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REGIMES E ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 2 Profª Devlin Biezus 2 CONVERSA INICIAL O objetivo principal desta aula é discutir como algumas das teorias das Relações Internacionais interpretam o papel das organizações internacionais. O primeiro tema da aula apresenta, de maneira geral, os estudos das Organizações Internacionais – OIs no campo das relações internacionais. O segundo tema tratará da cooperação, trazendo os conceitos de cooperação funcional e técnica. O terceiro tema discute o debate neo-neo, contrastando as visões entre neorrealismo e institucionalismo sobre o papel das OIs. O quarto tema discute a contribuição construtivista para os estudos das OIs. Por fim, o quinto tema apresenta as perspectivas da teoria crítica sobre as instituições internacionais. TEMA 1 – REGIMES E ORGANIZAÇÕES NO CONTEXTO DAS TEORIAS DAS RI O campo de estudos das relações internacionais conta com o desenvolvimento de um debate teórico desde a sua formação. Nas relações internacionais, existem diferentes perspectivas teóricas que buscam explicar a cooperação e o conflito no sistema internacional e o desenvolvimento dos mecanismos de estabilização internacional. (Herz; Hoffmann, 2004). Nesse sentido, as teorias de relações internacionais, algumas com maior ênfase do que as demais, se debruçam sobre o papel das organizações internacionais. Os estudos voltados às organizações internacionais começaram a se desenvolver durante o século XX, ganhado maior proeminência após o final de Segunda Guerra Mundial, devido à criação da ONU. Após a Guerra Fria, o campo também obteve uma maior produtividade, devido aos novos ativismos das organizações (Herz; Hoffmann, 2004). O debate sobre as organizações internacionais está diretamente ligado com as contribuições teóricas das relações internacionais, que estudam o papel, a origem, as dinâmicas e o impacto das OIs sobre os Estados. A história da área das organizações internacionais passou por diferentes modificações e enfoques de estudos, desde a formação do campo. Essas modificações são provenientes tanto das características da agenda internacional ao longo da história, quanto das transformações teóricas e metodológicas dentro das relações internacionais como um todo (Herz; Hoffmann, 2004). Como demonstrado na aula passada, o surgimento das organizações internacionais e seu campo de estudos é fruto de um contexto de otimismo pós- 3 Primeira Guerra Mundial. Esse otimismo fica evidente nas propostas de quatorze pontos de Woodrow Wilson, e se baseava no entendimento de que o direito internacional ou as organizações internacionais seriam responsáveis por evitar uma nova guerra. Esse contexto foi refletido na produção teórica do período, em se tratando do papel das Ligas e das organizações internacionais em evitar guerras (Herz; Hoffmann, 2004). A partir da década de 1930, esse otimismo foi substituído pela literatura realista, que se tornaria a teoria dominante das relações internacionais nas próximas décadas. No final da década de 1930, Edward Carr publica um estudo intitulado “Vinte anos de Crise”. Para Carr, as ideias liberais, exemplificadas pelo discurso de Wilson, se formaram a partir da crença em uma harmonia natural entre Estados, devido aos seus interesses. Há aqui uma confiança exagerada na segurança coletiva e nos princípios morais universais (Solómon, 2016). Carr defendia que a Liga das Nações não era suficiente para evitar uma guerra, argumentando que também deveria se desenvolver uma diplomacia que mantivesse o equilíbrio de poder e as aspirações das potências dentro do status quo (Solómon, 2016). A partir da década de 1950, observa-se uma hegemonia realista dentro dos estudos das teorias de relações internacionais. Para a teoria, o papel das organizações internacionais não estaria entre os principais atores da política internacional. Assim, os estudos nesse período se voltaram para questões diferentes, como estudos estratégicos. Contudo, apesar de os estudos sobre as organizações internacionais não formarem o mainstream das relações internacionais nesse período, o campo continuou desenvolvendo pesquisas (Herz; Hoffmann, 2004). Durante essa década, os trabalhos envolvendo as OIs tinham como ponto