liderado por Pixin-
guinha que, em 22, passaria seis meses em Paris exibindo-se em festas e
casas noturnas.
Também exemplificam esse tipo de trânsito social as rodas da boemia
 jornalística e literária da cidade, cujo espírito modernista fermentava no
contato com a rua e se beneficiava — da mesma forma que em São Paulo
— da expansão da imprensa. Nos grandes jornais, nas revistas ou nas
pequenas publicações, a crônica, a ilustração e a caricatura absorviam
249/375
influências estilísticas internacionais, e procuravam uma linguagem atual,
sintética e direta para falar com o público.
250/375
DROGAS, SEXO E LITERATURA 
Em 1921, quando Hélios anunciava o embate dos bandeirantes futuristas
com os bisontes do parnasianismo à beira-mar, estourava na capital fed-
eral um tipo de prosa de feições modernas, depois varrida do mapa, à
qual a professora Beatriz Resende chamou de “literatura art déco”.105
Nessa vertente predominava o gosto pelos excessos — nos amores, prefer-
encialmente pecaminosos, no comportamento transgressor ou no con-
sumo de álcool, cigarros e drogas. Entre os representantes dessa ficção
malcomportada, movida a sexo, perversão e cocaína, estavam nomes
como Theo-Filho, Madame Crysanthème (pseudônimo da jornalista
Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos), João de Minas e Ben-
 jamin Costallat.
Costallat, cronista de grande sucesso, que conhecia bem Paris, escre-
 via, naquele 1921, Mademoiselle Cinema, best-seller lançado em 23. O
livro, considerado pornográfico por conservadores, levou a Liga pela Mor-
alidade a mover uma ação para barrar sua venda, quando 25 mil volumes
 já haviam sido comercializados. Após as polêmicas causadas pela inter-
dição, a obra atingiu, em cinco anos, a admirável vendagem de 75 mil ex-
emplares.106
 Mademoiselle Cinema foi defendido por Medeiros e Albuquerque, que
o considerou “realista e de alto valor artístico”. O escritor comparou o
251/375
êxito comercial de Costallat ao do ator Leopoldo Fróes: “Se cada es-
petáculo do ator é uma casa cheia, cada obra do autor é um sucesso de liv-
raria”.107 Essa situação poderia ser explicada pelo fato de ambos mostrar-
em “a vida tal como é, com a mais completa naturalidade de expressões”.
Benjamin Costallat começou a ficar famoso como crítico de espetácu-
los musicais e cronista da vida subterrânea carioca — seguindo, de certa
forma, as pegadas de João do Rio. Contratado pela Gazeta de Notícias em
1919, foi nesse mesmo ano que lançou seu primeiro sucesso em livro,  A
luz vermelha. Em 1920, veio Modernos, ilustrado por Di Cavalcanti; em
21, Mutt, Jeff & Cia; e, em 22, Depois da meia-noite. Em 1923, o escritor
foi trabalhar no Jornal do Brasil com salário milionário para os padrões
da época. Seguindo os passos de Monteiro Lobato, fundou, com um sócio
italiano, aeditora Costallat & Micollis, que tratava o livro como um
produto “ pop”, com capas, ilustrações e preços atraentes.
Em 1921, o Rio já havia produzido também a prosa modernizante de
Lima Barreto, que estreara em 11, com o folhetim O triste fim de Poli-
carpo Quaresma, no Jornal do Comércio. Boêmio, “pardo”, desajustado,
o escritor, em seu litígio com o mandarinato literário carioca, atacava a
linguagem empolada, “coelhonetista”, ornamental, da velha literatura e
antecipava um tipo de escrita que seria depois desenvolvido pelos
modernistas.
Num balanço dos quarenta anos da Semana de Arte Moderna, public-
ado pelo Estado de S. Paulo em 1962, o poeta Murilo Araújo considerou
que os paulistas, até o início dos anos 20, teriam sido vanguarda de fato
nas artes plásticas. Se faziam muito barulho na literatura, parecendo mais
radicais e vibrantes do que os outros, seria porque, segundo Araújo,
comportavam-se “com o exagero natural dos cristãos-novos”.108
252/375
Na realidade, também na pintura o Rio teria mais a apresentar, além
dos nomes que foram à Semana — caso do veterano Artur Timóteo
(1882-1923), que na avaliação de Aracy Amaral seria um verdadeiro fauve
em sua última fase. A pesquisadora supõe que a exclusão se tenha devido
ao quesito “juventude”, o qual teria pesado nas escolhas.
Na opinião do crítico e curador Paulo Herkenhoff, para quem a Sem-
ana de Arte Moderna “virou um ícone preguiçoso”,109 ocorreu um pro-
cesso intencional de esquecimento de manifestações cariocas — ou “não
paulistas” — na construção da história do modernismo, e Mário de
 Andrade teria sido o artífice dessa estratégia. Esse seria o motivo da des-
 valorização de artistas como Belmiro de Almeida, Eliseu Visconti ou Gio-
 vanni Battista Castagneto, colocados à margem da genealogia modernista,
quando deveriam ser considerados introdutores do moderno na pintura
 brasileira.
Nesse terreno minado pelo bairrismo, há exageros de torções de todos
os lados.
Se é certo que nossa “cidade máxima” não estava desconectada das
novas experimentações estéticas, é verdade também que ali não se form-
ara um “grupinho de intelectuais” dinâmico e combativo, organizado em
torno da militância modernista, como em São Paulo. E é fato que duas
das principais cidadelas do conservadorismo cultural pontificavam na
Guanabara — a Academia Brasileira de Letras e a Escola Nacional de
Belas-Artes.
Em 1921, no Rio de Janeiro, todas as atenções estavam voltadas para a
Exposição Internacional que marcaria, no ano seguinte, o Centenário da
Independência. Tratava-se da mais grandiosa iniciativa oficial para
festejar a data e demonstrar ao mundo as virtudes do país. A imponência
do evento levou à polêmica remoção do morro do Castelo, que resultou
em novas expulsões de famílias pobres do centro, depois do que ocorrera
253/375
Tiago Fagundes
nas reformas do prefeito Pereira Passos. Na área criada para a Exposição,
foram erguidos cerca de trinta duvidosos edifícios, entre palácios e pavil-
hões nacionais e estrangeiros. A comemoração ajudava a despertar senti-
mentos nacionalistas e esperanças de que o Rio se tornasse mais cosmo-
polita e também mais brasileiro. Benjamin Costallat foi um dos que vocal-
izaram esse anseio, ao imaginar o surgimento de uma cidade nova, que
deixaria para trás aquela “ignorante e pernóstica que bebe chá às cinco
porque Londres assim o faz e toma ares displicentes porque Paris assim o
ordena”.110
•
 A partir da década de 1980 começaram a se tornar mais frequentes no
meio universitário — inclusive o de São Paulo — questionamentos sobre a
historiografia modernista e a periodização segundo a qual a produção das
décadas anteriores à de 20 estaria condenada, já no nascedouro, à frus-
tração e ao esquecimento. Como escreveu Flora Sussekind em 1988,111
tudo se passa como se só fosse possível entender essas manifestações “en-
quanto pré ou pós alguma coisa” — ou como diluição de estilos preced-
entes ou como “embrião” de modernismos futuros.
Seria ingenuidade ignorar o empenho do grupo de São Paulo em pas-
sar para a história como referência e divisor de águas. Não há dúvida de
que um cânone foi aos poucos se constituindo para deixar à sombra obras
anteriores ou simultâneas ao movimento paulista que também se des-
piam do beletrismo “passadista” ou abandonavam convenções da arte
oficial.
Bem diferente é entender que a intelectualidade de São Paulo teria
patrocinado uma fraude histórica. Não há como passar a borracha no que
aconteceu nos anos subsequentes à Semana, quando Oswald e Mário de
254/375
Tiago Fagundes
 Andrade, por assim dizer, mataram a cobra e mostraram o pau, em obras
da grandeza de Macunaíma e João Miramar, e na formulação de
questões, como as do “Manifesto Antropófago”, de fértil e longo alcance
para o debate cultural brasileiro.
•
Em sua conferência de 1942, Mário de Andrade reconheceu no Rio a
existência de antecedentes modernistas. Citou como exemplo o livro
Carnaval , de Bandeira, que teria sido descoberto pelos paulistas “por um
acaso de livraria”, pois a corte preferia exportar quinquilharias acadêm-
icas, o “sorriso da sociedade, útil de provinciano gostar”. Esse e outros
sinais precursores da cidade não chegavam a caracterizar um projeto de
mudança, um movimento modernista.
Para Mário, era preciso compreender o modernismo, no Brasil, como
“ruptura” — “uma revolta contra o que era a Inteligência nacional”. E para
essa tarefa São Paulo estaria, a seu ver, mais preparada. Se o Rio, por suas
circunstâncias de porto e capital, era uma cidade quase que naturalmente
internacional, a Pauliceia, em razão de “sua atualidade comercial e sua in-
dustrialização”, travava contato direto com “a atualidade do mundo”. Em
sua vontade de afirmação cosmopolita, a capital do café, que saía do casu-
lo provinciano, seria espiritualmente mais avançada. Punha-se mais “ao
par” das novidades, importando-as diretamente da Europa, sem precisar
dos filtros e juízos de gosto da corte. “Socialmente falando”, disse Mário,
“o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebent-
ar na província.”
Esse aspecto de cidade menos desenvolvida, desprovida de institu-
ições artísticas normalizadoras, ajuda a explicar, na opinião do professor
 Antonio Candido, por que o movimento modernista eclodiu em São
255/375
Paulo. A meia dúzia de intelectuais renovadores da Pauliceia, por estarem
mais afastados do campo gravitacional do poder literário e artístico, teri-
am menos a perder, podendo arriscar mais.
Quanto ao aspecto socioeconômico, Oswald também destacou, nos
anos 1950,112 a importância, para o movimento, da industrialização, que
produzia, também no meio cultural paulista, uma mentalidade mais
competitiva:
Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se
processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil,
 veremos que ele foi consequência de nossa mentalidade industrial. São
Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a
economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria com sua an-
siedade do novo, a sua estimulação do progresso, fazia com que a com-
petição invadisse todos os campos de atividade.
•
É preciso considerar, além disso, que nenhum lugar do país experi-
mentou a aceleração do tempo, propelida pela mudança técnica e indus-
trial, de forma tão veloz e concentrada como São Paulo. Se os ventos da
modernidade apanharam o Rio já como cidade grande e influente, a
Pauliceia foi colhida, na virada do século, por um furacão que em três ou
quatro décadas transformou uma vila colonial em centro urbano rico,
dinâmico e cosmopolita. A frenética espiral ascendente da “metrópole do
café” fez-se acompanhar da emergência de uma geração intelectual ambi-
ciosa e de uma classe dirigente que se projetava como promessa de futuro
moderno e glorioso para o país.
