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REGIMES E ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 4 Profª Devlin Biezus 2 CONVERSA INICIAL O principal objetivo desta aula é apresentar a evolução do regime internacional de comércio. Assim, contextualizamos o surgimento do Acordo Geral de Tarifas e Comércios (Gatt) e os fatores que levaram à formação da Organização Mundial do Comércio (OMC). O primeiro tema apresenta o desenvolvimento do regime internacional de comércio no pós-Segunda Guerra Mundial. O segundo tema discute o surgimento do Gatt, suas limitações e o contexto que possibilitou o surgimento da OMC. O terceiro tema apresenta o papel da OMC no cenário comercial contemporâneo e o quarto tema dá destaque à participação das coalizões e dos países em desenvolvimento no âmbito da OMC. Por fim, o quinto tema trata da participação brasileira na OMC, enfatizando os contenciosos do Brasil perante o Órgão de Solução de Controvérsias. TEMA 1 – COMÉRCIO INTERNACIONAL: ABERTURA E PROTECIONISMO Para compreender o regime internacional de comércio, também é necessário entender as implicações teóricas que regem essas relações comerciais. Em uma perspectiva teórica, o regime internacional de comércio é fundamentado no argumento de que o comércio entre as nações aumenta a interdependência entre elas. Assim, gerando maior disposição para os Estados cooperaram entre si. Esse argumento é desenvolvido por duas lógicas: a primeira afirma que quanto mais complexas forem as relações comerciais entre Estados, menor seria a disposição de estes entrarem em conflito violento um contra o outro; a segunda afirma que o papel das instituições seria fundamental e o melhor caminho para solucionar conflitos comerciais e gerenciar as relações comerciais internacionais, uma vez que a interdependência entre Estados tenderia ser cada vez maior e mais complexa (Onuki; Agopyan, 2020). As relações comerciais formam uma importante área de relação entre unidades políticas, mesmo anteriormente à formação moderna dos Estados. Por isso, Herz e Hoffmann (2004, p. 143) consideram que o desenvolvimento do comércio internacional funciona de maneira conjunta ao desenvolvimento do próprio sistema internacional. Ao longo dos séculos, inúmeros acordos visavam a simplificar relações comerciais. Contudo, o regime internacional de comércio surgiu no cenário pós-Segunda Guerra Mundial (Herz; Hoffmann, 2004). 3 O marco de início para o regime de comércio internacional é o Acordo de Bretton Woods, negociado em 1944, cujo objetivo foi planejar a cooperação econômica internacional no pós-Guerra, evitando que os Estados adotassem medidas protecionistas – tal como havia acontecido com o comércio internacional após a Primeira Guerra Mundial. Decidiu-se que seriam criadas dentro do sistema das Nações Unidas três organizações responsáveis por esse planejamento: Fundo Monetário Internacional (FMI); Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird); e Organização Internacional do Comércio (OIC) (Herz; Hoffmann, 2004). O principal objetivo do FMI, segundo Bretton Woods, seria “estabelecer e supervisionar um sistema internacional de taxas de câmbio fixas para promover a estabilidade de moedas, evitando desvalorizações competitivas” (Herz; Hoffmann, 2004). Na prática, o FMI ficou responsável por coordenar o novo padrão cambial ouro-dólar, fixando uma taxa de 35 dólares por uma onça de ouro (Almeida, 2001). Contudo, durante a década de 1970, os Estados Unidos romperam unilateralmente com o padrão ouro-dólar e, em 1973, o FMI perdeu sua jurisdição acerca das paridades cambiais internacionais (Almeida, 2001). Uma segunda função do FMI, reforçada após a década de 1970, é o fornecimento de créditos a curto prazo para países com desequilíbrio em suas balanças de pagamentos (Herz; Hoffmann, 2004). A segunda instituição criada por Bretton Woods, o Bird, atualmente denominado Banco Mundial, teria o objetivo de fornecer créditos a longo prazo para financiamento de projetos de reconstrução dos países assolados pela Segunda Guerra (Herz; Hoffmann, 2004). A terceira instituição planejada por Bretton Woods seria a Organização Internacional do Comércio (OIC). As negociações para sua criação aconteceram em Havana, entre 1947 