de partida os aspectos formais das organizações. Por exemplo: seus mandatos constituintes, os procedimentos de votações e as estruturas de seus comitês (Herz; Hoffmann, 2004). A partir da década de 1970, os estudos das organizações internacionais ganharam um novo fôlego, criticando a visão realista do papel das OIs no sistema internacional. Para o realismo clássico, a atuação das OIs teria um papel secundário no cenário internacional, sendo os Estados os únicos e principais atores. As pesquisas referentes às OIs começaram a evidenciar o papel dessas instituições na formulação de agenda, nos fóruns internacionais e na coordenação de políticas transgovernamentais (Herz; Hoffmann, 2004). Ao longo 4 desse período, o realismo perde seu espaço como teoria dominante entre as pesquisas em RI, e os trabalhos sobre regimes e organizações internacionais começam a ser o principal objeto de pesquisa no campo. Durante a década de 1980, os estudos sobre as organizações internacionais abrangeram seu escopo de pesquisa, indo além dos aspectos institucionais formais. Entre os novos temas de pesquisa, estavam os estudos sobre o processo de formação dos princípios, normas e regras que formam os regimes internacionais, além do impacto desses fatores nas ações dos atores internacionais (Herz; Hoffman, 2004). Um exemplo dessas pesquisas são os Estudos da Escola Inglesa, que trazem o conceito de sociedade internacional, formada a partir do compartilhamento de normas e valores comuns (Herz; Hoffman, 2004). Após a Guerra Fria, presencia-se um aumento dos trabalhos relativos às organizações internacionais. Nesse período, o debate desse campo fica mais amplo, e as organizações passam a ser tratadas como um dos principais atores da política internacional (Herz; Hoffmann, 2004). Nos próximos temas desta aula, vamos desenvolver, de maneira mais aprofundada, o entendimento das principais correntes teóricas das RI, que abrangem o tema das organizações internacionais. TEMA 2 – O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A formação e o desenvolvimento das organizações internacionais são importantes evidências sobre os esforços de cooperação internacional de forma articulada e não-temporária. A cooperação pode ser definida como uma atuação em conjunto de outras pessoas que visa o mesmo fim (Maciel, 2009). Aqui, É necessário ressaltar que a cooperação internacional não é uma medida oposta ao conflito. Nas relações internacionais, conflitos e cooperação ocorrem simultaneamente, não sendo excludentes. Por exemplo, duas nações em conflito podem cooperar para achar um ponto comum e solucionar o problema. A cooperação internacional pode ser conduzida por meio de variadas Organizações Internacionais, com focos distintos. Assim, a cooperação pode ser caracterizada de acordo com seu objetivo. Por exemplo, a cooperação financeira, a cooperação securitária, a cooperação técnica e cooperação funcional. Neste tema, vamos apresentar as cooperações técnicas e funcionais. 5 Na Carta das Nações Unidas, é reconhecido que a cooperação técnica internacional é uma importante ferramenta para promover o desenvolvimento social e econômico. A cooperação técnica ganha espaço no cenário internacional a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Nesse período, essas atividades se resumiam aos esforços de reconstrução na Europa pós-Guerra, tomando assim a forma de investimentos de recursos entre Estados (Maciel, 2009). Após a década de 1950, o entendimento dessa cooperação foi ampliado, se tornandouma ferramenta mais disseminada entre os Estados. Contudo, essa ação ainda era pautada, na maioria dos casos, pela transferência de recursos dos países mais ricos para os países mais pobres, com o intuito de atenuar os problemas relacionados ao subdesenvolvimento (Maciel, 2009). Apenas no final da década de 1950 as Nações Unidas reconheceram a necessidade de ampliar a cooperação técnica para além da assistência financeira internacional. Assim, o conceito passa a ser compreendido como uma relação de trocas entre Estados, sejam eles iguais ou desiguais no âmbito do desenvolvimento (Maciel, 2009). Em paralelo com a cooperação técnica, a cooperação funcional, como abordada anteriormente, também está associada com a criação das organizações internacionais. Uma