256/375
SÃO JOÃO BATISTA, O PAPA E O BISPO
Manuel Bandeira nasceu em Recife, em 1886, onde concluiu o ensino
 básico. Estudou no Colégio Pedro ii, no Rio, e começou a fazer arquitetura
na Escola Politécnicade São Paulo — curso que abandonou, em razão de
problemas de saúde. Tuberculoso, buscou tratamento em diversas cid-
ades e passou um ano — de 1913 a 1914 — no sanatório de Clavadel, na
Suíça, onde fez amizade com o poeta francês Paul Éluard (1895-1952),
que o ajudou a conhecer a literatura de vanguarda da época. Novamente
no Brasil, lançou, em 1917, o simbolista A cinza das horas e, em 19,
Carnaval . Mário de Andrade, em reconhecimento ao pioneiro espírito
moderno do escritor pernambucano, o chamou certa vez de “São João
Batista” da renovação da poesia brasileira.
Em 1921, quando os paulistas foram procurá-lo, Bandeira morava no
 bairro de Santa Teresa. O encontro, entretanto, aconteceu em Co-
pacabana, na casa de Ronald de Carvalho, que tinha a mesma idade de
Mário — ambos sete anos mais novos que Bandeira. Bacharel em direito,
Ronald, durante uma viagem a Portugal, conhecera Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e Luís Montalvor, com quem participou, em 1915,
da renovadora revista Orpheu. Começou a escrever versos de inspiração
parnasiana e simbolista, passando mais tarde a experimentar soluções
identificadas com o modernismo.
257/375
Tiago Fagundes
 Ao ouvir Mário recitando os poemas de Pauliceia desvairada,
Bandeira sentiu-se “arrastado pelo aluvião lírico do Desvario”. Ao recebê-
los, porém, impressos, um ano depois, revelou ao amigo, numa carta de
novembro de 1922, que alguns aspectos o exasperavam, em especial o que
chamou de “desvairismo gongórico” — na linha de “Oh incendiária dos
meus aléns sonoros!” ou “alucinações crucificantes/ de todas as auroras
do meu jardim!”. Para o autor de Carnaval, Pauliceia tinha “muitos ex-
ageros coloridos”, algum “resquício passadista” e excesso de neologismos.
Bandeira considerou os poemas, de modo geral, “belos e estranhos”, e
atribuiu os reparos a idiossincrasias de sua parte — pois estaria ficando
“para trás”. No final, disse ao amigo que Pauliceia era o primeiro livro
“integralmente moderno” a aparecer no Brasil. “Todos os outros foram de
transição.”113
Em resposta, Mário reconheceu os exageros e os justificou à luz das
circunstâncias em que a obra fora concebida e escrita: “Se não te disse
ainda, digo agora a razão por que os conservei. Trata-se de uma época
toda especial de minha vida. Pauliceia é a cristalização de 20 meses de
dúvidas, de sofrimentos, de cóleras. É uma bomba. Arrebentou”.
•
Oswald de Andrade levou ao Rio os originais do romance Os condena-
dos, que seria lançado em 1922. O livro foi apresentado aos colegas da
capital na casa de outro pernambucano, o poeta e diplomata Olegário
Mariano Carneiro da Cunha — onde Mário também leu versos de
 Pauliceia.
Segundo o artigo de Hélios, a bandeira futurista embarcou para o Rio
no dia 20 de outubro de 1921, uma quarta-feira. Na terça 19, a Gazeta de
 Notícias publicava longa reportagem sob o título “O momento literário
258/375
paulista”, na qual Oswald, “um dos espíritos mais fulgurantes da nova
geração”, era entrevistado. Falava ao leitor carioca sobre o cenário
artístico de sua cidade, elogiava Anita Malfatti e Brecheret, procurava ex-
plicar o sentido genérico do termo “futurismo”, usado pelos paulistas,
comentava o modernismo europeu, citava o dadaísmo de Tristan Tzara e
Picabia, e se derramava em elogios à “figura intelectualíssima” de Mário
de Andrade.
259/375
1919
 A VISITA DO  A VISITA DO JOVEM SENJOVEM SENHOR HOR 
261/375261/375
O escritor e diplomata Graça Aranha, emO escritor e diplomata Graça Aranha, em
1922. Colaborador de Paulo Prado, retornou1922. Colaborador de Paulo Prado, retornou
da Europa em 1921, encontrou-se comda Europa em 1921, encontrou-se com
o grupo paulista e foi o grupo paulista e foi peça fundamental napeça fundamental na
organização da Semana de Arte organização da Semana de Arte Moderna.Moderna.
EmEm 19211921, a casa de Mário , a casa de Mário de Andrade na Barra Funda começou a abrirde Andrade na Barra Funda começou a abrir
suas portas para reuniões regulares do grupo modernista, que se encon-suas portas para reuniões regulares do grupo modernista, que se encon-
trava em bares, cafés, livrarias e natrava em bares, cafés, livrarias e na garçonnièregarçonnière de Oswald de Andrade,de Oswald de Andrade,
na praça da República. Com o casamento de Carlos, a mãe de Mário de-na praça da República. Com o casamento de Carlos, a mãe de Mário de-
cidira vender o sobrado do largo Paissandu e comprar três casas na ruacidira vender o sobrado do largo Paissandu e comprar três casas na rua
Lopes Chaves, uma para ela, a irmã e a filha, e as outras para os doisLopes Chaves, uma para ela, a irmã e a filha, e as outras para os dois
rapazes. O poeta preferiu alugar — e depois vender — a dele e continuarrapazes. O poeta preferiu alugar — e depois vender — a dele e continuar
morando com a mãe. Seus cômodos, morando com a mãe. Seus cômodos, na nova casa, foram decorados comna nova casa, foram decorados com
móveis que ele próprio desenhou, inspirando-se em peças estampadas namóveis que ele próprio desenhou, inspirando-se em peças estampadas na
revista alemãrevista alemã Deutsch Kunst und Dekoration Deutsch Kunst und Dekoration..
 As conversas na rua Lopes Chav As conversas na rua Lopes Chaves aconteciam às terças-feiras. Oses aconteciam às terças-feiras. Os
mais assíduos eram Oswald, Guilherme de Almeida, Di mais assíduos eram Oswald, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti, SérgioCavalcanti, Sérgio
Milliet, Anita Malfatti, Rubens Borba de Moraes e um rapaz de vinte anosMilliet, Anita Malfatti, Rubens Borba de Moraes e um rapaz de vinte anos
chamado Luís Aranha, poeta precoce e futuro diplomata, que se aproxim-chamado Luís Aranha, poeta precoce e futuro diplomata, que se aproxim-
ara do grupo. Menotti raramente aparecia, preso aos afazeres do jornal.ara do grupo. Menotti raramente aparecia, preso aos afazeres do jornal.
Na turma, Borba de Moraes era Na turma, Borba de Moraes era um importante divulgador de pub-um importante divulgador de pub-
licações europeias. Trouxera de Genebra uma licações europeias. Trouxera de Genebra uma sortida biblioteca, comsortida biblioteca, com
“tudo” que saía naquela época na “tudo” que saía naquela época na França — poesia, romance, ensaios,França — poesia, romance, ensaios,
peças de teatro e periódicos. De São Paulo, ele continuava a fazer en-peças de teatro e periódicos. De São Paulo, ele continuava a fazer en-
comendas à livraria Nouvelle Revue Française, onde mantinha uma con-comendas à livraria Nouvelle Revue Française, onde mantinha uma con-
ta. Antes mesmo dos “salões” das terças-feiras, Mário, leitor obsessivo,ta. Antes mesmo dos “salões” das terças-feiras, Mário, leitor obsessivo,
habituara-se a tomar emprestados livros do habituara-se a tomar emprestados livros do amigo, a quem ajudava comamigo, a quem ajudava com
indicações de autores brasileiros e portugueses.indicações de autores brasileiros e portugueses.
262/375262/375
O papo na casa da O papo na casa da Barra Funda passava por momentos de conspiraçãoBarra Funda passava por momentos de conspiração
e discussão intelectual, mas pouco tinha de e discussão intelectual, mas pouco tinha de sisudo. Mesmo quando o as-sisudo. Mesmo quando o as-
sunto pedia seriedade, todos se sentiam autorizados a intervir com ironi-sunto pedia seriedade, todos se sentiam autorizados a intervir com ironi-
as e piadas. Uma das diversões era malhar, com exageros críticos jocosos,as e piadas. Uma das diversões era malhar, com exageros críticos jocosos,
os novos poemas e passagens de livros lidos na roda.os novos poemas e passagens de livros lidos na roda.
Foi numa dessas reuniões que Borba de Moraes conheceu Di Caval-Foi numa dessas reuniões que Borba de Moraes conheceu Di Caval-
canti — um jovem “inteligentíssimo e muito engraçado”, sempre às voltascanti — um jovem “inteligentíssimo e muito engraçado”, sempre às voltas
com apertos financeiros. Entre idas e vindas do Rio, hospedava-secom apertos financeiros. Entre idas e vindas do Rio, hospedava-se
naqueles dias numa pensão no largo da naquelesdias numa pensão no largo da Sé, em companhia de uma Sé, em companhia de uma prima,prima,
Maria.Maria.
 Angustiado com a situaçã Angustiado com a situação do artista, que não conseguia gao do artista, que não conseguia ganhar o su-nhar o su-
ficiente para pagar a hospedagem, Moraes reuniu-se com ele e a primaficiente para pagar a hospedagem, Moraes reuniu-se com ele e a prima
morena e dentuça para tentar consertar a situação. A ideia era passar emmorena e dentuça para tentar consertar a situação. A ideia era passar em
revista os desenhos de Di e ajudá-lo a organizar uma exposição. O artistarevista os desenhos de Di e ajudá-lo a organizar uma exposição. O artista
 voltara do Rio com pinturas e uma série de d voltara do Rio com pinturas e uma série de desenhos intituladaesenhos intitulada Fantoches Fantoches
da meia-noiteda meia-noite, que pretendia transformar num álbum de , que pretendia transformar num álbum de luxo, com prefá-luxo, com prefá-
cio do amigo, advogado, poeta e jornalista Ribeiro Couto.cio do amigo, advogado, poeta e jornalista Ribeiro Couto.
Para realizar a mostra, o local mais indicado parecia ser a livraria OPara realizar a mostra, o local mais indicado parecia ser a livraria O
Livro, inaugurada na Quinze de Novembro pLivro, inaugurada na Quinze de Novembro pelo carioca Jacinto Silva, queelo carioca Jacinto Silva, que
tinha trabalhado durante anos na Casa Garnier, na rua tinha trabalhado durante anos na Casa Garnier, na rua do Ouvidor —do Ouvidor —
onde conhecera Machado de Assis e oonde conhecera Machado de Assis e outros nomes da virada do século.utros nomes da virada do século.
O livreiro, amante da cultura, amigo de Di, conhecido por seu tem-O livreiro, amante da cultura, amigo de Di, conhecido por seu tem-
peramento gentil, queria que seu estabelecimento paulista fosse tambémperamento gentil, queria que seu estabelecimento paulista fosse também
um ponto de encontros literários, leituras e exposições — e para isso pos-um ponto de encontros literários, leituras e exposições — e para isso pos-
suía um vasto salão, no fim de um corredor.suía um vasto salão, no fim de um corredor.