e 1948. Ao fim da Conferência, a Carta Constituinte da OIC foi assinada, mas essa organização não foi criada. Isso porque os Estados Unidos não ratificaram a criação da organização perante seu Congresso. Além da negociação da criação da OIC, a Conferência de Havana também contou com a negociação entre 23 países, dos 50 presentes, sobre a redução de tarifas comerciais. O resultado dessas negociações foi o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), que entrou em vigor em 1948. O Gatt assumiu o papel de uma organização para coordenar a cooperação comercial, mas de forma menos institucionalizada do que seria a OIC (Herz; Hoffmann, 2004). 4 O surgimento dessas instituições marca o atual regime internacional de comércio, pois ao longo do século XX o comércio internacional deixou de majoritariamente regido por acordos bilaterais para ser negociado no âmbito multilateral das instituições (Almeida, 2001). Esse regime demonstra diferenças entre o cenário protecionista do comércio internacional antes da Segunda Guerra e o cenário pós-Segunda Guerra, marcado pelo discurso de livre comércio. Nesse ambiente, fatores como barreiras tarifárias e não-tarifárias ganharam um importante espaço nas discussões internacionais (Almeida, 2001). Devido a esse cenário de crescente complexidade das relações comerciais entre Estados, o Gatt se demonstrou inapto para solucionar contenciosos que iam além das questões tarifárias. Com o intuito de endereçar essas novas questões do comércio internacional, a Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada, em 1994, a partir da Rodada Uruguai do Gatt e, atualmente, possui 164 membros. TEMA 2 – DO ACORDO GERAL DE TARIFAS E COMÉRCIO À ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO Em 1914, a eclosão da Primeira Guerra Mundial interrompeu um período de crescimento econômico e de relações comerciais internacionais. Após a Grande Guerra, as tarifas para mercadorias estrangeiras dentro dos Estados ficaram mais altas em comparação ao período anterior, marcando um cenário protecionista no comércio internacional. Esse cenário ficou ainda mais exacerbado após a crise econômica de 1929, diminuindo de maneira considerável as trocas comerciais entre Estados (Mavroidis et al., 2009). Após a Segunda Guerra, buscou-se diminuir tarifas e barreiras comerciais para aumentar as trocas internacionais de mercadorias. Como visto, FMI, Bird e Gatt foram instituições criadas com objetivo de facilitar e incentivar o comércio internacional. Os Estados Unidos foram um importante ator na criação dessas organizações, sendo que essa participação pode ser explicada por duas narrativas diferentes. A primeira justifica à redução de barreiras comerciais após a guerra, é o argumento de que as políticas comerciais liberais e o desenvolvimento do comércio seriam essenciais para a fundação de uma estrutura de paz no âmbito internacional; crença inclusive compartilhada pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, da administração de Franklin D. Roosevelt, Cordell Hull (Mavroidis et al., 2009). 5 A segunda interpretação para o surgimento das instituições comerciais e financeiras no pós-Segunda Guerra possui viés crítico, pois busca problematizar o papel de dominação dos Estados Unidos perante o sistema internacional. Em síntese, a interpretação entende os Estados Unidos exerceriam um papel de hegemonia ideológica no cenário pós-Segunda Guerra. Isso significa que sua liderança seria baseada no poder coercitivo e no papel de demonstrar que é benéfica a todos os Estados (Pereira, 2011). Assim, a criação do Gatt e do FMI seria um exemplode como essa liderança foi estabelecida. Essa contextualização é necessária para compreendermos as implicações teóricas do regime de comércio internacional em que surgiu o Gatt. Como destacado, o Gatt foi formulado com o intuito de ser um arranjo interino e complementar à OIC. Nesse sentido, o Gatt não foi criado para ser uma organização, mas um acordo de comércio sobre barreiras tarifárias (Mavroidis et al., 2009); funciona como um acordo que trata do comércio de bens. Portanto, não abrange com profundidade questões relacionadas ao comércio de serviços e propriedade intelectual, por exemplo. Dois grandes princípios guiaram as