importante corrente teórica, intimamente relacionada com a criação do sistema de agências funcionais das Nações Unidas, é o funcionalismo (Herz; Hoffmann, 2004). O funcionalismo, tendo como principal representante o autor David Mitrany, defende uma conexão entre a cooperação funcional e a segurança internacional. Para Mitrany, os atores internacionais criariam hábitos de cooperação em áreas mais técnicas, como nas esferas social e econômica. Os hábitos de cooperação funcional seriam responsáveis por construírem valores e instituições comuns entre os atores. Como consequência, Mitrany argumenta que essa cooperação naturalmente transbordaria para a arena política (Herz; Hoffmann, 2004). Nesse sentido, o funcionalismo entende que a cooperação em áreas técnicas resultaria em uma interdependência crescente entre os Estados. Para a teoria funcionalista, a cooperação seria a chave para enfrentar problemas relacionados a conflitos violentos e suas origens (Herz; Hoffmann, 2004). Sua contribuição normativa está na tese de que um processo de aprendizado coletivo entre Estados, e administrado pela cooperação técnica, seria fundamental para a criação de um sistema de paz (Herz; Hoffmann, 2004). 6 A visão funcionalista proposta por Mitrany recebeu importantes críticas. Entre elas, está o argumento da necessidade do autor de politizar o debate sobre a cooperação funcional. Isso porque a separação entre política e cooperação funcional não seria coerente com a realidade. Segundo Herz e Hoffmann (2004, p. 52), “a história dos processos de cooperação funcional indica que a opção pela cooperação, distância ou conflito muitas vezes emerge de objetivos políticos mais amplos”. Nesse sentido, a cooperação em áreas técnicas não necessariamente transbordaria para a área política, pois decisões políticas são complexas, e nem sempre racionais. Apesar dessas pertinentes críticas, a teoria funcionalista contribuiu para avançar perspectivas capazes de compreender a atual realidade das organizações internacionais. Por exemplo, o funcionalismo foi responsável por apresentar a ideia de que os especialistas que trabalham nas OIs são uma autoridade à parte de seu Estado-nação. Ou seja, esses funcionários teriam uma identidade profissional que ultrapassaria a responsabilidade com seu Estado nacional (Herz; Hoffmann, 2004). A cooperação internacional pode ser compreendida de diferentes formas perante as teorias das relações internacionais. Nesse sentido, existem explicações variadas para o questionamento sobre “Por que os Estados cooperam?”. Entre essas respostas, também existem diversas perspectivas normativas sobre a cooperação, que atribuem algum juízo de valor sobre o tema. Por exemplo, para Keohane, a cooperação internacional é algo bom, porque ela cria um potencial para o desenvolvimento de ganhos mútuos entre os Estados (Herbert, 1996). Para compreender com mais profundidade essas diferenças teóricas, vamos abordar as perspectivas realistas, liberais, construtivistas e críticas. TEMA 3 – O DEBATE ENTRE REALISTAS E INSTITUCIONALISTAS No período pós-Guerra Fria, presenciou-se um maior ativismo das organizações internacionais. A disputa bipolar e a possiblidade de uma eminente guerra nuclear criavam uma certa racionalidade acerca da agenda política internacional, voltada para as temáticas de segurança e defesa. O fim dessa ameaça permitiu uma ampliação da agenda internacional, que passou a tratar 7 de temas ambientais e sociais. Por exemplo, em 1992, o Brasil foi palco da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (Eco-92). Essa conferência foi uma cúpula dos chefes de Estados para discutir possíveis práticas de desenvolvimento sustentável. Como consequência, os estudos sobre as Organizações Internacionais também ficaram mais ativos nesse período. O principal debate que marca, não apenas os estudos sobre as OIs no pós-Guerra Fria, mas também o estudo das relações internacionais como um todo, é o debate neo-neo. A contribuições teóricas para o debate entre neorrealistas e institucionalistas, ou neoliberais institucionalistas, foram realizadas principalmente com os estudos de Waltz, Keohane e Nye. A teoria neorrealista de Waltz foi responsável por transformar o realismo clássico em uma teoria de fato. Isso porque o