Não eram poucos os amigos amealhados por Di na boemia, nasNão eram poucos os amigos amealhados por Di na boemia, nas
redações de jornais, nas rodas iredações de jornais, nas rodas inteligentes e abastadas de São Paulo, denteligentes e abastadas de São Paulo, de
modo que omodo que o vernissagevernissage de sua exposição só poderia ser um sucesso. A de sua exposição só poderia ser um sucesso. A 
mostra foi a primeira que reuniu pinturas a óleo do — até então —mostra foi a primeira que reuniu pinturas a óleo do — até então —
263/375263/375
desenhista e ilustrador. Uma das telas desenhista e ilustrador. Uma das telas inspirava-se na “Balada de Santainspirava-se na “Balada de Santa
Maria Egipcíaca”, poema de Manuel Bandeira que apareceria Maria Egipcíaca”, poema de Manuel Bandeira que apareceria posterior-posterior-
mente no livromente no livro Ritmo dissoluto Ritmo dissoluto..
 A livraria lotou, e a presença de endin A livraria lotou, e a presença de endinheirados alimentou a expect-heirados alimentou a expect-
ativa de um êxito comercial — que poderia retirar do buraco o pintor cari-ativa de um êxito comercial — que poderia retirar do buraco o pintor cari-
oca. Pura ilusão. As vendas não se oca. Pura ilusão. As vendas não se concretizaram.concretizaram.
264/375264/375
 A VOLTA DE GRAÇA  A VOLTA DE GRAÇA 
No diaNo dia 2222 de outubro dede outubro de 19211921 — quando o— quando o Correio PaulistanoCorreio Paulistano publicou opublicou o
artigo de Hélios anunciando a partida da “bandeira futurista” para o Rioartigo de Hélios anunciando a partida da “bandeira futurista” para o Rio
— o transatlântico— o transatlântico Lutetia Lutetia, que fazia a , que fazia a linha Bordeaux-Buenos Aires, at-linha Bordeaux-Buenos Aires, at-
racou no cais da praça Mauá. Trazia a bordo o escritor e diplomata Graçaracou no cais da praça Mauá. Trazia a bordo o escritor e diplomata Graça
 Aranha. Era a qua Aranha. Era a quarta vez que ele retornava da Europa, ondrta vez que ele retornava da Europa, onde havia pas-e havia pas-
sado bons anos em diversos países — como França, Itália, Suíça esado bons anos em diversos países — como França, Itália, Suíça e
Noruega.Noruega.
 Àquela altura, Gra Àquela altura, Graça era um velho amigo da família Pradça era um velho amigo da família Prado, que con-o, que con-
hecia desde sua primeira passagem por Paris, quando, pelas mãos de Joa-hecia desde sua primeira passagem por Paris, quando, pelas mãos de Joa-
quim Nabuco, participou da ceia oferecida por Eduardo Prado, em seuquim Nabuco, participou da ceia oferecida por Eduardo Prado, em seu
apartamento da Rue du Rivoli, para apartamento da Rue du Rivoli, para comemorar a chegada do séculocomemorar a chegada do século xxxx..
Desde então, suas relações com o clã paulista só tinham prosperado. NoDesde então, suas relações com o clã paulista só tinham prosperado. No
início dos anosinício dos anos 19101910, apaixonou-se por uma das irmãs de Paulo Prado,, apaixonou-se por uma das irmãs de Paulo Prado,
Maria Nazareth, com quem passou a Maria Nazareth, com quem passou a manter um longo caso extraconjugalmanter um longo caso extraconjugal
— ele casado com Maria — ele casado com Maria Genoveva, a Iaiá, e ela com Genoveva, a Iaiá, e ela com Oduvaldo PachecoOduvaldo Pacheco
Silva. Depois disso, vieram os negócios.Silva. Depois disso, vieram os negócios.
Graça conhecia muita gente importante. Em suas lides Graça conhecia muita gente importante. Em suas lides diplomáticas ediplomáticas e
literárias fez amizades com personagens do alto escalão intelectual eliterárias fez amizades com personagens do alto escalão intelectual e
político de países político de países europeus, em especial da França. Essa circunstânciaeuropeus, em especial da França. Essa circunstância
permitiu-lhe oferecer intermediação para os interesses econômicos dospermitiu-lhe oferecer intermediação para os interesses econômicos dos
265/375265/375
Prado no período da guerra. EmPrado no período da guerra. Em 19151915, quando apresentou no Municipal, quando apresentou no Municipal
de São Paulo, a convite da Sociedade de Cultura Artística, uma conferên-de São Paulo, a convite da Sociedade de Cultura Artística, uma conferên-
cia sobre a juventude de cia sobre a juventude de Joaquim Nabuco, já trabalhava para o consel-Joaquim Nabuco, já trabalhava para o consel-
heiro Antônio da Silva Prado e seus parentes, em negócios que iam da ex-heiro Antônio da Silva Prado e seus parentes, em negócios que iam da ex-
portação de café à portação de café à venda de carne congelada para mercados europeus.venda de carne congelada para mercados europeus.
 Aposentado em Aposentado em 19141914, com dívidas a , com dívidas a saldar, Graça escreveu a Iaiá,saldar, Graça escreveu a Iaiá,
naquela época, para dizer que já era tempo de abandonar o canto da ci-naquela época, para dizer que já era tempo de abandonar o canto da ci-
garra e dedicar-se à vida de formiga. Suas atividades de “empresário”garra e dedicar-se à vida de formiga. Suas atividades de “empresário”
levaram Lima Barreto a chamá-lo, emlevaram Lima Barreto a chamá-lo, em 19171917, ano do controverso convênio, ano do controverso convênio
firmado com a França para venda de café, de “caixeiro-viajante” dafirmado com a França para venda de café, de “caixeiro-viajante” da
família Prado.família Prado.
Quando voltou ao Brasil, emQuando voltou ao Brasil, em 19211921, o escritor maranhense já tinha acu-, o escritor maranhense já tinha acu-
mulado respeitável experiência como formiga e grande prestígio como ci-mulado respeitável experiência como formiga e grande prestígio como ci-
garra. Era homem público, acadêmico de primeira garra. Era homem público, acadêmico de primeira hora, autor de artigos,hora, autor de artigos,
ensaios, peças de teatro — e sobretudo deensaios, peças de teatro — e sobretudo de CanaãCanaã, romance famoso, em-, romance famoso,em-
 bora não muito lido, lançado em bora não muito lido, lançado em 19021902, visto por alguns como moderniz-, visto por alguns como moderniz-
ante na temática das relações multiétnicas no ante na temática das relações multiétnicas no Brasil. Tudo somado,Brasil. Tudo somado,
tratava-se de um figurão.tratava-se de um figurão.
 As referências ao modo de ser de Graça A As referências ao modo de ser de Graça Aranha costumam ressaltaranha costumam ressaltarr
suas boas maneiras, a sociabilidade fluente, o suas boas maneiras, a sociabilidade fluente, o otimismo generoso, algumaotimismo generoso, alguma
ingenuidade e a conversa empolgante.ingenuidade e a conversa empolgante.114114 Espírito inquieto, ateu, re-Espírito inquieto, ateu, re-
formista desde jovem, tinha prazer em conviver com os mais novos. Éformista desde jovem, tinha prazer em conviver com os mais novos. É
ilustrativa, sobre isso, sua relação com amigos de seu filho Temístocles,ilustrativa, sobre isso, sua relação com amigos de seu filho Temístocles,
quando ele esteve em Paris, emquando ele esteve em Paris, em 19131913 ee 19141914, para tratamento de saúde., para tratamento de saúde.
 Alceu Amoroso Lima e Ronald d Alceu Amoroso Lima e Ronald de Carvalho estavam entre os jovense Carvalho estavam entre os jovens
 brasileiros da turma. Uma vez Graça  brasileiros da turma. Uma vez Graça chamou Temístocles e Alceu parachamou Temístocles e Alceu para
um chá no Hotel Ritz. um chá no Hotel Ritz. Segundo a narrativa da biógrafa Maria HelenaSegundo a narrativa da biógrafa Maria Helena
Castro Azevedo,Castro Azevedo,115115 o escritor fez um sermão contra a indiferença pelaso escritor fez um sermão contra a indiferença pelas
266/375266/375
letras brasileiras e o excessivo francesismo intelectual dos moços. “A 
nossa literatura não se renova, são os mesmos sonetos, os mesmos ro-
mances, os mesmos elogios, as mesmas descomposturas”, disse aos dois,
incentivando-os a investir em novidades: “Façam loucuras”. Uma de suas
sugestões era que criassem no Rio um centro de cultura dedicado à renov-
ação das artes, de modo a colocar o Brasil “em harmonia com a criação
universal”.116
Graça acompanhou de perto a movimentação modernista da Europa e
formou suas convicções a respeito. Encontrou-se com o modernismo por
suas próprias pernas, guiando-se por um mapa que não era o mesmo dos
moços de São Paulo — embora, em alguns aspectos, coincidissem. Em
1921, o escritor estava lançando uma obra do “gênero filosófico”, intitu-
lada A estética da vida, que começara a escrever havia anos. Apresentava
um sistema relativamente complexo — e confuso — de ideias. Em linhas
gerais, o filósofo Graça Aranha considerava que a ciência, por analisar a
realidade, decompondo-a em partes, era incapaz de nos colocar em con-
tato com a “unidade infinita do todo”.117 Só por meio do sentimento — ou
da religião, da estética, do amor — o homem poderia curar-se da dualid-
ade e encontrar o caminho da conciliação com o cosmos. Quanto à arte,
seu fim supremo não estaria em servir a ideais políticos, religiosos ou mo-
rais. Não deveria tampouco guiar-se por cânones de beleza ou condenar-
se a mimetizar a realidade. A tarefa da arte seria servir a si mesma, ou
seja, à sua função de integrar o espírito humano à tal unidade do cosmos.
 Ainda que fossem conceitos discutíveis e criticáveis — e, de fato, ger-
aram ataques e polêmicas —, não há dúvida de que comungavam com a
reivindicação modernista de ampla liberdade para a criação estética.
Graça, como todos, preocupava-se com a questão da identidade cul-
tural brasileira. Entendia que a elite do país voltava as costas para as
raízes que deveriam uni-la à nação. Essa fratura seria a causa do
267/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
artificialismo cultural dominante, que se prestava, na realidade, a ocultar
nossa ausência de cultura.
Essas ideias já haviam sido expostas no Municipal de São Paulo, em
1915, quando o conferencista afirmou que a literatura feita no Brasil ja-
mais conseguiria expressar a alma nacional se não abandonasse a “língua
afetada e postiça” do classicismo lusitano.118
Houve homenagens ao ilustre diplomata no regresso ao Rio. Um
grupo, do qual participava Ronald de Carvalho, organizou um banquete
no Palace Hotel, que atraiu embaixadores, escritores, artistas e políticos.