ações do Gatt: o princípio da nação mais favorecida e o princípio do tratamento nacional (Carneiro, 2011). O princípio da nação mais favorecida indica que qualquer vantagem, ou privilégio, dado por uma nação a algum produto originado de outra nação, deverá ser concedido a qualquer Estado (Carneiro, 2011). Em um exemplo hipotético, se o Brasil reduz barreiras tarifárias da importação de trigo da Argentina, deve aplicar a redução também a todos os países que importam trigo do Brasil. O segundo princípio, tratamento nacional, significa que deve existir tratamento idêntico entre produtos nacionais e importados dentro do mercado doméstico, isto é, a indústria doméstica deveria evitar medidas protecionistas, como o aumento de impostos sobre produtos importados, e buscar igualar seu mercado doméstico ao internacional (Carneiro, 2011). Uma exceção para esse princípio foi negociada em 1976, diferenciando o tratamento com países em desenvolvimento. Entre 1947 e 1994, o Gatt possuiu oito rodadas de negociação. Essas negociações objetivavam reduzir tarifas comercias, medidas antidumping e barreiras não tarifárias (Herz; Hoffmann, 2004). Devido à abrangência e complexidade nas negociações, elas poderiam perdurar por anos até que os Estados chegassem a um consenso. A última rodada do Gatt foi a Rodada Uruguai (1986-1994), que já trazia discussões comerciais mais complexas e que 6 até então não eram abrangidas pelo Gatt, como maior ênfase nas barreiras não tarifárias, subsídios e produtos agrícolas, propriedade intelectual e produtos têxteis (Herz; Hoffmann, 2004). Entre esses temas, é importante definir a barreira não tarifária. As barreiras não tarifárias podem ser compreendidas como dificuldades impostas por um Estado, por meio de leis, regras ou normas, que visam a restringir a importação (Nicacio, 2017). Como exemplo, podemos citar regulamentos técnicos, medidas fitossanitárias e regras de origem. Os problemas que começaram a ser tratados pela Rodada Uruguai demonstraram que o Gatt não estava preparado para tais discussões, visto que a rodada durou oito anos. Isso esclareceu aos Estados, que faziam parte do Gatt, que a eficiência do acordo estaria comprometida caso não houvesse uma reforma. Dessa maneira, decidiu-se pela criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). A partir desse contexto, é possível perceber que a OMC não foi criada como ruptura do regime internacional de comércio que havia se desenvolvido até o momento, mas, sim, como meio de ampliar esse regime. Com isso, todos os acordos negociados anteriormente ao Gatt foram inseridos na OMC (Herz; Hoffmann, 2004). TEMA 3 – A OMC E A LIBERALIZAÇÃO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL Como a criação da OMC teve o objetivo de ampliar e melhor institucionalizar o Gatt, seu princípio continuou o mesmo: a não discriminação comercial entre parceiros, devido à cláusula da nação mais favorecida. Apesar de os princípios serem àqueles previamente existentes, a OMC trouxe algumas inovações para lidar com negociações comerciais cada vez mais complexas e com mais países participantes. Os órgãos que formam a OMC são a Conferência Ministerial, o Secretariado, o Conselho Geral e os Conselhos Setoriais. O principal órgão é a Conferência Ministerial, composta por representantes de todos Estados- membro. A Conferência Ministerial se reúne a cada dois anos e realiza a tomada de decisões por meio do consenso. Todos membros têm direito a um voto, diferentemente do processo de votação de organizações como o FMI e o Banco Mundial – nessas organizações os membros que dão maior contribuição financeira possuem maior poder de veto (Herz; Hoffmann, 2004). Contudo, esse princípio do Conselho Ministerial – de “um membro, um voto” – não implica, 7 necessariamente, em um princípio de igualdade entre os Estados-membro. Isso porque os países mais desenvolvidos e economicamente mais fortes conseguem exercer maior influência sobre os membros mais fracos (Herz; Hoffmann, 2004). O Secretariado da organização possui sede em Genebra, na Suíça, e é composto por cargos administrativos. A Conferência Ministerial aponta o diretor- geral do Secretariado, contudo, esse cargo possui apenas poderes administrativos, não participando nos processos