realismo clássico é compreendido pela sua crítica mais como uma ideologia do que uma teoria. De acordo com o entendimento sobre a cientificidade de Karl Popper, uma teoria deve ser falseável. Assim, os estudos de Waltz saíram do campo prescritivo do realismo clássico e se aprofundaram no desenvolvimento de uma teoria científica que explicaria a recorrência da guerra (Solomón, 2016). Nesse sentido, as contribuições neorrealistas serviram como aportes teóricos que têm na segurança seu principal campo de estudos (Lacerda, 2014). Já o institucionalismo conta com a integração regional, a integração econômica e a interdependência dos mercados entre Estados como principais temas de estudo (Lacerda, 2014). Keohane (1993) defende a tese de que o neorrealismo entraria em declínio no pós-Guerra Fria, devido ao maior ativismo das instituições internacionais. Dessa forma, o crescimento da teoria institucionalista estaria atrelado à interdependência econômica, resultado das mudanças tecnológicas e do comércio. Por isso, Keohane argumenta que as organizações internacionais se tornariam mais complexas. Em um contexto de aprimoramento das teorias realistas e de crescimento das teorias institucionalistas, o embate paradigmático entre os dois campos é resultado de diferentes percepções sobre a possível capacidade das instituições internacionais de modificar as relações entre Estados (Herz; Hoffmann, 2004). Para os autores neorrealistas, as instituições não seriam capazes de modificar os principais aspectos do sistema internacional, tampouco não seriam atores relevantes. Por exemplo, John Mersheimer busca demonstrar em seus 8 estudos indicações de que não haveria evidências empíricas que comprovassem a eficácia das instituições como modificadoras do comportamento dos Estados no âmbito de segurança (Herz; Hoffmann, 2004). Para o neorrealismo, a insegurança do sistema internacional dificulta a cooperação. Isso porque a lógica do sistema internacional favoreceria os ganhos relativos entre os Estados. Os ganhos relativos indicam que a capacidade dos Estados no sistema internacional seria medida de acordo com a posição de poder que um Estado ocupa com relação a outros Estados. Para exemplificar, é possível pensar em um cenário hipotético entre dois Estados. O Estado X, com o intuito de aumentar seu poder militar, consegue aumentar o arsenal de mísseis, com dez mísseis adicionais. Como resposta, o Estado vizinho consegue ampliar seu arsenal com vinte mísseis adicionais. Ao comparar os ganhos do Estado X com seu vizinho, esse Estado está em desvantagem. Nesse sentido, os ganhos de um Estado podem significar perda para demais Estados (Gannoum, 2010). Em contrapartida aos neorrealistas, a teoria institucionalista neoliberalargumenta que as instituições são capazes de mudar o comportamento dos Estados. Para o institucionalismo, o poder e a maneira como a informação circula são duas importantes variáveis de análise (Herz; Hoffmann, 2004). Em relação ao poder, o institucionalismo compreende que a cooperação seria desejada devido aos ganhos absolutos. A premissa norteadora desse argumento é que os Estados teriam interesse em cooperar para melhorar sua posição no sistema internacional, sem considerar os ganhos relativos dos demais Estados (Herz; Hoffmann, 2004). Em relação à variável da circulação da informação, a premissa teórica é de que as instituições diminuiriam o grau de incerteza do sistema internacional, por meio da transparência. A maior transparência proveniente das interações entre Estados dentro das OIs aumentaria a disposição dos atores em cooperar, porque diminuiria o risco da trapaça. Assim, Keohane defende que a circulação de informações seria responsável por transformar o sistema internacional. Ainda segundo Keohane (1993), as instituições internacionais existem porque facilitam a cooperação autointeressada. Esse entendimento tem como base a teoria da escolha racional, uma importante corrente teórica das ciências sociais e da ciência política. Uma das ferramentas teóricas utilizadas para explicar por que a cooperação é possível, mesmo em casos de autointeresse, é a teoria dos jogos. No modelo da teoria dos jogos, “os atores são racionais e 9 egoístas e não há um terceiro ator que garanta o cumprimento dos acordos. A