No discurso de agradecimento, Graça retomou o tema da juventude. Disse
que o Brasil era “a pátria da mocidade” e que se sentia atraído pela “força
irreprimível e promissora” da nova geração. Ronald escreveu artigos
elogiosos na imprensa — e não é improvável que tenham surgido
comentários sobre o homenageado em sua casa, durante o encontro com
os moços da “bandeira futurista”, que estavam na cidade naquele
momento.
 Alguns dias depois da homenagem, Graça, no mês de novembro, via-
 jou para São Paulo. Além de cuidar de suas relações com a família Prado,
queria conhecer a juventude da Pauliceia, os colegas de Ronald e de
Manuel Bandeira, que apareciam nos jornais pregando reformas
estéticas.
Natural que, ao chegar à cidade, fosse procurar a livraria do bom
Jacinto Silva, onde se realizava a mostra de Di. Pretendia, por intermédio
do livreiro, marcar uma conversa com o pintor e seus amigos futuristas.
Desse encontro nasceria a Semana de Arte Moderna.
268/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
O DESPISTE DE MÁRIO
Quem teve a ideia da Semana? Em 1942, na sua citadíssima palestra sobre
o movimento modernista, Mário de Andrade começou a responder a essa
pergunta com uma evasiva: “Por mim não sei quem foi, nunca soube, só
posso garantir que não fui eu”. Logo a seguir, no entanto, ao recordar o
encontro de Graça Aranha com o grupo modernista, o conferencista dizia
que “alguém” teria lançado a ideia dos festivais de literatura, música e
arte. “Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di Cavalcanti?”, indagava. Se no
início da conferência Mário nada sabia sobre a autoria da ideia, na se-
quência já apontava o dedo para os principais suspeitos — o escritor da
 velha guarda, morto em 1931, de cuja Estética da vida “nós ríamos um
 bocado”, e o boêmio pintor do Rio, que àquela altura militava no Partido
Comunista.
Mário deixou a questão no ar. Preferiu ressaltar que o importante
mesmo “era poder realizar essa ideia, além de audaciosa, dispendi-
osíssima”. Sendo assim, o grande responsável pela Semana — seu “fautor
 verdadeiro” — não poderia ter sido outro senão o abonado e bandeir-
antíssimo Paulo Prado, o homem que levantou, com seus amigos da alta
sociedade paulista, os meios para realizar os festivais no Municipal.
É provável que Mário tentasse aparar o excessivo destaque concedido
pela imprensa e pelos próprios modernistas à liderança de Graça Aranha,
269/375
Tiago Fagundes
em 1922. Naquele tempo os paulistas pouco tinham publicado, e não
podiam medir-se em prestígio com o autor de Canaã. Já em 1942, no ano
da conferência, a situação era diferente. O “papa” do modernismo via-se
em condições de rir em público de A estética da vida e contar a seu modo
a história do movimento.
Talvez Mário já não lembrasse que, numa nota na revista Para
Todos…, do Rio, no dia 15 de fevereiro de 1922 tinha citado a “bela ideia
de Graça Aranha”.119 Ou que, numa de suas Crônicas de Malazarte, pub-
licada na revista América Brasileira, também do Rio, em abril de 1924,
apontara sem rodeios Di como o responsável pela ideia original — que se
transformaria na Semana de Arte Moderna pelas mãos de Graça Aranha:
 A ideia pertence a Di Cavalcanti. Chegado do Rio nesse 1921 guerreiro,
comunicara-me o projeto, bem como a Oswaldo, Anita e outros. Pre-
tendíamos abrir um salão de pintura e escultura, com tardes literárias
em que se recitariam versos e conferências. O projeto mal sabia do loc-
al grandioso onde breve se realizaria. Sempre adiado. Inexequível, pela
fraqueza das nossas forças. Graça Aranha chegou do Rio. Quis
conhecer-nos. E imaginou então, sem que soubesse do nosso projeto, a
Semana de Arte Moderna.
No depoimento de 1942 parece ter pesado também o justificado desejo
do conferencistade fixar para a posteridade o papel desempenhado por
Paulo Prado — que morreria um ano depois — na aparição e nos desdo-
 bramentos do movimento modernista.
270/375
Tiago Fagundes
 A HISTÓRIA SEGUNDO DI
Em Viagem da minha vida, Di Cavalcanti apresentou sua reconstituição
da visita de Graça Aranha à exposição de 1921. Na história contada pelo
pintor, o livreiro Jacinto Silva chamou-o misteriosamente a um canto e
anunciou que o “glorioso acadêmico” visitava São Paulo e desejava es-
tabelecer contatos “com a mocidade literária e artística”.
Jacinto mal avisara Di do pedido de Graça, e eis que o próprio despon-
tava no salão — “belo, elegante, perfumado de lavanda”. Feitas as ap-
resentações, o visitante percorreu os quadros e desenhos “com gloriosa
distância”, comentou o aspecto “atormentado” de alguns deles e pôs-se a
“doutrinar sobre a necessidade de um Brasil de homens fortes”.
 Ao encontro proposto por Graça teriam comparecido, segundo Di,
Oswald, Mário, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Todos muito
impressionados com o distinto senhor, que prometeu unir os jovens
paulistas aos do Rio e divulgar o movimento pelo Brasil: “Sua habilidade
de diplomata, seu ‘savoir-faire’ de mundano, sua autoridade de mais
 velho, agiam como uma música sedutora”.
Novas conversas teriam acontecido no apartamento de Graça, no
Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman. Discutiu-se um plano de “confer-
ências, exposições e concertos”, e o autor de A estética da vida sugeriu
que procurassem Paulo Prado para tratar da proposta. De acordo com Di,
271/375
Graça, antes de partir para o Rio, entregou-lhe um cartão de apresentação
para o fazendeiro aristocrático: “E fui eu, do grupo modernista, o
primeiro a conhecer aquela figura nobre e elegante de civilizado paulista,
educado pelo tio Eduardo Prado, por Eça de Queirós, amigo de Claudel,
homem que conheceu Oscar Wilde, dançarinas do tempo de Degas e o
próprio Degas”.
Embora vago em muitas referências, o memorialista não deixou dúvi-
das: “Eu sugeri a Paulo Prado a nossa semana”.
•
Lançado em 1955, Viagem da minha vida reunia memórias escritas
numa época em que o abstracionismo geométrico, consagrado pela i Bien-
al de São Paulo (1951), assumia a vanguarda estética no país e punha em
xeque o “populismo” figurativo de Di Cavalcanti, além de outras manifest-
ações ligadas ao modernismo. Como explica Éder Silveira, autor de um
ensaio sobre as incursões memorialísticas do pintor,120 ele procurava
oferecer ao público, naquele momento, uma profissão de fé na arte que se
tornara “majoritária no Brasil a partir da segunda metade da década de
1920 e que vinha sendo colocada à prova por amplos setores da crítica es-
pecializada no final dos anos 1940 e no início da década de 1950”.
Defendendo-se do avanço do construtivismo — o lançamento da arte
concreta no Brasil ocorreu oficialmente em 1952 —, Di enfatizava seus
compromissos políticos, associados à pintura de temática popular e
nacional. Filiado ao pcb desde 1928, fazia questão de ressaltar as difer-
enças de classe que supostamente o separavam dos colegas paulistas —
também mais “formalistas” do que ele.
 A certa altura do livro, Mário e Oswald são chamados de “meninões
 burgueses”, que não teriam perdoado o autor pelas críticas dirigidas ao
272/375
Tiago Fagundes
Tiago Fagundes
aspecto “demasiadamente mundano” que adquiria a Semana. Na mesma
linha, ao lembrar-se da greve geral de 1917, Di afirma que Oswald, “com
aquele reacionarismo católico que o dominava”, teria pensado em fazer
“incursões armadas pela madrugada para desalojar os grevistas”. Já ele,
mais avançado, teve, naquele mesmo ano de 1917, “a revelação do social-
ismo revolucionário” com o advento da insurreição bolchevique.
Em outra passagem, bastante citada, o tom de bravata esquerdista
salta aos olhos. Ao relatar conversa com Paulo Prado, Di afirma que
manifestou a ele a necessidade de o evento ser daqueles de “meter os es-
tribos na barriga da burguesiazinha paulista”. Quanto a Graça Aranha, é
responsabilizado pelo caráter “festivo” da Semana — “irreconciliável
talvez com o sentido de transformação social que para mim deveria estar
no fundo de nossa revolução artística e literária”. Não obstante, do ponto
de vista afetivo, Di deixou uma visão positiva do diplomata: “Fiz-me seu
amigo e dele recebi admiráveis lições de cordialidade, distinção e in-
teligência. Sua grande ingenuidade de eterno adolescente foi o maior
prêmio que ele me deu. Graça Aranha é para mim sempre como uma
árvore florida diante da janela do meu espírito”.
273/375
Tiago Fagundes
 AS LEMBRANÇAS DO BIBLIÓFILO
O depoimento de Rubens Borba de Moraes endossa os artigos de Mário
de Andrade de 1922 e 1924 ao afirmar que a ideia de organizar um salão
de arte moderna surgiu antes de Graça Aranha desembarcar em São
Paulo. Irritado e frustrado com os maus resultados econômicos de sua in-
dividual na livraria de Jacinto Silva, Di, num papo noturno, teria mani-
festado a ele essa intenção: “Esse negócio de exposiçãozinha individual é
coisa do passado. O que é preciso é fazer uma grande exposição de arte
moderna, um salon des indépendants ou coisa que o valha. Sei lá o quê,
uma coisa que sacuda a indiferença do público”.121
 Animados com os planos mirabolantes que teriam arquitetado na con-
 versa, ambos resolveram convocar Mário e Oswald “para expormos nosso
projeto, isto é, a ideia de Di Cavalcanti”. O pintor já teria falado com Guil-
herme de Almeida e obtido a aprovação de Jacinto Silva para instalar o
salão moderno em sua livraria.
 Aqui é preciso mencionar outro depoimento de Di, posterior às suas
memórias, publicado pelo Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo,
em 17 de fevereiro de 1962, por ocasião dos quarenta anos da Semana. Se-
gundo disse ao jornal, a ideia do salão teria surgido numa conversa com
Guilherme de Almeida na livraria de Jacinto Silva, onde o poeta fizera
uma leitura de seu livro Era uma vez… “Por que, perguntamos a Jacinto,
274/375
não realizar programa mais vasto, com outras exposições, outras confer-
ências e mesmo recitais de música?” Guilherme, na mesma edição do
 Estado, repetiu a história, afirmando que da conversa entre os três, ele,
Di e Jacinto, teria surgido a proposta de um salão: “O germe, talvez, da
Semana”.
Pelas lembranças de Moraes, foi só depois de levantada a hipótese do
salão que apareceu Graça Aranha, “um senhor britanicamente vestido de
flanela cinzenta”, que se mostrava “ao corrente de tudo que se passava em
São Paulo” e desejoso de conversar com os novos.
 Ao encontro com o diplomata teriam ido Mário, Oswald, Sérgio Mil-
liet, Menotti del Picchia e Anita Malfatti — esta, acompanhada de “uma
amiga gorda que escrevia suas coisas”. Poderia haver outros, mas Moraes
não saberia dizer quem.