de negociações ou no processo de preparação da agenda (Herz; Hoffmann, 2004). O Conselho Geral é o primeiro órgão hierarquicamente abaixo da Conferência Ministerial; é composto por representantes de todos os Estados- membro e entre suas principais funções está a supervisão dos três conselhos subordinados: Conselho de Comércio e Mercadorias; Conselho de Comércio e Serviços; e Conselho dos Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Carneiro, 2011). Esses Conselhos também possuem representantes de todos os Estados-membro da OMC, cada um com direito a um voto e decisões tomadas por consenso (Herz; Hoffmann, 2004). Durante as negociações, uma prática entre os Estados-membro é a formação de coalizões de acordo com interesses ou regiões. Assim, as coalizões correspondem aos blocos de integração regional, como Mercosul, Tratado Norte- Americano de Livre Comércio (Nafta), União Europeia e Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean). Alguns exemplos de coalizões formadas devido a interesses convergentes são o Grupo Africano, o Grupo dos Países Menos Desenvolvidos, os Estados da África, Caribe e Pacífico (ACP), o Grupo Cairns e o G-20 (Herz; Hoffmann, 2004). A formação dessas coalizões serve como forma de alinhar os interesses dos Estados, podendo apresentar maior poder de barganha durante as negociações. É possível destacar três principais inovações trazidas pela OMC em relação ao Gatt. A primeira é o método de negociação realizado pela organização, denominado single undertaking. Isso significa que todos os itens das negociações necessitam estar inclusos no final de cada rodada da negociação, ou seja, uma rodada só termina depois que todos os pontos estejam decididos (Herz; Hoffmann, 2004). A segunda inovação trazida pela OMC é o sistema de solução de controvérsias, formado pelo Órgão de Solução de Controvérsias, já existente no Gatt, e pelo Órgão Permanente de Apelação, criado no âmbito da OMC. A 8 principal mudança em relação à solução de controvérsias do Gatt é que, no sistema da OMC, as decisões tomadas pelos órgãos de solução de controvérsias são automaticamente vinculantes. Isso significa que o parecer dado pelo órgão possui obrigatoriedade jurídica e, sendo assim, todos Estados-membro devem cumprir as decisões em boa-fé (Lafer, 1996). A composição do Órgão de Solução de Controvérsias é realizada pelos membros do Conselho Geral, sendo sua principal responsabilidade a mediação política de qualquer conflito comercial entre os membros da OMC (Herz; Hoffmann, 2004). Esse processo é realizado por meio de painéis em que, ao final do processo, os mediadores apresentaram uma decisão. Diferentemente do que acontecia no Gatt, a parte perdedora pode recorrer seu caso ao Órgão de Apelação (Herz; Hoffmann, 2004). A terceira inovação que a OMC traz em relação ao Gatt é a criação do Órgão de Revisão de Políticas Comerciais, composto pelos membros do Conselho Geral e com a responsabilidadede monitorar a política comercial dos Estados-membro da OMC – ação realizada por meio de relatórios bianuais, quadrienais ou sexenais, dependendo do grau de participação do Estado na economia comercial mundial. Esses relatórios são denominados Trade Policy Reviews e podem contribuir com o aumento da transparência da política comercial dos membros da organização (Herz; Hoffmann, 2004). Apesar de a OMC trazer essas inovações que contribuem na ampliação do papel da organização perante o regime de comércio, também é necessário salientar algumas críticas direcionadas à atuação da OMC no sistema internacional. Há duas principais críticas direcionadas à OMC: a primeira está ligada com a relação da organização e as demais Organizações Não Governamentais (ONGs). Algumas ONGs, principalmente àquelas que advogam de modo contrário aos efeitos da globalização, alegam que há pouca transparência entre a OMC e a sociedade civil. Ainda, se argumenta que a agenda liberalizante da organização contribui com a desigualdade econômica mundial. As ONGs não podem participar dos processos de negociação da OMC, mas, devido aos seus protestos, obtiveram acesso às plenárias das Conferências Ministeriais (Herz; Hoffmann, 2004). A segunda crítica é direcionada ao modo como a OMC enfrenta seus impasses nas rodadas