presença de instituições eu favorecem a reciprocidade e a confiança mútua é fundamental” (Herz; Hoffmann, 2004, p. 47). Assim como a teoria neorrealista, os institucionalistas têm a racionalidade como fundamento de seus argumentos. Nesse sentido, o institucionalismo se afasta dos ideais utópicos do liberalismo clássico para justificar o motivo de os Estados cooperarem. Apesar das teorias neorrealistas e institucionalistas divergirem sobre a razão pela qual os Estados cooperam, ambas partem de uma perspectiva racionalista de relações internacionais. Em contraposição a isso, surgiram pensadores que viam a necessidade de deixar de lado argumentos racionalistas, para compreender o papel das ideias na tomada de decisão política (Lacerda, 2014). No próximo tema, vamos desenvolver esse tópico, apresentando a contribuição da teoria construtivista para os estudos das organizações internacionais. TEMA 4 – O CONSTRUTIVISMO E A INSERÇÃO DOS ATORES SOCIAIS O construtivismo tem em Alexander Wendt um de seus percursores. Em sua obra A Anarquia é o que os Estados fazem dela’ o autor critica o debate neo- neo, por ele estar enraizado no conceito da racionalidade. Para Wendt, o problema da escolha racional está no entendimento de que identidades, ideias e interesses dos atores são determinados externamente (Lacerda, 2014). Desse modo, os trabalhos representados pela corrente construtivista enfatizam que as identidades e os interesses são fatores socialmente construídos (Herz; Hoffmann, 2004). O objetivo do construtivismo é “compreender e explicar a construção social dos atores e das estruturas sociais” (Herz; Hoffmann, 2004, p. 66). Isso significa que o foco dessa teoria está na compreensão dos processos que originam as instituições, os regimes, as regras, e que também regulam a vida social e as relações internacionais (Solómon, 2016). Ao trazer à tona a perspectiva de que os interesses, as instituições e a própria racionalidade são formados por ideias, o construtivismo busca problematizar a naturalização desses fenômenos. Nesse sentido, o construtivismo indica que fatores naturalizados e tidos como imutáveis seriam socialmente construídos; portanto, também poderiam ser descontruídos ou modificados (Solómon, 2016). 10 Diferentemente do entendimento racionalista, a estrutura do sistema internacional não seria o principal definidor do comportamento e da capacidade dos Estados. Para o construtivismo, estrutura e atores se constituem mutualmente. Por exemplo, o neorrealismo entende que o único resultado da estrutura internacional anárquica é a autoajuda. Wendt irá argumentar que a autoajuda seria apenas uma das possibilidades de resultado, pois existiriam outras consequências possíveis em relação à anarquia internacional. Nesse sentido, a autoajuda ou a cooperação não surgem diretamente da anarquia, mas sim dos processos de interação mútua entre os Estados (Sólomon, 2016). No âmbito das instituições internacionais, autores construtivistas consideram que elas teriam um papel fundamental, capaz de modificar os interesses e identidades dos Estados e demais atores (Herz; Hoffmann, 2004). Isso significa que a política externa ou doméstica de um Estado pode ser influenciada por uma norma produzida e propagada dentro uma organização internacional. Para explicar como esse processo ocorre, os modelos de difusão de normas internacionais são uma ferramenta de análise que busca evidenciar os pressupostos construtivistas. Os modelos de difusão de normas internacionais foram elaborados pelas autoras Martha Finnemore e Kathryn Sikkink (1998). O objetivo do modelo é explicar como as ideais e normas são internalizadas e difundidas no âmbito internacional. Como norma, é possível a definir como um “padrão de comportamento apropriado para atores com uma determinada identidade” (Finnemore; Sikkink, 1998). Para demonstrar como as normas são difundidas internacionalmente, Finnemore e Sikkink apresentam o ciclo de vida das normas, que é formado por três estágios: • O primeiro estágio é a emergência da norma. Essa fase é determinada pela ação de um grupo da sociedade civil organizada, que se articula de forma transnacional para promover uma norma, ou um conjunto de normas (Solómon, 2016). O intuído é fazer com que essa norma, ou ideia, seja