Como nas demais versões, Graça expôs suas ideias sobre arte, falou da
“necessidade de renovar” a cultura no Brasil, ressaltou a importância da
união com o grupo do Rio e sugeriu que fossem ao encontro de Paulo
Prado. No final, exortou todos à “ação”, palavra que pronunciou como se
estivesse “comandando uma carga de cavalaria”.
Tão logo saiu, Mário, garante Moraes, já teria manifestado o receio de
que o ativo visitante estivesse interessado em “grilar nosso modernismo”.
Dias mais tarde, na mansão de Paulo Prado em Higienópolis, Di teria
exposto a todos “sua ideia de organizarmos uma grande manifestação de
arte moderna”. Com o avançar da conversa, passou-se também a pensar
na música e na arquitetura. Houve quem sugerisse um mês de atividades,
mas “reduzimos o tempo de combate a uma semana”.
Moraes diz que a duração do evento foi sugerida por um personagem
também citado por outros — a francesa Marinette, que vivia com Paulo
Prado. Ela teria lembrado aos presentes o êxito de uma semana de festas
organizada pela cidade de Deauville, na Normandia, espécie de fashion
275/375
week, que lançava moda, promovia exposições e atraía figuras do meio
artístico.
Definido, enfim, o formato do salão, Moraes não tem plena certeza de
quem propôs onome, já quase óbvio, de Semana de Arte Moderna: “Não
me recordo com absoluta precisão, mas parece que foi Paulo Prado quem
sugeriu esse título”.
•
No depoimento de 1962, Di confirmou a sugestão de d. Marinette, mas
afirmou que apenas ele, dos modernistas, estava no encontro: “Conversa
 vai, conversa vem, a senhora de Paulo Prado falou da semana de moda de
Deauville. Foi então que eu falei: por que não se fazer então uma semana
de arte moderna?”.
276/375
RESUMO DA ÓPERA 
Com todas as divergências e diferenças, os diversos relatos sobre a origem
da ideia da Semana (há outros não mencionados aqui) apontam para al-
gumas situações que parecem estabelecidas:
Di Cavalcanti, em conversas com Guilherme de Almeida e Jacinto
Silva, teve a ideia de promover uma espécie de salão modernista, a ser
realizado na própria livraria onde o pintor fazia sua exposição. A sug-
estão, já apresentada ao grupo modernista, coincidiu com as intenções de
Graça Aranha, que, ao retornar da Europa, precipitou os acontecimentos.
O escritor procurou os paulistas, inteirou-se das propostas e expôs suas
ideias. Sugeriu que se fizesse uma aliança com os artistas do Rio e levou
os rapazes a Paulo Prado, que estaria disposto a patrocinar a aventura. As
primeiras reuniões aconteceram no Grande Hotel da Rôtisserie Sports-
man, onde Graça se hospedava, e no palacete do autor de  Paulística. Num
desses encontros — ou talvez no primeiro, apenas com a presença de Di,
na residência de Prado — discutiu-se a hipótese de um evento mais amplo
e estruturado. D. Marinette influiu na definição do formato ao mencionar
a semana elegante de Deauville. Quanto ao Teatro Municipal, a sugestão
teria sido de Paulo Prado, único em condições de conseguir o principal
palco da cidade para um festival de arte moderna.
277/375
Embora as histórias sobre a Semana de maneira geral reconheçam que
Di e Graça estiveram na origem da ideia, muitas vezes parecem fazê-lo
um pouco a contragosto — como Mário em sua conferência. Certamente a
história do movimento contada do ponto de vista de São Paulo ficaria
mais bonita se os dois Andrades tivessem sido os autores da proposta que
acabaria por se transformar no marco da “ruptura” modernista. Houve
quem especulasse que Oswald, em 1920, ao publicar um artigo intitulado
“Arte do Centenário”, já tramava com seus colegas uma manifestação
modernista para 22 — mas isso nem ele mesmo confirmou.
•
Em 1971, às vésperas das comemorações dos cinquenta anos da Sem-
ana, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo reuniu alguns veteranos
modernistas para gravar depoimentos. Estavam presentes, entre outros,
Menotti, Di e Tarsila do Amaral. Na ocasião, Renato Almeida, poeta, mu-
sicólogo e folclorista, que fazia parte do grupo do Rio, foi firme e enfático
ao atribuir a ideia a Di Cavalcanti. “Isso precisa ser fixado”, disse ele,
“porque é um dado histórico.”
•
Se Graça Aranha foi visto por Mário como um potencial aproveitador,
disposto a “grilar” o movimento de São Paulo, os bandeirantes futuristas,
em contrapartida, não perderam a chance de usar em proveito próprio o
prestígio do escritor e os meios que seu amigo Paulo Prado poderia mo-
 bilizar. Nos meses que antecederam a Semana, Graça foi muito elogiado
pelos modernistas. No dia 8 de novembro de 1921, Hélios foi o primeiro a
dar a senha. Em mais um de seus artigos para o Correio Paulistano,
278/375
Tiago Fagundes
saudou a juventude do veterano diplomata, que se mantinha “com vigor
capaz de aderir à formidável reação literária que se pressente”.122 Um mês
depois, Cândido Mota Filho, o Motinha, advogado, crítico, ensaísta, cui-
dava de elogiar A estética da vida no mesmo Correio Paulistano. Em sua
opinião, a concepção artística do autor era “completamente moderna”.
Oswald, entre outras saudações, incensou a “figura extraordinariamente
nova” do mestre e chegou a atribuir à sua ação o ressurgimento de Anita
Malfatti: “Foi preciso, agora, a cultura de Graça Aranha retirar da obscur-
idade a que se voltara a grande artista ofendida”.123 Referia-se, claro, ao
que chamou de “erro brilhante”, cometido por seu amigo Lobato ao tentar
fulminar a arte moderna.
 Ao longo do tempo, Oswald — como todos, aliás — não poupou Graça
de críticas e zombarias, mas não ocultou a importância do escritor, cir-
cunstancial que fosse, para a realização da Semana. Em Um homem sem
 profissão, afirma que o escritor maranhense era “geralmente confuso e
parlapatão, filho duma abominável formação filosofante do século xix”,
mas, ainda assim, um “grande homem nacional”, cujo apoio aos moços da
Pauliceia teria sido um “presente do céu”, pois precisavam de seu endosso
para serem levados a sério.
279/375
Tiago Fagundes
20
ORGANIZANDO A BAGUNÇA 
No recibo do aluguel do Teatro Municipal
de São Paulo consta que 847 mil-réis foram
pagos para o espetáculo Semana de Arte
 Futurista. O evento, segundo a imprensa,
deu prejuízo de 7400 contos de réis.
281/375
Paulo Prado acolheu cordialmente os moços modernistas, impressionou-
os com sua figura de rico inteligente e definiu seu papel na empreitada.
Não entraria em cena como o mecenas extravagante de um salão de in-
consequências. A Semana de Arte Moderna haveria de aparecer aos olhos
de todos como fruto de uma mobilização da sociedade paulista, de sua
elite e de seus artistas.
Quanto a isso, é bom frisar que o “fautor” da Semana tinha convicções
sobre o papel civilizatório das elites, como demonstram diversas inici-
ativas suas e de sua família — entre elas um curioso episódio ocorrido em
1926, ligado à aquisição de uma carta de José de Anchieta, posta à venda
por uma casa londrina.
O documento, endereçado ao capitão-mor Jerônimo Leitão, datado de
15 de novembro de 1579, fora avaliado em duzentas libras esterlinas. O
preço equivalia a irrisórias trinta sacas de café. Ao tomar conhecimento
das condições, Paulo Prado organizou uma lista de doações, em sacas,
para comprar a carta histórica e doá-la ao Museu do Ipiranga.
 A iniciativa foi tratada com ironia pelo escritor e jornalista Mário
Guastini, refinado crítico dos modernistas, num artigo para o Jornal do
Comércio, no qual perguntava por que o milionário fazendeiro não ban-
cava do próprio bolso a aquisição: “Moderno seria o Sr. Paulo Prado se re-
solvesse converter trinta de suas sacas de café em documento histórico,
confiando-o, depois, à zelosa guarda do erudito sr. Taunay”.
Na resposta a Guastini, Paulo Prado explicou a razão de ter proposto a
lista de doações para levantar uma quantia que poderia desembolsar: “Foi
282/375
por altruísmo que proporcionei aos meus colegas argentários, na compra
da carta anchietana, uma preciosa ocasião para fazer figura. Em São
Paulo faltam pretextos para a generosidade dos ricos nessas questões de
inteligência”.124
283/375
MÃOS À OBRA 
Coube a René Thiollier a tarefa de obter do prefeito Firmiano de Morais
Pinto, com quem tinha laços de amizade, o aluguel do Municipal — que
saiu por 847 mil-réis por sete dias. Para se ter uma ideia, em 1919, o Mu-
nicipal, palco mais caro da cidade, cobrou de seus assinantes 15,5 mil-réis
por uma cadeira para a apresentação da bailarina russa Anna Pavlova. A 
renda de uma família operária naquela época girava em torno de 30 a 35
mil-réis por semana. No mesmo teatro, custavam 10 mil-réis as cadeiras
para um concerto do violinista brasileiro Pery Machado, em 1921.125
Cálculos do preço médio da cadeira do Municipal variam de acordo
com a metodologia. Em 1921 estariam entre 12 mil-réis e 20,6 mil-réis.126
De acordo com Menotti del Picchia, as cadeiras para os festivais da Sem-
ana custaram 20 mil-réis no primeiro dia, caíram para 12,5 mil-réis no se-
gundo, e chegaram a 5,3 mil-réis no terceiro. Camarotes e frisas foram
oferecidos às tradicionais famílias por 196 mil-réis na estreia — e pas-
saram a 77 mil-réis no dia seguinte.
Em 31 de dezembro de 1921, a Folha da Noite, fundada no mês de
fevereiro daquele ano, anunciava assinaturas anuais por 25 mil-réis — e
semestrais por 15 mil. Na época da Semana, sessões de cinemaeram
284/375
anunciadas nas páginas dos jornais por valores próximos a 1,5 mil-réis a
cadeira — podendo chegar a oitocentos réis no bairro operário do Brás.
Não se conhecem os motivos que levaram Thiollier a reservar para o
festival modernista a semana que se iniciava na segunda-feira 13 de
fevereiro. Sabe-se que o Carnaval começaria logo depois, no sábado 25, e
que em 1o de março o país estaria de olhos voltados para as eleições pres-
idenciais. Nilo Peçanha, aliás, o candidato derrotado por Arthur Bern-
ardes, quis usar o teatro para sua campanha justo no período em que
ocorreria a Semana. A recusa da Municipalidade foi vista por ele, seus
correligionários e setores da imprensa como uma decisão política — uma
 vez que a “tal semana futurista ou coisa que o valha” só poderia ser um
pretexto. Afora o aluguel do teatro, havia os custos dos artistas, muitos
deles provenientes do Rio. Para arrecadar fundos, o comitê organizador
providenciou uma lista de subscrições, encabeçada por Paulo Prado e por
uma figura que, em pouco tempo, se tornaria amiga, animadora e mecen-
as dos modernistas — d. Olívia Guedes Penteado. Além da lista de sub-
scrições, frisas e ingressos foram postos à venda antecipadamente.