de negociações. A polarização entre países desenvolvidos e em desenvolvimento é o principal causador desse impasse. Um exemplo é a criação do grupo G-21, liderado pelo Brasil, e que tem como objetivo 9 pleitear o fim dos subsídios agrícolas nos países desenvolvidos (Herz; Hoffmann, 2004). Na próxima seção temática, a atuação dos países em desenvolvimento na OMC será analisada com maior profundidade. TEMA 4 – O PAPEL DOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO E DAS COALIZÕES NA OMC A Rodada de Seattle, realizada em novembro de 1999, marcou um importante impasse nas negociações devido aos embates de interesses entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os Estados-membro não conseguiram lançar as negociações devido a esses pontos de discordância (Onuki; Agopyan, 2020). Apesar de terem se exacerbado no período dos anos 2000, as problemáticas entre países norte-sul são datadas desde o surgimento do Gatt. O próprio Gatt contou com a maioria de seus membros sendo Estados do norte global, visto que os países em desenvolvimento já criticavam o organismo por não levar em consideração as peculiaridades de suas economias (Mane, 2005). A partir desse contexto, viu-se a necessidade de ampliar as discussões do Gatt para que questões políticas comerciais fossem abordadas. Assim, a Parte IV do Gatt surgiu como uma forma de lidar com diferentes situações econômicas entre norte e sul. A Parte IV do Gatt apresentou cláusulas que endereçavam tratamento especial diferenciado para países em desenvolvimento (Mane, 2005). No âmbito da OMC, as cláusulas compensatórias para países em desenvolvimento foram reduzidas, mesmo havendo mais membros do Sul global em comparação ao Gatt. Num contexto de fim da Guerra Fria e expansão do liberalismo, o entendimento da OMC era de que o mero desenvolvimento comercial seria suficiente para reduzir a desigualdade econômica nas relações Norte-Sul (Mane, 2005). Assim, embates que tiveram papel importante em Seattle também marcaram a Rodada Doha, iniciada em 2001. Para os países em desenvolvimento, a rodada deveria enfatizar negociações nas áreas agrícolas e têxteis. Já para os países desenvolvidos, a prioridade era o desenvolvimento de uma agenda ampla de negociações (Onuki; Agopyan, 2020). Para que os países em desenvolvimento pudessem negociar com mais eficácia, foram realizadas coalizões dentro do âmbito da OMC. Um exemplo paradigmático de um caso de sucesso em que uma coalização teve a seu favor, 10 foi a negociação sobre os regulamentos da propriedade intelectual na saúde pública. Nessa negociação, os países em desenvolvimento obtiveram sucesso ao tratar da quebra de patentes dos medicamentos usados para tratamento do HIV. Assim, houve uma garantia de que as quebras de patentes não resultariam numa punição comercial nos casos de saúde pública (Onuki; Agopyan, 2020). Além da da saúde pública, a agricultura também é um tema que converge os interesses dos países em desenvolvimentos e é confrontado pelos países do norte global. O Acordo de Agricultura da OMC foi negociado durante a Rodada Uruguai (1986-1994), que conta com medidas de auxílio aos produtores agrícolas e trata de questões sobre o acesso aos mercados internacionais. O acordo também está voltado às barreiras tarifárias existentes sob produtos agrícolas, com o intuito de diminuir impasses na regulamentação e os subsídios agrícolas (Onuki; Agopyan, 2020). O problema do subsídio agrícola se dá devido à distorção que ele pode causar no comércio internacional. Por exemplo, um Estado pode dar subsídios ao seu setor agrícola e baratear de forma artificial suas commodities, criando vantagem competitiva no mercado internacional. O exemplo emblemático de coalizão formada na OMC é o já citado G-20 das nações em desenvolvimento, criado durante a Reunião Ministerial em Cancún, em 2003. Entre os membros, estão Estados como África do Sul, China, Índia, Argentina, Brasil e Turquia. A coalização possui um papel importante nas negociações, porque foi capaz de defender os interesses dos países em desenvolvimento nas negociações comerciais (Onuki; Agopyan, 2020). O tema central dos interesses do G-20 é a agricultura, buscando negociar a diminuição dos subsídios e das barreiras tarifárias e não