adotada internacionalmente. Para que isso aconteça, essa ação pode produzir um efeito cascata, que marca o início do segundo estágio do ciclo; 11 • O segundo estágio é a difusão da norma. Ele é caracterizado pelo número crescente de Estados que passariam a adotar essa norma e a respaldá-la.; • O terceiro estágio é formado pela internalização da norma. Nessa fase, a norma já teria se tornado costumeira, sendo cumprida de forma automática pelos Estados (Solómon, 2016). A partir dessa ferramenta teórica, é possível perceber como o construtivismo entende não apenas o papel das instituições internacionais, mas também dos atores sociais, como um importante componente para a emergência de novas normas internacionais. A teoria construtivista pode ser considerada uma ponte entre as teorias racionalistas, como o neorrealismo e o institucionalismo, e as teorias pós-positivistas. No próximo tema, vamos estudar as contribuições da teoria crítica acerca das organizações internacionais. TEMA 5 – A TEORIA CRÍTICA SOBRE AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Assim como o construtivismo, a teoria crítica não se limita ao campo de estudos das relações sociais, apresentando tradição nas ciências sociais. Os autores precursores da teoria crítica estão associados com a Escola de Frankfurt, como Horkheimer, Adorno, Habermas e Marcuse (Herz; Hoffmann, 2004). Esses autores se preocuparam em desenvolver uma crítica à epistemologia positivista, atrelada às teorias tradicionais das ciências humanas. Assim, a teoria crítica representa um rompimento com as teorias positivistas. As teorias positivistas se baseiam no pressuposto de que a neutralidade deve estar presente na produção de conhecimento científico, e de que deve haver um afastamento entre o pesquisador e seu objeto de estudo (Silva, 2005). A teoria crítica argumenta que as ciências sociais são diferentes das ciências naturais, porque ao estudar fenômenos da sociedade o próprio pesquisador está inserido nesse contexto.Portanto, não haveria como se dissociar do seu objeto de pesquisa, da mesma forma que um biólogo é capaz de se desassociar de um objeto de estudo que só pode ser observado pelo microscópio, por exemplo (Silva, 2005). Robert Cox aprofunda esse argumento no campo das relações internacionais. Para Cox, a teoria não seria capaz de se dissociar de um contexto histórico concreto no qual ela foi produzia (citado por Silva, 2005). Nesse sentido, 12 os estudos de Cox trazem problematizações acerca do desenvolvimento das teorias tradicionais. Para o autor, uma teoria sempre serviria a algum interesse e sempre teria um propósito (Silva, 2005). Por isso, seria necessário conhecer o contexto em que a teoria é formulada. Além de compreender o contexto histórico e social da formulação teórica, Cox argumenta que também é necessário conhecer o objetivo do pesquisador ao utilizar a teoria. Cox apresenta duas possibilidades que podem se desdobrar desse objetivo: as teorias de resolução de problemas e a teoria crítica. As teorias voltadas para a resolução de problemas apontam para a “correção de disfunções ou problemas específicos que emergem dentro da ordem existente” (Silva, 2005, p. 262). Isso significa que essas teorias analisam os problemas que surgem do contexto social por um viés que não problematiza as relações de poder e de política, também presentes nesse cenário. Por sua vez, a teoria crítica tem o questionamento de ordem política como um elemento central de sua análise. O objetivo de tais questionamentos seria a tentativa de compreender como essas ordens políticas e relações de poderes surgiram, e identificar se elas podem estar em um processo de transformação (Silva, 2005). Ao analisar o papel das instituições internacionais, a teoria crítica terá os entendimentos descritos no centro de seus estudos. Assim, a bibliografia referente à teoria crítica não se preocupa com as consequências da anarquia internacional para o sistema de Estados. A teoria crítica buscaria entender a ordem política e o contexto histórico-social que proporcionaram o surgimento das instituições, por exemplo. Com influência dos estudos marxistas de Antonio Gramsci, Robert Cox analisa as instituições internacionais como forma de proporcionar estabilidade e perpetuação à determinada