•
Os depoimentos dos participantes da Semana são, não raro, omissos,
 vagos e divergentes sobre os detalhes da elaboração do programa, da
escolha dos artistas e da seleção das obras. Há também dissonâncias e la-
cunas quanto aos aspectos operacionais — quem decidiu o quê, quem
falou com quem, quem era responsável por esta ou por aquela tarefa.
Segundo Rubens Borba de Moraes, após as primeiras reuniões, Mário,
Oswald e Di teriam sido encarregados de estabelecer a programação.
Outros, no entanto, certamente opinaram — e não se pode duvidar que
Paulo Prado e Graça Aranha tenham participado diretamente da
285/375
definição dos nomes, obras e conferências. O fazendeiro mecenas deixou
para a posteridade um papel timbrado do Automóvel Clube de São Paulo
com a programação dos três dias datilografada.
Houve, diga-se, divergências quanto aos participantes. Borba de Mor-
aes, que se viu acamado numa viagem a Araraquara, vítima de tifo,
correspondeu-se com Mário de Andrade na época dos preparativos. Em-
 bora não tenha guardado as cartas, registrou sua insatisfação com a
presença da pianista Guiomar Novaes na lista de artistas — o que só se
 justificaria pela “intenção de atrair público”. A seu ver, a Semana deveria
incluir, “exclusivamente, modernistas e não uma porção de gente sem im-
portância”. Com a famosa solista a executar Debussy no Municipal, a festa
modernista poderia parecer “um sarau literomusical de cidade do interi-
or”. Moraes afirma que então acusou Mário de “fraco”, por ter se deixado
envolver “pelos jeitosos politiqueiros passadistas que procuravam notor-
iedade”.127 De São Paulo, o amigo teria laconicamente concordado com as
críticas, dizendo que nada poderia fazer.
 Assim como Di Cavalcanti, que disse em suas memórias ter contestado
os rumos que as coisas iam tomando, em seu relato o bibliófilo procura
ressaltar sua contrariedade com as concessões feitas ao passadismo —
tarefa facilitada, no caso, pelo fato de ele ter permanecido fora da arena,
na cama, numa fazenda no interior do estado. Terá havido, por certo, dis-
cussões e divergências, mas, no final das contas, o que salta aos olhos é a
conciliação de interesses.
 A entrada dos modernistas pela porta da frente, no ano do Centenário
da Independência, com direito à presença do governador e do grand 
monde paulista, não seria possível sem compromissos. E estes não consis-
tiam simplesmente em abrir mão de escolhas estéticas radicais para facil-
itar o êxito do espetáculo. Na realidade, com uma ou outra exceção, mal
havia escolhas estéticas radicais das quais abrir mão. Naquele momento,
286/375
estava tudo a meio caminho, em nosso modernismo plantation. O velho
tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor. A 
Semana, é certo, irradiou um sentimento de rejeição à arte oficial e ao
“passadismo”, mas o fez por intermédio de obras que, em muitos aspec-
tos, se conectavam à tradição que pretendiam confrontar.
287/375
CONVIDADOS CARIOCAS
O interregno entre a decisão de organizar o evento e sua realização foi re-
lativamente curto — de novembro de 1921 a fevereiro de 1922. Era preciso
correr. Rubens Borba de Moraes conta que participou dos contatos com
 Villa-Lobos e com a turma literária do Rio — Manuel Bandeira, Ribeiro
Couto, Ronald de Carvalho, Renato Almeida e Sérgio Buarque de Holan-
da. Enviado à capital federal, encontrou-se com Graça Aranha no Hotel
dos Estrangeiros e, depois do almoço, foi ao encontro de Ronald de Car-
 valho no Itamaraty, onde o poeta trabalhava na Secretaria de Estado.
Ronald, já informado por Graça sobre o projeto da Semana, teria organiz-
ado uma reunião em sua casa para que fossem expostos os planos.
Nem todos da lista citada apareceram, mas nos dias que se seguiram,
entre encontros em bares da Lapa ou no Restaurante Lamas, no largo do
Machado, os contatos foram se completando.
Moraes diz ter se entendido muito bem com Ribeiro Couto
(1898-1963), que era de Santos e mantinha relações com os paulistas.
Naquele tempo ele vivia no Rio, onde escrevia para a Gazeta de Notícias.
Também tuberculoso, era vizinho de Bandeira, em Santa Teresa, e
acabara de lançar seu primeiro livro, O jardim das confidências. Em
1924, Bandeira escreveu a Mário censurando-o por ter omitido Ribeiro
288/375
Couto num artigo sobre o movimento modernista, publicado pela revista
 América Brasileira, de Emílio de Meneses:128
Quem agitou o meio carioca e nele lançou as ideias modernas foi o
Ribeiro Couto. Prestou o incomparável serviço de converter o Ronald.
Este, em 1920, criticando o Carnaval , meteu as botas em Guillaume
 Apollinaire, e numa conferência pública estigmatizou os modernos,
opondo-lhes a arte equilibrada e sadia do nosso Bilac e do nosso
Raimundo Correia. Foi o Ribeiro Couto que, com aquela vivacidade se-
dutora, captou o Ronald. O Couto vivia falando no Oswald, em Anita,
em Brecheret. Companheiro dele era o Di. Mas este não tinha a irradi-
ação generosa do Couto.129
•
 Após alguns dias, Moraes precisava ainda falar com duas figuras im-
portantíssimas — Manuel Bandeira, que estava doente, sem poder sair de
casa, e Villa-Lobos, que dava sinais de não estar interessado em discutir
sua participação num festival paulista de arte moderna. Mas o encontro
com Lobos aconteceu. Sempre de acordo com o memorialista, os dois se
avistaram pela primeira vez numa noite, na cervejaria Brahma, no andar
térreo do Hotel Avenida, onde o músico tocava violoncelo numa or-
questra.130 No intervalo, o celista cabeludo teria descido do palco,
cumprimentado o visitante paulista e dito que Graça Aranha já havia lhe
contado sobre os planos. Terminada a apresentação, por volta da meia-
noite, os dois saíram, então, para conversar em outro bar. Segundo Mor-
aes, Villa teria se comportado como “prima-dona”, inventando desculpas
para escapar do convite.
289/375
Na noite seguinte, mais uma vez o emissário paulista foi procurar o
músico na cervejaria. Saíram de táxi pela morna noite carioca até que
 Villa batesse à porta de uma cabrocha, perto do largo da Lapa. Ali
 vararam a madrugada bebendo cerveja, tocando violão e cantando. Dias
depois, Moraes voltava à sua cidade, segundo afirma, com a garantia de
que o talentoso cabeludo participaria da Semana.
•
Em depoimento registrado pelo mis-sp, Renato Almeida afirmou que
“não houve critério” na seleção dos nomes para a mostra da Semana. As
escolhas, em muitos casos, teriam sido feitas na base do “você pode ou
não pode?”.
“Ninguém teve tempo de preparar algo novo”, testemunhou, em outra
ocasião, Anita Malfatti.
“Catamos o que havia de moderno”, disse Borba de Moraes.
Pecou-se por “falta de preparação”, declarou Paim Vieira, também ao
mis: “Reuniram-se, resolveram fazer e foram fazendo”.
290/375
21
O LEÃO E A PIANISTA CONTRISTADA 
293/375
GuiomarNovaes, glória paulista do piano,
famosa internacionalmente, protestou
contra a execução de uma peça do
compositor francês Erik Satie na noite
de abertura da Semana.
Um sentimento de desconforto se apoderou da pianista Guiomar Novaes,
na noite da segunda-feira 13 de fevereiro, quando seu colega Ernani
Braga, a título de ilustrar a conferência de abertura da Semana de Arte
Moderna, proferida por Graça Aranha, executou uma peça que não estava
no programa. Tratava-se de .’ Edriophthalma, do compositor francês Erik 
Satie — na qual se ouve uma paródia à Marcha fúnebre, de Chopin.
Novaes, a mais conhecida das atrações do evento, com estreia prevista
para a segunda jornada, na quarta-feira, não gostou da surpresa. A ponto
de ter enviado ao jornal O Estado de S. Paulo uma carta em que dizia o
seguinte:
Em virtude do caráter bastante exclusivista e intolerante que assumiu
a primeira festa de arte moderna, realizada na noite de 13 do corrente,
no Teatro Municipal, em relação às demais escolas de música, das
quais sou intérprete e admiradora, não posso deixar de aqui declarar
meu desacordo com esse modo de pensar.
Senti-me sinceramente contristada com a pública exibição de
peças satíricas alusivas à música de Chopin.
 Admiro e respeito todas as grandes manifestações de arte, inde-
pendente das escolas a que elas se filiem, e é de acordo com esse meu
modo de pensar que, acedendo ao convite que me foi feito, tomarei
parte num dos festivais da semana de Arte Moderna — com toda a
consideração.
294/375
O desejo da pianista de explicitar sua contrariedade e marcar distância
em relação aos modernistas foi provavelmente reforçado por outras
demonstrações do suposto “caráter exclusivista” dos organizadores da
festa. A primeira delas, não esqueçamos, havia aparecido na véspera — o
provocativo artigo de Oswald de Andrade que desancava o medalhão
nacional Carlos Gomes, o glorioso autor do Guarani . Já no dia seguinte
ao ataque, a Gazeta publicava uma espirituosa resposta, assinada por um
certo Mestre Cook. Dizia ele que não ficaria surpreso se os conferencistas
da Semana declarassem que Castro Alves não sabia gramática, Fagundes
 Varela era um bêbado, e Gonçalves Dias “um mulato insigne em quebrar
 versos”.
 Além de Oswald, o próprio Graça Aranha, em sua conferência, ajudou
a alimentar a refrega. Não apenas por ressaltar o traço paródico da arte
moderna — uma “arte que zomba da própria arte” —, mas por ter afirm-
ado, logo a seguir, que, diante da “maravilhosa aurora” do modernismo,
tudo que fora feito antes no Brasil, na música e na pintura, seria
“inexistente”.
Essas passagens do conferencista aliadas à música de Satie e ao direto
desferido por Oswald no “passadismo”, sob medida para atiçar os ânimos
na noite de abertura, serviam para confirmar as piores suspeitas dos con-
servadores. Se Carlos Gomes não valia nada e se a nova escola se divertia
com zombarias a Chopin, era porque, como acusou o jornalista Mário
Pinto Serva ao criticar a exposição de arte, os “futuristas” desprezavam os
gênios do passado, como Dante, Goethe e Shakespeare.
Na dúvida, Guiomar Novaes preferiu expor sua insatisfação e defender
uma hipotética posição de intérprete neutra diante das variadas tendên-
cias musicais.