tarifárias dos países desenvolvidos. Como um dos líderes do G-20, o Brasil busca avançar a problemática do acesso aos mercados pelos produtos agrícolas brasileiros dos demais países do sul global nas negociações comerciais. Entre outros temas que os países em desenvolvimento buscam solucionar, estão os subsídios das exportações e a barreira sanitária, que pode ser utilizada como barreira não tarifária para exportações dos países em desenvolvimento (Onuki; Agopyan, 2020). TEMA 5 – O BRASIL NA OMC: PRINCIPAIS CONTENCIOSOS Como demonstrado no tema anterior, a participação dos países em desenvolvimento é um aspecto crucial no âmbito da OMC. Por meio da formação de coalizões, esses países conseguem barganhar e pautar seus interesses de 11 forma mais eficaz do que tomando ações unilateralmente, e o sistema de resolução de controvérsias da OMC permite que os contenciosos comerciais sejam solucionados de forma diplomática. Neste tema, trabalharemos alguns dos principais contenciosos em que o Brasil fez parte. A importância das exportações de commodities na economia brasileira fez com que o Brasil fosse um dos membros mais atuantes no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, principalmente após a crise financeira de 2008. Isso porque após a crise os países desenvolvidos passaram a aumentar as barreiras tarifárias e não tarifárias aos produtos brasileiros (Geraldello, 2019). A participação ativa do Brasil no Órgão de Solução de Controvérsias está relacionada à natureza da política externa do governo de Fernando Henrique Cardoso e do governo de Lula, que embora com enfoques diferentes, ambos os governos deram prioridade ao multilateralismo frente aos acordos bilaterais. Nesse sentido, o Brasil passou a usar do fórum da OMC como meio de denuncia às práticas protecionistas assimétricas dos países desenvolvidos (Geraldello, 2019). Entre 1995 e 2018, o Brasil abriu 32 contenciosos no Órgão de Solução de Controvérsias. Entre eles, 16 do setor agropecuário e 13 do setor industrial (Geraldello, 2019). Aqui, três casos serão destacados: os contenciosos do suco de laranja, do algodão e das patentes dos remédios de tratamento do HIV. Durante 1981 e 1982, o Brasil se tornou o maior produtor mundial de laranjas e de suco de laranja industrializado. Essa posiçãoveio após a queda da produção dos Estados Unidos devido a problemas climáticos. A partir dessa década, os Estados Unidos têm usado mecanismos protecionistas para dificultar a entrada do suco de laranja brasileiro em seu mercado e criar impasses comerciais ao produto brasileiro. Como consequência, o Brasil levou essa questão à OMC em dois períodos diferentes: 2002 e 2008 (Geraldello, 2019). O principal argumento dos Estados Unidos era de que o Brasil utilizava da prática de dumping no caso das exportações do suco de laranja. Essa prática ocorre quando um país vende seu produto externamente com valor muito abaixo do que é vendido internamente, criando uma competitividade desleal. Em contrapartida, o Brasil argumentou que a metodologia que os Estados Unidos estavam utilizando para calcular a prática de dumping era controversa (Lohbauer; Abrahão, 2011). O resultado desse contencioso veio em 2011, ocasião em que o Órgão de Solução de Controvérsias considerou que os 12 Estados Unidos estavam utilizando barreiras comerciais não compatíveis com o regime internacional e com as normas da OMC (Geraldello, 2019). A disputa do algodão envolveu mais uma vez Brasil e Estados Unidos. Em 2003, a OMC concedeu um painel ao Brasil em que se questionava a legalidade dos subsídios dados aos produtores de algodão estadunidenses (Oliveira, 2007). A atuação brasileira se deu pelo Ministério das Relações Exteriores em conjunto com produtores brasileiros de algodão – que haviam demandado uma solução para essa problemática. O argumento brasileiro foi de que a Lei Agrícola dos Estados Unidos criava subsídios distorcendo o comércio internacional da commodity. Dessa forma, os Estados Unidos conseguiam uma parcela maior de compradores devido ao seu preço baixo (Oliveira, 2007). A equipe brasileira buscou provar aos mediadores da OMC que os Estados Unidos haviam concedido subsídios de uma quantia em torno de US$ 12,9 bilhões aos seus produtores de algodão, num