ordem política. Para perpetuar uma ordem política, as instituições funcionam como um reflexo das relações de poder, legitimando- as (Pereira, 2011). Assim, Cox define que as instituições seriam uma combinação de ideias particulares e de poder material, que influenciam de maneira recíproca o desenvolvimento de ideias e de capacidade material (Cox; Schechter, 2002; Pereira, 2011). Para Cox, o contexto histórico de queda do império britânico e de dominação crescente dos Estados Unidos seria crucial para entender o desenvolvimento das OIs. O estabelecimento do domínio estadunidense no sistema internacional estaria diretamente relacionado com a estruturação de 13 uma ordem econômica internacional, com regras que contribuem para a manutenção dessa ordem (Pereira, 2011). Esse argumento é evidenciado pela criação das instituições financeiras do pós-Segunda Guerra Mundial, como as instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Assim, nas análises de Cox, e da literatura crítica no geral, a discussão do papel das elites globalizantes na formação da ordem política e econômica global, tem um papel central nos estudos das instituições (Herz; Hoffmann, 2004). Os trabalhos de Cox trazem também o conceito de hegemonia. Para o autor, a hegemonia é formada e conquistada por meio da coerção e do consenso. Uma forma de construir um consenso a favor da potência hegemônica seria por meio de instituições internacionais governamentais e da sociedade civil (Herz; Hoffmann, 2004). Segundo Mônica Herz e Andrea Hoffmann (2004, p. 59), “Cox se refere à forma consensual que o poder adquire na constituição de uma ordem mundial, podendo assim ser aceita pelas partes dominadas.” Assim, um ator exerce sua hegemonia quando seus interesses transcendem sua esfera particular, passando a ser aceitos por outros agentes. As já citadas instituições FMI, Banco Mundial e OMC, antigo GATT, são exemplo de como os interesses das elites internacionais incidem diretamente nas relações entre os Estados do norte e do sul global (Herz; Hoffmann, 2004). Em suma, os interesses e as ideias dominantes dos Estados do norte global são apresentados como universais. As organizações internacionais são responsáveis por reproduzir e legitimar esses interesses, sendo portanto um instrumento que permite a continuidade dessa dominação hegemônica (Herz; Hoffmann, 2004; Murphy, 1994). NA PRÁTICA O liberalismo é uma importante corrente teórica que busca explicar o funcionamento das organizações internacionais. Pesquise o discurso dos “14 pontos de Wilson” e relacione esses pontos com a formação da Liga das Nações. Em um segundo momento, reflita sobre as principais semelhanças e diferenças entre a criação da Liga das Nações e das Nações Unidas. Seus pressupostos teóricos são os mesmos? Em sua opinião, qual é a principal diferença entre essas organizações, e por que elas existem? 14 FINALIZANDO Nesta aula, nosso objetivo foi trazer uma introdução sobre as perspectivas das principais teorias das relações internacionais sobre o papel das organizações e dos regimes internacionais. Os dois primeiros temas abrangeram, de modo geral, a importância que as OIs têm no desenvolvimento teórico. Também apresentamos o conceito da cooperação internacional. Os temas seguintes, por sua vez, trataram do debate neo-neo, do construtivismo e da teoria crítica, respectivamente, enfatizando a relação entre essas correntes teóricas e as instituições internacionais. 15 REFERÊNCIAS COX, R. W.; SCHECHTER, M. G. The political Economy of a Plural World: Critical Reflections on Power, Morals and Civilization. Londres: Routledge, 2002. FINNEMORE, M.; SIKKINK, K. International norm dynamics and political change. International organization, v. 52, n. 4, p. 887-917, 1998. GANNOUM, N. M. Teoria dos jogos e ganhos relativos: condicionantes estratégicos de cooperação internacional. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, 2010. HERBERT, A. L. Cooperation in International Relations: A Comparison of Keohane, Haas and Franck. Berkeley Journal of International Law, v. 14, n. 1, p. 222-238, 1996. HERZ, M.; HOFFMAN, A. Organizações internacionais: história e práticas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. KEOHANE, R. O. 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