295/375
 A ESTÉTICA DE GRAÇA ARANHA 
 A sra. Antonieta Borba, tia de Rubens Borba de Moraes, estava naquela
noite no Municipal incumbida pelo sobrinho, acamado na fazenda em
 Araraquara, de tomar notas e enviar-lhe um resumo dos acontecimentos.
De acordo com seus registros, feitos à mão sobre o próprio programa,
Graça inaugurou a primeira noite da Semana com a presença, no palco,
de “todos os novos”. Foi o que também assinalou o Jornal do Comércio
ao noticiar o programa com o conferencista, em cena aberta, “rodeado por
todos os artistas que tomavam parte na Semana de Arte Moderna”. Numa
conta que incluísse artistas plásticos, escritores, palestrantes, bailarina,
instrumentistas, cantores (ficando de fora o “coro feminino oculto” que
atuou na última noite), chegaríamos a cerca de quarenta pessoas.
Mas talvez fossem menos a acompanhar Graça no palco, apenas os
protagonistas — pouco mais de vinte, entre artistas e escritores. De
qualquer forma, pode-se imaginar que Villa-Lobos estivesse em meio aos
“novos”, em torno do conferencista. Teria sido aquela sua primeira apar-
ição num palco da Pauliceia. Em desacordo com a casaca, estaria usando
o famoso chinelo que entrou para o folclore da Semana, por ter gerado es-
peculações sobre uma possível atitude “futurista”. Como o próprio músico
contou, a razão do inusitado calçado estava numa “bruta manifestação de
ácido úrico” que o atacara nos pés antes de viajar para São Paulo.
296/375
Com as luzes acesas, Graça começou a discorrer sobre “A Emoção
Estética na Arte Moderna”. Menotti del Picchia, sem consultar arquivos,
recordando-se dos momentos que teriam se fixado em sua memória, disse
que o conferencista se apresentou sentado — e assim deveriam estar seus
acompanhantes — “numa cadeira no canto esquerdo da cena visto da
plateia”.131 O tom do discurso teria sido “natural e didático”, sem exageros
retóricos. Lida de ponta a ponta, sem interrupções para pausas dramátic-
as, a palestra teria tomado pouco menos de meia hora da audiência.
Depois de citar as “desvairadas interpretações da natureza” que se
 viam no saguão do teatro, o escritor começou por argumentar que a arte
não poderia ser subordinada à ideia do Belo. “Nenhum preconceito”, a
seu ver, seria mais “perturbador à concepção da arte do que a Beleza”,
uma vez que não há como defini-la, a não ser com convenções e conceitos
precários e inexatos.
“Onde repousa o critério infalível do belo?”, perguntou à plateia. Im-
possível dizer. A arte, portanto, deveria ser considerada uma expressão
“independente deste preconceito”. Sua verdadeira função estaria em pro-
porcionar a tal integração da subjetividade ao Todo Universal. A emoção
estética provocada pela obra de arte, ao despertar sentimentos vagos e
sensações misteriosas, conduziria o espírito humano à sua “suprema
alegria” — numa espécie de gozo na unidade do cosmos.
Não é muito difícil tratar com desdém o esquema monista do ideário
de Graça Aranha — e, com isso, ridicularizar sua intervenção no Municip-
al e no próprio modernismo. Prestando-se atenção na conferência, no en-
tanto, outros aspectos poderiam se distinguir — como o individualismo
professado pelo conferencista. Para Graça, o indivíduo, base da estrutura
social, passava nos tempos modernos por um processo de libertação
propiciado por revoluções políticas e científicas, mas em especial pelas
teorias de Darwin:
297/375
O individualismo freme na revolução francesa e mais tarde no ro-
mantismo e na revolução social de 1848, mas a sua liberdade não é
definitiva. Esta só veio quando o darwinismo triunfante desencadeou o
espírito humano das suas pretendidas origens divinas e revelou o
fundo da natureza e as suas tramas inexoráveis.
Nesse contexto, a arte moderna surgia como manifestação de ampla
liberdade do sujeito. Ao rejeitar as regras impostas pelas academias e os
constrangimentos culturais à livre inspiração, a nova estética, segundo
Graça, estimulava “o mais livre e fecundo subjetivismo”.
Em seu depoimento sobre a Semana, René Thiollier mencionou as
críticas do escritor maranhense à Academia, considerada um grande mal
para a renovação estética do Brasil, por suscitar um estilo que constrangia
a livre inspiração. Acadêmico de primeira hora, Graça nesse momento, de
acordo com Thiollier, teria irritado seu colega de imortalidade, Alfredo
Pujol, instalado numa frisa do teatro, “anafado e solene”. Menos discreto
teria sido um senhor que se inquietou na plateia por julgar “indigno
ouvir-se uma coisa assim”. Foi preciso que um amigo o agarrasse pelo
casaco para que permanecesse sentado.
Se os ataques à Academia — da qual sairia ruidosamente em 1924 —
irritaram alguns, o reconhecimento do darwinismo e as ideias individu-
alistas destoavam das visões religiosas — compartilhadas por parte de
nossos modernistas— e também das ideologias coletivistas, que
prosperavam à sombra da Revolução Russa.
•
298/375
Sérgio Milliet, em artigo para a Lumière, publicado em novembro de
1922, comentou:
Graça Aranha, autor de Canaã, livro já traduzido em francês, e de
 Estética da vida, membro da Academia Brasileira, teve a enorme cor-
agem de romper com o passado para se colocar à frente dos jovens. Ele
tem entusiasmo, convicção e influência, mas temo que não com-
preenda bem o verdadeiro intuito dos modernos, que não é a procura
de uma liberdade absoluta, mas sobretudo de novas regras de
construção.
•
 Autor de Luz gloriosa (1913) e Poemas e sonetos, livros de inspiração
parnasiana e simbolista, Ronald de Carvalho presumivelmente leu, para
ilustrar a conferência, versos de Epigramas irônicos e sentimentais, a
obra modernista que estava por lançar. Amigo de Graça e de seu filho, foi
chamado pelo conferencista de “o meu Ronald de Carvalho”.
Já Guilherme de Almeida, sempre elogiado pela destreza poética, mas
considerado um modernista “moderado”, escrevera Nós (1917), A dança
das horas (1919), Messidor (1919) e Livro de horas de Sóror Dolorosa
(1920). Em 1922 publicava Era uma vez…, com ilustrações de John Graz
— talvez a fonte de suas declamações.
Segundo Anita Malfatti, “Guilherme de Almeida leu os versos no
palco; Ronald de Carvalho não subiu, pois não estava com tanta
coragem”.
299/375
MAIS QUE UM LOBO
Encerrada a conferência, com os aplausos de praxe, a iluminação foi re-
duzida para o início do concerto. Uma boa ocasião para “algum bobo”,
como anotou Antonieta Borba, fazer piada. Em voz alta, “com muita falta
de graça”, alguém teria dito, em tom de ironia, sentir-se “maravilhado”
com o que ouvira. Não obtendo reação, no entanto, segundo a
testemunha, o inoportuno “calou-se”.
Silêncio no ambiente, subiram ao palco Alfredo Gomes e Lucília Villa-
Lobos. Ele, violoncelista, era sobrinho do detratado Carlos Gomes; ela, pi-
anista, esposa do compositor carioca. Faziam parte de um grupo de dez
instrumentistas e dois cantores — a maioria do Rio — ensaiado pelo
maestro para as apresentações em São Paulo. No centro das atenções de
um Municipal ansioso por conhecer a música do propalado “gênio” cari-
oca, o duo deu início à Sonata número 2, para violoncelo e piano — de
1916. Pela primeira vez uma plateia paulista ouvia Villa-Lobos.
E reagiu bem à primeira audição. Lucília deixou o palco aplaudida, en-
quanto Alfredo Gomes permaneceu para receber a violinista Paulina
d’Ambrósio e o pianista Frutuoso Vianna, que fariam com ele a ap-
resentação do Trio segundo. Mais uma vez, a plateia acolheu civilizada-
mente o que ouviu — e, a julgar pelos comentários da imprensa, gostou
em especial do segundo movimento, a Berceuse-Barcarola.
300/375
Com o Trio chegou ao fim a primeira parte do festival, que foi reto-
mado depois do intervalo com a palestra de Ronald de Carvalho sobre “A 
Pintura e a Escultura Moderna no Brasil”. De acordo com o  Jornal do
Comércio, o poeta e crítico passou em revista os trabalhos expostos no
hall do teatro, “fazendo ver que nenhum deles obedecia a nenhuma
escola, procurando cada artista ser pessoal”, sem preconceitos e “peias
acadêmicas”. A  Folha da Noite achou a crítica “laudatória”, mas elogiou
os ataques — feitos “com veemência e boa ironia” — ao ensino das artes
no Brasil.
Concluídas as considerações de Ronald, as luzes mais uma vez di-
minuíram para a música de Villa-Lobos. Ernani Braga voltou à cena para
uma sequência de três solos de piano — Valsa mística (1917), Rodante
(1919) e Fiandeira (1921). As duas primeiras eram peças curtas, com
menos de dois minutos. Já a terceira, aproximando-se dos três minutos,
teria sido involuntariamente cortada pelo intérprete.
É que a Fiandeira exigia o uso de um pedal contínuo, sobretudo no fi-
nal, que não convencia Braga. Por isso mesmo, alguns dias antes da es-
treia, numa reunião na casa do maestro Luiz Chiafarelli, o pianista tocou
sem seguir a indicação quanto ao pedal. Villa-Lobos, que estava presente,
teria se erguido, segundo Braga, “de olhos arregalados” e declarado no
meio da sala, em alto e bom som, que aquilo não era dele.
Diante do constrangimento, Chiafarelli pediu um bis, agora com o tão
polêmico pedal. Braga atendeu ao pedido e o autor teria exultado,
abraçando-o satisfeito. Todos pareciam ter aprovado a versão. Menos
Chiafarelli. No relato de Braga, ele o chamou num canto e aconselhou:
“Use o pedal como da primeira vez; o Villa não é pianista, você é quem es-
tá com a razão”.
Quando chegou a hora de apresentar a  Fiandeira no Municipal, o in-
térprete, nervoso, ficou na dúvida. Com pedal ou sem pedal? Como Villa
301/375
queria ou como ele e Chiafarelli achavam melhor? E se o compositor re-
clamasse diante daquele público que já lhe parecia “meio zangado”? Sem
saber o que fazer, Braga saiu tocando “em plena turbação de sentidos”. O
resultado foi que se perdeu no meio da peça e, de repente, sem saber
como, estava na última página. Reduziu a  Fiandeira “à quarta parte”. Não
se sabe qual foi a reação de Villa, mas, a crer na história do pianista, o
auditório gostou daquela peça “tão viva, tão extravagante… e tão
curtinha”.132
 Abreviado seu tempo em cena, Braga deixou o palco para a entrada
dos instrumentistas encarregados do Octeto. Executariam Três danças
africanas: Farrapós (1914), Kankukus (1915) e Kankikis (1916), original-
mente criadas para piano. De acordo com o Jornal do Comércio, o
próprio Villa-Lobos dirigiu o conjunto. As Danças mexeram com a
plateia. Em suas anotações, Antonieta Borba de Moraes entusiasmou-se:
“Interessantíssimas e lindas danças. Paulina d’Ambrósio toca violino ad-
miravelmente; não temos ninguém em São Paulo que lhe aproxime.