período de quatro anos. Assim, um “valor muito além dos US$ 8 bilhões permitidos conforme compromissos assumidos durante a Rodada Uruguai” (Oliveira, 2007, p. 22). Em 2004, a organização emitiu um parecer favorável ao Brasil, anunciando ilegalidade nos subsídios estadunidenses. Por fim, o contencioso sobre as patentes de remédios para tratamento do HIV também envolveu Brasil e Estados Unidos. Nesse caso, o Brasil se opôs aos laboratórios farmacêuticos estadunidenses, demandando a quebra das patentes dos medicamentos. Essas patentes criavam exclusividade de produção e comercialização de tais medicamentos. Dessa forma, o governo brasileiro argumentou que as questões de saúde pública deveriam se sobressair às questões de lucro dos laboratórios farmacêuticos (Oliveira, 2007). O início dessa disputa se deu com uma acusação feita pelos Estados Unidos ao Brasil, alegando que o país estaria desrespeitando acordos de propriedade intelectual internacionais. Isso ocorreu após a aprovação da lei brasileira n. 9.279/1996, que previa o uso de licença compulsória nos casos de emergência nacional ou interesse público (Oliveira, 2007). Dessa forma, em 2001, os Estados Unidos pediram abertura de um painel no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Em junho do mesmo ano, Estados Unidos e Brasil chegaram a um acordo considerado como vitória para o Brasil, pois os “Estados Unidos admitiram a possibilidade de quebra de patentes em questões de saúde pública de países em desenvolvimento” (Oliveira, 2007, p. 17). 13 Apresentar essa discussão é importante para compreender a característica multilateral da diplomacia brasileira. Nesse sentido, diante da OMC, o Brasil conseguiu pareceres favoráveis em disputas com países desenvolvidos e economicamente mais fortes. NA PRÁTICA O filme Batalha em Seattle, dirigido por Stuart Townsend, mostra o peso que os protestos contrários à OMC tiveram politicamente. Tais protestos ocorreram em 1999, durante a rodada da organização na cidade de Seattle, nos Estados Unidos. Assista ao trailer do filme e relacione pautas sociais e políticas tratadas por esses protestos com o papel da OMC na liberalização os comércios internacionais. No link <https://www.youtube.com/watch?v=6DTVLCGQmlE>, você pode acessar o trailer legendado. FINALIZANDO Nesta aula, buscamos apresentar a formação do regime internacional de comércio. Para isso, o contexto histórico de surgimento das instituições comerciais após a Segunda Guerra Mundial foi destacado e as mudanças nesse sistema, que culminaram com a formação da OMC, foram explicadas. Além disso, enfatizamos o papel dos países em desenvolvimento perante à OMC e a formação de coalizões. Por fim, discutimos a participação brasileira na organização em relação aos contenciosos. 14 REFERÊNCIAS CARNEIRO, P. T. Organização Mundial do Comércio: histórico, estrutura e problemática entre os países do norte e do sul. In.: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 92, set. 2011. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id =10319&revista_caderno=16 >. Acesso em: 07 abr. 2020. GERALDELLO, C. S. Brasil e contenciosos na OMC: uma análise sobre o processo de tomada de decisão brasileiro. 7º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais. Belo Horizonte, 2019. HERZ, M.; HOFFMANN, A. R. Organizações Internacionais – história e práticas. Rio de Janeiro: Ed. 2004. LAFER, C. O sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 91, p. 461-488, 1996. LOHBAUER, C.; ABRAHÃO, L. P. O contencioso do suco de laranja entre Brasil e Estados Unidos na OMC. Revista Política Externa, v. 20, n. 2, 2011. PEREIRA, A. E. Três perspectivas sobre a política externa dos Estados Unidos: poder, dominação e hegemonia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, p. 237-257, 2011. MANE, C. Relações norte-sul e o tratamento especial e diferenciado na OMC. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização (substituída pela Revista de Direito Internacional), v. 2, n. 2, 2005. MAVROIDIS, P. C.; IRWIN, D. A.; SYKES, A. O. The Genesis of the GATT. Cambridge University Press, 2009. ONUKI, J.; AGOPYAN, K. K. Organizações Internacionais. Curitiba: Editora Uninter, 2020.
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