Maravilhoso! Gostei muitíssimo!”. E sobre o autor: “Este Villa-Lobos é
um bicho! É mais que um lobo, é um leão!”.
O “leão” carioca foi o artista mais bem representado da Semana, escal-
ado para as três jornadas, com um total de vinte peças — duas sonatas,
dois trios, dois quartetos, um octeto, seis composições para canto e piano,
e sete para piano solo. O número era o mesmo das obras exibidas por An-
ita Malfatti no saguão, mas a pintora tinha a companhia de oitenta trabal-
hos de outros artistas, enquanto ele, único compositor brasileiro do
evento, comparecia com mais que o dobro dos títulos dos demais — ao to-
do cinco autores franceses.
302/375
UM ARTISTA EXCEPCIONAL
Os diários noticiaram a boa acolhida do público à primeira audição de
 Villa-Lobos no Municipal e elogiaram o compositor. O Jornal do Comér-
cio relatou que a Berceuse-Barcarola do Trio segundo “foi coroada por
frenéticos aplausos” e classificou as Danças africanas de “esplêndidas”. O
Correio Paulistano afirmou que o número final produziu “boa impressão”
e mereceu “justas palmas do auditório”. A  Folha da Noite também disse
que a Berceuse-Barcarola foi bem recebida e descreveu as Danças afric-
anas como “curtas e encantadoras”. Não obstante parecessem “forte-
mente características”, essas peças, no entender do jornal, revelavam “um
artista excepcional”. E, na Gazeta, Villa-Lobos foi tratado como um in-
contestável “talento de escol”, apesar do “preconceito de escola”.
Não houve registro de vaias no primeiro festival, embora o folclore em
torno da Semana fosse, com o tempo, produzindo novas versões, como
uma de Ernani Braga, segundo a qual Graça Aranha “foi demolindo, um
após outro, os ídolos antigos”, como Bach, Beethoven e Wagner, até
chegar a Carlos Gomes. Quando, enfim, fuzilou o compositor de Campi-
nas, “foi uma vaia tremenda, formidável, uma cousa do outro mundo, um
 barulho de todos os infernos”.133 Ocorre que em nenhum momento Graça
se referiu a Carlos Gomes — e as publicações e articulistas da época nada
falaram sobre essa vaia, que só aconteceria na quarta-feira. Nas
303/375
lembranças de Menotti del Picchia, “a plateia comportou-se com re-
speitoso desapontamento por ver e ouvir o que não esperava, deixando o
chefe do movimento intrigado com a passividade de seu auditório”.
Quanto aotraço “fortemente característico” das Danças africanas,
mencionado de modo crítico pela Folha da Noite, a expressão diz respeito
ao uso de elementos do folclore musical ou da “música brasileira” por
compositores desejosos de dar uma coloração local a suas obras. A “peça
característica” é uma espécie de correspondente do regionalismo literário
na música. Na ausência de uma elaboração que conseguisse unir de
maneira orgânica o vocabulário musical popular ao erudito europeu, o
resultado parecia uma colcha de retalhos. Como explica o crítico, ensaísta
e músico José Miguel Wisnik, essas obras do início do século eram “es-
pécimes híbridos de relances de ‘música brasileira’ encravados em suítes e
rapsódias”, nas quais trechos sincopados apareciam “espremidos entre
trêmulos e floreios pianísticos totalmente estranhos aos motivos pop-
ulares utilizados”.134
 As manifestações mais críticas da imprensa na cobertura do primeiro
festival da Semana dirigiram-se à exposição de arte e à conferência de
Graça Aranha, considerada decepcionante por não ter defendido a escola
futurista como se imaginava. “Era de esperar que uma arte que pretende
ser nova recebesse do seu paladino ilustre a marca indelével e elucidativa
de algum princípio também novo com que a pretensa escola se apresenta
à conquista de modernos ideais”, publicou  A Gazeta, na terça 14. Para o
 jornal, o mundo subjetivo apontado pelo conferencista como fonte da arte
moderna seria na realidade fonte de qualquer manifestação estética — e,
sendo assim, aquilo que se oferecia como novo parecia “tão velho como a
Sé de Braga”.
304/375
•
No mais, boa parcela das reportagens e artigos queixou-se da longa
duração da noitada, que teria tornado enfadonha parte da audição de
 Villa-Lobos. Apenas a execução de suas peças teria consumido cerca de
uma hora e quinze minutos. A conferência de Graça, praticamente meia
hora. Supondo-se tempo equivalente para a palestra de Ronald, teríamos,
só com os três, aproximadamente duas horas e quinze minutos.
 Acrescentando-se as peças de Satie e Poulenc executadas por Ernani
Braga, os poemas recitados, os aplausos, o sobe e desce do palco e um
imaginável intervalo entre as duas partes, iríamos para mais de duas hor-
as e meia de espetáculo numa noite de segunda-feira — sem contar o ver-
nissage da mostra de arte. “Programa excessivamente longo”, observou o
Correio Paulistano; “parte musical por demais longa”, escreveu a Folha
da Noite. Para o Jornal do Comércio, a comissão organizadora precisaria
atentar, nos futuros programas, “para a extrema duração dos espetáculos,
em virtude da prolixidade do de ontem, que cansou demasiado o público,
impedindo que apreciasse devidamente as diversas e interessantes mani-
festações de arte moderna em nosso país”. Em outras palavras, muitos
acharam a noitada comprida e chata — entre eles, quem sabe, o jovem
pintor Alfredo Volpi, que estava nas galerias.135
305/375
22
 HAPPENING FUTURISTA 
Desenho feito por Menotti del Picchia
reconstitui o momento em que o autor de
 Juca Mulato teria apoiado Mário
de Andrade em meio às vaias que eclodiram
no segundo festival da Semana.
307/375
 Ao anunciar no Correio Paulistano o segundo festival da Semana de Arte
Moderna, Menotti del Picchia, com seu pseudônimo Hélios, considerou
que havia terminado “sem mortos e feridos” a “primeira batalha”, travada
na segunda-feira, entre a “cultíssima e aristocrática plateia de São Paulo”
e o grupo dos “futuristas”. Num artigo que poderia ser chamado, hoje, de
“marqueteiro”, o articulista antecipava para a quarta-feira uma “vitória
garantida”.
O principal motivo da certeza era simples: o time vanguardista levaria
como “mascote” uma “glória universal” — a pianista Guiomar Novaes
(1894-1979), conhecida e elogiada na Europa e nos Estados Unidos. A 
filha de São João da Boa Vista, cidade do interior paulista, era um prodí-
gio. Aos quinze anos fora aceita no Conservatório de Paris por uma banca
da qual fazia parte Claude Debussy. E concluiu os estudos com uma
premiada execução de Balada, do seu admirado Chopin.
Menotti deveria ter conhecimento da carta de Guiomar Novaes, pub-
licada no mesmo dia de seu artigo, na qual se queixava do caráter “exclus-
ivista” da primeira noitada e repudiava a execução da peça paródica de
Satie. Era o que indicava seu texto, ao sublinhar que a “gloriosa artista” se
colocava “visceralmente em desacordo com as irreverências dos futuristas
para com os mestres”, embora isso não a impedisse de “achar altamente
intelectual e galhardo o movimento dos vanguardistas”.
•
308/375
Se a consagrada virtuose era uma boa isca para o público, restava ao
time “escarlate” dos modernistas partir para a ofensiva e retirar a con-
tenda do zero a zero — o decepcionante placar do primeiro confronto, na
avaliação de Hélios.136 E seria justamente ele o responsável pelo pontapé
inicial. Com sua fama de poeta, sua experiência de jornalista político e seu
talento para o agitprop, tinha tudo para esquentar a plateia na abertura
dos trabalhos.
Menotti, no entanto, começou seu discurso na retranca. “Julgam-nos”,
disse ele, “uns cangaceiros da prosa, do verso, da escultura, da pintura, da
coreografia, da música, amotinados na jagunçada do Canudos literário da
Pauliceia desvairada… Que engano! Nada mais ordeiro e pacífico do que
este bando de vanguarda…”
Essa tentativa de afastar temores quanto às intenções rebeldes dos
“futuristas” fez soar, logo de saída, o acorde ambíguo que acompanharia a
primeira parte do pronunciamento. Numa estratégia “morde e assopra”, o
conferencista, falando de pé, parecia ter um olho no gato e outro na fri-
gideira. Aqui, acalmava os conservadores; ali, lançava um brado guerreiro
a seus amigos futuristas, sentados em cadeiras dispostas sobre o palco.
 Amigos futuristas?
“Não somos e nunca fomos futuristas”, assegurou o tribuno, dizendo
abominar o “dogmatismo e a liturgia” de Marinetti. Pouco depois, en-
tretanto, partia em outra direção: o vanguardista italiano era pintado
como um “precursor iluminado, que veneramos como um general”.
Na verdade, tentou explicar Menotti, o que não fazia sentido para os
modernistas brasileiros seria o “futurismo ortodoxo”, pois — como já dis-
sera Graça Aranha na segunda-feira — “ao nosso individualismo estético
repugna a jaula de uma escola”.
Salvaguardadas as diferenças dos “temperamentos” artísticos do
grupo, faltava indicar o denominador comum:
309/375
O que nos agrega não é uma força centrípeta de identidade técnica ou
artística. As diversidades das nossas maneiras as verificareis na com-
plexidade das formas praticadas. O que nos agrupa é a ideia geral de
libertação contra o faquirismo estagnado e contemplativo, que anula a
capacidade criadora dos que ainda esperam ver erguer-se o sol atrás
do Partenon em ruínas.
Irmanavam-se, portanto, os participantes do movimento, no combate
ao atraso, à indigência estética, ao apego a valores e estilos decadentes e
ultrapassados. E o que desejariam no lugar disso?
“Queremos”, anunciou o palestrante, em elétrica recaída futurista,
“luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos,
motores, chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa arte!”
Havia chegado a hora de o “rufo de um automóvel” espantar da poesia “o
último deus homérico, que ficou anacronicamente a dormir e sonhar, na
era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os
seios divinos de Helena”.
Menotti atacava a poética parnasiana e a sedimentação do gosto “clás-
sico”, formado por padrões europeus anacrônicos, desconectado do novo
século e do jovem país que comemorava o centenário de sua Independên-
cia. Naquele início do século xx, São Paulo demonstrava a existência de
um Brasil sintonizado com o mundo das lutas operárias, das chaminés,
dos idealismos, para o qual o canto decorativo dos mitos da Antiguidade
nada mais tinha a dizer:
Basta de se descrever as correrias dos sátiros caprinos atrás das ninfas
levípedes e esguias: a Babilônia paulista está cheia de faunos urbanos

Mais conteúdos dessa disciplina